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Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis

Alzheimer’s disease and shamanism: (im)possible dialogues

Enfermedad de Alzheimer y chamanismo: diálogos (im)posibles

Resumo

Relacionar os processos demenciais ao tornar-se louco ou ser outra pessoa, estar possuído, foi algo que encontrei em cenas e relatos de meu material de campo. É numa tentativa de compreender o que está em jogo nesse “devir outro” que faço um diálogo entre doença de Alzheimer e xamanismo enquanto fenômenos que lidam com processos de transformação em situações-limite, como doença, infortúnio, desordem, morte. Tal diálogo, que percorre aproximações e distanciamentos, permite pensar nos deslocamentos das noções de pessoa, doença e realidade entre os diferentes sujeitos e campos. Ao trazer a discussão sobre xamanismo como um valor de contraste, uma analogia “boa pra pensar”, busquei outras referências para a compreensão da doença de Alzheimer não só como diagnóstico, mas também como experiência, modo de vida - um “mundo outro” - , mostrando como o discurso biomédico da “dissolução de self” se fundamenta em uma noção específica de pessoa.

Palavras-chave:
Doença de Alzheimer; Xamanismo; Alucinação; Noção de pessoa; Etnografia

Abstract

During my fieldwork I often heard people relating dementia to insanity, becoming someone else, or being possessed. Attempting to understand what is at stake in this “becoming another”, I propose a dialogue between Alzheimer’s disease and shamanism as phenomena that deal with processes of transformation in extreme situations, such as disease, misfortune, disorder, and death. Such a dialogue, which involves similarities and differences, allows us to think about the shifts in the notions of person, illness and reality between distinct subjects and fields. Taking discussions on shamanism as a contrast value, an analogy that is “good to think”, I turn to other references for understanding Alzheimer’s disease not only as a diagnosis, but also as an experience, a way of life, “another world”. The aim is to demonstrate how the biomedical discourse of the “dissolution of the self” is based on a specific notion of person.

Keywords:
Alzheimer’s disease; Shamanism: Delusion; Notion of person; Ethnography

Resumen

Relacionar los procesos de demencia con volverse loco o ser otra persona o estar poseído fue algo que encontré en escenas e informes de mi material de campo. En un intento de comprender qué está en juego en este “convertirse en otro”, propongo un diálogo entre la enfermedad de Alzheimer y el chamanismo como fenómenos que se ocupan de los procesos de transformación en situaciones extremas, como la enfermedad, el infortunio, el desorden y la muerte. Tal diálogo, que navega entre aproximaciones y distancias, nos permite pensar los desplazamientos de las nociones de persona, de enfermedad y de realidad entre los diferentes sujetos y campos. Al presentar la discusión sobre el chamanismo como un valor de contraste, una analogía “buena para pensar”, busqué otras referencias para entender la enfermedad de Alzheimer no solo como un diagnóstico, sino también como una experiencia, una forma de vida, “otro mundo”, mostrando cómo el discurso biomédico de “disolución del self” se basa en una noción específica de persona.

Palabras clave:
enfermedad de Alzheimer; Chamanismo; Alucinación; Noción de persona; Etnografía

Minha mãe enlouqueceu num sábado de manhã. [...] Pela primeira vez, minha mãe falava a linguagem dos loucos - daqueles que enxergam o que não há. Dali em diante, cairíamos [...] em uma espiral assombrada, feita de vertigem e dor, que giraria cada vez mais rápido, apagando o real. [...] Aos poucos, ela se transformou no avesso de si mesma. Heloisa Seixas, O lugar escuro.

Nesse estado (do xamanismo), não apenas o feiticeiro sente em si a presença de uma personalidade que lhe é estranha, mas também sua personalidade se abole completamente e, na realidade, é o demônio que fala por sua boca. Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia.


Linha 1: 1. Foto: Cláudia Andujar, série “sonhos” (xamanismo); 2. Foto: Susan Falzone (doença de Alzheimer) [descolorida]. Linha 2: 1. Cláudia Andujar, série “sonhos” [descolorida]; 2. Exposição “Alzheimer”, Associação Internacional de Alzheimer [descolorida]

Relacionar os processos demenciais ao tornar-se louco ou ser outra pessoa, estar possuído, foi algo que encontrei em cenas e relatos de meu material de campo. É numa tentativa de compreender o que está em jogo nesse “devir outro” que faço um diálogo entre doença de Alzheimer e xamanismo enquanto fenômenos que lidam com processos de transformação em situações-limite, como doença, infortúnio, desordem, morte.1 1 Este artigo é parte de uma pesquisa que venho realizando desde o doutorado - Entre sopros e assombros: estética e experiência na doença de Alzheimer, orientado por Guita Grin Debert - e que se desdobrou no projeto de pós-doutorado - Como narrar a perda do narrar: autobiografias de pessoas em processo demencial, com supervisão de Sylvia Caiuby Novaes -, ambos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O material aqui apresentado resulta de pesquisa de campo em diferentes frentes, como: acompanhamento de consultas médicas nos ambulatórios de neurologia e psiquiatria geriátrica de um hospital universitário; participação em reuniões do grupo de apoio da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz); visitas domiciliares às famílias; reunião de imagens sobre doença de Alzheimer disponíveis na internet; leitura de blogs e autobiografias de pessoas em processo demencial. Os sujeitos da pesquisa são, sobretudo, as pessoas com demência e os familiares-cuidadores (cônjuges e filhos, na maioria), provenientes principalmente de classes sociais mais desfavorecidas. Ao narrar um ritual xamânico, Davi Kopenawa (2015: 85KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das letras.) diz que o xamã “entrou em estado de fantasma e tornou-se outro”, podendo, assim, ver e conversar com os espíritos. Bruce Albert, em nota no mesmo livro, descreve que

“agir/entrar em estado de fantasma” se refere aos estados de alteração de consciência provocados pelos alucinógenos e pelo sonho (mas também pela dor ou pela doença), durante os quais a imagem corpórea/essência vital se vê deslocada e/ou afetada. No caso, o fantasma, que cada vivente traz em si enquanto componente da pessoa, assume o comando psíquico em detrimento da consciência. “Tornar-se outro” (literalmente “assumir valor de outro”) refere-se principalmente a esse processo (Albert 2015: 615/nota19; grifos meus).

Para Viveiros de Castro (2006: 326), o fundo em comum “... que vem à tona no xamanismo, no sonho e na alucinação” é “quando o humano e o não humano, o visível e o invisível trocam de lugar”.

A transmutação das coisas é o papel central do nevoeiro - tanto como fenômeno atmosférico quanto a fumaça do cozimento dos alimentos - percebido por Lévi-Strauss (1993LÉVI-STRAUSS, Claude. 1993. História de Lince. São Paulo: Companhia das letras .) ao percorrer a mitologia ameríndia. Cobrindo a realidade, a névoa opera como um elemento de inversão na narrativa mítica ao interromper e reinstaurar o mundo a partir de outra ordem, trocando as posições dos seres (humanos e não humanos).

Névoa, neblina, nevoeiro também são imagens recorrentes nos relatos de pessoas que vivem processos demenciais para sinalizar a confusão em um mundo que foi interrompido e se tornou estranho.2 2 Alguns se referem aos “foggy days” como dias de grande desarticulação e desordem no cotidiano, que os impedem de fazer tarefas habituais, como cozinhar, fazer supermercado, acompanhar uma conversa, pagar contas, limpar a casa, ligar a máquina de lavar roupa, tomar banho, mudar o canal da televisão. Os relatos autobiográficos de pessoas com a doença têm sido buscados em pesquisa de campo, blogs e livros. Quando alguém diz que perdeu algo no curso da doença, não significa algo visível, como se olhássemos dentro da pessoa para ver o que perdeu, mas o que se perde é um modo de ser no mundo (Das 2015DAS, Veena. 2015. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press.). Ao embaçar a visão e a realidade, o denso véu da doença exige outra maneira de ver e viver. Nesse ver mais, ver além, ver em meio à névoa, em um “mundo às avessas”, onde, como nos mitos, “tudo acontece de um modo diferente do que no mundo comum e, frequentemente, ao inverso” (Lévi-Strauss 1993: 12LÉVI-STRAUSS, Claude. 1993. História de Lince. São Paulo: Companhia das letras .), o chinelo é controle remoto, o urso de pelúcia é uma criança, a embalagem brilhante de biscoito vira uma borboleta (Feriani 2019bFERIANI, Daniela. 2019b. “A embalagem brilhante que virou uma borboleta”. Tessituras - Revista de Antropologia e Arqueologia, v. 7, n. 2.).

Compartilhando uma dimensão fantasmagórica - uma desfiguração, uma relação entre luz e sombra, como as imagens que abrem este texto -, doença de Alzheimer e xamanismo podem funcionar como uma dobra para discutir noções importantes para este trabalho, como as de pessoa, doença, realidade.3 3 A noção de dobra é inspirada em Gilles Deleuze. Trata-se de um recurso analítico para pensar a relação entre doença de Alzheimer e xamanismo não como oposições binárias ou dualidades, mas como paradoxos, analogias, coexistências tensas - por vezes, contraditórias - entre sujeitos, questões, situações. Deslocar a doença de Alzheimer para além da biomedicina é uma estratégia tanto para compreender e problematizar o discurso biomédico quanto para buscar outros modos de ver e viver a doença. A intenção é pensar nos deslocamentos conceituais quando se transita de um fenômeno a outro. Quais recursos materiais, cognitivos, sociais são acionados e por quais sujeitos em cada situação? Se, para Cesarino (2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: Poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectivas.), a noção de pessoa, a cosmologia e a escatologia estão imbricadas e são elementos importantes para compreender o xamanismo e o pensamento indígena, a minha proposta é levar isso em conta como uma conexão que me ajuda a pensar quais são os componentes centrais da medicina e do pensamento não indígenas no que diz respeito à demência.4 4 Há vários tipos de demência (como frontotemporal, Corpus de Levy, alcóolica, pós-Acidente Vascular Cerebral, mista), sendo a doença de Alzheimer considerada a mais comum (de 60 a 80% dos casos, segundo Alzheimer´s Association, em https://alz.org/alzheimers-dementia/difference-between-dementia-and-alzheimer-s). Ainda que haja algumas particularidades, as fronteiras são tênues e passíveis de controversas (Feriani 2017b). Além disso, com a popularização e a visibilidade que vem ganhando nos últimos anos, “doença de Alzheimer” acaba sendo um termo guarda-chuva para designar uma multiplicidade de situações. Tendo em vista a complexidade do diagnóstico e uma vez que não cabe a mim diagnosticar, mas ver como se dá a constituição desse nome ao longo de diferentes campos e sujeitos, tenho preferido usar “demência” ou ainda “processos demenciais”.

O diálogo com o xamanismo se dá numa tentativa de compreender a dimensão do imaginário, do alucinatório na doença de Alzheimer e lidar com a questão de como uma pessoa em processo demencial pode ser interlocutora de uma pesquisa. Tanto o xamanismo quanto a doença de Alzheimer possuem uma dimensão mística na medida em que há o sentimento da presença da ação de um poder invisível ou do contato com uma realidade que não está dada nas circunstâncias reais ou cotidianas. O que é essa “realidade outra” em cada caso? Qual é o valor analítico e inventivo do delírio nos diferentes contextos?

