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Estados bíblicos: circulação e acionamento de produções audiovisuais bíblicas em contextos estatais no Brasil recente

Biblical states: diffusion and actuating of biblical TV series and soap-operas in contexts of state in recent events at Brazil

Resumo

A Rede Record vem veiculando produções de temática bíblica desde 2010 e guarda a especificidade de ser propriedade do líder de uma igreja neopentecostal, a Igreja Universal do Reino de Deus. Este artigo acompanha como produções desse ciclo bíblico têm tido participações em contextos estatais em eventos dos anos de 2019, 2021 e 2022, nos poderes Executivo e Legislativo, bem como reações e controvérsias a estas. O maior fato encadeado nessa rede é a compra pela Empresa Brasil de Comunicação da telenovela Os dez mandamentos para exibição na TV Brasil, uma emissora estatal. Pode-se dizer que essa passagem ao estatal produz certa indeterminação entre as instâncias do estatal e do religioso, ou que as complexifica. O afluxo de mídias bíblicas coproduzidas por uma igreja neopentecostal para meios estatais também importa para a discussão sobre o fomento público a produções de tema religioso, com implicações importantes para o tema da cultura.

Palavras-chave:
Estado e mídias; evangélicos; mídias religiosas; política e mídia

Abstract

Record Television has been broadcasting biblical-themed productions since 2010 and it’s marked by being property of the leader of a neo-Pentecostal church, Igreja Universal do Reino de Deus. This papers follows how the productions of this biblical cycle have had participate in state contexts in events occurred in 2019, 2021 and 2022, in the Executive and Legislative branches, as well as the reactions and controversies to these participations. The biggest event linked in this network is the purchase by Empresa Brasil de Comunicação of the soap-opera Os dez mandamentos to be shown on TV Brasil, a state-owned broadcaster. I argue that this passage to state induces certain indeterminacy between the instances of the brazilian state and the religious ones, or that it makes them more complex. The course of biblical medias co-produced by an evangelical church to state medias is also relevant for the issue of the religious media promotion, regarding important issues to the matters of culture.

Keywords:
evangelicals; politics and media; religious medias; state and medias

Introdução

Este texto aborda a entrada em campos estatais de produções audiovisuais de tema bíblico em episódios recentes da vida política nacional. Essas mídias foram veiculadas pela Rede Record de Televisão, emissora aberta (e, como tal, uma concessão pública) que tem a especificidade de ser propriedade do líder de uma igreja neopentecostal, a Igreja Universal do Reino de Deus. A teledramaturgia bíblica produzida pela Record vem sendo veiculada desde 2010, em horários centrais de sua grade noturna. Segue em curso1 1 O ano de 2020, em razão da necessidade de distanciamento social imposta pela pandemia de Covid-19, modificou o calendário de produção audiovisual no país como um todo. No caso da Record, as novelas em exibição foram “pausadas” e duas reprises de cartazes bíblicos entraram ao ar às 20h e às 21h30: Apocalipse e Jesus, a partir de abril de 2020 e até o momento em que a produção de telenovelas se viabiliza novamente. e construiu, desde então, um conjunto de produções bastante amplo. São quatro minisséries (A história de Ester, Sansão e Dalila, Rei Davi, José do Egito e Lia, de, respectivamente, 2010, 2011, 2012, 2013 e 2018), uma série semanal de duas temporadas (Milagres de Jesus, de 2014 e 2015), sete novelas finalizadas (Os dez mandamentos, de 2015/2016, A Terra Prometida, de 2016, O rico e Lázaro, de 2017, Apocalipse, também, de 2017, Jesus, de 2018, Jezabel, também de 2018 e Gênesis, de 2021), além de Reis, no ar no presente de escrita deste texto (desde 2022, sua previsão de finalização é 20242 2 Ver Vaquer (2023). ).

Parte-se aqui de uma perspectiva centralizada nas formas de acionamento dessas mídias e de, assim, “segui-las” quando se apresentam em terrenos caracterizáveis como estatais. Conforme argumento, as produções artísticas/midiáticas não são secundárias ou ilustrações de lutas anteriores, mas são tratadas aqui segundo sua capacidade de agenciar processos e produzir vínculos de coletivos (Machado, C., 2014MACHADO, C. Introdução ao dossiê Religião e Mídia. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 139-145, 2014.; Meyer, 2019MEYER, B. De comunidades imaginadas a formações estéticas: mediações religiosas, formas sensoriais e estilos de vínculo. In: GIUMBELLI, E.; RICKLI, J.; TONIOL, R. Como as coisas importam: textos de Birgit Meyer. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2019. p. 43-80.; Meyer; Moors, 2006MEYER, B.; MOORS, A. Introduction. In: MEYER, B.; MOORS, A. (ed.). Religion, media and the public sphere. Bloomington: Indiana University Press, 2006. p. 1-25.). Tal tratamento torna mais perceptível o trabalho de mediação propriamente operado por cada produção midiática, a qual deve ser avaliada em seu arranjo e em suas consequências, caso a caso, no lugar de tomar as produções como meros intermediários (Latour, 2012LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à teoria ator-rede. Salvador: Edufba; Bauru: Edusc, 2012.).

Tomo de empréstimo a expressão “estados” de Spivak e Butler (2018)SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018. seguindo a sugestão das autoras sobre a produtividade de buscar compreender estudos globais e formas estéticas de forma articulada. Um deslocamento importante que as autoras fazem é o de pensar o âmbito do político para além de certos marcos usuais para a formação de coletivos, como as religiões (em seu sentido estrito, como uma religião específica) e o Estado-Nação. Refletindo especialmente sobre a palavra “estado”, as autoras consideram compreendê-lo como adjetivo, como “as condições em que estamos”. Ao enfatizar o que chamam de formas não autorizadas de reiterar a nação, Spivak e Butler (2018SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018., p. 58) nos convidam a atentar para as reinvindicações que se fazem de forma estética (pela ocupação do espaço público com palavras e cantos) de forma a reclamar pertencimento, segundo o que consideram “contradições performativas”, entendidas como formas de agir que se dão para além do registro normativamente previsto.3 3 O exemplo do hino estadunidense explicita o que as autoras estão chamando de “contradições performativas”. Resumidamente, a lei norte-americana proíbe a execução do hino nacional em uma língua que não seja o inglês. Imigrantes, contudo, cantaram uma versão traduzida para o espanhol do hino em estado de multidão. Ver Spivak e Butler (2018, p. 58).

Ao enfatizar o processo de circulação de itens culturais como as produções televisivas, a pesquisa concorda com a perspectiva da pesquisadora Lila Abu-Lughod (2006)ABU-LUGHOD, L. Interpretando la(s) cultura(s) despúes de la televisión: sobre el método. Iconos: revista de ciencias sociales, [s. l.], v. 24, n. 1, p. 119-141, 2006. e responde ao chamado para desfazer a “recusa etnográfica” acerca da televisão como tema de importância antropológica. Abu-Lughod (2006ABU-LUGHOD, L. Interpretando la(s) cultura(s) despúes de la televisión: sobre el método. Iconos: revista de ciencias sociales, [s. l.], v. 24, n. 1, p. 119-141, 2006., p. 121) tem se dedicado ao estudo da mídia televisiva e sua capacidade de produção de vínculo subjetivo. Sem prever formas específicas para o acionamento de produções televisivas, a autora propõe, no lugar do enquadramento junto a macroteorias sobre os efeitos do cinema e da televisão, uma “compreensão situada da mídia” (Abu-Lughod, 2003ABU-LUGHOD, L. Melodrama egípcio: uma tecnologia do sujeito moderno? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 75-102, 2003.).

O chamado à atenção para as questões de moralidade e família sugerido por Abu-Lughod (2003)ABU-LUGHOD, L. Melodrama egípcio: uma tecnologia do sujeito moderno? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 75-102, 2003. guarda semelhanças, como veremos, nos casos de que tratarei neste artigo. O primeiro evento analisado é a compra de Os dez mandamentos para exibição na TV Brasil, emissora que compõe a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em 2021. O segundo evento de presença estatal em produções bíblicas é a concessão de cidadania honorária para produtores da telenovela Jesus, incluindo o seu intérprete, a roteirista principal e o diretor da novela, pela Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Por fim, discute-se a proposta de patrimonialização de “séries e novelas bíblicas” como patrimônio de natureza imaterial do Estado do Rio de Janeiro por meio de um projeto de lei, ora aprovado, de autoria de uma deputada e dois deputados estaduais desse estado. Pelo acompanhamento dessas situações que envolvem distintas instâncias do Estado-Nação (o Executivo federal e os Legislativos estadual e municipal), intenta-se grafar como produções artísticas e midiáticas são partícipes no fazer político nacional recente em diferentes formas, o que envolve discussões sobre cultura e financiamento público, bem como a dimensão da cidadania e do reconhecimento.

Espera-se contribuir com o campo de estudos sobre Estado, mídia e religião a partir da análise dos casos observados. O exame da compra das obras bíblicas para exibição na televisão estatal, em especial, visa a contribuir para as reflexões antropológicas que vêm constituindo uma agenda de pesquisa sobre o fenômeno político do bolsonarismo. Seja discutindo as bases sociais que constroem seu apoio (Pinheiro-Machado; Freixo, 2019PINHEIRO-MACHADO, R.; FREIXO, A. (org.). Brasil em transe: bolsonarismo, novas direitas e desdemocratização. Rio de Janeiro: Cava, 2019.; Pinheiro-Machado; Scalco, 2020PINHEIRO-MACHADO, R.; SCALCO, L. From hope to hate. Hau: journal of etnographic theory, [s. l.], v. 10, n. 1, p. 21-31, 2020.), seja refletindo sobre a afinidade de determinadas religiosidades para com o fenômeno e mesmo o dissenso religioso manifestado a este (Almeida, 2020ALMEIDA, R. de. Evangélicos à direita. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 26, n. 58, p. 419-436, set./dez. 2020.; Gherman, 2022GHERMAN, M. O não judeu judeu: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo. São Paulo: Fósforo, 2022.; Vital da Cunha, 2021VITAL DA CUNHA, C. Irmãos contra o Império: Evangélicos de esquerda nas eleições de 2020 no Brasil. Debates do NER, Porto Alegre, ano 21, n. 39, p. 13-80, 2021.), ou ainda sobre os próprios efeitos de um governo como o de Bolsonaro para o tema da laicidade (Oro, 2022aORO, A. P. Bolsonaro e a laicidade brasileira em questão. Debates do NER, Porto Alegre, ano 22, n. 42, p. 145-172, 2022a., 2022bORO, A. P. Um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal: reações sociais e significados. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 82, n. 322, p. 289-309, 2022b.) e a manifestação pública ao seu governo com elementos de estética bem definida, incluindo a religiosa (Scola, 2020SCOLA, J. Imagens literais demais: pensando elementos estéticos no fazer político do bolsonarismo e suas consequências. Novos Debates, [s. l.], v. 6, n. 1-2, e6205, 2020.), parece-me importante suplementar essas discussões com questões a respeito da produção midiática/audiovisual. O chamado à participação das produções bíblicas por agentes estatais, desta feita, pode ser compreendido como uma forma de ação política que conforma a produção de condições de relações públicas, de “estados” pelo “Estado”, seguindo o argumento de Spivak e Butler (2018)SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018..4 4 Pode ser possível ver certa afinidade do argumento de Butler e Spivak com outras tradições das ciências sociais, como a obra de Norbert Elias (1993), tendo em vista que, para esse sociólogo, as formações de sociedades, observadas por ele em longa duração até a formação de Estados-Nação, guardam íntima relação com atitudes mentais e padrões emocionais. É na torção que a perspectiva das autoras traz a respeito da questão do Estado que me parece existir uma distinção importante. Ao pensarem a relação possível entre literatura e estudos globais e sugerirem a existência de outros “Estados” além do hifenado Estado-Nação (Spivak; Butler, 2018, p. 15), as autoras delineiam um veio para o que chamam de “política radical” no entrelaçamento entre linguagem, política e performance (Spivak; Butler, 2018, p. 62), o qual possibilita reivindicar diferentes modalidades de pertencimento em meio à produção de “estados” pelo “Estado”. Também é possível perceber a convergência da perspectiva das autoras com as análises baseadas nas clivagens dentro do Estado (como Mitchell, 2006; Sharma; Gupta, 2006), que abordarei na terceira seção do texto, salientando o caráter de disputa nesses arranjos estatais.

