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Mulheres e moda em São Paulo: das vitrines iluminadas às sombrias salas de costura

RESENHAS

Mulheres e moda em São Paulo: das vitrines iluminadas às sombrias salas de costura* * Resenha de BONADIO, Maria Claudia. Moda e sociabilidade. Mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920. São Paulo, SENAC, 2007; e MALERONKA, Wanda. Fazer roupa virou moda: um figurino de ocupação da mulher. São Paulo, SENAC, 2007. Recebida para publicação em setembro de 2008, aceita em outubro de 2008.

Ana Paula Cavalcanti Simioni

Doutora em Sociologia pela USP, Docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. anapcs@usp.br

O fenômeno da moda, ainda que amplamente presente em nosso cotidiano, por vezes é considerado como um tema "menor" quando se trata de tomá-lo como objeto de estudos. A publicação de dois livros durante o ano de 2007 - Moda e sociabilidade. Mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920 e Fazer roupa virou moda: um figurino de ocupação da mulher, em sua origem duas teses acadêmicas - é a prova de uma paulatina transformação na compreensão do estatuto heurístico da moda: de um objeto fútil torna-se um prisma privilegiado para compreender variadas práticas de distinção nas sociedades contemporâneas.

Em ambas as obras, a moda é tratada como um objeto complexo - não se reduzindo às práticas do vestir-se e nem às transformações dos usos dos objetos no tempo - capaz de suscitar recortes historicamente, metodologicamente e conceitualmente distintos. A moda é não apenas objeto (ou um mero reflexo das condições econômicas ou políticas), mas sim uma força social que tanto espelha, quanto cria, dinamiza, distinções sociais fundamentais entre grupos de indivíduos e, particularmente, entre gêneros.

Os livros de Maria Claudia Bonadio e Wanda Maleronka abordam o mesmo período, a São Paulo da primeira metade do século XX, e se dedicam a uma temática comum: a das interrelações entre moda e gênero, ou melhor, entre moda e história das mulheres. Mas o fazem a partir de prismas diversos. Enquanto o livro de Maria Claudia Bonadio centra-se no estudo das mulheres de elite, destacando o quanto o emergente consumo de luxo contribuiu para que estas rompessem com os hábitos de recato, até então prevalecentes na São Paulo oitocentista, e iniciassem um tipo específico de participação na esfera pública; Wanda Maleronka detém-se naquele "outro lado", geralmente invisível e negado: o das produtoras da moda, essas costureiras e operárias usualmente desconhecidas, mas sem as quais tal universo não existiria.

Em Moda e sociabilidade. Mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920, Maria Claudia Bonadio discute a correlações entre o crescimento do consumo de luxo e o avanço da "modernidade" em São Paulo, tendo como pano de fundo as profundas transformações urbanas por que passou a cidade nas primeiras décadas do século XX. Para tanto, realiza acurada interpretação histórica acerca de duas emblemáticas fontes de época, o Mappin Stores e a Revista Feminina. O primeiro, inaugurado em 1913, foi o primeiro grand magazin a instalar-se na cidade, trazendo consigo novos padrões de consumo até então desconhecidos. As lojas de departamentos congregavam variadas mercadorias em um mesmo espaço. Além de tal praticidade, ofereciam o requinte de suas vitrines, o luxo de seus ambientes e, sobretudo, um leque de opções de entretenimento destinado particularmente à clientela feminina até então inexistente, como o salão de chá, que além de ponto de encontro, era também espaço de desfile de modas. Nesse sentido, como bem analisa a autora, a instalação de tal equipamento significou a "abertura de um novo espaço para a sociabilidade feminina" (23), até então circunscrita praticamente à vida familiar e às práticas religiosas. Sair de casa para fazer compras, tomar um "gelado" com as amigas e/ou com os filhos, assistir a um desfile nas dependências do "magazin", ostentando os últimos modelos de Paris, tornou-se uma prática comum para um seleto grupo de mulheres endinheiradas da capital.

A autora argumenta que o crescimento do consumo, e particularmente o de moda, ampliou a participação das mulheres na "esfera pública", esgarçando o confinamento doméstico a que a maior parte delas estivera sujeita até então. Aqui cabe frisar um uso um tanto ampliado do conceito de esfera pública, usualmente centrado na questão da participação política que, sabemos, continuava a excluir as mulheres, mesmo em tempos de República. É interessante a opção da historiadora por não vitimizar o público feminino, assinalando que a moda não deve ser vista apenas como uma força de opressão, mas talvez seja excessivamente otimista acreditar que o consumo poderia ombrear-se a, ou ser um substituto efetivo de, outras esferas que continuavam a lhes ser negadas.