Se, para Ricoeur (2007RICOEUR, Paul. 2007. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, S.P.: Editora da Unicamp.), a alucinação, ao anular a ausência e a distância e fazer aparecer o objeto desejado/pensado, equivale ao encantamento, cabe se perguntar como funciona esse ato mágico aqui (na doença de Alzheimer) e lá (no xamanismo). O que está em jogo nessa relação entre presença e ausência, aparição e desaparição quando se é um xamã e quando se é um demente?

É preciso, porém, reconhecer os relacionamentos a partir dos quais as ideias são elaboradas, posicionar-se diante deles, e não os ignorar como se fossem iguais. Na doença de Alzheimer, os episódios de alucinação se inserem num conjunto de diversos outros sintomas, instituições, pessoas, substâncias que vão desenhando a própria doença e as relações ao redor dela. Num ritual de xamanismo, são outras configurações, referências, temporalidades que estão em jogo. Os contextos de enunciação e os sujeitos envolvidos são singulares, mas talvez por isso cada um possa ajudar a revelar o outro.5 5 O contexto de enunciação chama a atenção para o acordo pragmático que as pessoas envolvidas na comunicação estabelecem entre si - ver Favret-Saada (1977). Funciona, aqui, para mostrar que a deterioração causada pela demência não é resultado apenas de um processo neurológico, mas sociocultural, em que a capacidade de interação depende da disposição dos sujeitos envolvidos - dementes e não dementes. Em alguns relatos autobiográficos, as pessoas em processo demencial se perguntam de quem, afinal, é o problema - dos enfermos ou dos supostamente saudáveis que não são capazes de entrar nesse mundo-outro e estabelecer uma relação possível. Talvez a demência cause tanto temor por revelar nossa incapacidade de nos comunicarmos de outras maneiras - isto serve, inclusive, para repensar estratégias de pesquisa. Criar um contexto de enunciação pode ter ressonância na ideia de “não bater de frente”, dita aos cuidadores pelos médicos e voluntários da Associação Brasileira de Alzheimer em situações tidas como difíceis, como quando o enfermo diz querer ir para casa ao não reconhecer o próprio local de moradia, recusar-se a tomar banho ou desejar ver os pais e outros parentes já falecidos. Não se trata de esvaziar os mediadores que existem entre esses diferentes campos - da magia e da ciência -, nem de anular as diferenças entre eles, mas também não se pode negligenciar as relações possíveis que os perpassam.

Estou ciente de que não há Xamanismo, mas xamanismos, assim como a doença de Alzheimer também abarca uma série de situações, relações e sujeitos diferentes. A tentativa é de olhar para essa relação como uma analogia, na qual um pode ajudar a pensar o outro. Não se trata de uma discussão sobre xamanismo e não pretendo esgotar este tema tão complexo e plural. Trata-se de trazer algumas das questões presentes nesse fenômeno como linhas que, a meu ver, ajudam a compor e descompor o emaranhado da doença que venho tecendo. Também é importante dizer que, ainda que alguns xamanismos possam ser relacionados a uma possessão, Cesarino (2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: Poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectivas.) mostra que, no caso do xamanismo marubo, não se trata de uma possessão espiritual, como, por exemplo, a que ocorre em algumas religiões - e que algumas falas de cuidadores-familiares de pessoas em processo demencial podem sugerir: se, na possessão, o indivíduo sai para ser substituído por um espírito (incorporação), no xamanismo marubo não se trata nem de indivíduo nem de substituição, mas da pessoa como duplo/dobra (pessoa compósita, múltipla, fractal) e de replicação (excorporação) de mundos. Além disso, estou ciente dos riscos de se nomearem e se compararem coisas como “pensamento indígena” e “pensamento biomédico/científico”, uma vez que os mesmos não existem enquanto tais em meio à pluralidade das situações vividas. Assim, aciono tais termos como “ficções persuasivas” (Strathern 2013STRATHERN, Marilyn. 2013. Fora de contexto: as ficções persuasivas da antropologia. São Paulo: Terceiro nome.) necessárias ao desenvolvimento do argumento aqui proposto, tentando, sempre que possível, estar atenta aos seus alcances e limites.

Para mapear um campo de relações entre processos demenciais e rituais xamânicos, este texto percorre como ambas as experiências compõem as alteridades e lidam com eventos de alteração de consciência, como os chamados de “alucinação”. Para isso, discuto como o espelho funciona como coisa e metáfora para pensar o “devir-outro” presente tanto na demência, a partir de cenas e relatos do material de campo, quanto no xamanismo, bem como aproximações com a arte e a literatura. Sigo, então, com o deslocamento da noção de pessoa ao mostrar como o discurso biomédico da “dissolução do self” se fundamenta em uma determinada concepção que toma o cérebro como lugar central e como tal dissolução ganha usos e significados diversos em contextos que propõem outros modos de compreender pessoa, corpo e realidade. Por fim, argumento que o diálogo com o xamanismo permitiu-me problematizar o discurso biomédico, ver a demência também como modo de vida e experiência, para além de diagnóstico, e fazer uma etnografia dos processos demenciais mais próxima de levar em conta o ponto de vista de quem os vive.

Reflexos, refrações e distorções


Exposição “Alzheimer”,organizada pela ADI (Associação Internacional da Doença de Alzheimer), nos Estados Unidos, com os quadros Grandson, Daughter e Husband

Guilherme, de 66 anos, foi à consulta no ambulatório de neurologia acompanhado pela esposa, Rosa.

(residente6 6 Residente é um estudante de medicina em processo de especialização (ou residência, como dizem) e é quem, em um hospital universitário, atende o paciente acompanhado pelo cuidador. Após a realização dos procedimentos necessários à consulta, o médico (professor) é chamado para ouvir o relato do caso e auxiliar no diagnóstico e nas medidas a serem tomadas, como solicitação de exames e medicamentos. ): o que o Sr. veio fazer aqui?

(paciente): ah, tá complicado; tá feia a coisa.

(residente): o que o Sr. tem?

(paciente): ah, tô tomando muito remédio.

(residente): e por quê? Conta pra mim.

(paciente): ah, tá tudo bem.

(residente para a esposa): como ele está?

(esposa): cada dia aparece uma coisa nova... ele se perde dentro de casa, não sabe onde está o banheiro; às vezes toma banho com a água da privada. Preciso ajudar ele a se trocar porque põe tudo ao contrário, do avesso. Ele tá muito confuso. Não sabe mais o que é mesa, pia. Fala o dia inteirinho com a televisão.

(residente): conversa com as pessoas da TV?

(esposa): conversa; põe o sofá perto da TV para as pessoas não caírem.

(residente): e espelho? Tem conversado com o espelho?

(esposa): é, às vezes ele fala que viu um homem e aponta, é ele no espelho.

(residente): mas conversa, vê uma pessoa ou é só no espelho?

(esposa): às vezes acontece.

(residente): mas é uma conversa com conteúdo, faz sentido?

(esposa): ah, não dá pra entender. Às vezes acha que as pessoas da TV estão querendo tomar a casa, fica bravo, diz que as pessoas ficam lá, pousam lá pra pegar a casa. Às vezes pergunta se eu chamei - “você me chamou?” - e eu digo que não, não sei se ele ouve vozes. Não está reconhecendo alguns parentes, não lembra os nomes dos filhos.

Depois de ouvir o relato, o médico disse que conversar com a TV e com o espelho indica uma “dissolução do self”, aparecendo no estágio mais avançado da doença. “É um sintoma psicótico, a perda da noção de realidade”.

A ideia de que a doença de Alzheimer e outras demências dissolvem o self é frequente nos relatos de familiares, médicos e outros profissionais.7 7 A expressão “dissolução do self” foi ouvida principalmente dos residentes e médicos do ambulatório de neurologia, onde acompanhei as consultas. De qualquer forma, a expressão é bem conhecida e usada para se referir à doença, de maneira geral, tanto na bibliografia quanto por médicos, profissionais de saúde, cuidadores e familiares - ver Herskovits (1995), Clare (2003), Langdon, Eagle & Warner (2007) e Beard & Fox (2008), Sabat, S.R. & Harré, R. (1992). Apesar de esses autores mostrarem como a “dissolução do self” é ressignificada pelos relatos dos próprios enfermos, eles não questionam a expressão em si, ainda que a tomem de maneira contextual, relacional e heterogênea. Estudos centrados na pessoa, com a valorização da experiência subjetiva dos enfermos, do ambiente interacional e contexto sociocultural, em contraposição ao estigma da “dissolução do self”, tiveram como precursor o psicólogo social Kitwood (1997), desencadeando o que ficou conhecido como personhood movement (Leibing 2006) - ver O’Connor et al ((2007), Halewood (2016) e Leibing (2018). Na proposta de Das (2015), a antropologia pode contribuir para uma mudança de perspectiva da psicopatologia ao perceber que o que está em jogo não é a teoria narrativa do self em si, mas como nós colocamos as palavras dessas pessoas no mundo. O desafio é o de como posicionar essas vozes no cotidiano, como devolvê-las à vida. Nessa direção, seja a partir da linguagem ou da valorização do corpo como expressão primordial da subjetividade, temos os estudos de Biehl (2008), McLean (2006), Kontos (2006), Chatterji (1998; 2006). É nessa linha de pesquisa, de recolocar as vozes das pessoas em processo demencial no mundo - ou em um mundo possível -, que meu trabalho se insere, questionando a expressão “dissolução do self” ao mostrar como ela se conecta a determinada noção de pessoa, doença e realidade, numa tentativa de alargar os referenciais metodológicos e teóricos ao buscar conexões inesperadas, como, por exemplo, com o xamanismo, a arte, as imagens e a literatura. “Sua mãe não existe mais. O que existe é uma entidade, que tomou o lugar dela. Não sei que entidade é essa, nem o que se passa em sua mente. Só sei que ela não é mais sua mãe”, diz o marido de Seixas. “Eu não podia negar. Minha mãe não estava mais ali. O que tinha diante de mim era outra pessoa. Ou várias” (Seixas 2013: 91).

Foucault (2005FOUCAULT, Michel. 2005. História da loucura. São Paulo: Perspectiva.) problematiza a tênue separação entre loucura, doença e mal, mostrando como, para cada contexto, há a predominância de um dos termos ou a correlação entre eles. A partir da psiquiatria, no final do século XIX, a loucura passa a ser uma doença do cérebro e a se constituir na relação médico-paciente. É vista como oposta à razão, como negatividade - a demência, enquanto desordem e decomposição, seria a principal representante.

Se a confabulação e o delirium são vistos pelos médicos como ilusão, invenção - a pessoa acha ou interpreta algo diferente do que acontece e, por isso, são fenômenos do pensamento -, a alucinação, como fenômeno da sensopercepção, é tida como outra realidade - a pessoa, de fato, ouve/vê algo. Há ainda uma fluidez entre memória e alucinação: dizer que comeu bolo de chocolate com os pais, já falecidos, é uma lembrança ou uma visão - ou as duas coisas? A memória, aqui, também pode estar assombrada (Feriani 2017aFERIANI, Daniela. 2017a. “Rastros da memória na doença de Alzheimer: entre a invenção e a alucinação”. Revista de Antropologia , v. 60, n. 02.).