Os dez mandamentos dos/nos arranjos públicos

Em seu livro Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro, a jornalista Eliane Brum salienta um conjunto de eventos que podem ser vistos como marcas da mentalidade específica da gestão do governo Bolsonaro e sua afinidade com fenômenos mais amplos da sociedade brasileira. Sua pesquisa foi publicada em 2019 e apresenta eventos identificados com os interesses do contingente evangélico da população, como a proposta de mover a embaixada do Brasil em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém e a participação de Bolsonaro como o primeiro presidente a participar da Marcha para Jesus (Brum, 2019bBRUM, E. Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019b.). Em seu balanço, Brum chega a citar as produções bíblicas da Record e discute a possibilidade destas fomentarem visões absolutistas do “bem” contra o “mal” no terreno da política e a força dessas convicções para a apresentação do presidente como alguém perseguido pelos críticos justamente por estar do lado deste “bem” (Brum, 2019aBRUM, E. A autoverdade e o “povo de deus”. In: BRUM, E. Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019a. p. 260-262.).

Parece-me significativo que a autora tente pensar fenômenos díspares como os citados anteriormente ao refletir sobre a forma bolsonarista de governar. Brum escreveu este texto antes que tivesse acontecido a iniciativa estatal de compra de telenovelas bíblicas da Record de que trataremos aqui. Mas seu insight parece antecipar a afinidade que seria percebida por gestores da comunicação pública federal com a veiculação de produções sobre “o povo de Deus” e um conjunto de interesses que entrelaça os âmbitos da religião, da moral, do Estado e da religião na forma de produções audiovisuais televisivas.

Antes que a compra de Os dez mandamentos tenha sido realizada, com efeito, já estavam em curso discussões envolvendo agentes da cultura do governo federal em favor da veiculação, pelo canal público, de “programações para a família”.5 5 A noção de “família” aqui acionada, com efeito, merece uma discussão própria para não ser tomada como transparente. O que enfatizo é o acionamento do argumento de que uma produção audiovisual específica ser identificada enquanto afinada com “valores familiares” por um órgão de governo. A identificação do conteúdo dessa telenovela (bíblica) e dos agentes que a produziram (posto que a transação é de compra e não de produção estatal de uma obra própria) parecem bons índices para argumentar-se a respeito da questão da “politização da cultura” e a entrada da religião nesse debate, conforme argumentarei em outra seção. Essas negociações teriam acontecido no âmbito da pasta da Cultura, transformada em uma “secretaria especial” pelo governo em exercício; perdendo, portanto, sua posição de ministério. Em medida provisória editada em 1º de janeiro de 2019, data da própria posse de Bolsonaro, o governo eleito extinguiu o Ministério da Cultura e criou, para o tema, a Secretaria Especial da Cultura, inicialmente vinculada ao Ministério da Cidadania e posteriormente alocada no Ministério do Turismo.6 6 A respeito do “fim” do Ministério da Cultura, veja-se a pesquisa de Rafael Moreira e Lincoln Spada (2021). A agudização das iniciativas governamentais em torno do tema da cultura aponta para a longa duração do que Susan Wright (1999)WRIGHT, S. The politicization of “Culture”. Anthropology Today, [s. l.], v. 14, n. 1, p. 7-15, 1999. chamou de “politização da cultura” e do que Michel-Rolph Trouillot (2003)TROUILLOT, M.-R. Global transformations: anthropology and the modern world. New York: Palgrave, 2003. identificou quanto à circulação da noção de cultura junto a demandas sociais por agentes diversos. Conforme o jornalista Lauro Jardim (2020)JARDIM, L. EBC negocia novela da Record para ser exibida na TV Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, 30 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/ebc-negocia-novelada-record-para-ser-exibida-na-tv-brasil.html . Acesso em: 31 ago. 2022.
https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jar...
, de O Globo:

Um novo projeto está nos horizontes da Secretaria Especial de Cultura. Mario Frias participou de uma reunião, na quinta-feira, cuja pauta foi novelas para família. Participaram do encontro a Secretária da Família, Angela Gandra, um assessor do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o diretor da Secretaria do Audiovisual, Hélio Ferraz. A ideia era debater como novelas para família poderiam se encaixar em futuros projetos do setor, mas não há previsão de lançamento de editais públicos para produção desse material.

Segundo material produzido pela própria Agência Brasil de Comunicação, a compra da telenovela se deu num contexto de “busca por alternativas” no contexto de restrição da produção audiovisual provocada pela pandemia de coronavírus:

[…] “Procuramos alternativas para cumprir a nossa missão e, uma delas, foi incentivar a produção nacional - aquelas que se encontram em acervos - e dar visibilidade a grandes obras, licenciando produtos de ponta de outras emissoras/distribuidores de conteúdo do país, como a novela Os 10 Mandamentos, que foi um case de sucesso na tv brasileira e, será revista aqui, na TV Brasil, canal que tem crescido em audiência e relevância ao longo dos anos”, afirma Morales. (Os dez…, 2021OS DEZ mandamentos estreia na TV Brasil. Agência Brasil, Brasília, 2 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-04/os-dez-mandamentos-estreia-na-tv-brasil . Acesso em: 30 set. 2021.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/n...
, grifo meu).

Nas palavras do diretor de programação do canal, portanto, a iniciativa conjuga dois aspectos relativos ao fomento da cultura no país. Um deles é o incentivo à produção nacional, financiada/apoiada por verbas estatais. O outro seria visibilizar “grandes obras”, o que também aponta para o caráter público de apreciação de uma dada produção.

Em matéria da revista Veja de 9 de abril de 2021, provocativamente intitulada “Passando a boiada: Record emplaca ‘Os Dez Mandamentos’ na TV Brasil” (Carneiro; Marthe, 2021CARNEIRO, R.; MARTHE, M. Passando a boiada no ar: Record emplaca ‘Os Dez Mandamentos’ na TV Brasil. Veja, São Paulo, 9 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/tela-plana/passando-a-boiada-no-ar-record-emplaca-os-dez-mandamentos-na-tv-brasil/ . Acesso em: 30 set. 2021.
https://veja.abril.com.br/blog/tela-plan...
), os custos públicos da compra da telenovela da Record são aferidos em mais de três milhões de reais. Um dos efeitos do questionamento da compra pela EBC de Os dez mandamentos, no tocante à oposição da transação por meio do discurso em nome da laicidade, é acionar o seu teor religioso. Dessa forma, ao tomá-la enquanto uma produção audiovisual religiosa, o que se constrói é um enquadramento religioso para essa história que, por tantas vezes, a Record tentou aferir enquanto “bíblica” e, portanto, ocupante de um domínio próprio e exterior em relação ao religioso.

A compra da telenovela não se deu sem resistências por parte dos funcionários da emissora, como reporta a matéria de Igor Carvalho (2021)CARVALHO, I. Compra de novela bíblica da Record por R$ 3,5 mi é questionada dentro da EBC. Brasil de Fato, São Paulo, 5 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/04/05/compra-de-novela-biblica-da-record-por-r-3-5-mi-e-questionada-dentro-da-ebc . Acesso em: 30 set. 2021.
https://www.brasildefato.com.br/2021/04/...
, da agência Brasil de Fato:

“Um contrato estranho, sem qualquer licitação, simplesmente decidiram repassar esse dinheiro para a Record, que pertence a um dos principais aliados do presidente Jair Bolsonaro, que nós sabemos que vem interferindo na EBC com censura e controle de conteúdos. Todo esse contexto nos assusta e nos deixa indignados”, afirma Daniel Ito, jornalista da EBC e diretor do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal.

O contrato entre EBC e Record começou a valer no último dia 15 de março e tem duração até setembro de 2022, às vésperas da eleição. […]

Por ser uma novela com temática religiosa, a compra foi questionada. “Nos causou um grande estranhamento a compra, por se tratar de um produto cultural religioso, vinculado a uma religião. Mesmo que estejamos falando de uma empresa de comunicação pública, em um Estado que deveria ser laico e não privilegiar uma fé em detrimento de outras”, pondera Ito.

Já em maio de 2021, no segundo mês de exibição da novela na TV Brasil, a emissora produziu material em seu site aferindo como a exibição da novela estava aumentando a sua audiência: “Exibida às 20h30, a novela Os Dez Mandamentos garantiu à TV Brasil um aumento de 46% na audiência da faixa horária, com picos de 1,81, 1,32 e 0,74, nas praças do Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente.” Constate-se que não se trata de números muito expressivos (um ponto de audiência, por exemplo). Porém, para o alcance usual da TV Brasil, eles são lidos positivamente (Novela…, 2021NOVELA Os Dez Mandamentos impulsiona horário nobre na TV Brasil. Agência Brasil, Brasília, 7 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-05/novela-os-10-mandamentos-impulsiona-horario-nobre-na-tv-brasil . Acesso em: 30 set. 2021.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/n...
).

A exibição de Os dez mandamentos na TV Brasil propiciou um fenômeno curioso: sendo exibida entre 20h30 e 21h30 da noite, ela entra em competição com Gênesis,7 7 Exibida pela Record entre 19 de janeiro e 22 de novembro de 2021, das 21h às 22h, em 223 capítulos. o cartaz bíblico então inédito da Record, que entra na grade às 21h, no ano de 2021. Isso coloca duas histórias bíblicas em competição num dado momento e, principalmente, faz coincidir a emissora que as produziu, além das recorrências de atores, por exemplo. Na programação da televisão aberta brasileira, a Bíblia compete com a Bíblia, sendo uma das exibições a ocorrer por meio de uma televisão totalmente pública.

No campo das telecomunicações brasileiras, a TV Brasil tem datação bastante recente. Existindo desde 2007, a emissora passou a receber atenção positiva e negativa do então presidente, desde o começo de seu governo. Inicialmente, a sua posição era a de extingui-la, salientando o seu caráter deficitário e tendo-a chamado, por vezes, de uma instituição espúria, de ter sido criada para “aparelhar e inchar” o Estado brasileiro com uma perspectiva à esquerda, durante o segundo governo presidencial de Lula. No entanto, em entrevista de outubro de 2018, recuperada pelo portal Terra, percebe-se uma mudança de posição de Bolsonaro em relação à emissora estatal (Ameaçada…, 2020AMEAÇADA por Bolsonaro, ‘TV do Lula’ agora é útil ao governo. Terra, [s. l.], 16 out. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/tv/blog-sala-de-tv/ameacada-por-bolsonaro-tv-do-lula-agora-e-util-ao-governo,7f3a5bb91e830315651cfc9b4616c7250nzulkwt.html . Acesso em: 30 set. 2021.
https://www.terra.com.br/diversao/tv/blo...
). A mudança na posição do governo já era visível em 2019, quando a “reestruturação” da EBC passou a figurar no plano das metas prioritárias dos primeiros cem dias de governo pelo então ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni (Soares, 2019SOARES, O. De ‘TV que não serve para nada’ a canal elogiado: a reviravolta da EBC com Bolsonaro. Gazeta do Povo, [s. l.], 7 mar. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/de-tv-que-nao-serve-para-nada-a-canal-elogiado-a-reviravolta-da-ebc-com-bolsonaro-8ll0ym7f4bm23svu2i4o858g7/ . Acesso em: 31 jul. 2019.
https://www.gazetadopovo.com.br/politica...
).

No caso da telenovela bíblica exibida pela televisão estatal, a jornalista de televisão Cristina Padiglione (2021)PADIGLIONE, C. Venda de ‘Dez Mandamentos’ da Record para a TV Brasil não tem precedentes. TelePadi, [s. l.], 5 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://telepadi.com.br/venda-de-dez-mandamentos-da-record-para-a-tv-brasil-nao-tem-precedentes/ . Acesso em: 30 set. 2023.
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da Folha de S. Paulo demarca, em coluna de 5 de abril de 2021, o quão “sem precedentes” é a venda de Os dez mandamentos. Entre as questões que levanta, Padiglione localiza o fato de que uma televisão estatal compre com frequência conteúdo de outras emissoras ou produtoras, mas que nunca isso havia acontecido com programações que já haviam sido exibidas na televisão aberta.

Entre os conteúdos comprados pela TV Brasil e que compõem a sua grade, é verdade que existem produções que vêm da GloboSat - portanto, da Rede Globo. O fato de esses programas serem exibidos em programação paga e serem comprados para exibição em janela aberta seria um expediente comum, diferentemente do caso de Os dez mandamentos, em que, para a jornalista, “o cidadão brasileiro está pagando para ver algo que já teve a chance de ver em televisão aberta” - e mais de uma vez, tendo em vista a sua reprise na própria Record (Padiglione, 2021PADIGLIONE, C. Venda de ‘Dez Mandamentos’ da Record para a TV Brasil não tem precedentes. TelePadi, [s. l.], 5 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://telepadi.com.br/venda-de-dez-mandamentos-da-record-para-a-tv-brasil-nao-tem-precedentes/ . Acesso em: 30 set. 2023.
https://telepadi.com.br/venda-de-dez-man...
). Sua coluna termina reforçando o quanto o argumento oficial do diretor da TV Brasil, de que exibir Os dez mandamentos é um ato de fomento à cultura, num contexto de dificuldades do setor, é questionável:

Mais do que isso, “Os Dez Mandamentos” é algo que já se pagou e não precisa de verba pública, diferentemente de dezenas de produções brasileiras de cunho educativo e cultural que aguardam por uma chance de serem contempladas. Mas a mamata (para os outros) acabou. (Padiglione, 2021PADIGLIONE, C. Venda de ‘Dez Mandamentos’ da Record para a TV Brasil não tem precedentes. TelePadi, [s. l.], 5 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://telepadi.com.br/venda-de-dez-mandamentos-da-record-para-a-tv-brasil-nao-tem-precedentes/ . Acesso em: 30 set. 2023.
https://telepadi.com.br/venda-de-dez-man...
).