Mas é injusto imputar à autora um viés acrítico sobre a relação entre consumo e modernidade no Brasil. Na segunda parte do livro, dedicado à Revista Feminina, Maria Claudia destrincha os discursos presentes nos editorias de moda assinados pela cronista Marinette, e as imagens veiculadas pelo periódico, publicado primeiramente em 1914. Além de permitir a compreensão sobre os usos da moda naquele contexto, a interpretação instigante sobre os usos da figura da melindrosa no Brasil, contrapostos a outros discursos presentes na revista, traz uma análise fundamental: a de que o discurso da modernidade da moda - clamando por uma suposta "emancipação feminina", que se faria presente nas roupas leves, nos cabelos curtos, na emblemática figura da melindrosa ao volante.... - não passava de uma emancipação parcial e restritiva. Parcial porque se tratava de um "verniz de modernidade", uma vez que a revista - bem como os anúncios do Mappin Stores - buscava combinar o consumo de tais elementos inovadores com a manutenção absoluta dos papéis femininos mais tradicionais, como o de mãe e de esposa. Não se tratava, de modo algum, de sugerir uma transformação dos comportamentos que estimulassem uma ruptura radical com os paradigmas de feminilidade vigentes, mas apenas modernizá-los em sua superfície. E tal emancipação só poderia ser restritiva, uma vez que era pensada para um público muito circunscrito: o das mulheres de elite, aquelas poucas que liam as páginas do periódico e que se encontravam, algumas vezes por semana, no distinto espaço do Mappin. Como sentencia a autora:

As mulheres passavam a ter uma aparência mais jovem, podiam sair sozinhas para as compras e fazer passeios pela cidade, mas continuavam se preocupando em manter o casamento e principalmente a honra e a moral de mulher casada. Nessa direção, a publicidade de moda do Mappin Stores e as crônicas de Marinette anunciam novas modas, novas identidades e também novas possibilidades de sociabilidade feminina, sem, entretanto, abalar as estruturas do trinômio mãe/esposa/dona-de-casa (196).

Como se percebe, Moda e sociabilidade constitui leitura obrigatória para os interessados em moda, história do consumo e história das mulheres no Brasil, pelas interpretações interessantes e pela análise bem fundamentada de uma documentação de época sugestiva. Vale ressaltar, porém, uma lacuna presente no livro, um aspecto que o distancia de alguns postulados que a historiografia feminista tem tradicionalmente apontado. Um dos problemas com que nos defrontamos ao fazer "história das mulheres" é que estas são tomadas como sujeitos anônimos, massas de indivíduos amorfos; constitui, assim, uma das tarefas a de devolver-lhes a condição de sujeitos históricos, sujeitos particulares. O livro em questão, apesar de pretender, de certo modo, recolocar as mulheres como sujeitos de sua história (ao defender o argumento de que ao saírem às ruas, ainda que consumidoras apenas, participavam da esfera pública), jamais lhes dá voz, nome, ou direito à palavra. Explico: salvo o particular caso da crítica de moda abordada, Marinette, a autora não precisa em nenhum momento quem eram, concretamente, as consumidoras do Mappin e as leitoras da Revista Feminina. E por quem, refiro-me tanto a dados quantitativos (quantas eram tais mulheres, qual seu grau de educação, nível de renda, etc.), mas também a dados qualitativos (a que famílias pertenciam; de quem eram filhas/esposas, mães; quem eram suas amigas; o que pensavam sobre sua própria situação; o que pensavam sobre a moda, etc.). Não há investigação sobre suas memórias; o que refletiam, sentiam, acreditavam, desejavam; não há morfologia sobre seu grupo social (aqui tomado como fração de classe), enfim, elas continuam a ser uma coletividade amorfa e anônima. Tal cobrança não pretende desmerecer o trabalho, resultado de uma dissertação de mestrado e que cumpre plenamente suas exigências, mas sim visa assinalar novos caminhos de pesquisa e possibilidades de interpretação acerca do tema abordado.

Já o livro Fazer roupa virou moda: um figurino de ocupação da mulher empreende uma análise dedicada ao universo das "reais produtoras" de vestuário - costureiras e operárias têxteis atuantes em São Paulo entre 1920 e 1940. Diferindo dos estudos recorrentes no campo, que usualmente optam por focalizar as figuras emblemáticas dos grandes costureiros e estilistas, já amplamente conhecidos e reconhecidos, Wanda Maleronka procura compreender a situação social dessa massa de mulheres participantes do universo da moda na condição de trabalhadoras, que tinham nele um modo, geralmente instável e precário, de driblar sua originária pobreza, garantindo sua sobrevivência material. Por meio de uma análise que combina uma extensa e dedicada pesquisa histórica, em fontes amplas e diversas (textos literários, censos históricos, manuais de ofício, periódicos de época etc), a autora retira a névoa de desconhecimento que paira sobre tais mulheres. Reconstitui a formação recebida pelas costureiras, que geralmente acontecia no próprio lar, constituindo-se em um tipo de saber feminino passado de geração em geração, por meio do qual corpos e mentes eram disciplinados para o trabalho; reconstitui as origens humildes, muitas vezes imigrantes e migrantes, dessas mulheres, que encontravam na produção de vestuário o ganha pão possível em um momento de crescimento da cidade e da pobreza. Recompõe, ainda, em um capítulo especialmente importante para os estudiosos de moda brasileira, a existência de um razoável grupo de bem-sucedidas modistas atuantes na cidade entre finais do século XIX e a década de 1950, até o momento, ignoradas pela historiografia.

