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HARISON, Simon. 2012. Dark trophies: hunting and the enemy body in modern war. New York: Berghahn Books. 233 pp.

HARISON, Simon. Dark trophies: hunting and the enemy body in modern wa r. 2012. Berghahn Books, New York

Especialista no estudo de sociedades indígenas na Melanésia, onde trabalhou com os Avatip na Papua Nova Guiné, em seu novo livro, Dark trophies, o antropólogo Simon Harrison se volta para um tema ainda pouco trabalhado na área, qual seja, o uso que se faz nas guerras modernas dos corpos dos inimigos. Partindo de um arcabouço teórico bem abrangente, ele passeia pelas áreas específicas da etnologia indígena, antropologia forense, criminalística, museologia, turismo e história da ciência com o propósito de mostrar como "algumas práticas sociais altamente aberrantes, capazes de ocorrer apenas esporadicamente, perpassaram vigentes por dois séculos" (:187).

O material documental de que o autor se vale para construir tal história "desviante" dentro da tradição antropológica são relatos de ex-combatentes e de seus familiares da Guerra Civil Americana (capítulo 9), da Segunda Guerra Mundial, da Guerra do Pacífico (capítulo 12) e da Guerra do Vietnã (capítulo 15). Segundo ele, durante essas violentas guerras, identidades eram negociadas e estereótipos mobilizados, sendo sempre mediados pelos corpos mortos dos inimigos que, muitas vezes mutilados, eram expostos pelos militares em suas casas como troféus de caçadas. Esses crânios-troféus muitas vezes eram obtidos através de trocas com os próprios nativos ou mesmo por meio de roubo de túmulos. Na verdade, um dos pontos centrais do livro é investigar se essas práticas recorrentes ao longo do tempo e em espaços diversos permaneceram vigentes devido à socialização pelo aprendizado ou a esquemas conceituais de caçadas de animais profundamente arraigados na cultura norte-americana do século XIX.

Segundo Harrison, a prática de caçada de partes do corpo humano nas guerras modernas, chamada por ele de troféus militares, e sua exibição reemergiram nesses dois séculos depois de uma longa dormência reificada nas fantasias que a cultura ocidental possui dos guerreiros selvagens nas sociedades indígenas, que realizariam a chamada caça expedicionária de troféus atualizando conceitos de masculinidade, fertilidade e poder que ocorreriam em ambos os ambientes. Seu instrumental teórico oscila, a partir do primeiro e segundo capítulos, entre as ideias de metáforas e tabus, tais como sexualidade e alimentação; figuras capazes de transpor domínios semânticos díspares, testando o limiar entre o que seria ou não social e patologicamente aceitável. Na mesma medida em que a metáfora contribuiria para a redução e a simplificação das diferenças da realidade, os tabus diminuiriam a apreensão das semelhanças.

Nos seguintes capítulos, o autor nos municia de numerosos exemplos ao longo dos séculos XVIII e XIX de como os museus e as coleções de anatomia se beneficiaram desse interesse em comparar raças ao mesmo tempo em que crescia a doutrina do individualismo, a ponto de gerar um frenesi coletivo na busca de cadáveres que esconderiam a heroicidade ou a genialidade de algumas pessoas mais preeminentes da época. Se no século XVIII as diferenças raciais consistiam em diferenças corporais - cor de pele, cabelo - resultantes do ambiente físico, no século XIX essas diferenças se tornaram parte da estrutura interior da pessoa. A ciência e a guerra passaram a andar juntas não só na busca violenta por novos territórios, mas também do novo conhecimento sobre o funcionamento do humano e de seu comportamento. Os selvagens, dentro da escala evolutiva da nascente ciência antropológica e da frenologia do século XIX, estariam mais próximos dos animais, e as guerras apenas faziam encenar a caça aos animais que já era tradição na Europa. Ao mesmo tempo, os guerreiros selvagens passaram a auxiliar as tropas colonizadoras em suas missões na África e na Ásia, muitas vezes transgredindo estatutos morais de guerra entre nações civilizadas.

Apesar de a conquista ter sido sempre a linha melódica capaz de unir, ao longo do tempo, o que se chama de guerra, o autor mostra que houve uma brusca mudança de atitude nesses objetivos. Se antes a Guerra Medieval dependia de com quem se estava batalhando e qual a relação travada com esse Outro, a partir do Iluminismo as guerras passariam a depender da natureza mesma desse inimigo, entendida como marcador étnico. Existiam os civilizados e os selvagens e, portanto, o modo civilizado de se fazer guerra e sua contraparte, o modo selvagem. Tratados internacionais passaram a estipular regras de boa conduta na guerra ou, em outras palavras, o que era justo ou injusto de se fazer no campo de batalha e ao final da guerra.

Os troféus adquiridos pelos combatentes durante e depois das guerras serviam a diversas funções. Crânios humanos eram guardados como objetos de estimação ou tinham amplo uso na vida prática dessas pessoas, desde suporte de velas até recipientes para bebida. Anéis, pingentes e brincos eram feitos de ossos de animais. Os crânios eram sempre marcados com o nome de quem os possuía, o local em que foi adquirido ou o apelido da peça e, muitas vezes, eram artisticamente decorados. Eles se transformavam em um artefato capaz de criar laços familiares - homossexuais - entre aqueles soldados homens que estavam longe da família. O que é teorizado predominantemente no capítulo 10, mas ilustrado nos capítulo 6 e 7, é que a caça aos troféus durante as guerras fez, portanto, com que se gerasse uma intrincada rede de tráfico humano destinada não só a museus e institutos de anatomia, mas às próprias famílias dos sobreviventes que aguardavam notícias. A busca por troféus parece ter sido um bom medidor da aceitação que as guerras tinham por seus conterrâneos em seu país de origem. Esses restos humanos, muitos já anônimos, mais tarde passariam pela burocracia da repatriação e pelas dificuldades inerentes em trazer à tona memórias que no longo prazo se preferia terem sido esquecidas.

Apesar de citá-los, o livro deixa a desejar no aprofundamento da caça aos troféus de cabeça que vigiam nas sociedades indígenas do Equador, de Borneo, da Papua Nova Guiné e na própria Amazônia brasileira, mais bem representada, segundo o autor, pelos Munduruku. A ideia de que a dicotomia entre inimigos distantes e próximos autorizaria ou não a caça às cabeças fica um pouco solta no conjunto geral da obra e não parece encontrar evidências empíricas nas guerras modernas. Apesar disso, percebe-se que o autor optou por deixar a etnologia indígena como pano de fundo enquanto trazia as guerras modernas para o foco, não se esquecendo de inverter este quadro quando necessário.

Guerra aqui é o denominador comum que em uma linha comparativa une os diferentes contextos etnográficos, implicando referências comuns. Mesmo sendo o foco do livro, a guerra aparece ao final como um fenômeno ainda indeterminado e que pode ser mais bem compreendido através dos microfatores - psicológicos e sociológicos - que a determinam em seu cotidiano. Tal indeterminação, Harrison mostra, estará sempre presente em nossa análise, devido à contingência histórica do inimigo. É para essa relação com o Outro, mais do que o conflito em si, que devemos nos voltar agora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014
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