Para o neurologista Oliver Sacks (2013: 14SACKS, Oliver. 2013. A mente assombrada. São Paulo: Companhia das letras .), experiências alucinatórias são “parte essencial da condição humana”, podendo aparecer em diferentes situações, como sonho, doença, uso de drogas, privação, práticas espirituais. Se a alucinação é um fenômeno mais geral do próprio funcionamento do cérebro, presente também em pessoas saudáveis, o que faz com que ela se torne um sintoma patológico? Como pretendo mostrar, acredito que isto esteja relacionado com certa noção de pessoa.

Em um programa chamado “A ciência dos anjos”, neurocientistas investigavam o “fenômeno do terceiro homem”, quando o cérebro cria uma presença para ajudar a pessoa a sair de uma situação limite, como de vida e morte, alta carga de stress ou confusão.8 8 Programa foi ao ar pelo canal Discovery em 24/06/2014. Alguém disse ter visto um espírito - ou um fantasma - que o ajudou a sair de um prédio em chamas, indicando o caminho. Uma mulher contou ter visto o marido - já falecido - quando quase se afogou durante um mergulho, que a teria ajudado a encontrar a corda mestra e a subir à superfície. Há ainda um astronauta que, isolado há três meses no espaço, viu e ouviu o pai, também já morto, incentivando-o a continuar na missão que lhe tinha sido dada. “Meu pai estava lá, fisicamente”.

Vendo o programa, não conseguia parar de pensar nas cenas de alucinação que estava observando na pesquisa de campo. Tal como lá, as pessoas diziam ouvir e/ou ver parentes que já tinham morrido. Qual era, então, a diferença?

Em “O feiticeiro e sua magia”, Lévi-Strauss conta como um índio nambikwara, tendo sido acusado de feitiçaria, apresenta diferentes versões sobre o que teria acontecido. Ao não conseguir ser absolvido se desculpando, assume a acusação, apresentando relatos cada vez mais cheios de detalhes. Não se tratava de punir o crime, nem de averiguar a verdade, mas de atestar a realidade da feitiçaria, ainda que ela tenha sido “forçada”, “inventada”. Lévi-Strauss mostra como a eficácia das práticas mágicas exige a crença na magia, que se dá em três direções: a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas, a do doente no poder do próprio feiticeiro e a da sociedade ou do grupo.

A feitiçaria - ou o xamanismo - implica uma “fabulação de uma realidade em si desconhecida”. Trata-se de um “sistema de interpretação em que a invenção pessoal desempenha um papel importante” (Lévi-Strauss 1975b: 194LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975b. “O feiticeiro e sua magia”. In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro .). O xamã não apenas encena os acontecimentos, mas ele também os revive efetivamente, voltando ao “normal” - para usar uma expressão do próprio Lévi-Strauss - ao término da sessão.

Em “A eficácia simbólica”, ao trazer um canto Cuna para ajudar num parto difícil, Lévi-Strauss também mostra como a cura depende da crença da paciente e do grupo no xamã, mesmo que a mitologia narrada não corresponda a uma “realidade objetiva”: “espíritos protetores e espíritos maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo” (Lévi-Strauss 1975a: 213LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975a [1949]. “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro.). Ao ouvir a narrativa mítica, a paciente sente as dores narradas.

Ao compreender, a paciente se resigna e fica curada. E Lévi-Strauss assim continua, fazendo a relação com o nosso sistema de cura.

Nada de comparável ocorre com nossos doentes quando se lhes explica a causa de seus problemas invocando secreções, micróbios e vírus. Talvez sejamos acusados de paradoxo se respondermos que é assim porque os micróbios existem, e os monstros não existem. Contudo, a relação entre micróbio e doença é externa ao espírito do paciente, é uma relação de causa e efeito, ao passo que a relação entre monstro e doença é interna a esse mesmo espírito, consciente ou inconsciente, é uma relação entre símbolo e coisa simbolizada, ou, como dizem os linguistas, entre significante e significado. O xamã fornece à sua paciente uma linguagem na qual podem ser imediatamente expressos estados não formulados, e de outro modo informuláveis. E é a passagem para essa expressão verbal (que ao mesmo tempo permite viver de forma ordenada e inteligível uma experiência atual, mas que sem isso seria anárquica e indizível) que provoca o desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido favorável, da sequência de cujo desenrolar a paciente é vítima (Lévi-Strauss 1975a: 213LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975a [1949]. “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro.).

Na medicina não indígena, parece não haver essa complementaridade de que fala Lévi-Strauss: o doente, aqui, transforma-se em paciente, numa posição passiva e alienada - ainda que ele esteja a todo momento tentando se mostrar, de algum modo. Além disso, na doença de Alzheimer, parece haver uma confusão em relação a quem é, afinal, o paciente: é o doente - o qual, às vezes, não se vê como tal - ou é o familiar-cuidador que busca uma solução para a situação que está vivendo?

Nesse deslocamento entre medicina ocidental e xamanismo, o escritor estadunidense Dick Russell conta a experiência que ele teve com o filho, Franklin, diagnosticado com esquizofrenia aos 17 anos.9 9 Ele escreveu um livro intitulado My Mysterious Son: A Life-Changing Passage Between Schizophrenia and Shamanism. A notícia pode ser lida em https://www.washingtonpost.com/posteverything/wp/2015/03/24/how-a-west-african-shaman-helped-my-schizophrenic-son-in-a-way-western-medicine-couldnt/. Acesso em 12/04/2015. Um dia, Franklin disse: “I don’t know what’s happening; I can’t find my old self again”. Algum tempo depois, foi hospitalizado. A evolução do quadro se deu com o que os médicos denominaram de sintomas psicóticos, pensamentos paranoides e alucinações.10 10 Por ter sintomas semelhantes, a esquizofrenia já foi considerada “demência precoce”. No ambulatório de psiquiatria geriátrica, acompanhei o caso de uma senhora que vinha sendo tratado como esquizofrenia e que posteriormente foi reclassificado como doença de Alzheimer.

Na busca por compreender essa outra realidade, Russell conheceu Malidoma Somé, uma renomada xamã africana. Para os Dagara, povo ao qual pertence Somé, os esquizofrênicos não são doentes, mas curandeiros em potencial, mensageiros de outros mundos. “La cultura occidental ha ignorado sistemáticamente el nacimiento del curandero”, afirma.11 11 Disponível em https://td38.wordpress.com/2015/06/05/lo-que-ve-un-chaman-en-un-hospital-psiquiatrico/. Acesso em 17/07/2015.

Quando foi aos Estados Unidos pela primeira vez, em 1980, para fazer pós-graduação, Somé ficou impressionada ao visitar doentes mentais num hospital psiquiátrico e notar que, apesar de os sintomas serem os mesmos que ela via em seu povo, a forma de tratamento era oposta, vendo-os de maneira patológica, como uma doença que precisava parar. Sem a ajuda necessária para perceber esse mundo espiritual, as pessoas entravam em crises e graves perturbações, tornando-se loucas, o que se agravava com a quantidade de medicamentos, os quais, para ela, impediam a integração entre os mundos e o desenvolvimento da pessoa como alguém que veio para curar.

Somé conta a história de Alex, um jovem estadunidense de 18 anos internado no hospital psiquiátrico com depressão grave, alucinações e pensamento suicida. Os médicos já tinham dado um monte de medicamentos, mas ele não melhorava e não sabiam mais o que fazer. Somé, então, pede permissão para levá-lo com ela para África. Após oito meses, Alex levava uma vida “normal”: as crises tinham diminuído consideravelmente e ele participava dos rituais juntamente com os curandeiros. Um tempo depois, Alex pôde aceitar o chamado de outros seres e comunicar mensagens que os espíritos tinham para esse mundo. Ele ficou quatro anos entre os Dagara, cursou psicologia e dizia se sentir mais seguro lá do que nos Estados Unidos. A última notícia que Somé teve foi a de que Alex estava fazendo pós-graduação em psicologia em Harvard, contra todas as especulações de que ele nunca conseguiria concluir os estudos - nem mesmo se sairia do hospital onde estava internado desde os 14 anos.

Em um relato impressionante, com uma linguagem coerente, erudita e gramaticalmente impecável, Daniel Paul Schreber conta sua experiência com o que ele chamou de “doença nervosa”, passando pelas relações familiares e profissionais até as diversas internações e o “sistema de crenças sobrenaturais” que desde então o acompanha. Ao negar ser um doente mental por não estar desprovido de razão, ele escreve suas memórias numa tentativa de mostrar a veracidade, ainda que incompreensível para muitos, de suas “ideias delirantes”. Diagnosticada como demência paranoide ou psicose, a doença de Schreber poderia ter outra configuração quando deslocada do paradigma biomédico. Em muitos momentos de sua descrição como aquele que ouve vozes (ou almas ou raios) - um portador da “língua dos nervos” -, parecia-me muito mais a fala de um xamã do que de um psicótico.

Eu vejo com meu olho espiritual os astros que são ao mesmo tempo portadores das vozes e do veneno de cadáver, que é descarregado no meu corpo, na forma de longos fios esticados, descerem para minha cabeça, partindo de algum lugar extremamente distante no horizonte. Eles são visíveis só para o meu olho espiritual, quando meus olhos se fecham por milagre ou quando eu mesmo os fecho voluntariamente, isto é, nestes momentos eles se espelham do modo indicado no meu sistema nervoso interno como longos fios deslizando para a minha cabeça. [...] os fios de raios que zarpam na direção da minha cabeça, ao que tudo indica, provenientes do Sol ou talvez de numerosos outros corpos cósmicos remotos, não chegam a mim em linha reta, mas fazendo uma espécie de curva ou parábola... (Schreber 1984: 201; 203).

E ainda: “As almas com as quais eu estivera em conexão nervosa na clínica de Flechsig naturalmente me acompanharam à minha nova morada” (: 85), ao ser levado para outro hospital.

Para a antropóloga Tanya Luhrmann, as “vozes alucinatórias” (ouvir vozes) são moldadas culturalmente tanto no que se refere ao conteúdo quanto à forma de tratamento.12 12 Em http://news.stanford.edu/2014/07/16/voices-culture-luhrmann-071614/. Acesso em 20/09/2016. Se, nos Estados Unidos, tais vozes são mais duras, ásperas e severas (“harsher”), não são assim que elas são vistas na África e na Índia, onde são mais benignas, positivas (algumas pessoas as associam com familiares ou Deus), podendo assumir uma dimensão de entretenimento. Para os estadunidenses, as vozes são como intrusas, resultado de um cérebro danificado, e recebem tratamento médico, o que não acontece - ou, ao menos, não de uma maneira tão frequente e taxativa - nos outros lugares pesquisados, onde são tidas como relacionamentos, complementando a própria pessoa.

Numa página do Facebook sobre demência, uma filha compartilhou o seguinte relato:

As pessoas que não entendem o que é Alzheimer insistem em dizer que minha mãe foi vítima de macumba ou que está com algum encosto, ficam falando pra levar em alguma igreja, em igreja espírita, não entenderam ainda que minha mãe está doente e tem diagnóstico [...] só porque minha mãe não fala coisa com coisa, conversa sozinha e outras atitudes, sintomas dessa doença que a gente já sabe [...].

