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Quem tem medo de Judith Butler? A cruzada moral contra os direitos humanos no Brasil

“Deixem em paz nossas crianças!” vociferou uma mulher na conferência de Judith Butler na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). A filósofa apresentava seu livro Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo (Butler, 2017Butler, Judith. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo, Boitempo, 2017. Tradução: Rogério Bettoni.) e havia acabado de afirmar: “não foi uma palestra sobre gênero que deveria ter sido cancelada”. No dia seguinte, manifestantes em frente ao SESC-Pompeia, onde a filósofa participaria do evento Os fins da democracia, queimaram uma figura de bruxa com seu rosto. No aeroporto de Congonhas, dias depois, um grupo a perseguiu aos berros de “pedófila!”. O ocorrido causou horror e perplexidade na comunidade acadêmica e defensores dos direitos humanos, no Brasil e mundo afora. Afinal, o que se passava em nosso país a ponto de grupos organizarem protestos e um abaixo-assinado contra a presença de Butler aqui?

Qual o mal que grupos conservadores projetavam em uma das maiores intelectuais de nosso tempo? A julgar pelos eventos descritos, os cartazes, posts e vídeos nas redes sociais, grupos como o Direita São Paulo e Movimento Brasil Livre projetavam em Butler a personificação do que denominam “ideologia de gênero”. Suas palestras versavam sobre democracia, mas o foco de protesto foram suas teorias sobre gênero e sexualidade.

Impactados com o ocorrido e com a violência das manifestações, organizamos o evento “Quem tem medo de Judith Butler? As cruzadas morais contra os direitos humanos no Brasil” (UNIFESP, 08/12/2017). O objetivo foi refletir sobre os ataques a intelectuais, educadores/as e artistas que marcaram os últimos anos. Surgia dali a base para este debate no cadernos pagu – textos que compõem um conjunto articulado de reflexões que busca responder às perguntas suscitadas pela perseguição e pelo ódio que vimos materializar-se em uma espécie de caça às bruxas contemporânea.

Em meio ao cenário político brasileiro que, desde 2014, é marcado pela criminalização da política, impeachment da primeira presidenta mulher de nossa história, crise econômica e desemprego, instaurou-se um clima de frustração coletiva com os políticos e com o governo, pavimentando o terreno para que a retórica da antipolítica se tornasse hegemônica. Alguns grupos passaram a se organizar contra as diferenças que têm modificado hierarquias de gênero e trazido maior visibilidade e reconhecimento da diversidade sexual. Assim, não foi mero acaso que as palestras de Butler sobre temas envolvendo a democracia tenham sido eclipsadas por empreendedores morais que a perseguiram como a encarnação do espectro que combatem.

No Brasil de nossos dias, a democracia está ameaçada pelo poder de uma interpretação da realidade que opera por meio da criação de inimigos. Em contexto de polarização das disputas, dissemina-se o autoritarismo que reitera uma distância entre “nós” e “xs Outrxs”, como poderemos acompanhar logo adiante no artigo de Ingrid Cyfer (2018)Cyfer, Ingrid. A bruxa está solta: os protestos contra a visita de Judith Butler ao Brasil à luz de sua reflexão sobre ética, política e vulnerabilidade. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018. Tal construção de alteridades totais produz, por exemplo, os limites estatais ao reconhecimento de pessoas trans e as políticas históricas de deixar e/ou fazer morrer no Brasil, como argumenta Berenice Bento (2018)Bento, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação?. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018.. Quadro que amplia os discursos de ódio, que se propagam abrindo espaço para a ascensão de um novo populismo – aspecto analisado por Raphael Neves (2018)Neves, Raphael “Joga pedra na Judith”: discursos de ódio e populismo. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018.

A gramática moral reinante aproximou grupos de interesse laicos como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Escola sem Partido de religiosos (católicos e evangélicos, neopentecostais ou não), de maneira que sua aliança reforçou a tendência de atribuir problemas sociais concretos a inimigos imaginários, que podem ser comunistas, gays, feministas, pessoas trans. Esse tipo de prática política se alicerça em uma visão de mundo dividida entre os que representariam “o Bem” e os que representariam “o Mal”. Da política para a moral, grupos de interesse passaram a demonizar pleitos de direitos humanos por parte de mulheres, homossexuais, pessoas trans, travestis, intersex, entre outrxs, concatenando-os no fantasma que batizaram de “ideologia de gênero”.

Richard Miskolci (2018)Miskolci, Richard. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018 descreve a seguir como a atuação desses grupos passou a se articular em um empreendedorismo que já atingiu contornos de uma cruzada moral que tem como alvo os direitos sexuais e reprodutivos e seus defensores. Fenômeno presente cuja história é aqui reconstituída por Sônia Corrêa (2018)Corrêa, Sônia. A “política do gênero”: um comentário genealógico. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018.. De forma que este debate traz elementos que permitem identificar e analisar as forças sociais e políticas que se voltam contra a produção científica e artística que ousa trazer a público o que movimentos autoritários consideram obsceno, ou seja, que (em sua visão) deveria ficar “fora de cena”: demandas por igualdade jurídica, segurança cotidiana e reconhecimento. Assim, tais movimentos buscam impedir avanços que garantam equidade a grupos sociais historicamente subalternizados, mantidos no limbo da cidadania como se não fossem dignos do direito à própria vida ou a decisões sobre seu próprio corpo.

Em um cenário em que grupos políticos buscam restringir direitos humanos não é de se estranhar que façam uso de táticas sofisticadas que demandam astúcia analítica para identificá-las e ainda maior para contorná-las. Fernando de Figueiredo Balieiro (2018)Balieiro, Fernando de Figueiredo. “Não se meta com meus filhos”: a construção do pânico moral da criança sob ameaça. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018. mostra como os grupos de interesse conservadores criaram uma estratégia em que sua atuação contra homossexuais é apresentada como suposta defesa da “criança sob ameaça”, como ecoou no já citado grito de uma mulher na conferência de Butler. Mas tal contexto também gera resistências, como as exploradas por Pedro Paulo Gomes Pereira (2018)Pereira, Pedro Paulo Gomes. Judith Butler e a pomba-gira. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018. a partir da experiência de pessoas que seguem religiões de matriz africana ou membros de igrejas inclusivas, criando mediações entre linguagens, conceitos e formas de ação.

O debate busca responder “Quem tem medo de Judith Butler?” identificando grupos de interesse que se articularam na campanha contra os direitos sexuais e reprodutivos, assim como sujeitos que resistem a ela. Ainda que parta dos ataques à filósofa, não é um dossiê sobre sua obra; antes, um debate sobre direitos humanos que ganhou centralidade no cenário político brasileiro e que, tudo indica, pautará a campanha eleitoral de 2018 e nossa sociedade nos próximos anos.

Referências bibliográficas

  • Balieiro, Fernando de Figueiredo. “Não se meta com meus filhos”: a construção do pânico moral da criança sob ameaça. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018.
  • Bento, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação?. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018.
  • Butler, Judith. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo, Boitempo, 2017. Tradução: Rogério Bettoni.
  • Corrêa, Sônia. A “política do gênero”: um comentário genealógico. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018.
  • Cyfer, Ingrid. A bruxa está solta: os protestos contra a visita de Judith Butler ao Brasil à luz de sua reflexão sobre ética, política e vulnerabilidade. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018
  • Miskolci, Richard. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018
  • Neves, Raphael “Joga pedra na Judith”: discursos de ódio e populismo. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018
  • Pereira, Pedro Paulo Gomes. Judith Butler e a pomba-gira. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2018
  • Data do Fascículo
    2018
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