O texto também salienta como inciativas entre emissoras do âmbito “público” constroem relações diferenciais com emissoras privadas, de modo que a transação com a Record traz algo de diferencialmente problemático:

Para não dizer que nunca houve uma produção de TV aberta comercial exibida por TV pública, sim, houve “O Sítio do Pica-pau Amarelo” na versão feita entre 2001 e 2007, adquirida pela TV Cultura em 2013. Mas, na ocasião, a Cultura anunciou que a exibição estava condicionada à cessão para os canais da Globo Internacional dos direitos sobre a exibição do “Castelo Rá-Tim-Bum” e do “Cocoricó”, sem custos para os cofres da emissora, custeada pelo governo do Estado de São Paulo.

A Globo também exibia em primeira mão o Telecurso 2º Grau, curso didático a distância para adultos, bancado pela Fundação Roberto Marinho, que a Cultura apresentava quase simultaneamente, sob a proposta de encampar conteúdo educativo em sua programação. De novo, a Globo cedia os direitos à Cultura. (Padiglione, 2021PADIGLIONE, C. Venda de ‘Dez Mandamentos’ da Record para a TV Brasil não tem precedentes. TelePadi, [s. l.], 5 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://telepadi.com.br/venda-de-dez-mandamentos-da-record-para-a-tv-brasil-nao-tem-precedentes/ . Acesso em: 30 set. 2023.
https://telepadi.com.br/venda-de-dez-man...
).

Nesse sentido, pode-se argumentar, especialmente sobre a dimensão econômica dessas transações, como as separações entre o que é passível de venda e o que não é vendido têm algo de contingencial e podem informar leituras sobre o que é o ato de “profanar” na contemporaneidade (Agamben, 2007AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.). Refletindo a partir do tema do capitalismo e aprofundando temas como o “capitalismo como religião” conforme enunciado por Walter Benjamin, G. Agamben discute a partir dos termos “consagrar” e “profanar” a relação possível entre os dois registros no contexto de uma sociedade de mercado. No seu sentido clássico (no contexto romano), consagrar designava a saída de uma esfera do humano. “Profanar, por sua vez, significa restituí-las ao uso livre dos homens” (Agamben, 2007AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 65). Interessado na questão da separação entre instâncias, o filósofo situa que a religião tem como caraterística que a define ser “aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou reserva em si um núcleo genuinamente religioso” (Agamben, 2007AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 65).

Tomando essas reflexões, pode-se voltar a um tema presente nas agendas de antropologia econômica, como as ideias de I. Kopytoff (2009)KOPYTOFF, I. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In: APPADURAI, A. (org.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2009. p. 89-121., para quem as transações econômicas e sua regulação trazem pistas importantes para pensar o que é aproximado do “sagrado” e, portanto, tornado tabu de venda e de compra, mesmo em uma sociedade capitalista. No caso da compra estatal da novela bíblica, como aparece em parte dos argumentos contrários à sua veiculação e à própria operação financeira que a mediou, pode-se perceber que as reações vão na direção de uma defesa da separação entre instâncias que passa, também, por concepções envolvendo as relações que devem existir entre o público/comum e o religioso e o valor em dinheiro (público) repassado a agentes ligados a instituições religiosas.

Pela comparação entre as formas de incorporação de programas na grade da emissora estatal, podemos perceber como há formas de classificação que se dão pelo registro da compra direta pela Agência Brasil de Comunicação e que há outros programas que passam a figurar na programação na emissora pela cessão de direitos. O caso de Os dez mandamentos está afinado com a primeira classificação, a da aquisição, no contrato com um ente particular (a TV Record), em uma transação que, conforme exposto, tem sido questionada por funcionários da própria TV Brasil. Como afirmado anteriormente, a cessão de direitos coloca algumas produções fora do circuito mais explicitamente mercantil e as situa junto a iniciativas “voltadas ao público infantil” e “educativas”. Com efeito, a forma como essas produções se fazem circular, nas chaves do “acordo”, do “licenciamento gratuito” e da “cessão de direitos”, faz aparecer uma posição diferente daquela que age pela venda “direta” (caso de Os dez mandamentos). Na comparação, resta explícito que essa venda é apresentada, aferida e publicizada em valores financeiros.

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) entrou com ação, em abril de 2021, “no 3º Juizado Especial Federal do Rio de Janeiro para que a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) informe os motivos que fundamentaram a suposta compra da novela bíblica ‘Os Dez Mandamentos’, produzida e exibida pela TV Record” (ABI…, 2021ABI entra com ação para obrigar EBC a explicar suposta compra da novela “Os Dez Mandamentos”. Portal Imprensa, [s. l.], 30 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/84360/abi+entra+com+acao+para+obrigar+ebc+a+explicar+suposta+compra+da+novela+os+dez+mandamentos . Acesso em: 30 set. 2021.
https://portalimprensa.com.br/noticias/u...
). Na ocasião, evocava principalmente argumentos a respeito da neutralidade do Estado em questões religiosas e o princípio da publicidade de gastos do poder público em relação ao contribuinte.

A solicitação foi para a apresentação de documentos e contratos sobre as diretrizes das tratativas e sua eventual celebração, e trazia cinco perguntas para certificar: se houve ou haveria a aquisição do folhetim e para saber quais os motivos que fundamentaram a negociação, se o fundamento bíblico da trama foi considerado tendo em vista a laicidade do Estado ou se o que foi considerado foi eventual proximidade político-ideológica do Presidente da República com a Record TV, e quais os valores, direitos e obrigações envolvidos nas tratativas.

Conforme o princípio da publicidade, o poder público, salvo raras exceções, está obrigado a explicitar os “motivos, objetivos, diretrizes e documentos que fundamentam sua tomada de decisão”. Além disso, a Lei de Acesso à Informação diz que “cabe aos órgãos e entidades do poder público […] gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e a sua divulgação”. (ABI…, 2021ABI entra com ação para obrigar EBC a explicar suposta compra da novela “Os Dez Mandamentos”. Portal Imprensa, [s. l.], 30 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/84360/abi+entra+com+acao+para+obrigar+ebc+a+explicar+suposta+compra+da+novela+os+dez+mandamentos . Acesso em: 30 set. 2021.
https://portalimprensa.com.br/noticias/u...
).

A “Ouvidoria Cidadã da EBC”, uma iniciativa cidadã a favor da Empresa Brasil de Comunicação, tem construído uma plataforma em seu site a fim de registrar argumentos para sua manutenção (que estava ameaçada em um período recente) e também visibilizar o debate sobre irregularidades do uso de seu espaço.8 8 Ver https://ouvidoriacidadaebc.org/ (acessado em 30/09/2021). Na plataforma é debatida a compra de Os dez mandamentos pela EBC, no artigo de 14 de abril de 2021 de nome “Exibição da novela Os Dez Mandamentos pela TV Brasil fere a Constituição” (Exibição…, 2021EXIBIÇÃO da novela Os Dez Mandamentos pela TV Brasil fere a Constituição. Ouvidoria Cidadã da EBC, [s. l.], 14 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://ouvidoriacidadaebc.org/exibicao-da-novela-os-dez-mandamentos-pela-tv-brasil-fere-a-constituicao/#_ftn10 . Acesso em: 30 set. 2021.
https://ouvidoriacidadaebc.org/exibicao-...
). Um dos seus argumentos é o de que a veiculação da novela e a descontinuidade de outros programas ferem princípios de “diversidade religiosa”. Assim, não é a exibição de uma produção de tema bíblico o seu problema central, afinal a emissora “herdou” programas religiosos (como a “Santa Missa”, produzida pela Arquidiocese do Rio de Janeiro) de contratos anteriores à existência da TV Brasil, mas a ideia de que uma centralização em religiões específicas está ocorrendo num espaço estatal, e que isso sim é problemático.

A exibição do folhetim também afronta os esforços da EBC e da sociedade civil de trazer mais pluralidade religiosa às emissoras públicas. Em 2011, com a intenção de substituir a programação católica e evangélica (notadamente os programas Reencontro, Santa Missa e Palavras de Vida), a EBC lançou um concurso público para contratar 52 episódios por R$ 2,210 milhões [dois milhões e duzentos e dez mil reais]. Com isso, a expectativa era a de que os realizadores da missa (a Arquidiocese do Rio de Janeiro) e o do programa evangélico Reencontro (idealizado pelo pastor Nilson do Amaral Fanini) deixassem, espontaneamente, a emissora, o que nunca ocorreu, apesar dos esforços da emissora. Os programas tinham sido “herdados” da antiga TVE e permaneceram no ar por meio de decisões judiciais.

[…] a EBC contratou 26 episódios de 52 minutos para a série Panorama, e mais 26 episódios inéditos de 26 minutos para a série Retratos da Fé. O edital para a Panorama contratou programas sobre temas filosóficos e culturais ligados à religiosidade sob uma perspectiva jornalística. A Retratos da Fé, por sua vez, abriu espaço para que cada grupo religioso pudesse transmitir a sua mensagem de fé e expressar o sagrado de sua doutrina de forma direta, sem nenhuma mediação ou interferência. Os programas estrearam em 2017. Outros conteúdos passaram a compor a Faixa da Diversidade Religiosa da TV Brasil, contratados por meio de edital do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro (Prodav) TVs Públicas, em parceria com a Agência Nacional do Cinema (Ancine).

[…] Dessa forma, a crítica à novela Os Dez Mandamentos não tem a intenção de excluir a programação religiosa da TV Brasil, mas de garantir espaço proporcional a outros credos e denominações que não o tem. À luz dos acontecimentos, o licenciamento da telenovela bíblica é um retrocesso. A diversidade religiosa, mesmo dentro do cristianismo, em diferentes linhas do catolicismo, do protestantismo e mesmo do neopentecostalismo, nem de longe encontra o mesmo espaço que hoje a IURD tem à disposição no sistema comunicacional brasileiro. (Exibição…, 2021EXIBIÇÃO da novela Os Dez Mandamentos pela TV Brasil fere a Constituição. Ouvidoria Cidadã da EBC, [s. l.], 14 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://ouvidoriacidadaebc.org/exibicao-da-novela-os-dez-mandamentos-pela-tv-brasil-fere-a-constituicao/#_ftn10 . Acesso em: 30 set. 2021.
https://ouvidoriacidadaebc.org/exibicao-...
, grifo no original).

Como dito, um dos cernes da questão é a coincidência entre a exibição da novela da Record e a sua compra associada a outras iniciativas (como a descontinuidade de programas a respeito da diversidade religiosa) que, lidos conjuntamente, formam um quadro de favorecimento não apenas financeiro à Record e à Universal, mas também um favorecimento no campo religioso, pela difusão, agora pública, de uma produção audiovisual religiosa.

A decisão da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) de licenciar a novela Os Dez Mandamentos, produzida pela TV Record, vai contra o artigo 223 da Constituição Federal. O artigo determina o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão: privado, público e estatal. Trata-se de desvirtuamento da Carta Magna e também da Lei de Criação da EBC (11.652), colocando o sistema público como braço auxiliar na divulgação de um único olhar sobre a religiosidade. (Exibição…, 2021EXIBIÇÃO da novela Os Dez Mandamentos pela TV Brasil fere a Constituição. Ouvidoria Cidadã da EBC, [s. l.], 14 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://ouvidoriacidadaebc.org/exibicao-da-novela-os-dez-mandamentos-pela-tv-brasil-fere-a-constituicao/#_ftn10 . Acesso em: 30 set. 2021.
https://ouvidoriacidadaebc.org/exibicao-...
, grifo meu).