Nos comentários do post, algumas pessoas disseram já ter ouvido que a doença estaria associada à feitiçaria ou como “coisa do demônio”.13 13 Post publicado em 20/12/2016, na página “Quem tem um mal de Alzheimer em casa”?

“É cômodo comparar o xamã em transe ou o protagonista de uma cena de possessão a um neurótico”, afirma Lévi-Strauss (2003: 18LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003 [1968]. “Introdução à obra de Marcel Mauss”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.), admitindo já ter feito isto ao mostrar como a psicanálise e o xamanismo compartilham elementos em comum. Apesar de considerar legítimo tal paralelo, adverte que há, porém, restrições:

em primeiro lugar, nossos psiquiatras, diante de documentos cinematográficos relativos a danças de possessão, declaram-se incapazes de reduzir essas condutas a qualquer uma das formas de neuroses que eles costumam observar. Por outro lado, e principalmente, os etnógrafos em contato com feiticeiros, ou com possuídos habituais ou ocasionais, contestam que esses indivíduos, sob todos os aspectos normais fora das circunstâncias socialmente definidas nas quais se entregam a suas manifestações, possam ser considerados como doentes (Lévi-Strauss 2003: 18LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003 [1968]. “Introdução à obra de Marcel Mauss”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.).

Se é possível considerar as condutas descritas como “transe” e “possessão” do mesmo tipo daquelas que, em nossa sociedade, chamamos psicopatológicas, “é então a conexão com estados patológicos que deve ser considerada como contingente e como resultante de uma condição particular à sociedade em que vivemos” (Lévi-Strauss 2003: 19LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003 [1968]. “Introdução à obra de Marcel Mauss”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.). Citando o estudo de Nadel (1946), Lévi-Strauss mostra que este autor

sustenta que existe uma relação entre os distúrbios patológicos e as condutas xamanísticas, mas que consiste menos numa assimilação das segundas aos primeiros do que na necessidade de definir os primeiros em função das segundas. Precisamente porque as condutas xamanísticas são normais, resulta que, nas sociedades com xamãs, possam permanecer normais certas condutas que, noutra parte, seriam consideradas como (e seriam efetivamente) patológicas (Lévi-Strauss 2003: 21LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003 [1968]. “Introdução à obra de Marcel Mauss”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.).

O estudo de Nadel teria mostrado que, em sociedades sem xamanismo, a frequência das psicoses e das neuroses tende a se elevar, enquanto nas outras sociedades é o próprio xamanismo que se desenvolve, sem crescimento dos distúrbios mentais. Isto não significa que não haja loucos nessas sociedades, “mas sim que nós mesmos tratamos às cegas fenômenos sociológicos como se eles pertencessem à patologia”. E conclui: “Na realidade, é a noção mesma de doença mental que está em causa. Pois, se o mental e o social se confundem, como afirma Mauss, seria absurdo, nos casos em que social e fisiológico estão diretamente em contato, aplicar a uma das duas ordens uma noção (como a de doença) que só tem sentido na outra” (Lévi-Strauss 2003: 21LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003 [1968]. “Introdução à obra de Marcel Mauss”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.).

É possível acionar outras relações, nas quais diferentes recursos estão disponíveis. Quando perguntei à Sílvia se a mãe dela, Eunice, diagnosticada com doença de Alzheimer, tinha alucinação, ela pareceu não compreender a pergunta. Dei como exemplo dizer ter visto alguém que já faleceu, pois notava certa frequência desses episódios nas famílias que estava acompanhando. Sílvia respondeu que não veria dessa forma, uma vez que são espíritas e, portanto, acreditam nessa possibilidade. Eunice, inclusive, já foi médium e psicografava cartas no centro espírita que frequentava com a mãe, que lhe passou as concepções religiosas.

A presença da mãe é marcante nas conversas com Eunice. “Bom, querida, o papo está muito bom, mas tenho que ir pra casa. Minha mãe já deve estar preocupada, me procurando”, disse-me depois de passar uma tarde com ela. Quando eu a convidei pra passear, demostrou receio, dizendo que precisava primeiro falar com a mãe, porque conhecia “a peça”, referindo-se à braveza da matriarca. Outro dia, ao olhar o relógio, contou que estava à espera da mãe para almoçar.

Às vezes, Eunice se referia a uma criança. Um dia, conversávamos no quarto e, ao ouvir um barulho, disse, preocupada, ter deixado o bebê na cadeira da sala, questionando se ele teria caído. A psicóloga via como alucinação. Sílvia, porém, cogitava a possibilidade de ser uma experiência mediúnica, ao invés de um sintoma patológico.

Não apenas os episódios de alucinação são tidos como potenciais para um “devir louco”, mas outras situações também parecem indicar esse processo, como a desorientação espacial e temporal, o não reconhecimento de si, dos parentes e da casa onde mora, a desinibição, a falta de higiene pessoal, além de outras ações que parecem fugir de qualquer lógica, como guardar roupa no armário da cozinha, comer ração do cachorro, beber água sanitária, entrar no chuveiro de roupa, usar colcha de cama como toalha de mesa e tantas outras.

“Welcome to my World”, convida-nos Joe. Se a doença instaura um outro mundo, é preciso se perguntar que mundo é esse.

Espelho, espelho meu...


Reflections, de Tom Hussey, usado por uma indústria farmacêutica para lançar um remédio para postergar o declínio da memória, indicado para a fase inicial da doença de Alzheimer14 14 Disponível em https://www.tomhussey.com/PROJECTS/REFLECTIONS/thumbs. Acesso em 06/08/2020.

A travessia não é fácil. “O mais difícil, pra mim, é: eu não sei se eu entro na paranoia dele ou se eu o trago para a realidade, se eu contrario e mostro que não é assim. Eu compartilho a paranoia ou não?”, perguntou uma filha que cuida do pai, numa reunião da ABRAz - Associação Brasileira de Alzheimer.

Diante da recomendação de “não bater de frente” e “entrar no mundo deles”, mentir passa a ser uma alternativa, sem, porém, dissolver as dúvidas e o mal-estar. Em Aguzzoli (2014AGUZZOLI, Fernando. 2014. Quem, eu? Uma avó. Um neto. Uma lição de vida. Caxias do Sul, RS: Belas-Letras.), uma pessoa dizia mentir para a avó que iam viajar no dia seguinte porque ela ficava “contente e tranquila”, mas se sentia mal por isso, perguntando “em que momento devemos nos desprender da moralidade para focarmos no bem-estar do doente?” A resposta foi do psiquiatra Eduardo Sabbi:

É muito diferente uma conversa entre duas pessoas em que ambas possuem o mesmo entendimento da realidade e outra em que uma delas pode estar vivendo parcialmente fora dela. Não nos achamos mentirosos, por exemplo, quando contamos um sonho onde fizemos peripécias que somente ali aconteceriam. Nem chamamos o diretor de um filme de ficção de mentiroso porque colocou nele cenas impossíveis de acontecer. Se entendermos que muitas vezes o doente com Alzheimer está impossibilitado de interagir 100% dentro da realidade, em função do seu comprometimento cerebral, poderemos também nos permitir entrar um pouco na forma fantasiosa com que ele consegue se integrar à vida. Não se trata de uma imoralidade, mas de uma viagem despretenciosa cujo único compromisso é preservar quem gostamos e nos manter afetivamente conectados a ele (Aguzzoli 2014: 230AGUZZOLI, Fernando. 2014. Quem, eu? Uma avó. Um neto. Uma lição de vida. Caxias do Sul, RS: Belas-Letras.).

Ao comparar a realidade das pessoas com doença de Alzheimer a um sonho e um filme de ficção científica, nos quais há outros modos de se perceberem as coisas e onde tudo é possível, o psiquiatra não vê problema em “mentir” - a própria conotação de mentira se perde - ou de entrar na fantasia do doente, uma vez que este já vive num “mundo paralelo”. Para Didi-Huberman (2013: 302DIDI-HUBERMAN, Georges. 2013. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto.), a imagem pautada pela memória psíquica, como o sonho e a fantasia, “zomba das contradições lógicas”. O autor resgata as expressões de Warburg e Freud - “situações incompreensíveis” e “inversão no contrário”, respectivamente - as quais, ao deformarem a representação, parecem à primeira vista inteiramente ininteligíveis, provocando dubiedade e estranheza nos espectadores (: 264).

Para Sacks (1997: 11SACKS, Oliver. 1997. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu - e outras histórias clínicas. São Paulo: Companhia das letras .), os casos clínicos estão na “intersecção de fato e fábula”, história e fantasia. Os pacientes são como “figuras estranhas”, “viajantes em terras inimagináveis”: “[...] suas vidas e jornadas a meu ver possuem um quê de fabulosas...”.

Em Aliceheimer´s: Alzheimer´s through the looking glass, a antropóloga médica Dana Walrath conta a experiência de cuidar da mãe, Alice, ao longo dos três anos em que moraram juntas. Numa mescla de textos e desenhos, a autora privilegia o ponto de vista da enferma, numa tentativa de entrar em seu “mundo maravilhoso”, numa espécie de “viagem mágica”, trazendo outros aspectos dessa experiência para além dos danos da doença. Para ela, “Life with dementia is filled with alternate realities and magic, both scary and uplifting. Accepting wonderland as our baseline made day to day life an adventure”.15 15 Em http://well.blogs.nytimes.com/2016/06/21/alzheimers-disease-as-an-adventure-in-wonderland/? smid=fb-share&_r=3 Acesso: 22/06/2016.

“Joeland”, “Wonderful World of Dementia”, “Neverland”, “Mr. Alzheimer´s”, “Alzheimer´s land”, “Dream Land” são algumas das expressões usadas por Joe.17 17 Estadunidense diagnosticado em 2006 e autor do blog http://living-with-alzhiemers.blogspot.com.br/. Ao longo dessa jornada, ele se vê cada vez mais cindido entre dois mundos, duas realidades. “I was in a state of, in betweenness, between here and there. I finally started eating but with my fingers and slowly got back to where I should be”; “I live in a multiple of realities, unlike you I never know when I will pop in or out of any of them”. Nesse mundo outro, Joe diz que sonho e realidade - “whatever you call it” ou “this shitty reality I call life” - estão se tornando o mesmo: ele acorda, ouve vozes, e não consegue distinguir em que estado está.

A sensação de estar se tornando outra pessoa - ou outras (“I have others in my brain now”) - é frequente. Ele se sente como se o Joe que ele era/foi estivesse sentado vendo uma peça de teatro cujos atores são os “outros Joe” e aqueles que ele conhece, mas que já não fazem mais parte do mundo dele - e vice-versa. “I feel like I am fading away from Joe and going somewhere and I cannot stop it any longer”. “Duplo” e “máscara” - noções caras ao pensamento xamânico - são nomes acionados por William Utermohlen para se referir ao devir e à pluralidade desse processo de transformação ontológica ao longo da doença de Alzheimer.18 18 William Utermohlen (1933-2007) foi um artista norte-americano diagnosticado com doença de Alzheimer aos 61 anos. Ele fez uma série de autorretratos ao longo da evolução da demência - em https://www.williamutermohlen.org/index.php/about/9-about/essays. Acesso em 15/07/2020.