O livro, porém, é mais do que um "resgate" dessas mulheres esquecidas. O modo com que estabelece a relação entre o universo de criação do vestuário e o universo mais amplo de crescimento da indústria na cidade é digno de nota. Wanda Maleronka analisa o modo com que duas categorias de "trabalhadoras da agulha" - as costureiras autônomas e as operárias têxteis, as primeiras alocadas em oficinas, as segundas nas indústrias - acabaram coexistindo durante o período de grande florescimento da indústria têxtil e de vestuário paulista. Elas não se substituíram umas as outras, mostrando que o consumo de moda estimulou, concomitantemente, o desenvolvimento das pequenas oficinas e da grande indústria. Assim vê-se que, sem cair nas armadilhas da autonomização de esferas, a autora permite que se compreenda o quanto o desenvolvimento da moda exigiu transformações culturais e econômicas, ambas, afinal, interligadas nesse universo. A autora incorpora, ainda, uma dimensão política à sua análise: a proliferação de cursos de formação para costureiras, que se avoluma consideravelmente nos anos de 1930 e 1940, responde aos discursos propagados durante a vigência do Estado Novo, por meio dos quais atualizavam-se as crenças de uma suposta vocação inata à domesticidade feminina; posto que esta era praticamente impossível às mulheres pobres, fomentava-se o desenvolvimento das atividades que poderiam ser feitas em casa, como a costura, que, naquele contexto, torna-se então uma "profissão feminina" exemplar, fortemente estimulada pelo Estado.

Esse trabalho pioneiro torna-se, com sua publicação, uma leitura de referência, obrigatória para quem investiga a história das mulheres, da moda e das relações de trabalho no Brasil. Mas como todo trabalho pioneiro possui seus limites: as tantas trajetórias de modistas apontadas no texto e não analisadas... ficam as pistas para trabalhos posteriores. Outras questões, menores, mas que poderiam ser mais bem equacionadas, dizem respeito ao plano dos capítulos, um tanto descalibrados em suas pesquisas e conclusões, particularmente o último, sobre as noivas, que foge por completo às questões e métodos trabalhados nos anteriores. Por fim, uma crítica à editora Senac, que publicou os dois títulos; se é louvável abrir uma linha de publicação para trabalhos acadêmicos sobre temas que até então encontravam pouco espaço para sua divulgação, é mister cobrar também uma qualidade mais rigorosa em seu acabamento: no livro de Wanda Maleronka, a ausência de uma preparação mais acurada do texto chega a dificultar a leitura, enquanto no livro do Bonadio, claramente optou-se por manter as notas em detrimento da bibliografia final... pequenas economias que não traduzem ganhos efetivos na área cultural, em que são outros os critérios de qualidade. Mas nada disso, é claro, invalida a grande contribuição dos livros.

A leitura conjunta das duas obras possibilita um mergulho abrangente nas relações de produção e de consumo de moda em um momento determinado da história econômica e cultural de São Paulo. O crescimento de um embrionário mercado de luxo na capital foi correlato ao desenvolvimento de uma massa de trabalhadoras empobrecidas e anônimas, as quais sobreviveram em um sistema de aprofundada precarização do trabalho que parecia se aprofundar com o crescimento das lojas, fábricas e magazins. Graças às sólidas pistas deixadas pelas autoras, o leitor será capaz de reconstituir uma nova totalidade histórica sobre a moda na São Paulo de inícios do século XX. Nesse cenário, o mundo da moda emerge em sua plena contradição, perpassado por forças antagônicas, por um lado, como um elemento que permite a liberação pessoal para algumas mulheres privilegiadas, por outro, como mero instrumento de penosa sobrevivência; para algumas funciona como sinal de status e riqueza; enquanto para outras permite apenas a manutenção e a reprodução de sua pobreza. Tais elementos, opostos, coexistem e complementam-se nesse complexo universo que é a moda.

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    Resenha de BONADIO, Maria Claudia.
    Moda e sociabilidade. Mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920. São Paulo, SENAC, 2007; e MALERONKA, Wanda.
    Fazer roupa virou moda: um figurino de ocupação da mulher. São Paulo, SENAC, 2007. Recebida para publicação em setembro de 2008, aceita em outubro de 2008.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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