Registre-se que a briga contra Os dez mandamentos não é a única em curso da parte dos representantes da “Ouvidoria Cidadã da EBC” no campo dos programas religiosos. Um dos pontos que faz a exibição de Os dez mandamentos mais problemática é, no seu discurso, a quebra de uma solução anteriormente encontrada para a veiculação “obrigatória” (por decisões judiciais, das quais ainda se recorre) de programas católicos e evangélicos. Como visto, uma forma de contrabalançar a grade da emissora foi veicular programas sobre outras religiosidades, de modo a valorizar a diversidade do campo religioso no Brasil. No site da TV Brasil, a seção “Retratos de fé” traz os programas veiculados, entre os quais episódios dedicados a “Tambor de mina”, “Taoísmo”, “União do Vegetal”, “Budismo tibetano”, “Sokka Gakkai”, “Judaísmo”, “Batuque gaúcho”, “Igreja Anglicana”, “Scientology”, “Benzedeiras”, “Igreja Quadrangular”, “Amishes e menonitas”, “Umbanda”, “Judaísmo liberal”, “Igreja Assembleia de Deus”, entre outras formas de religiosidade. Com uma média de 25 minutos de duração, esses programas entrevistam praticantes e especialistas dessas religiões. O último episódio inédito foi exibido em 22 de maio de 2017 (Retratos…, 2023RETRATOS de fé. TV Brasil, [s. l.], 2023. Disponível em: Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/retratosdefe . Acesso em: 30 set. 2023.
https://tvbrasil.ebc.com.br/retratosdefe...
).

Quando esses programas saem de cena9 9 Há registros de que “Retratos de fé” teve sua estreia no ano de 2014 (cf. Veroni, 2014) e teve temporadas anuais com programas inéditos até o final de 2017, como sinaliza o site da TV Brasil, que disponibiliza os episódios com a data de exibição original (Retratos…, 2023). e, em 2021, Os dez mandamentos é comprada e exibida pela TV Brasil, pode-se dizer que a ideia de diversidade dentro da emissora estatal se vê ameaçada. Outro ponto de argumentação dos contrários à exibição de Os dez mandamentos na TV Brasil, por fim, é o fato de que a própria Record planejava exibir novamente a novela, sucedendo a Gênesis, o que colocaria o canal estatal em uma situação de concorrer, exibindo exatamente a mesma produção, com a emissora que originalmente a produziu. O mau emprego do dinheiro público, assim, é um dos elementos considerados centrais para a crítica à compra e à veiculação de Os dez mandamentos pela TV Brasil, por distintos agentes, tendo em conta outras circulações já existentes (reprises recorrentes pela Record e acesso possível via serviços de streaming).

Retornando ao enquadramento que torna essa passagem à televisão pública possível, pode-se dizer que o germe da ideia estava na iniciativa de localizar “novelas para a família” a serem veiculadas na TV Brasil, como foi salientado na menção às reuniões da Secretaria Especial da Cultura, no ano de 2020. Primeira novela comprada e exibida pelo canal, Os dez mandamentos parece ter sido identificada com essa demanda de “novelas para a família” - uma demanda a ser marcada como estatal e governamental.

Patrimônios e cidadanias

A carreira pública da novela Jesus recebeu uma distinção bastante localizada no campo do reconhecimento público. Em uma ação de concessão de cidadania honorária, agentes relacionados à novela participaram de uma cerimônia no plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, segundo iniciativa do vereador Inaldo Silva.

Vereador pelo PRB do Rio de Janeiro e Bispo da Igreja Universal, Inaldo Silva estava então em seu primeiro mandato.10 10 Atualmente, está em seu segundo mandato (2021-), tendo sido eleito pela primeira vez em 2016 (mandato 2017-2020) (cf. Rio de Janeiro, 2023). Segundo o site The Intercept Brasil, o vereador é “bastante ligado ao prefeito Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, líder da Universal. Sua esposa, Sandra Pereira Ramos da Silva, chegou a trabalhar no gabinete de Crivella no Senado, com salário de mais de R$ 15 mil”, conforme matéria de 2017 (Berta, 2017BERTA, R. Vereador e bispo da Universal faz Câmara do Rio ter dia de igreja evangélica. Intercept Brasil, [s. l.], 2 out. 2017. Disponível em: Disponível em: https://theintercept.com/2017/10/02/vereador-e-bispo-da-universal-faz-camara-do-rio-ter-dia-de-igreja-evangelica/ . Acesso em: 31 jul. 2019.
https://theintercept.com/2017/10/02/vere...
). Em junho de 2019, o político entregou a Medalha de Mérito Pedro Ernesto11 11 “A Medalha de Mérito Pedro Ernesto foi criada através da Resolução nº 40, em 20 de outubro de 1980. Ela é a principal homenagem que o Rio de Janeiro presta a quem mais se destaca na sociedade brasileira ou internacional. Recebeu esse nome em reconhecimento ao trabalho do prefeito Pedro Ernesto, e por isso sua figura é estampada nas duas Medalhas que fazem parte do Conjunto. Uma presa ao colar, e a outra para ser colocada na lapela do lado direito do homenageado. Ambas são presas em uma fita de cores azul, vermelha e branca que são as cores da bandeira da cidade”, conforme o site da Câmara do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 2021). ao ator Dudu Azevedo, intérprete de Jesus na novela da Record. Na ocasião, o ator discursou em agradecimento à maior honraria oferecida pela cidade do Rio de Janeiro:12 12 Ver a matéria do jornalístico da Record Fala Brasil, de 01/07/2019 (Novela Jesus…, 2019).

Sou muito grato por tudo que tenho e preciso dizer, nunca imaginei receber tais honrarias e títulos. Mas talvez tudo isso esteja acontecendo porque venho mergulhando por inteiro, de cabeça, profundamente em todos os sonhos, projetos, buscas, jornadas, empreitadas e amores, errando ou acertando, mas entregando o melhor que eu tenho pra dar, sem pensar na glória. Esta não me pertence.

A homenagem se estendeu a outros atores do elenco, que foram cumprimentados pelo político. O diretor e autora principal da novela, Edgar Miranda e Paula Richard, receberam os títulos de “cidadãos beneméritos do município do Rio de Janeiro”, honraria apresentada à Câmara em abril de 2019 pelo vereador, por meio de projeto de decreto legislativo (Rio de Janeiro, 2019aRIO DE JANEIRO (Município). Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Projeto de decreto legislativo nº 160/2019. Concede o título de Cidadã Benemérita do Município do Rio de Janeiro a Paula de Carvalho Richard, autora e roteirista. Rio de Janeiro: Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 3 abr. 2019a. Disponível em: Disponível em: http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1720.nsf/fed37fd5a6eca342032577590052088e/7d0b44bac8199e9e832583d10053d95e?OpenDocument&Start=1.1.1.7 . Acesso em: 30 set. 2021.
http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legisla...
). Os dois são nativos da cidade do Rio de Janeiro.

Em entrevista ao jornalístico da Record Fala Brasil, na reportagem que menciona que “o plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro foi ocupado por atores e atrizes, para uma noite de homenagens e reconhecimento pelo sucesso da novela Jesus, que foi exibida pela Record TV” (Novela Jesus…, 2019NOVELA JESUS é homenageada no Rio de Janeiro. [S. l.]: Record, 1 jun. 2019. Publicado no canal Fala Brasil. 1 vídeo (2min12s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QqMpvWhSQCk . Acesso em: 30 set. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=QqMpvWhS...
), Inaldo assim apresentou os méritos da produção.

A Record vem quebrando paradigmas com as novelas. E essa, Jesus, uma novela de ponta, né, que foi um sucesso. Haja vista aqui as pessoas tudo abraçando [o elenco], tirando foto… e tá de parabéns os atores, que profissionalmente executaram papeis brilhantes […]. (Novela Jesus…, 2019NOVELA JESUS é homenageada no Rio de Janeiro. [S. l.]: Record, 1 jun. 2019. Publicado no canal Fala Brasil. 1 vídeo (2min12s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QqMpvWhSQCk . Acesso em: 30 set. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=QqMpvWhS...
).

Na ocasião, o diretor Edgar Miranda disse que Jesus foi o seu trabalho mais desafiador em 30 anos de profissão, “um momento muito especial, muito feliz”. A maior honraria da noite foi a do ator Dudu Azevedo, que agradeceu à distinção e falou à reportagem da emissora: “É uma honra, é um presente. É um prêmio inesperado, mas é uma sensação muito grande de vitória” (Novela Jesus…, 2019NOVELA JESUS é homenageada no Rio de Janeiro. [S. l.]: Record, 1 jun. 2019. Publicado no canal Fala Brasil. 1 vídeo (2min12s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QqMpvWhSQCk . Acesso em: 30 set. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=QqMpvWhS...
).

Até onde acompanhei, essas foram as únicas concessões de cidadania honorária por um ente estatal às produções bíblicas da Record. Seria cômodo resumir a associação entre o PRB,13 13 Carlos Gutiérrez (2015, p. 51) trabalhou o tema do Partido Republicano Brasileiro (PRB) em sua interface com a Igreja Universal e caracterizou as formas com que a Universal “participa na esfera pública” em três eixos: “sua presença no poder legislativo, com a eleição de representantes e participação em audiências públicas; a ocupação do espaço urbano, na realização de suas manifestações; e a elaboração de políticas públicas”. Os dois primeiros eixos situados pelo autor parecem explicitados na ação de concessão de cidadania honorária proposta pelo parlamentar do PRB em questão, se tivermos em conta que o espaço legislativo da cidade também tem importância enquanto local ocupado, nessa ocasião, por artistas da Record junto aos(às) profissionais da política legislativa. a Universal, a Record e o vereador em questão. Contudo, chamo atenção para o fato de que essa ação não dependeria só da vontade desses agentes, mas também da aprovação dos pares legislativos.

Nesta ação, pode-se ver um trabalho de reconhecimento por agentes estatais que operam pelo meio da institucionalidade, aferindo relevância e reconhecimento de uma novela bíblica num espaço legislativo: é a novela bíblica que é reconhecida pela política institucional. A obra é convidada por ela a ser autenticada em sua relevância, por agentes políticos, numa cena pública.

Há outra iniciativa em torno da Record pelo poder legislativo, dessa vez na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Trata-se da proposta de projeto de lei (PL nº 1017/2019), que intenta tornar patrimônio cultural de natureza imaterial “telenovelas bíblicas produzidas por emissoras brasileiras”. Sua ementa é escrita em termos gerais (“emissoras brasileiras”) e a redação do projeto é em si bastante curta:

EMENTA:

DECLARA PATRIMÔNIO CULTURAL DE NATUREZA IMATERIAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO AS TELENOVELAS BÍBLICAS PRODUZIDAS PELAS EMISSORAS DE TELEVISÃO BRASILEIRAS.

A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

RESOLVE:

Art. 1º - Ficam declaradas como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado do Rio de Janeiro as telenovelas bíblicas produzidas pelas emissoras de televisão brasileiras.

Art. 2º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. (Rio de Janeiro, 2019bRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Projeto de lei nº 1017/2019. Declara Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado do Rio de Janeiro as telenovelas bíblicas produzidas pelas emissoras de televisão brasileiras. Rio de Janeiro: Alerj, 2019b. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=144&url=L3NjcHJvMTkyMy5uc2YvMThjMWRkNjhmOTZiZTNlNzgzMjU2NmVjMDAxOGQ4MzMvZDIwYTY2NTUyYmI3YzJlZTgzMjU4NDRlMDA3MTM2NWE/T3BlbkRvY3VtZW50#m. Acesso em: 30 set. 2021.).

Embasando o projeto de lei, a sua justificativa também não cita nominalmente a Record, emissora que produziu as “telenovelas bíblicas”, mas a sua ausência não torna o texto menos alusivo a ela, uma vez que se percebe o recuo no tempo que a justificativa traz, citando as minisséries bíblicas anteriores à exibição de telenovelas.

Desde que começaram a ser veiculadas, as telenovelas bíblicas já encantaram milhões de brasileiros. Oriundas das mini séries bíblicas lançadas, com grande sucesso, no início desta década, essas produções dramatúrgicas retratam com fidelidade e deferência as histórias contidas na Bíblia Sagrada. Hoje, essas telenovelas se tornaram um importante instrumento cultural, que agradam e envolvem os telespectadores, permitindo que possam ver nela retratadas muitos momentos que antes se limitavam ao imaginário popular.

A Bíblia, livro sagrado para o Cristianismo, é o mais conhecido e difundido pela humanidade. Em tempos em que cresce o número de casos de violência e intolerância, que afetam o emocional de todos os cidadãos fluminenses, as telenovelas bíblicas reproduzem nas telas da tv cenas bíblicas inspiradoras, e que até então ficavam restritas aos cultos e missas das igrejas católicas e evangélicas. Além disso, ao utilizarem uma linguagem coloquial e acessível, essas produções propiciam o fácil entendimento dos textos bíblicos, que por sua complexidade, muitas vezes, não são totalmente compreendidos por grande parte da população.