Duplo autorretrato (1996) e Máscara (1996), de William Utermohlen

A travessia de Alice (Carroll, 2010CARROLL, Lewis. 2010. Através do espelho e o que Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar.) tem muitas características em comum com as cenas e os relatos vistos ao longo de minha pesquisa. Como Alice, os viajantes do mundo da demência vivem um mundo às avessas, com outras referências, no qual a confusão, a desorientação, o descompasso temporal, o nonsense estão fortemente presentes, além da constante ameaça de perder o nome e a linguagem. Se Alice precisa comer biscoito para matar a sede e correr para ficar no mesmo lugar, Guilherme deita a televisão para as pessoas não caírem, vó Nilva abre o cigarro para depois fechá-lo. Se Alice perde o caminho para o bosque, Joe se perde no próprio jardim, Kris não sabe onde é o banheiro de casa.

A nomeação ou a linguagem é um dos principais dilemas que as pessoas com doença de Alzheimer se defrontam. Se, para Alice, o livro que ela encontra “é todo em alguma língua que não sei”, para Kris, as instruções da máquina de lavar eram como se fosse uma língua estrangeira (“It's like the instructions are written in a foreign language”).19 19 Estadunidense diagnosticada aos 46 anos e autora do blog http://creatingmemories.blogspot.com.br/. Se Alice encontrou palavras difíceis, inventadas, Joe precisou inventar uma linguagem - “Joenese”, “soap box” - para se comunicar. As palavras teimam em não sair, a fala se enrola, torna-se truncada, incompreensível - como a fala de fantasma a que se refere Kopenawa (2015KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das letras.); uma fala que delira e sobrepõe a função referencial e a função poética/metafórica - “o rio está cabeçudo”, “o trator anda que nem casa”, como me disse João; ou “a natureza é vodca”, quando Maria me contou o tanto que gostava de plantas: exemplos de como a linguagem, aqui, também se torce, abre para outras dimensões.

Se a humanidade de Alice no “mundo do espelho” é a desmedida, os doentes de Alzheimer também passam por constantes revisões do humano, podendo assumir, em algumas situações, um quê de monstruosidade e assombro. A “perda da humanidade” - tal como me disse um neurologista - é tida principalmente quando há desinibição (tirar as roupas em público, falar palavrão, ficar obsceno), falta de autocuidado e de higiene (como fazer xixi e defecar em locais inapropriados e/ou mexer nos excrementos, não tomar banho) e compulsão (comer de maneira desmoderada). Os médicos se referem a essas situações como “volta dos instintos”, num processo de animalização que borra a fronteira do humano.

“Não ter mais noção” é uma expressão acionada pelos cuidadores-familiares para tentar dar conta disso. São essas cenas que parecem mais incomodá-los e deixá-los atônitos - mais do que a perda de memória. Se a expressão médica “dissolução do self” se refere principalmente ao comprometimento da memória (tida como localizada na cabeça ou no cérebro) ou a uma memória alucinada (ao não se reconhecer no reflexo do espelho), a “perda da humanidade” diz mais respeito ao corpo, a um comportamento considerado estranho, bizarro, inadequado.

A própria noção de realidade - e, portanto, do que significa alucinação - se desloca nessa travessia. Para Seixas (2013: 68SEIXAS, Heloisa. 2013. O lugar escuro: uma história de senilidade e loucura. Rio de Janeiro: Objetiva.), os delírios da mãe indicam que “o real fora estilhaçado como um espelho, trazendo consigo maus augúrios e uma impossibilidade - jamais seria possível colar-lhe os pedaços”. O aspecto “mais cruel” da doença seria a “realidade móvel, fugidia”. “As coisas aqui são tão fugidias!”, disse Alice, no mundo às avessas.

Quando não conseguiu ler o livro porque a escrita estava ao contrário, Alice colocou-o em frente ao espelho para que as palavras ficassem na direção certa. Para as pessoas em processo demencial, os “fantasmas” são reais, literais. Segundo Deleuze, o delírio opera no real - não existe outro elemento que não seja o real. O delírio não é uma inadequação ao real, mas a invenção de uma subjetividade, de um estilo de vida. Não se trata de negar o real, mas uma determinação única e ontológica do mesmo (Seligmann-Silva 2003SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). 2003. História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas, S.P.: Editora da Unicamp.).

O delírio pode ser uma maneira de tocar um mundo, uma vida com sentido. “O que é melhor: que a pessoa tenha sensatez o tempo todo ou uma vida que faça sentido pra ela, mesmo que seja uma mentira?”, questionou a neurolinguista voluntária da ABRAz diante da dúvida da filha se contava à mãe que os pais tinham morrido quando ela insistia em vê-los. Sacks (2013SACKS, Oliver. 2013. A mente assombrada. São Paulo: Companhia das letras .) diz que, para Freud, os delírios são tentativas de reconstituição e reorientação de um mundo que se tornou caótico. O autor mostra como alguns pacientes não queriam se livrar deles, pois mais os ajudavam do que atrapalhavam. “‘O senhor certamente não iria proibir uma alucinação amigável a uma velha frustrada como eu!’”, teria lhe dito Gertie C., uma paciente que esperava toda noite “a visita de um cavalheiro de outra cidade”, que trazia “amor, atenção e presentes invisíveis” (: 88). “Não vejo mais ‘coisas’. Parecia tão real, tão vivo antes. Será que tudo parecerá morto quando eu for tratado?” (Sacks 1997: 122), questionou Miguel O., que, depois de medicado, deixou de imaginar e desenhar o que via, mostrando-se desanimado por considerar ter uma vida com menos sentido e criatividade. “Estamos em terreno estranho aqui, onde todas as considerações usuais podem ser invertidas - onde a doença pode ser bem-estar e a normalidade, mal-estar, onde a excitação pode ser um cativeiro ou uma libertação e onde a realidade pode residir na ebriedade e não na sobriedade” (Sacks 1997: 125).

Nessa inversão, o espelho - como o nevoeiro - relaciona diferentes elementos. Deleuze (1992DELEUZE, Gilles. 1992. Conversações. São Paulo: Ed. 34.), ao mostrar como o cinema moderno opera um movimento entre imagens que não é um prolongamento linear, toma o espelho como aquilo onde uma imagem atual e uma imagem virtual se relacionam e compõem uma imagem cristal, “um circuito em que as duas imagens não param de correr uma atrás da outra, em torno de um ponto de indistinção entre o real e o imaginário” (: 71). Para ele, “o imaginário não é o irreal, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal. Os dois termos não se correspondem, eles permanecem distintos, mas não cessam de trocar sua distinção” (: 89). Trata-se da “potência do falso”, da “forma do tempo como devir” que “põe em questão todo um modelo de verdade” (Deleuze 1992: 89). Se, no cinema ou no sonho, a conotação moral de mentira se perde porque entramos em outra realidade onde tudo é possível, o mundo da demência também exige de nós esse acordo.

“A alternativa é ouvir essas histórias não como ficção ou como sinais disfarçados da verdade, mas como algo real”, escreveu Taussig (1993TAUSSIG, Michael. 1993 [1987]. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra.) sobre os relatos de tortura contra os índios em Putumayo, por ocasião do ciclo da borracha, “quando ocorreu uma íntima dependência mútua entre a verdade e a ilusão e entre o mito e a realidade” (: 87). O que está em questão, assim, não é “verificar se os fatos são reais, mas em que consiste a política de sua interpretação e representação” (: 15). Para Taussig (1993, 2011), situações como doença, feitiçaria, morte levam à incerteza diante do que é visto, à dúvida no ato da percepção, e nos põe no limite entre a consciência e a inconsciência, a realidade e a ilusão, criando uma figura ambivalente - “realismo mágico”, “normalidade do anormal”, “monstruosidade do cotidiano”. A realidade incerta - a névoa - torna-se uma “força social fantasmagórica”, uma “obscuridade epistemológica e ontológica”, como na relação entre brancos e índios, em Taussig, e como na composição da doença de Alzheimer, em minha pesquisa.

A opacidade da experiência e o transbordamento da linguagem parecem encontrar no espelho uma expressão poderosa - como é no xamanismo e na doença de Alzheimer. Ele é a travessia para um mundo-outro, onde a linguagem se perde, o sujeito se dissolve, a visão embaça. O espelho, como coisa e metáfora, objeto e signo, dentro e fora, aparição e desaparição, real e irreal, luz e sombra, conecta por desconexão - o que está em jogo, aqui, não é a identidade, mas a fractalidade; não é o reflexo, mas a refração.

A tradução como divergência (Cesarino 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: Poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectivas.) exige o reconhecimento de que o mundo de lá - o mundo da demência - é outro mundo. Novamente, um exercício de olhar de outro modo. Mas, como bem alertou Eduardo Viveiros de Castro (2011: 897VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O medo dos outros”. Revista de Antropologia , v. 54, n. 2: 885-917.), “ter olhos diferentes não significa ver ‘as mesmas coisas’ de ‘modos’ diferentes: significa que você não sabe o que o outro está vendo quando ele ‘diz’ que está vendo a mesma coisa que você”. Não se trata de outra visão de mundo, mas de outro mundo - “Welcome to my World”.

Quando Célia ficou apavorada porque o macaco da televisão ia invadir a sala, quando Juracir me contou que comeu bolo de chocolate com os pais, quando Eunice ficou preocupada porque a mãe estava esperando por ela, quando João viu peixes nadarem por entre seus pés enquanto aguardava a consulta médica, quando tantos outros conversaram com um estranho no espelho, eu precisei suspender o meu mundo - caso contrário, diria que se tratava de um sintoma psicótico - para investigar que mundo era aquele.20 20 Isso não significa negar que a doença de Alzheimer tenha uma materialidade - e que a medicina não seja um importante meio de conhecimento e tratamento da mesma -, mas mostrar como essa materialidade transborda e se conecta com/tensiona outras relações, como as noções de pessoa, doença, memória, velhice, realidade.

É como se precisássemos aprender a mesma lição que Tuhami ensinou a Crapanzano (1980CRAPANZANO, Vincent. 1980. Tuhami - Portrait of a Moroccan. Chicago: University of Chicago Press.): que o real é uma metáfora para a verdade, criado e recriado no encontro etnográfico. Ou, como nos mostra os testemunhos do trauma, o real, às vezes, é tanto, por demais, que beira ao absurdo, à ficção, como algumas das cenas que presenciei em campo: tentar mudar o canal da TV com um chinelo, entrar vestido para tomar banho, vestir a camisa como se fosse calça, usar detergente para cozinhar. A alucinação é real, não é uma representação do real, é o real, mas eu, enquanto não demente, não sabia que real era aquele - ou era real a seu modo.21 21 Essa é uma tentativa de fazer um acordo pragmático entre ontologias, uma tradução em que uma não se reduza à outra, de pensar o pensamento do outro ou levar o pensamento nativo a sério (Viveiros de Castro 2002). É diferente de quando os médicos reconhecem que a alucinação é real e, por isso, não se deve confrontar, mas, enquanto médicos que precisam oferecer tratamento e explicação, classificam a partir da realidade deles como “sintoma psicótico”, “perda da noção de realidade” - mas, afinal, de que realidade estamos falando?

“Assim”, continua o autor, “quando seus interlocutores indígenas lhe dizem (sob condições, como sempre, que cabe especificar) que os pecaris são humanos, o que o antropólogo deve se perguntar não é se ‘acredita ou não’ que os pecaris sejam humanos, mas o que uma ideia como essa lhe ensina sobre as noções indígenas de humanidade e de ‘pecaritude’” (Viveiros de Castro 2002: 136VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O nativo relativo”. Mana , 8 (1): 113-148.). Da mesma forma, não se trata de acreditar ou não na alucinação dos doentes ou na explicação dos médicos, mas de ver o que elas dizem sobre a doença e suas relações, sobre o contexto de enunciação no qual estão inseridas e, desse modo, alargar as próprias referências.

“Espelhos que brilham”: deslocando a noção de pessoa


1. Fausto Podavini. 2. Susan Falzone

Azize (2010AZIZE, Rogério Lopes. 2010. A nova ordem cerebral: a concepção de “pessoa” na difusão neurocientífica. Tese de Doutorado em Antropologia, Museu Nacional / UFRJ.) investiga a concepção de pessoa na difusão neurocientífica - ou o que ele chama de “a nova ordem cerebral”, uma “equivalência entre cérebro e indivíduo”. A mente - emoções, sentimentos, escolhas, ações, comportamentos - aparece como “um epifenômeno do cérebro, uma consequência da atividade neuronal” (: 01). “De certa forma, temos um novo cogito, não mais com a forma penso, logo existo, mas sim uma espécie de existo porque tenho um cérebro que pensa” (: 02). Nesse sentido, a ideia de perder/afetar o cérebro - ou a expressão “perder a cabeça” - como prejuízo das funções cognitivas significa deixar de ser, “perder o eu”.22 22 Algumas pessoas se referem à doença de Alzheimer com a expressão “não está bem da cabeça” ou como “caducou” / “está caduco”.

Rose (2001ROSE, Nikolas. 2001. “The politics of life itself”. Theory, culture & society, 18 (6):1-30.) fala em “self neuroquímico” e em “neuro-ontologia” (Rose, N. & Abi-Rached, J. 2013ROSE, Nikolas & ABI-RACHED, Joelle. 2013. Neuro: the new brain sciences and the management of the mind. Princeton: Princeton University Press.). Para ele, os discursos psi do século XX trouxeram uma nova maneira de relatar nossos eus em termos de neuroses, traumas, desejos inconscientes, numa linguagem do cérebro, neuroquímica. Jennifer S. Singh (2011SINGH, Jennifer S. 2011. “The Vanishing Diagnosis of Asperger's Disorder”. In: P. J. McGann & David J. Hutson (eds.), Sociology of Diagnosis, v. 12:235-257, Emerald Group Publishing Limited.) mostra como algumas pessoas com Síndrome de Asperger se definem como “neurodiferentes”, não se vendo como doentes ou a doença se torna uma maneira de ser e viver. Para a doença de Alzheimer, parece não haver espaço para abraçar a doença como traço da personalidade, mas um esforço de demonstrar que a personalidade permanece, apesar da doença.23 23 Ainda que a doença de Alzheimer não seja vista como traço da personalidade - apesar de alguns traços de personalidade serem elencados como fatores de risco para a doença -, existe uma reivindicação de uma diferença ontológica criada pela doença - “Bem-vindo ao meu mundo”, escreve Joe. Se tal reivindicação pode ser importante para que essas pessoas sejam ouvidas e reconhecidas, ela pode criar um abismo ou uma dicotomia entre “nós”, saudáveis, e “eles”, doentes, podendo prejudicar a comunicação e a convivência.

A doença pode tanto ser aquela que ofusca o “eu” quanto a que se confunde com ele. Ora a doença é a pessoa, ora ela é um estranho. “‘Suponhamos que fosse possível eliminar os tiques’, disse Ray, que tem Síndrome de Tourette, ‘o que sobraria? Eu sou composto de tiques - não há mais nada’” (Sacks 1997: 115SACKS, Oliver. 1997. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu - e outras histórias clínicas. São Paulo: Companhia das letras .). Apesar de a Síndrome de Tourette ser vista como possessão, uma vez que a pessoa é tomada, sobressaltada por gestos, imitações e tiques involuntários, Ray não conseguia imaginar a vida sem ela. Na doença de Alzheimer, isto pode ser visto na ambiguidade “é a doença ou é a pessoa”, esse entre/devir que confunde ainda mais os familiares no manejo do cuidado.24 24 Em uma reunião da ABRAz, uma filha disse: “minha mãe gosta de tomar banho à noite, mas ela engana a gente e não toma. Quando eu pergunto, ela diz que já tomou, mas eu não sei se ela esqueceu ou se tá sendo esperta, isso sim!”. Um filho, que também cuida da mãe, complementou: “ela tem resposta pra tudo. Não sei se é a doença ou a malandragem dela”.

A pessoa como cérebro - ou o “cérebro como pessoa” (Azize 2010AZIZE, Rogério Lopes. 2010. A nova ordem cerebral: a concepção de “pessoa” na difusão neurocientífica. Tese de Doutorado em Antropologia, Museu Nacional / UFRJ.) - vai ao encontro da ideologia moderna (Dumont 1985DUMONT, Louis. 1985. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco.). Alguns estudos mostram como a doença de Alzheimer é tida como uma patologia da vida contemporânea, uma metáfora da sociedade de consumo, ao abalar valores como autonomia, indivíduo, independência, autocuidado, sendo vista, para essas sociedades, como o mal, o horror, a epidemia, a doença do século (Robbins 2008ROBBINS, Jessica C. 2008. “‘Older americans’ and Alzheimer´s disease: citizenship and subjectivity in contested time”. Michigan: Michigan Discussions in Anthropology, 17:14-43.; Burke 2015BURKE, Lucy. 2015. “The locus of our dis-ease: Narratives of family life in the age of Alzheimer’s”. In: Aagje Swinnen & Mark Schweda (eds.), Popularizing Dementia: Public Expressions and Representations of Forgetfulness. Aging Studies, v. 6:23-42. Bielefeld, Germany: Transcript Verlag.; Wearing 2015WEARING, Sadie. 2015. “Deconstructing the American family. Figures of parents with dementia in Jonathan Franzen’s The Corrections and A.M. Homes’ May We Be Forgiven ”. In: Aagje Swinnen & Mark Schweda (eds.), Popularizing Dementia: Public Expressions and Representations of Forgetfulness. Aging Studies, v. 6:43-68. Bielefeld, Germany: Transcript Verlag .; Goldman 2015GOLDMAN, Marlene. 2015. “Purging the world of the Whore and the horror. Gothic and apocalyptic portrayals of dementia in Canadian fiction”. In: Aagje Swinnen & Mark Schweda (eds.), Popularizing Dementia: Public Expressions and Representations of Forgetfulness. Aging Studies, v. 6:69-88. Bielefeld, Germany: Transcript Verlag .). Mais do que o envelhecimento populacional, talvez seja isto que está por trás do temor apocalíptico que a ronda, ao abalar não só os paradigmas biomédicos, mas também sociais e filosóficos (Feriani 2017bFERIANI, Daniela. 2017b. “Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de Alzheimer”. Ponto Urbe, v. 20, n. 01.).

“Dissolução do self só faz sentido tendo em vista uma noção de pessoa na qual unicidade, coerência, consciência e autonomia são os elementos centrais. “O centro é onde a imaginação ocidental do século XX situa o ego, a personalidade. Pois, para essa visão ocidental moderna, a ‘pessoa’ é um agente, autor de pensamento e ação, estando, portanto, situada ‘no centro’ das relações” (Strathern 2006: 394STRATHERN, Marilyn. 2006 [1988]. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas, S.P.: Editora da Unicamp .). Ao dissolver ou transformar o centro, a doença de Alzheimer abala essa noção. Como a pessoa assume uma forma diferente da que estamos acostumados a ver, ela parece não existir.25 25 A inspiração, aqui, é na advertência da própria Strathern ao pesquisar os processos de objetificação na Melanésia: “Na realidade, o sujeito individual esteve presente em toda a minha exposição; apenas ela/ele não assume a forma que estamos acostumados a ver” (Strathern 2006: 393).

O discurso biomédico, na tentativa de detectar sintomas, valoriza as perdas e os declínios, mas não os possíveis ganhos e rearranjos que a doença também pode trazer. Muitas pessoas em processo demencial afirmaram - seja em conversas comigo ou através de leituras de relatos autobiográficos - estar mais abertas emocionalmente e atentas a cenas que antes passavam despercebidas, como o vento soprando as folhas de uma árvore, as nuvens que mudam de formas, as crianças brincando na rua: outras temporalidade e percepção do mundo, até mesmo uma nova configuração neuronal - alguns notaram o cérebro mais imagético, ou seja, veem as palavras como imagens, numa espécie de “storyboard mental”, segundo a expressão de Kris.

Sacks (1997SACKS, Oliver. 1997. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu - e outras histórias clínicas. São Paulo: Companhia das letras .) tem uma visão crítica dos testes neurológicos, percebendo os seus limites. Ao aplicá-los em Rebecca, uma paciente com grave prejuízo cognitivo - considerada “débil mental”, “estúpida”, “tola” por algumas pessoas -, não mostraram as habilidades e as capacidades da paciente, que tinha uma imaginação extraordinária. Enquanto ela “se desintegrava horrivelmente nos testes formais”, mantinha-se “coesa” e composta” (: 201) em atividades de contemplação do mundo ao redor, expressando-se de maneira poética e espiritual. Rebecca via e percebia o mundo de outro modo e isto os testes não conseguiam revelar.

Numa tentativa de se contrapor ao discurso biomédico, algumas narrativas mostram como o corpo é a expressão primeira e a mais duradoura. Para Franzen (2012FRANZEN, Jonathan. 2012. “O cérebro do meu pai”. Revista Piauí, n.69, junho.), o pai, com doença de Alzheimer, permaneceu se expressando até o fim, mesmo quando as palavras não mais saíam. “Impressiona-me, acima de tudo, a aparente persistência de sua vontade” (: 14). A recusa em comer, os olhares, os gestos poderiam, assim, evidenciar o desejo do pai em não mais querer viver daquele modo ou, ao menos, como ele via e sentia a vida que vinha levando, bem como as atitudes e os comportamentos dos outros ao seu redor. Seguindo Merleau-Ponty (1945MERLEAU-PONTY, Maurice. 1945. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes.), o self resistiria porque reside na corporalidade: é o corpo, e não a cognição, responsável pela subjetividade, experiência e agência - a expressão usada é “embodied selfhood” (Kontos 2006KONTOS, Pia C. 2006. “Embodied selfhood: an ethnographic exploration of Alzheimer´s Disease”. In: Annette Leibing & Lawrence Cohen (orgs.), Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. New Brunswick, New Jersey, andLondon: Rutgers University Press .).26 26 As pessoas em processo demencial parecem radicalizar ou levar até as últimas consequências o argumento de Merleau-Ponty. Para estudos sobre o corpo nas demências, ver Kontos (2006); Kontos & Naglie (2009); Kontos et al (2011); Engel (2017). Como a coerência do self não é mostrada nos modos que os outros estão acostumados a reconhecê-la, as pessoas com doença de Alzheimer são facilmente compreendidas em termos de uma ruptura radical com a personalidade.