As telenovelas bíblicas, devem, diante do exposto, ser consideradas patrimônio imaterial, já que manifestam saberes e formas de expressão cênicas, plásticas, musicais e lúdicas de uma imensa parcela da nossa população, recriando a interação com a sua história de vida. (Rio de Janeiro, 2019bRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Projeto de lei nº 1017/2019. Declara Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado do Rio de Janeiro as telenovelas bíblicas produzidas pelas emissoras de televisão brasileiras. Rio de Janeiro: Alerj, 2019b. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=144&url=L3NjcHJvMTkyMy5uc2YvMThjMWRkNjhmOTZiZTNlNzgzMjU2NmVjMDAxOGQ4MzMvZDIwYTY2NTUyYmI3YzJlZTgzMjU4NDRlMDA3MTM2NWE/T3BlbkRvY3VtZW50#m. Acesso em: 30 set. 2021., grifo meu).

Muita coisa é dita nesses três parágrafos e naquilo que eles salientam como importante para fundamentar o reconhecimento dessas produções bíblicas como patrimônio estatal. De modo geral, essa iniciativa parlamentar apresenta a ideia de novelas como “instrumentos culturais” e aponta para a importância de reconhecê-las. Alguns dos elementos aferidos no texto são a “fidelidade” e a “deferência” em relação ao texto bíblico presentes nessa produção. O patrimônio aqui é tido na chave da autenticidade, daquilo que é reconhecido porque está em condições de ser lido a partir de sua matriz de referência sem deturpá-la. Que o patrimonializável seja a obra de “ficção”, a qual teria a capacidade de afirmar o “autêntico”, também é digno de nota: pode-se ver, também, que formas de compreensão cultural estão sendo mediadas de maneiras particulares e, em certo sentido, inovadoras, sugerindo tensionamentos com outras iniciativas de patrimonalização mais estabelecidas.

Outro elemento trazido na justificativa é o de que as telenovelas bíblicas podem ter um efeito junto à violência contemporânea - nomeadamente a violência que atinge “os cidadãos fluminenses”. A valorização também se dá porque as telenovelas colocam em circulação cenas que até então estavam presentes apenas em ambientes religiosos (missas e cultos).

Mais um registro que afere a relevância para a patrimonialização aparece no seu sentido mais pedagógico, naquilo que as telenovelas, pelo uso da linguagem coloquial, ensinam ao público das complexas lições textualizadas na Bíblia. Há, ainda, um argumento “de maioria” na justificativa do projeto de lei, que evoca a centralidade da Bíblia para a humanidade (“o livro mais conhecido e difundido”), que as telenovelas têm o mérito de fazer chegar a um grande número de pessoas.

De autoria dos deputados Rosenverg Reis (MDB) e Danniel Librelon (Republicanos) e da deputada Tia Ju (Republicanos), o projeto, proposto em 2019, demorou a ser votado.14 14 No presente de escrita deste texto, a saber, em setembro de 2022. Salientando seu pertencimento religioso, Rosenverg Reis publicou no dia 30 de novembro de 2021 mensagem em suas redes pelo dia do evangélico, desejando felicidades a todos os “irmãos em Cristo” (Oliveira, 2021OLIVEIRA, R. R. de. Feliz Dia do Evangélico para todos nós, irmãos! Duque de Caxias, 30 nov. 2021. Facebook: @rosenvergreis. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/rosenvergreis/posts/4629074973825762/ . Acesso em: 30 nov. 2021.
https://www.facebook.com/rosenvergreis/p...
). Já Danniel Librelon é pastor da Universal e se apresenta em suas redes como “filho, marido, cristão, conservador, palestrante, 10º Deputado Estadual do RJ e Presidente da Comissão de Prevenção às Drogas”.15 15 Cf. https://twitter.com/danniellibrelon (acessado em 30/11/2021). Tia Ju, a seu turno, propôs, além da ação em favor da teledramaturgia bíblica, em 2019, o “Título de Benemérito do Estado do Rio de Janeiro” à Igreja Assembleia de Deus em razão dos 108 anos de sua fundação no Brasil, o que sugere certo trânsito entre instituições neopentecostais e pentecostais.

Pode-se perceber uma recorrência em relação às iniciativas estatais sobre a teledramaturgia bíblica. Patrimônio e audiovisual são, com efeito, relacionáveis explicitamente à questão da cultura. A captura estatal da sua relevância dialoga, portanto, com sentidos atinentes ao conceito de cultura e produz consequências sobre qual cultura deve ser valorizada num campo em que outras possibilidades estão em jogo. Assim, pode-se ver que não apenas uma dada iniciativa cultural é identificada como legítima e importante, mas também que ela é publicizada (no campo legislativo e na televisão estatal) como uma cultura que deve ser promovida, exatamente pelo seu caráter diferencial em relação ao campo cultural como um todo. O que quero dizer é que a entrada da teledramaturgia bíblica no “plano do Estado” não deixa a ideia de cultura intacta; em especial porque é movida por agentes das comunicações públicas e envolve negociações com órgãos de governo.

A aferição da sua relevância, portanto, passa pela chave da cultura que se intenta promover no país. Por isso, pela simultaneidade de processos que a expressão permite dar conta, gostaria de pensar nas passagens da teledramaturgia bíblica no espaço público, com o apoio da ideia de “estados bíblicos”, para retornar ao ponto levantado por Spivak e Butler (2018)SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018.: o de que o “Estado” produz “estados”, enquanto condições de relação. O fomento estatal a uma dada produção também pode ser lido como a forma desigual com que categorias estatais distribuem a cidadania (Spivak; Butler, 2018SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018., p. 25).

Proposto em 2019, o projeto em questão teve que esperar três anos até ser julgado. Acabou por ser sancionado. O governador em exercício do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, do Partido Liberal, sancionou o projeto em junho de 2022 (Moraes, 2022MORAES, C. Novelas bíblicas são declaradas patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jun. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/06/novelas-biblicas-se-tornam-patrimonio-cultural-do-estado-do-rio-de-janeiro.shtml . Acesso em: 30 jun. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/...
). A iniciativa foi criticada pelo coordenador adjunto do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro por se tratar, entre outros motivos, de um registro e tombamento pela via do legislativo estadual - um “atropelamento” das práticas de patrimonialização pelas entidades competentes, do Executivo. Registre-se, porém, que os efeitos dessa iniciativa de patrimonialização não estão totalmente definidos. Não foi anunciado se ocorrerá uma destinação de verba pública para salvaguarda de tal “bem cultural de natureza imaterial”, por exemplo, ou outro tipo de ação estatal em favor dessas produções. Mas, depois de mais de dois anos de proposição legislativa, tem-se agora a aprovação de que as “séries e telenovelas bíblicas produzidas por emissoras brasileiras” são patrimônio cultural de natureza imaterial do Estado do Rio de Janeiro.

Passagens estatais do bíblico: composições, categorias e disputas

A partir do diálogo com Abu-Lughod, considero importante assinalar certas diferenças entre mídias produzidas junto ao projeto de modernização que a autora identifica como em curso a partir da produção de melodramas (religiosos e seculares) e que vêm se modificando:

Há muito tempo existem seriados religiosos, dramas históricos sobre a história do Islã, que costumavam ser veiculados tarde da noite e não eram especificamente populares. Como qualquer programação religiosa, eram distintos das séries noturnas mais populares, como se a religião ocupasse um compartimento separado. No entanto, nos últimos anos, grandes atores participaram de caras produções religiosas e históricas seriadas editadas durante o Ramadan, produzidas por renomados escritores e diretores. Essas séries se tornaram tão populares que um novo diretor, ao assumir a produção de televisão em 1997, anunciou um plano para realizar, nos anos seguintes, mais seriados sobre “nossa herança árabe islâmica”, como ele afirmou de modo cuidadoso. (Abu-Lughod, 2003ABU-LUGHOD, L. Melodrama egípcio: uma tecnologia do sujeito moderno? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 75-102, 2003., p. 98).

O quadro das produções bíblicas da Record guarda semelhanças e diferenças com o retratado pela autora para o caso egípcio. Um dos elementos identificados nos dois casos é certa aproximação com o Estado, que me interessa mais diretamente porque, no caso da “compreensão situada da mídia egípcia”, essas produções vêm da própria televisão estatal (cf. Abu-Lughod, 2003ABU-LUGHOD, L. Melodrama egípcio: uma tecnologia do sujeito moderno? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 75-102, 2003., p. 102). No caso brasileiro, muito embora a concessão de televisão aberta seja uma prerrogativa estatal, a Record não faz parte do Estado-Nação. Se tomarmos o Estado como não unitário e clivado, como defende uma importante agenda do campo da antropologia do Estado (Mitchell, 2006MITCHELL, T. Society, economy and the State Effect. In: SHARMA, A.; GUPTA, A. The anthropology of the State: a reader. Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 169-185.; Sharma; Gupta, 2006SHARMA, A.; GUPTA, A. Rethinking theories of the State in the age of globalization. In: SHARMA, A.; GUPTA, A. The anthropology of the State: a reader. Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 1-41.), podemos visualizar as conexões parciais que alinham a Record, a Universal e o governo federal, especialmente em um período mais recente (2020 e 2021), que coincide com mudanças importantes na orientação do departamento de dramaturgia da emissora, que vem se dedicando tanto ao projeto de teledramaturgia bíblica.

Como no caso egípcio abordado por Abu-Lughod, a teledramaturgia bíblica pode ser vista como uma tecnologia para a produção de sujeitos, pensada com distintos alcances e se imbricando com objetivos mais ou menos convergentes, conforme busquei argumentar com os exemplos abordados neste artigo. Nesse sentido, pode-se pensar nela como um dos processos que a Universal põe em marcha em seu projeto de operar como uma tecnologia produtora de “agenciadoras de condutas que produzem indivíduos por meio da elaboração e do aprimoramento contínuo das técnicas de assembleia”, como propõe Jacqueline Teixeira (2018TEIXEIRA, J. M. A conduta universal: governo de si e políticas de gênero na Igreja Universal do Reino de Deus. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018., p. 14), discutindo sobre um conjunto de campanhas públicas movidas pela Igreja Universal.

Aqui, o que se estimula a conhecer pelo fomento se dá numa chave “pública” distinta da exibição da Record, posto que não é apenas algo que “todos devem ver” (algo que a Record diz com frequência, de que o bíblico é um projeto de teledramaturgia interessante a todo público), mas algo pelo qual todos (os contribuintes) devem reconhecer a importância e também pagar, porque não apenas é exibido numa televisão estatal, mas é exibido segundo um acordo negociado com dinheiro público. O caso passa a ser não só sobre os efeitos de uma frase como “todos podem e devem ver Os dez mandamentos”, mas também o fato de a “voz” que a enuncia ser a do governo federal. A inovação da constituição de “relações bíblicas” (e não apenas “religiosas”) é uma inovação importante no exame da “compreensão situada da mídia”, já que ela possibilita o cruzamento produtivo de distintas categorias (“o televisivo”, “o entretenimento”, “o religioso”, o “cultural” e, mais recentemente, o “patrimonializável” ou o “fomentável estatalmente”). É digno de ênfase, ainda, que a oficialização da compra parece ter incorrido em certo ato “monocrático” - em oposição, por exemplo, a um conselho que poderia ter determinado a compra da novela bíblica.

Apontando para a continuidade das manutenções do vínculo entre a TV Brasil e a Record está o fato de que a sucessora no horário de novelas recentemente iniciado (20h30) no canal estatal é A escrava Isaura, originalmente exibida pela Record entre 2004 e 2005 e que figura como a novela mais reprisada da emissora.16 16 Reprises em 2005/2006, 2007, 2017 e 2019, pela sua emissora original, isto é, a Record. Também foi exibida entre 2014 e 2015 pelo canal de cabo Fox Life (cf. A escrava…, [2022]). Não encontrei as cifras que apontam os valores da aquisição dos direitos de exibição da produção da Record. De acordo com apuração da jornalista de televisão Patrícia Kogut (2022)KOGUT, P. TV Brasil tem faixa fixa de produções da Record. O Globo, Rio de Janeiro, 10 jan. 2022. Disponível em: Disponível em: https://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-tv/coluna/noticia/2022/01/tv-brasil-tem-faixa-fixa-de-producoes-da-record.html . Acesso em: 31 jan. 2023.
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, servidores do canal estatal estariam insatisfeitos com o que percebem como um aparelhamento da emissora no consórcio político-midiático que associa o governo Bolsonaro e a Record.