Linha 1:1. Alex ten Napel; 2. William Utermohlen; 3. Alex ten Napel. Linha 2: 1. Alejandro Kirckuk; 2. Alex ten Napel; Linha 3: 1. Susan Falzno; 2. Alex ten Napel; 3. William Utermohlen.


Linha 1:1. Fábio Messias; 2. Susan Falzone; Linha 2: 1. Alejandro Kirchuk; 2. Susan Falzone. Linha 3: 1. Susan Falzone; 2. Fausto Podavini27 27 Ao longo da pesquisa, encontrei muitas imagens sobre doença de Alzheimer, como ensaios fotográficos, obras de arte, vídeos de campanhas de conscientização etc. Chamou-me a atenção a quantidade de rostos/retratos: mais de 70%. O discurso médico da “dissolução do self” coexiste, assim, com uma grande quantidade de rostos, gestos, expressões. Isto também me incentivou a discutir a noção de pessoa que está em jogo nos processos demenciais. Sobre os autores das fotos, temos: Susan Falzone, no ensaio “Grace”, fotografa a tia, com doença de Alzheimer. Disponível em: http://www.hypeness.com.br/2014/04/fotografo-capta-o-cotidiano-da-tia-com-alzheimer-em-serie-sombria-e-emocionante/; Alejandro Kirchuk, no ensaio “La noche que me quieras”, fotografa a avó, com doença de Alzheimer, e o avô, como cuidador. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2012/02/120214_galeria_alzheimer_pu.shtml; Alex ten Napel, no ensaio “Alzheimer”, fotografa idosos em uma Instituição de Longa Permanência, na Holanda. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2014/10/10/alex-ten-napel_n_5955594.html; Fábio Messias, no ensaio “Essa luz sobre o jardim”, fotografa o cotidiano dos avós - ele, com doença de Alzheimer; ela, como cuidadora. Disponível em: http://cargocollective.com/fabiomessias/Essa-Luz-Sobre-o-Jardim; Fausto Podavini, no ensaio “Mirella”, fotografa um casal de idosos - ele, com doença de Alzheimer, e a esposa como cuidadora. Disponível em: http://www.hypeness.com.br/2013/05/projeto-fotografico-tocante-mostra-o-dia-a-dia-de-uma-esposa-cuidando-do-marido-com-alzheimer/.

Se são as atividades cotidianas que fornecem os fios para a composição do diagnóstico da doença de Alzheimer, no qual não conseguir comer, tomar banho, vestir-se, fazer supermercado, pagar conta indicam o processo demencial (Feriani 2017bFERIANI, Daniela. 2017b. “Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de Alzheimer”. Ponto Urbe, v. 20, n. 01.), são também essas atividades acionadas para reivindicar uma posição de sujeito e compor uma noção de pessoa à revelia da biomedicina. Não comer, aqui, além de ser um possível sintoma da doença, pode ser a persistência da vontade do doente, assim como o não tomar banho pode ser “manipulação”, “mentira”, “esperteza”. Entre a doença e a pessoa, o corpo assume o lugar da metamorfose e pode indicar tanto um processo de humanização quanto de animalização.

No pensamento ameríndio,

“não reconhecer mais os parentes” significa não mais ocupar a perspectiva humana; um dos sinais diagnósticos de metamorfose (e toda doença é metamorfose, especialmente quando causada por abdução de alma) não é tanto a mudança de aparência do eu na percepção dos outros, mas a mudança de percepção pelo eu da aparência dos outros, detectável por estes outros na mudança de comportamento do sujeito em questão. A pessoa doente perde a capacidade de ver os outros como coespecíficos, isto é, parentes, e começa a vê-los como o animal/espírito que lhe capturou a alma os vê - como bichos de presa, tipicamente. Esta é uma das razões por que pessoas doentes são perigosas (Viveiros de Castro 2011: 902VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O medo dos outros”. Revista de Antropologia , v. 54, n. 2: 885-917.).

Viveiros de Castro mostra como, no perspectivismo ameríndio, o humano é um ponto de vista, uma perspectiva de um “eu” que assume uma posição de sujeito na relação com outros seres e outros mundos. O ponto de vista como multiplicidade - e não múltiplos pontos de vista - faz com que cada ser se veja como humano e o outro como um não humano: assim, por exemplo, a onça se vê como humano e vê o caçador como predador ou espírito. Não se vê animais e espíritos como humanos em “condições normais”, mas em situações especificas, como sonhos, alucinações, doenças, rituais, caça.

Todos são gente, mas não é possível ser gente ao mesmo tempo: se um ser assume a posição de humano, isto faz com que o outro obrigatoriamente seja um não humano - a alteridade, aqui, é o que constitui essa relação tensa: ao responder ao chamado de um não humano (um animal ou um espírito), assume-se, com isso, que o outro é o humano, consequentemente o “eu” que responde se torna o não humano. Assim, para o autor, se é verdade que a perspectiva cria o objeto, ela também cria o sujeito. Nesse sentido, a aparência engana não porque está em desacordo com alguma (suposta) essência, mas porque, por ser aparição, tem um ponto de vista, “e toda perspectiva ‘engana’” (Viveiros de Castro 2011: 896VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O medo dos outros”. Revista de Antropologia , v. 54, n. 2: 885-917.).

Quando a pessoa em processo demencial responde ao chamado do “fantasma”, da aparição, da alucinação - que, para ela, não assume tal conotação, e esta é uma diferença importante -, ocorre a destituição de sua posição de pessoa (como na expressão “dissolução do self”) - em algumas situações, como vimos, a própria humanidade está em perigo. Não estou querendo, com isso, transportar o perspectivismo ameríndio, um pensamento indígena altamente complexo e situado, para a doença de Alzheimer - há diferenças ontológicas e cosmológicas importantes entre o “multinaturalismo” indígena e o “multiculturalismo” não indígena -, mas de vê-lo, em seu valor de contraste, como uma analogia “boa para pensar” nos devires - humano, pessoa, animal, espírito, outro - que se deslocam ao longo da constituição e da vivência da doença. O “eu” - ou o sujeito - corre o risco de se transformar num “outro” - ou objeto - de outrem (Viveiros de Castro 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O medo dos outros”. Revista de Antropologia , v. 54, n. 2: 885-917.).

Se o ponto de vista se dá no corpo, é pelo corpo que se assume uma posição de sujeito; o corpo não só como fisiológico ou morfológico, mas, sobretudo, como um conjunto de afecções - “os corpos são o modo pelo qual a alteridade é apreendida como tal” (Viveiros de Castro 1996: 128VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana , 2 (2): 115-144.). Na doença de Alzheimer, o corpo é um dispositivo importante para reivindicar um lugar de fala e compor uma noção de pessoa ao avesso do paradigma biomédico. Se as palavras e os domínios cognitivos vão se apagando, fica o corpo: uma lágrima, um olho que brilha, uma mão que segura um cobertor, uma risada, uma birra, um rosto.

Ao abalar alguns pressupostos, o “mundo às avessas” da demência se aproxima de outros mundos. Se, no mundo não indígena - ou na filosofia dita “ocidental”, com todas as ressalvas que este termo exige -, a máxima é “penso, logo existo”, o “mundo maravilhoso” de Alice e da demência parece se emaranhar com o “existe, logo pensa” do modo de vida indígena (Viveiros de Castro 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O medo dos outros”. Revista de Antropologia , v. 54, n. 2: 885-917., 2012VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2012. “‘Transformação’ na antropologia, transformação da ‘antropologia’”. Mana , 18 (1): 151-171.) - ou, para o doente de Alzheimer, “existo, logo penso”. Se Alice conversa com flores e insetos, algumas pessoas com doença de Alzheimer conversam com o reflexo no espelho. Se Alice vê unicórnios, Célia fica aflita porque o macaco da novela vai invadir a sala. Ao sacudir uma noção de pessoa que se pauta pelo cérebro - e o cérebro como local do pensamento -, a doença de Alzheimer, em algumas de suas linhas de fuga, reivindica outras maneiras de expressão, como o corpo, a vontade, o desejo, a recusa - “sinto, logo existo” como contranarrativa ou contramáxima.

Nesses deslocamentos entre humano e animal, subjetividade e “dissolução do self”, memória e alucinação, a noção de pessoa se faz num embate narrativo-performático. Pôr em relação a neurociência e o xamanismo me ajudou a ficar atenta às estratégias de nomeação e suspensão, figuração e desfiguração que constituem a doença de Alzheimer não só como diagnóstico, mas também como modo de vida e estética,28 28 Tomo estética tal como Cesarino (2011): como “uma reflexão sobre a configuração dos códigos sensíveis, das imagens e das metáforas” (: 16) - para ele, que constitui o pensamento xamanístico; para mim, que constitui a doença de Alzheimer. o que permitiu ressignificar as experiências dos próprios doentes. Para isso, foi preciso deslocar a noção de pessoa: da neuroimagem às imagens xamânicas, da alucinação como patologia à alucinação como signo, da clínica à crítica. Se a “dissolução do self” não dá conta de compreender a complexidade de um processo demencial, é preciso dissolver a dissolução - ou vê-la em sua potencialidade.

Severi (2007SEVERI, Carlo. 2007. Le principe de la chimère: une anthropologie de la mémoire. Paris: Éditions Rue d’Ulm-musée du quai Branly.) mostra como é através da imagem contraintuitiva - ou quimera -, ao ocupar o lugar de uma memória coletiva, que o xamã define o seu estatuto como enunciador. Ocorre uma transformação simbólica da identidade do xamã através da voz - ou vozes, já que ele incorpora diversos outros (não humanos, inclusive) que ocupam aquele para quem o ritual se destina. Numa crise de comportamento, a pessoa pode imitar os gestos de um animal sobrenatural.29 29 Esse comportamento estranho pode levar a ser identificado como loucura. Para Severi (2007), a loucura é interpretada em termos acústicos, com a presença de uma “voz outra” - por exemplo, a voz do animal - no corpo do doente. O doente, assim como o xamã, encarna os espíritos animais que estariam causando sua doença: ele acolhe o animal em seus pensamentos e fala sua língua.

A voz, aqui, não significa apenas palavra, mas também entonação, crise, ruído, sofrimento, onomatopeia: é a voz do olhar interior, do espírito, daquilo que não está dado a ver. O xamã transforma o uso “normal” da linguagem, conferindo ao contexto de comunicação uma forma particular que o distingue das interações ordinárias da vida cotidiana. Também em Cesarino (2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: Poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectivas.), o xamã, como replicador de mundos, torce a linguagem - os cantos assumem uma conotação poética e metafórica, quase incompreensível. Trata-se de construir uma dimensão sobrenatural, pensada como um duplo invisível ou como um mundo possível que tem uma existência paralela àquela do mundo real.