Em 26 de julho de 2022, no lugar de A escrava Isaura (de segunda a sábado, às 20h30), a TV Brasil passou a exibir A Terra Prometida, originalmente exibida em 2016 pela Record, e que sucedia a Os dez mandamentos no enredo bíblico sobre o povo israelita. Os valores e os detalhes sobre a operação financeira não foram encontrados. Chama atenção a posição do presidente da EBC, Glen Valente, de contextualizar a importância da trama ao público. No registro do site Tela Viva, de julho de 2022:

Em nota, o presidente da EBC, Glen Valente, diz que “A Terra Prometida” dá ao público mais uma produção nacional de qualidade na tela da emissora, além de fazer parte da estratégia da EBC de buscar cada vez mais atender a demanda por conteúdos de renome que sejam não só voltados para a família, como também para a formação crítica das pessoas, missão da Empresa, e que levaram a TV Brasil ao 5º lugar de audiência na TV aberta”.

O diretor de Conteúdo e Programação da EBC, Denilson Morales, afirma que trazer conteúdos de produção de excelência, nacionais e de cunho histórico atende ao telespectador da TV Brasil, como foi com “Os Dez Mandamentos”, “A Escrava Isaura”, ambas da Record, e “Os Imigrantes”, produção de 1981 da TV Bandeirantes.17 17 A TV Brasil tem uma segunda faixa de dramaturgia, também com produções adquiridas de outros canais, que apresenta Os imigrantes, às 18h30, de segunda a sábado. (TV Brasil…, 2022TV BRASIL exibe novela de 2016 da Record em horário nobre. Tela Viva, [s. l.], 22 jul. 2022. Disponível em: Disponível em: https://telaviva.com.br/22/07/2022/tv-brasil-estreia-a-superproducao-a-terra-prometida/ . Acesso em: 30 set. 2021.
https://telaviva.com.br/22/07/2022/tv-br...
).

Novamente, tem-se o argumento em prol das novelas bíblicas em termos técnicos (“qualidade”, “excelência”, “cunho histórico”) e também em termos de “conteúdos voltados para a família”.

Versando sobre a associação entre religião, mídia, cultura, política, projetos estatais e programas religiosos, Carly Machado (2013MACHADO, C. “É muita mistura”: projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 13-36, 2013., p. 22) propõe pensarmos os efeitos advindos, por exemplo, da circulação e do reforço da mensagem que é transmitida midiaticamente. A transmissão pode funcionar de modo a amplificar e oferecer legitimidade em iniciativas que associam agentes religiosos, sociais e estatais para sobrepor “camadas purificadoras poderosas: a legitimidade da sociedade civil organizada, a integridade dos valores religiosos cristãos e a transparência da transmissão midiática” (Machado, C., 2013MACHADO, C. “É muita mistura”: projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 13-36, 2013., p. 22).

Nos eventos de que tratei neste artigo, existem variações no teor de “clareza” e “transparência” da associação das produções bíblicas com agentes estatais. No caso das proposições de reconhecimento operadas por agentes legislativos, a linguagem estatal da transparência é perceptivelmente pública. Trata-se da transparência em termos estatais, na forma de justificativas para as iniciativas, ou midiáticos, haja vista a cobertura jornalística dos atos. Inclusive, a questão midiática é importante para reiterar a ação de reconhecimento; veja-se, por exemplo, a reportagem elaborada pela Record no caso das cidadanias honorárias concedidas aos representantes de sua novela Jesus. No entanto, embora a compra e a veiculação de Os dez mandamentos (e também de A Terra Prometida) pela TV Brasil se deem numa chave absolutamente midiática - o que implica a divulgação, oficial e jornalística, da exibição - no plano propriamente estatal, as formas que redundaram na sua associação se dão menos a conhecer.

Diante desse contexto, cumpre discutir o sentido dessa passagem à “cultura” no cruzamento com o Estado; um processo que, no envolvimento com atores religiosos, vem constituindo um interesse renovado nas agendas de pesquisas contemporâneas sobre religião, cultura e política (Giumbelli, 2021GIUMBELLI, E. Sentidos da cultura em suas relações com a religião: políticas culturais e diversidade religiosa no Brasil. Dados: revista de ciências sociais, Rio de Janeiro, v. 64, n. 4, e20190229, 2021.;Mafra, 2011MAFRA, C. A “arma da cultura” e os “universalismos parciais”. Mana, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 607-624, 2011.; Reis; Toniol, 2021REIS, L.; TONIOL, R. Como as religiões disputam legitimidade utilizando a estratégia da religião como cultura. Religião e Poder, [s. l.], 18 out. 2021. Disponível em: Disponível em: https://religiaoepoder.org.br/artigo/como-as-religioes-disputam-legitimidade-utilizando-a-estrategia-da-religiao-como-cultura/ . Acesso em: 31 jan. 2023.
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; Sant’Ana, 2013SANT’ANA, R. A música gospel e os usos da “arma da cultura”. Intratextos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23-41, 2013.). Comparando o caso da teledramaturgia com outros envolvendo a categoria de “evangélicos” junto às políticas culturais, guardamos semelhanças e diferenças que podem apontar para certas dinâmicas a respeito desse tema no momento atual brasileiro. Em especial, por suas entradas mais ou menos “off-stage” e em certo regime de “discurso oculto” na relação com o Estado, para lembrar o conceito operador de James Scott. Embora Scott se aborde o acesso do Estado pelos que estão “de fora dele”, também pode ser pensado no vetor contrário, isto é, para entender como o próprio Estado pode trabalhar de maneira “oculta”. O “discurso oculto” (Scott, 1990SCOTT, J. Domination and the arts of resistance. New Haven: Yale University Press, 1990.) é percebido pelo autor como uma forma de “resistência” praticada em espaços onde a observação direta não pode se dar. Exemplos destas práticas de “discursos ocultos” podem ser vistos nas ações “off-stage”, como códigos cifrados que são compreendidos pelos que os dominam, fofocas e rumores, sabotagem de projetos e “eufemismos” (Scott, 1990SCOTT, J. Domination and the arts of resistance. New Haven: Yale University Press, 1990., p. 19) que intentam diminuir sentidos de gravidade para com ações públicas. Como os críticos da compra da novela bíblica parecem apontar, pode-se ver nessa ação certa “ocultação” das mediações esperadas (editais para liberação de recurso público, transparência quanto ao uso das verbas). Creio ser possível defender que o que houve naquele caso, em relação à resposta da atual gestão da Empresa Brasil de Comunicação, pode ser compreendido enquanto um exemplo dos roteiros ocultos que funcionam segundo a produção de “eufemismos” sobre o que ocorre em níveis particulares da administração pública.

Nesse sentido, pode-se concordar com Michael Warner (2002)WARNER, M. Publics and counterpublics. Public Culture, [s. l.], v. 14, n. 1, p. 49-90, 2002. quando este postula que os fazeres de mundo poéticos que os grupos contrapúblicos (counterpublics) acionam ao intentarem produzir públicos (adressing publics) se dão com consciência do próprio caráter de subalternidade de sua prática, diante do estabelecido. Considero importante pensar esses eventos como embates mesmo, no campo público, sobre as formas de definição de empreendimentos como legítimos. A chegada ao “Estado”, pela via da TV Brasil, inverte em certo sentido um discurso de longa duração da Universal a respeito de seu caráter de “vítima” discriminada quando se coloca em espaços da “vida pública”, onde sua ação é questionada ou interditada, como demonstram pesquisas que a investigam pelo menos desde os anos 1990 (Almeida, 2006ALMEIDA, R. de. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: TEIXEIRA, F.; MENEZES, R. (org.). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 111-122.; Burity, 2008BURITY, J. Religião, política, cultura. Tempo Social, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 83-113, 2008., 2011BURITY, J. Republicanismo e o crescimento do papel público das religiões: comparando Brasil e Argentina. Contemporânea: revista de sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 1, n. 1, p. 199-227, 2011.; Camurça, 2020CAMURÇA, M. A. Igreja Universal do Reino de Deus: entre o “plano de poder” e a lógica de minoria perseguida. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 40, n. 1, p. 43-66, 2020.; Giumbelli, 2002GIUMBELLI, E. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar: Pronex, 2002.; Gutiérrez, 2015GUTIÉRREZ, C. Igreja Universal e política: controvérsia em torno do secularismo. In: MONTERO, P. (org.). Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo: Terceiro Nome; Campinas: Editora da Unicamp, 2015. p. 49-74.; Machado, M., 2006MACHADO, M. das D. Política e religião: a participação dos evangélicos nas eleições. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.; Montero, 2012MONTERO, P. Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, p. 167-183, 2012.). Tal participação da Universal na vida pública, em diferentes escalas, tem informado importantes discussões a respeito do tema da laicidade. Acompanhando sua reivindicação de “participar”, seus argumentos e formas de ação, podemos compreender os arranjos relacionais que viabilizam (ou desautorizam) a sua presença, para lembrar a formulação a respeito da “regulação do religioso” de Giumbelli (2013GIUMBELLI, E. Para estudar a laicidade, procure o religioso. In: BÉLIVEAU, V.; GIUMBELLI, E. (coord.). Religión, cultura y política en las sociedades del siglo XXI. Buenos Aires: Biblos, 2013. p. 43-68., 2014GIUMBELLI, E. O problema do secularismo e da regulação do religioso: uma perspectiva antropológica. In: GIUMBELLI, E. Símbolos religiosos em controvérsias. São Paulo: Terceiro Nome, 2014. p. 209-229.). Essas entradas, aqui investigadas, por perpassarem agentes políticos tanto do Executivo quanto do Legislativo, e mobilizarem instâncias das comunicações, do patrimônio e da cultura, nos dão elementos para aferir um quadro contextual bastante complexo.

Fazendo um retrospecto do movimento de defesa de sua presença na vida pública, sinaliza Vital da Cunha (2017VITAL DA CUNHA, C. “Televisão para salvar”: religião, mídia e democracia no Brasil contemporâneo. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 199-235, 2017., p. 228), a respeito do campo neopentecostal:

Os evangélicos defendem sua presença na vida pública no Brasil ancorando-se no fundamento do constitucionalismo moderno, que defende que o direito à diferença e o respeito às minorias são pressupostos da democracia. Nessa chave, afirmam que seu lugar na política, nas escolas, na mídia, nos presídios etc. é a concretização do efeito da diversidade em oposição ao desrespeito à diferença, operado quando da hegemonia católica no Brasil em décadas passadas.

A entrada do audiovisual de corte religioso nas “políticas culturais” e no fomento estatal pode encontrar afinidade com casos anteriores, de outras expressões culturais, como a música. Reis e Toniol (2021REIS, L.; TONIOL, R. Como as religiões disputam legitimidade utilizando a estratégia da religião como cultura. Religião e Poder, [s. l.], 18 out. 2021. Disponível em: Disponível em: https://religiaoepoder.org.br/artigo/como-as-religioes-disputam-legitimidade-utilizando-a-estrategia-da-religiao-como-cultura/ . Acesso em: 31 jan. 2023.
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) e Sant’Ana (2013)SANT’ANA, R. A música gospel e os usos da “arma da cultura”. Intratextos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23-41, 2013. acentuam a centralidade da música para a entrada da religião na cultura via patrimônio e nas políticas de fomento à cultura, respectivamente. No caso da relação TV Brasil-Record, cumpre observar que esse “consórcio” entre agentes midiáticos se dá em um momento de forte politização das políticas culturais no país:

Nos últimos anos, durante o governo de Jair Bolsonaro, a própria Secretaria Especial de Cultura (ex-Ministério da Cultura) passou a ser um espaço de disputas e controvérsias sobre cultura e religião. Em live sobre a Lei Rouanet para artistas cristãos, realizada em maio deste ano, o secretário especial de cultura Mário Frias criticou artistas de funk e afirmou que o Estado não teria obrigação de “bancar marmanjo”, referindo-se à captação de recursos por artistas via Lei Rouanet. Além de reproduzir argumentos errôneos sobre a lei, Mário Frias, ali um representante do Estado, apresentou ao público quais tipos de arte considerava legítimos ou não como movimentos culturais: a música gospel era uma delas, o funk, não. (Reis; Toniol, 2021REIS, L.; TONIOL, R. Como as religiões disputam legitimidade utilizando a estratégia da religião como cultura. Religião e Poder, [s. l.], 18 out. 2021. Disponível em: Disponível em: https://religiaoepoder.org.br/artigo/como-as-religioes-disputam-legitimidade-utilizando-a-estrategia-da-religiao-como-cultura/ . Acesso em: 31 jan. 2023.
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).

Com efeito, pelo menos desde a emenda que beneficiou a música gospel e tornava-a elegível para projetos da Lei Rouanet,18 18 Trata-se da proposta de inclusão da música gospel “e os eventos a ela relacionados como possíveis beneficiários da Lei Rouanet (Lei 8313/91)”, que prevê incentivos a empresas e indivíduos que financiam projetos culturais. A proposição se deu em 2007 e a sua aprovação na Câmara Federal ocorreu em 2008, incorrendo no “reconhecimento de que a música gospel é uma manifestação cultural”. Ver, sobre o tema, Sant’Ana (2013) e o material no site da Câmara dos Deputados (Câmara…, 2008). pode-se ver que a forma com que agentes evangélicos passam a se relacionar com o sentido de “cultura” acionado pela política e pelo Estado - e que, até pouco tempo, vinha sendo caracterizado como de poucos rendimentos (Mafra, 2011MAFRA, C. A “arma da cultura” e os “universalismos parciais”. Mana, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 607-624, 2011.) - tem se transformado, de modo a constituir um espaço de diálogo potente. Pensando num cotejo com o caso da teledramaturgia bíblica vendida para a TV Brasil, pode-se perceber a convergência com alguns argumentos mobilizados na ocasião da emenda sobre o “gospel”, como analisada por Raquel Sant’Ana (2013)SANT’ANA, R. A música gospel e os usos da “arma da cultura”. Intratextos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23-41, 2013.. Entre essas convergências, temos o apelo ao sentido econômico (e lucrativo, mercadológico) da iniciativa: tanto a veiculação da novela na emissora estatal dá “audiência”, é exitosa, quanto a “música gospel” analisada pela autora é um mercado forte da indústria. Também naquilo que mobilizam os agentes contrários a essas iniciativas, pode-se ver uma coincidência interessante: a percepção de que o “dinheiro público” não deveria ir para o bolso de agentes religiosos, o que contrariaria o sentido de “laicidade” que o Estado deveria representar (Sant’Ana, 2013SANT’ANA, R. A música gospel e os usos da “arma da cultura”. Intratextos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23-41, 2013., p. 29).

Na construção desse argumento, a religião é vista como um “particular”, um interesse privado, não respondendo ao sentido de “público” que deve orientar a prática das políticas estatais. Quando do questionamento dessas transações, pode-se perceber que o papel que o Estado é chamado a desempenhar é o de “garantidor do ‘universal’ que, nesse caso, correria perigo de tomada pela religião” (Sant’Ana, 2013SANT’ANA, R. A música gospel e os usos da “arma da cultura”. Intratextos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23-41, 2013., p. 36). Em nosso caso, assim, o que os contrários à operação comercial com a Record salientam é que a transação privilegia, principalmente, “interesses da Universal”.

Talvez seja importante atentar para o fato de que, diferentemente da extensão da elegibilidade do gospel dentro das políticas de financiamento à cultura, o caso da teledramaturgia bíblica apresenta um caráter de legitimação que é acionado por uma via mais propriamente estatal - e, ao mesmo tempo, menos identificável. No caso da emenda à Lei Rouanet, o seu propositor era ele mesmo um deputado religioso (bispo da Igreja Sara Nossa Terra, cf. Sant’Ana, 2013SANT’ANA, R. A música gospel e os usos da “arma da cultura”. Intratextos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23-41, 2013., p. 24). Já no processo da TV Brasil, os vínculos religiosos entre quem tornou a exibição de Os dez mandamentos viável no canal estatal não são tão visíveis.

Outra diferença importante é que a operação de singularização que garante o sentido “cultural” do empreendimento bíblico não passa, como a entendo, pela ideia de minoritização, no que se diferencia de outras iniciativas de evangélicos em direção à cultura. Em verdade, muito ao contrário, a força da entrada estatal de Os dez mandamentos está centrada em argumentos de maioria: ela se dirige às “famílias brasileiras” e representa o êxito do mercado audiovisual brasileiro, no argumento do diretor da Empresa Brasil de Comunicação. São formas de justificar o interesse na novela que passam por critérios técnicos (a novela é bem feita, foi um sucesso, representa uma iniciativa exitosa no campo da televisão) e por critérios do campo ético-moral (ao citar a ideia de “família”).

O argumento também contorna e evita o teor religioso presente na narrativa, o que contrasta com iniciativas correntes no campo das políticas culturais que vão produzir um entendimento de religião como cultura. De fato, quem constrói um arranjo que conjuga de forma muito interessante o sentido de “políticas culturais” estatais e com a presença de diferentes religiosidades, na chave da diversidade - quadro que orienta um conjunto importante de ações a respeito das associações entre cultura, religião e Estado (Giumbelli, 2021GIUMBELLI, E. Sentidos da cultura em suas relações com a religião: políticas culturais e diversidade religiosa no Brasil. Dados: revista de ciências sociais, Rio de Janeiro, v. 64, n. 4, e20190229, 2021., p. 4) - são os “defensores” da EBC, que intentavam, pela conjugação de programas “sobre” diferentes práticas e tradições religiosas com programas “produzidos por instituições religiosas” (os tais herdados pela TV Rio, que envolvem agentes católicos e evangélicos), solucionar “a questão” da presença de temáticas religiosas numa emissora estatal.

Como disse anteriormente, essas entradas no campo estatal não deixam a ideia de “cultura” intacta, pelo menos no sentido de mobilizarem uma valorização diferencial e singularizante que passa, inclusive, pelo uso de verbas estatais de grande monta. Mobilizando negociações com órgãos de governo como a própria Secretaria Especial de Cultura, o que a teledramaturgia bíblica faz, aqui, é produzir um aparecimento da noção de cultura associada à ideia de projeto com afinidade com valores estatais, enquanto algo a ser cultivado. Enquanto uma iniciativa cultural identificada como legítima e importante, ela é publicizada e reconhecida como algo (um bem) que deve ser promovido exatamente pelo seu caráter diferencial em relação ao campo cultural como um todo. Na passagem do “particular” (uma novela bíblica) para o “geral” (canal estatal, dinheiro público), o acionamento da noção de projeto aponta para o sentido de uma cultura que comporta um vetor “para frente”.

Tal processo não se dá sem forças sociais intentando a rejeição desse modelo e argumentando sobre o caráter religioso (e, portanto, particular) dessa produção audiovisual, o que fundamentaria o caráter espúrio da transação com a emissora estatal. O fato de os agentes envolvidos “contra Os dez mandamentos” construírem arranjos em favor de uma programação que compreenda a diversidade religiosa demonstra como a discussão a respeito das políticas culturais no caso de objetos religiosos não deve ser guiada apenas por aspectos normativos e dicotômicos, que opõem categorias (estatal e particular, religioso e não religioso). Ao contrário, aponta que arranjos contextuais e formas de acionamento localizadas de categorias como “cultura”, “religião” e “Estado” estão envolvidas em conflitos e demandas sociais (Giumbelli, 2021GIUMBELLI, E. Sentidos da cultura em suas relações com a religião: políticas culturais e diversidade religiosa no Brasil. Dados: revista de ciências sociais, Rio de Janeiro, v. 64, n. 4, e20190229, 2021., p. 1) e funcionam como “categorias que precisam ser compreendidas como historicamente construídas e como ‘nativas’, capazes de legitimar e deslegitimar certas configurações de poder” (Sant’Ana, 2013SANT’ANA, R. A música gospel e os usos da “arma da cultura”. Intratextos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23-41, 2013., p. 23).

Considerações finais

Os três casos analisados neste artigo apontam para inserções diferenciais das produções bíblicas em contextos estatais - o caso da TV Brasil mobiliza a administração do Executivo, enquanto a concessão de cidadania honorária à equipe de Jesus e a proposta de patrimonialização como bens de natureza imaterial das produções advêm do Legislativo e propõem ações de âmbitos bem distintos. Os argumentos de “maioria” e “minoria” podem ser bons índices para perceber essa flutuação quanto ao que é mobilizado caso a caso. Em razão dos efeitos ainda incertos da patrimonialização das produções bíblicas como bens do Estado do Rio de Janeiro e do âmbito mais restrito da concessão de cidadania honorária na casa legislativa da capital do mesmo estado, vou centralizar as conclusões deste artigo na compra e veiculação de Os dez mandamentos pela Empresa Brasil de Comunicação.

A entrada da mesma novela na TV Brasil, pela via da venda da Record para a Empresa Brasil de Comunicação, explorada na primeira seção deste texto, postula como existem certos limites para a leitura das produções bíblicas como não religiosas. Os críticos da compra o fazem justamente operando uma linguagem estatal e da cidadania, mobilizando argumentos sobre o bom uso do dinheiro público, e defendem que a exibição da produção da Record contraria princípios da correta administração pública. É curioso notar que os argumentos dos representantes da TV Brasil para a compra e a exibição da novela passam exatamente por questões “de maioria” e evitam a discussão sobre aspectos religiosos da produção: respondem, ao contrário, sobre a capacidade de retenção de patrocinadores que a exibição pode gerar, e que a escolha pelo título se deu por questões “técnicas”, como a sua excelência no nível da produção.

Os argumentos “pró-maioria” podem ser percebidos, também, no caso da exibição pela Empresa Brasil de Comunicação, se atentarmos para a faixa de horário estar orientada à “programação para a família”. Por vias indiretas, portanto, pode-se encontrar certas respostas para a pergunta que orienta pesquisas sobre a vinculação entre religião e “a família” (Duarte, 2006DUARTE, L. F. D. À guisa de introdução: o que perguntamos à família e à religião. In: DUARTE, L. F. D. et al. (org.). Família e religião. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006. p. 7-13., p. 8), a saber: como se articulam relacionalmente “família” e “religião”? A TV Brasil parece propor uma associação que, embora não seja totalmente explícita (tendo em vista os argumentos “técnicos” que enuncia), coloca em circulação certa sintonia do que pode ser identificado enquanto “valores familiares” para com o “bíblico”. Ao fazê-lo, novamente utiliza um argumento pró-maioria, tendo em vista o caráter público da estatal de comunicação. Assim, ao salientar a afinidade percebida/proposta entre a novela bíblica e os valores familiares, a emissora opera com relação a alguma expectativa em torno do papel que a comunicação pública deveria cumprir para um projeto estatal de fomento à cultura. Pode-se dizer, numa palavra, que o “bíblico” é identificado enquanto tendo um papel a cumprir no que se espera em relação à família e que essa identificação ocorreu no plano estatal.

Se pensarmos essa rede de entrada do “bíblico” no “público”, com efeito, podemos perceber deslocamentos interessantes a respeito da presença de agentes religiosos em meio à questão estatal e, portanto, ao secular como um todo. Uma breve comparação com um evento referente ao mesmo universo pode contribuir para meu argumento: a inauguração do Templo de Salomão, em julho de 2014 em São Paulo, conforme analisam Montero, Silva e Sales (2018)MONTERO, P.; SILVA, A. L.; SALES, L. Fazer religião em público: encenações religiosas e influência pública. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 52, p. 131-164, set./dez. 2018., contou com a presença de diversos políticos profissionais, como a então presidenta Dilma Rousseff (além de governadores, prefeitos, deputado federais e estaduais e vereadores) e representantes do poder Judiciário ao lado do líder da Igreja Universal, Edir Macedo. Nessa cerimônia, pode-se perceber a aglutinação de significados religiosos, midiáticos e estatais, pela presença de figuras que vêm do terreno da política e reconhecem o empreendimento da Universal. Embora se trate de arranjos notavelmente distintos, creio ser possível defender certa longa duração de ações de reconhecimento por agentes seculares em relação às empresas midiáticas da Universal.

Parece-me, assim, que a forma com que os agentes que trabalham nos campos da política e da administração pública manobraram argumentos para acomodar essas mídias bíblicas em contextos estatais é fundamental em qualquer discussão sobre religião e espaço público que se desenvolva sobre esses eventos a partir daqui. Enfatize-se, assim, a função reguladora de argumentos não religiosos que trabalham para embasar tanto a compra e a exibição das telenovelas bíblicas no canal estatal quanto as ações legislativas de cidadania emérita e de patrimonialização. Das ideias de “qualidade técnica” e de “êxito comercial” das produções até o efeito possivelmente “pacificador” de sua exibição: uma circulação de motivos não exclusivamente religiosos age em favor das produções bíblicas em distintos planos estatais. Ao lado da importante agenda de pesquisa a respeito dos contextos em que agentes do Estado se associam a atores religiosos neopentecostais, a “mistura” (para evocar a feliz expressão de Machado, C. 2013MACHADO, C. “É muita mistura”: projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 13-36, 2013.) entre a política profissional brasileira e o “bíblico” em suas mediações materiais, do Templo de Salomão às telenovelas bíblicas, pode ser algo a se enfatizar em análises a respeito da situação brasileira enquanto uma marca distintiva pelo menos entre a virada da primeira para a segunda metade da década de 2010 e o começo dos anos 2020.

Uma contribuição potencial dessa investigação, por fim, reside no fato de que esses elementos sejam depreendidos de fenômenos estéticos, de modo a fazer emergir o seu sentido de produção do político em distintos casos. Em tempos de notória necessidade de discutir e repensar as arenas e as maneiras com que se faz política, este é um rendimento que me parece mobilizador e digno de consideração para nossa disciplina.

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  • SCOLA, J. Imagens literais demais: pensando elementos estéticos no fazer político do bolsonarismo e suas consequências. Novos Debates, [s. l.], v. 6, n. 1-2, e6205, 2020.
  • SCOTT, J. Domination and the arts of resistance New Haven: Yale University Press, 1990.
  • SHARMA, A.; GUPTA, A. Rethinking theories of the State in the age of globalization. In: SHARMA, A.; GUPTA, A. The anthropology of the State: a reader. Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 1-41.
  • SOARES, O. De ‘TV que não serve para nada’ a canal elogiado: a reviravolta da EBC com Bolsonaro. Gazeta do Povo, [s. l.], 7 mar. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/de-tv-que-nao-serve-para-nada-a-canal-elogiado-a-reviravolta-da-ebc-com-bolsonaro-8ll0ym7f4bm23svu2i4o858g7/ Acesso em: 31 jul. 2019.
    » https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/de-tv-que-nao-serve-para-nada-a-canal-elogiado-a-reviravolta-da-ebc-com-bolsonaro-8ll0ym7f4bm23svu2i4o858g7/
  • SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018.
  • TEIXEIRA, J. M. A conduta universal: governo de si e políticas de gênero na Igreja Universal do Reino de Deus. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
  • TROUILLOT, M.-R. Global transformations: anthropology and the modern world. New York: Palgrave, 2003.
  • TV BRASIL exibe novela de 2016 da Record em horário nobre. Tela Viva, [s. l.], 22 jul. 2022. Disponível em: Disponível em: https://telaviva.com.br/22/07/2022/tv-brasil-estreia-a-superproducao-a-terra-prometida/ Acesso em: 30 set. 2021.
    » https://telaviva.com.br/22/07/2022/tv-brasil-estreia-a-superproducao-a-terra-prometida/
  • VAQUER, G. Sem planejamento, Record não tem mais novela para colocar no ar após Reis. UOL, [s. l.], 26 maio 2023. Disponível em: Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/novelas/sem-planejamento-record-nao-tem-mais-novela-para-colocar-no-ar-apos-reis-103100 Acesso em: 30 maio 2023.
    » https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/novelas/sem-planejamento-record-nao-tem-mais-novela-para-colocar-no-ar-apos-reis-103100
  • VERONI, W. Série de documentários “Retratos de Fé” estreia 1ª temporada na TV Brasil. Café com Notícias, [s. l.], 10 dez. 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.cafecomnoticias.com/2014/12/serie-de-documentarios-retratos-de-fe.html Acesso em: 30 set. 2021.
    » http://www.cafecomnoticias.com/2014/12/serie-de-documentarios-retratos-de-fe.html
  • VITAL DA CUNHA, C. “Televisão para salvar”: religião, mídia e democracia no Brasil contemporâneo. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 199-235, 2017.
  • VITAL DA CUNHA, C. Irmãos contra o Império: Evangélicos de esquerda nas eleições de 2020 no Brasil. Debates do NER, Porto Alegre, ano 21, n. 39, p. 13-80, 2021.
  • WARNER, M. Publics and counterpublics. Public Culture, [s. l.], v. 14, n. 1, p. 49-90, 2002.
  • WRIGHT, S. The politicization of “Culture”. Anthropology Today, [s. l.], v. 14, n. 1, p. 7-15, 1999.
  • 1
    O ano de 2020, em razão da necessidade de distanciamento social imposta pela pandemia de Covid-19, modificou o calendário de produção audiovisual no país como um todo. No caso da Record, as novelas em exibição foram “pausadas” e duas reprises de cartazes bíblicos entraram ao ar às 20h e às 21h30: Apocalipse e Jesus, a partir de abril de 2020 e até o momento em que a produção de telenovelas se viabiliza novamente.
  • 2
    Ver Vaquer (2023)VAQUER, G. Sem planejamento, Record não tem mais novela para colocar no ar após Reis. UOL, [s. l.], 26 maio 2023. Disponível em: Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/novelas/sem-planejamento-record-nao-tem-mais-novela-para-colocar-no-ar-apos-reis-103100 . Acesso em: 30 maio 2023.
    https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/...
    .
  • 3
    O exemplo do hino estadunidense explicita o que as autoras estão chamando de “contradições performativas”. Resumidamente, a lei norte-americana proíbe a execução do hino nacional em uma língua que não seja o inglês. Imigrantes, contudo, cantaram uma versão traduzida para o espanhol do hino em estado de multidão. Ver Spivak e Butler (2018SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018., p. 58).
  • 4
    Pode ser possível ver certa afinidade do argumento de Butler e Spivak com outras tradições das ciências sociais, como a obra de Norbert Elias (1993)ELIAS, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. 2 v., tendo em vista que, para esse sociólogo, as formações de sociedades, observadas por ele em longa duração até a formação de Estados-Nação, guardam íntima relação com atitudes mentais e padrões emocionais. É na torção que a perspectiva das autoras traz a respeito da questão do Estado que me parece existir uma distinção importante. Ao pensarem a relação possível entre literatura e estudos globais e sugerirem a existência de outros “Estados” além do hifenado Estado-Nação (Spivak; Butler, 2018SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018., p. 15), as autoras delineiam um veio para o que chamam de “política radical” no entrelaçamento entre linguagem, política e performance (Spivak; Butler, 2018SPIVAK, G.; BUTLER, J. Quem canta o Estado-Nação?: língua, política, pertencimento. Brasília: Editora UnB, 2018., p. 62), o qual possibilita reivindicar diferentes modalidades de pertencimento em meio à produção de “estados” pelo “Estado”. Também é possível perceber a convergência da perspectiva das autoras com as análises baseadas nas clivagens dentro do Estado (como Mitchell, 2006MITCHELL, T. Society, economy and the State Effect. In: SHARMA, A.; GUPTA, A. The anthropology of the State: a reader. Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 169-185.; Sharma; Gupta, 2006SHARMA, A.; GUPTA, A. Rethinking theories of the State in the age of globalization. In: SHARMA, A.; GUPTA, A. The anthropology of the State: a reader. Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 1-41.), que abordarei na terceira seção do texto, salientando o caráter de disputa nesses arranjos estatais.
  • 5
    A noção de “família” aqui acionada, com efeito, merece uma discussão própria para não ser tomada como transparente. O que enfatizo é o acionamento do argumento de que uma produção audiovisual específica ser identificada enquanto afinada com “valores familiares” por um órgão de governo. A identificação do conteúdo dessa telenovela (bíblica) e dos agentes que a produziram (posto que a transação é de compra e não de produção estatal de uma obra própria) parecem bons índices para argumentar-se a respeito da questão da “politização da cultura” e a entrada da religião nesse debate, conforme argumentarei em outra seção.
  • 6
    A respeito do “fim” do Ministério da Cultura, veja-se a pesquisa de Rafael Moreira e Lincoln Spada (2021)MOREIRA, R.; SPADA, L. O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as políticas públicas culturais na era pós-MinC. Santos: Imaginário Coletivo, 2021..
  • 7
    Exibida pela Record entre 19 de janeiro e 22 de novembro de 2021, das 21h às 22h, em 223 capítulos.
  • 8
    Ver https://ouvidoriacidadaebc.org/ (acessado em 30/09/2021).
  • 9
    Há registros de que “Retratos de fé” teve sua estreia no ano de 2014 (cf. Veroni, 2014VERONI, W. Série de documentários “Retratos de Fé” estreia 1ª temporada na TV Brasil. Café com Notícias, [s. l.], 10 dez. 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.cafecomnoticias.com/2014/12/serie-de-documentarios-retratos-de-fe.html . Acesso em: 30 set. 2021.
    http://www.cafecomnoticias.com/2014/12/s...
    ) e teve temporadas anuais com programas inéditos até o final de 2017, como sinaliza o site da TV Brasil, que disponibiliza os episódios com a data de exibição original (Retratos…, 2023RETRATOS de fé. TV Brasil, [s. l.], 2023. Disponível em: Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/retratosdefe . Acesso em: 30 set. 2023.
    https://tvbrasil.ebc.com.br/retratosdefe...
    ).
  • 10
    Atualmente, está em seu segundo mandato (2021-), tendo sido eleito pela primeira vez em 2016 (mandato 2017-2020) (cf. Rio de Janeiro, 2023RIO DE JANEIRO (Município). Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Mandatos do Ver. Inaldo Silva. Rio de Janeiro: Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: Disponível em: http://www.camara.rio/vereadores/inaldo-silva/mandatos . Acesso em: 30 set. 2023.
    http://www.camara.rio/vereadores/inaldo-...
    ).
  • 11
    “A Medalha de Mérito Pedro Ernesto foi criada através da Resolução nº 40, em 20 de outubro de 1980. Ela é a principal homenagem que o Rio de Janeiro presta a quem mais se destaca na sociedade brasileira ou internacional. Recebeu esse nome em reconhecimento ao trabalho do prefeito Pedro Ernesto, e por isso sua figura é estampada nas duas Medalhas que fazem parte do Conjunto. Uma presa ao colar, e a outra para ser colocada na lapela do lado direito do homenageado. Ambas são presas em uma fita de cores azul, vermelha e branca que são as cores da bandeira da cidade”, conforme o site da Câmara do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 2021RIO DE JANEIRO (Município). Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Homenagens. Rio de Janeiro: Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: Disponível em: http://www.camara.rj.gov.br/cerimonial_homenagens.php?mc1=homenagens . Acesso em: 30 set. 2021.
    http://www.camara.rj.gov.br/cerimonial_h...
    ).
  • 12
    Ver a matéria do jornalístico da Record Fala Brasil, de 01/07/2019 (Novela Jesus…, 2019NOVELA JESUS é homenageada no Rio de Janeiro. [S. l.]: Record, 1 jun. 2019. Publicado no canal Fala Brasil. 1 vídeo (2min12s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QqMpvWhSQCk . Acesso em: 30 set. 2021.
    https://www.youtube.com/watch?v=QqMpvWhS...
    ).
  • 13
    Carlos Gutiérrez (2015GUTIÉRREZ, C. Igreja Universal e política: controvérsia em torno do secularismo. In: MONTERO, P. (org.). Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo: Terceiro Nome; Campinas: Editora da Unicamp, 2015. p. 49-74., p. 51) trabalhou o tema do Partido Republicano Brasileiro (PRB) em sua interface com a Igreja Universal e caracterizou as formas com que a Universal “participa na esfera pública” em três eixos: “sua presença no poder legislativo, com a eleição de representantes e participação em audiências públicas; a ocupação do espaço urbano, na realização de suas manifestações; e a elaboração de políticas públicas”. Os dois primeiros eixos situados pelo autor parecem explicitados na ação de concessão de cidadania honorária proposta pelo parlamentar do PRB em questão, se tivermos em conta que o espaço legislativo da cidade também tem importância enquanto local ocupado, nessa ocasião, por artistas da Record junto aos(às) profissionais da política legislativa.
  • 14
    No presente de escrita deste texto, a saber, em setembro de 2022.
  • 15
    Cf. https://twitter.com/danniellibrelon (acessado em 30/11/2021).
  • 16
    Reprises em 2005/2006, 2007, 2017 e 2019, pela sua emissora original, isto é, a Record. Também foi exibida entre 2014 e 2015 pelo canal de cabo Fox Life (cf. A escrava…, [2022]A ESCRAVA Isaura (2004). Teledramaturgia, [s. l.], [2022]. Disponível em: Disponível em: http://teledramaturgia.com.br/a-escrava-isaura-2004/ . Acesso em: 31 jan. 2022.
    http://teledramaturgia.com.br/a-escrava-...
    ).
  • 17
    A TV Brasil tem uma segunda faixa de dramaturgia, também com produções adquiridas de outros canais, que apresenta Os imigrantes, às 18h30, de segunda a sábado.
  • 18
    Trata-se da proposta de inclusão da música gospel “e os eventos a ela relacionados como possíveis beneficiários da Lei Rouanet (Lei 8313/91)”, que prevê incentivos a empresas e indivíduos que financiam projetos culturais. A proposição se deu em 2007 e a sua aprovação na Câmara Federal ocorreu em 2008, incorrendo no “reconhecimento de que a música gospel é uma manifestação cultural”. Ver, sobre o tema, Sant’Ana (2013)SANT’ANA, R. A música gospel e os usos da “arma da cultura”. Intratextos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23-41, 2013. e o material no site da Câmara dos Deputados (Câmara…, 2008CÂMARA inclui música gospel entre beneficiários da lei Rouanet. Brasília: Câmara dos Deputados, 19 nov. 2008. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/123953-camara-inclui-musica-gospel-entre-beneficiarios-da-lei-rouanet/ . Acesso em: 31 jan. 2022.
    https://www.camara.leg.br/noticias/12395...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2022
  • Aceito
    27 Maio 2023
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