Essa articulação entre visível e invisível, real e irreal, cotidiano e sobrenatural que ocorre na voz do xamã pode nos ajudar a pensar no que é tido como alucinação para alguém em processo demencial? Como ver o contexto de enunciação numa doença tida como comprometedora dos domínios cognitivos? Se, para o xamã, a identidade plural e a “linguagem torcida” fazem dele um enunciador, garantindo a visão clara dos outros mundos e a eficácia do ritual, o “devir-outro” e a língua emaranhada das pessoas em processo demencial - a fala truncada, incompreensível, que inventa e delira - parecem garantir a eficácia da doença, a qual vai calando, aos poucos, o enunciador, além de indicar um processo de desritualização - o distanciamento da vida social e a invisibilidade do trabalho do cuidado. Porém, se não se trata, aqui, de um ritual, também não é o cotidiano tal como antes da doença: o cotidiano se transforma, assombra-se - como Guilherme, que usou o chinelo como controle remoto e vestiu a camisa como se fosse calça; Joe, apavorado porque os alimentos da geladeira iam atacá-lo; Kris, que não soube ligar a máquina de lavar; Odalina, que usou detergente para cozinhar.

Em Oniska, Pedro Cesarino (2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: Poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectivas.) tenta compreender o pensamento marubo através dos cantos xamânicos, os quais acionam uma noção de pessoa, cosmologia e escatologia. O xamã é um duplo, um variante, um “corpo carcaça” que habita diversos seres. A pessoa, como entidade e não como indivíduo, é uma coletividade de singularidades, num processo contínuo de transformação e relação entre mundos.

A pessoa como uma dobra para fora implica simultaneidade, conexão e não substituição e fusão. Para Pedro Pitarch (2018PITARCH, Pedro. 2018. “A linha da dobra. Ensaio de cosmologia mesoamericana”. Mana, v. 24, n. 1.), a dobra é um operador para lidar com a alteridade enquanto metamorfose, oscilação, multiplicidade. A dobra põe em relação coisas que estariam separadas no mundo ordinário, como vivos e mortos, humanos e não humanos. É um virar do avesso em que frente e verso estão apegados um ao outro: o que importa é a relação e não o que os distingue. Não se trata de uma distinção física, mas ontológica: entrar num outro mundo com outras coordenadas. Tal como um doente de Alzheimer que está em constante processo de transformação, como humano e não humano, demente e lúcido, autor e não autor, presente e ausente, a dobra é o devir outro.

No pensamento indígena ou, segundo Pitarch, como figura mesoamericana da relação, a dobra corresponde à noção de pessoa enquanto composta por diversos fragmentos. A pessoa se desdobra, ou seja, escuta/olha/atravessa o outro mundo, em situações como doença, sonho, embriaguez. Nessas situações-limite, há a revelação do aspecto mais estranho de nós mesmos, o “outro de si”. Assim, ver-se no espelho não é ver a si mesmo, nem mesmo é ver o humano: é ver o outro mundo, os mortos, os antepassados, os espíritos. O espelho, ao invés de mostrar identidade e unicidade, revela a alteridade e a pluralidade, o passado mitológico. A imagem fragmenta e multiplica o si mesmo.

Viveiros de Castro (2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de Cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15: 319-338.) mostra como o espelho, no xamanismo, aparece como luminosidade-invisibilidade (o brilho é tanto que ofusca a visão em condições cotidianas/ “normais”) e multiplicidade dos espíritos, funcionando como uma travessia entre mundos. Os espelhos, aqui,

não enfatizam a propriedade icônica que têm os espelhos de reproduzir imagens. O que os exemplos sublinham é, antes, a propriedade que têm os espelhos de ofuscar, refulgir e resplandecer. Os espelhos sobrenaturais amazônicos não são dispositivos representacionais extensivos, espelhos refletores ou “reflexionantes”, mas cristais intensivos, instrumentos multiplicadores de uma experiência luminosa pura, fragmentos relampejantes (Viveiros de Castro 2006: 333VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de Cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15: 319-338.).

Para Davi Kopenawa (2015KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das letras.), “não são espelhos de se olhar, são espelhos que brilham”. E, ao brilharem, ofuscam a visão - apenas os xamãs conseguem ver.

Nesse jogo de espelho, a linguagem do xamã reverbera e ecoa de modo a obter uma “interminável polifonia onde quem fala é sempre o outro” (Viveiros de Castro 1986: 570 citado em Cesarino 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: Poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectivas.). Surge, assim, um “paradoxo autoral” (Cesarino 2011). Enquanto recipiente, o xamã não é autor de seus cantos: ele replicaria informações dos outros mundos através de visões, num processo mnemônico alargado pelo uso de algum alucinógeno.

Na doença de Alzheimer, como vimos, o espelho também ganha uma dimensão importante ao revelar a estranheza de um outro mundo para o qual o doente foi arremessado. Porém, aqui, o não reconhecimento de si ao se olhar no espelho, lido a partir de certa noção de pessoa - que é diferente da noção indígena -, é tido como um sintoma patológico, uma perda da noção de realidade, indicando o último estágio da doença. Se no pensamento indígena os fragmentos luminosos são comparados a cristais pelos quais os espíritos atravessam mundos (Viveiros de Castro 2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de Cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15: 319-338.), aqui, na demência, estilhaços parecem ser mais apropriados para revelar uma fractalidade negativa e perigosa: se os estilhaços brilham e ofuscam, revelam e deformam, eles também ferem, tal como Jimmie, que ficou apavorado ao se olhar no espelho e não se ver (Sacks 1997SACKS, Oliver. 1997. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu - e outras histórias clínicas. São Paulo: Companhia das letras .). A dissolução do sujeito ganha, assim, configurações diferentes quando se é demente e quando se é xamã.


1. “Cabeça” (2000), último autorretrato de William Utermohlen. 2. “The Great Being”, desenho de Allen Ginsberg sobre sua experiência alucinatória em rituais xamânicos, no Peru (Taussig 2011: 14TAUSSIG, Michael. 2011. I swear I saw this: Drawings in Fieldwork Notebooks, Namely My Own. Chicago: Univ. Press.)

O doente de Alzheimer, ao habitar outros mundos ou, ao menos, tensionar certas noções de realidade e pessoa, também traz o problema da tradução e autoria - “é a doença que fala”; “é a doença, não é ele!”; “não sei se é a doença ou a esperteza” -, mas por motivos diferentes. Se, no xamã, o devir outro reverbera em polifonia e numa noção de pessoa compósita, no doente de Alzheimer, segundo a concepção médica, o devir, ao invés de contribuir para a composição da pessoa, acaba por dissolvê-la como uma “não pessoa” e sua voz é silenciada, deslegitimada.30 30 Em alguns momentos da pesquisa, ao conversar com as pessoas em processo demencial, era comum familiares e/ou médicos fazerem sinais negativos, numa tentativa de fazer com que eu desconsiderasse aquelas falas. Se, para o xamã, o alucinógeno alarga o processo mnemônico, para o demente a alucinação é tida como um entrave à memória e ao conhecimento. O uso do alucinógeno, lá, e a doença, aqui, parecem ter um equivalente simbólico como meios para acessar o real através da imaginação, com diferenças importantes no que se refere à durabilidade (passageira, num caso; duradoura, em outro), posição do sujeito (xamã, de um lado; doente, de outro) e conteúdo do delírio (parece haver um limite entre alucinação e nonsense que é ultrapassado pela doença de Alzheimer com a noção de “bizarro”, “absurdo”, “assombro”).

Sobre travessias e o que se vê do lado de lá

Se eu pude estabelecer relações entre doença de Alzheimer, xamanismo e literatura numa tentativa de ver mais e além do que normalmente se vê quanto à doença - como ver pessoa onde se diz que não tem -, também é importante estar ciente dos distanciamentos entre campos tão diferentes. Se a abertura do ver os atravessa - um ver alucinatório, que vê o invisível -, as consequências disso não se equivalem.

O “nonsense” do mundo de Alice (Carroll 2010CARROLL, Lewis. 2010. Através do espelho e o que Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar.) é diferente do “nonsense” do mundo da demência. Se, em Alice, parte-se de um cotidiano que já é extraordinário, fantasioso - um mundo que, desde o início, é à parte -, na demência é o cotidiano mais banal que está em jogo: são as atividades domésticas mais corriqueiras que se tornam assombradas. Se Alice precisa aprender as regras de um jogo de xadrez vivo e ir enfrentando os obstáculos e as criaturas mais estranhas para se tornar rainha, as pessoas em processo demencial têm de lidar com o dia a dia de atividades como tomar banho, comer, vestir-se, atender o telefone, fazer supermercado, pagar contas. Não deveria ter nada de misterioso nisso. Apesar de se mostrar constantemente espantada com o que encontra, Alice não se depara com o terror - ou, ainda, o tragicômico - tal como os doentes e familiares-cuidadores aqui descritos. Se, num caso, é o extraordinário que se torna cotidiano, no outro, é o cotidiano que se torna extraordinário.

Como para o escritor, também para o xamã o ponto de partida é um cotidiano transformado pelo ritual, por uma entrada especial, uma situação extraordinária, uma suspensão, realizada com preparação e cautela para amenizar os incidentes que podem surgir. Apesar dos riscos de toda travessia, escritores e xamãs partem de um lugar tido como seguro e podem voltar a ele, ainda que as coisas possam sair do controle e que sejam transformados ao longo dessa passagem.

É diferente para alguém em processo demencial: a travessia, aqui, é um processo contínuo, inexorável, através do qual pode ou não se ter consciência dela; não há um “lugar seguro” para o qual voltar, um lugar anterior à doença, apesar das suas flutuações - um constante movimento entre lucidez e demência, lembrança, esquecimento e alucinação - e de esforços para fazer dela uma forma de vida, um cotidiano, uma realidade - ainda que assombrados.31 31 É importante dizer que, apesar de estabelecer uma tríade entre doentes de Alzheimer, xamãs e escritores/antropólogos como uma analogia boa para pensar proximidades e distanciamentos, não considero que existe uma alteridade radical entre tais sujeitos, uma vez que coexistem e um pode vir a se tornar o outro - inclusive, um dos fantasmas de estudar este tema é a possibilidade sempre latente de que eu também poderei ser uma pessoa em processo demencial. A estratégia de pensar em “nós” e “eles”, “mundo de lá” e “mundo de cá” foi para ajudar a mapear o campo de relações aqui proposto, bem como de levar a sério o convite de Joe - “bem-vindo ao meu mundo”.

A relação entre clínica, xamanismo e literatura - ou a dobra deleuziana entre clínica e crítica - permitiu-me buscar outras referências que, por contraste, iluminam a reflexão sobre a doença de Alzheimer. Se, na clínica, a potência e a polissemia da dissolução tendem a se ofuscar pela negatividade patológica, na literatura e no xamanismo elas brilham como cura, saúde, devir. Nessa travessia, podemos acompanhar como literal e metáfora, fatos e delírios se interpenetram e como, ao longo dos deslocamentos entre campos, sujeitos e situações, pessoa, doença e realidade vão se compondo e descompondo, como estilhaços num jogo de espelhos. O sintoma - como a alucinação, por exemplo - foi visto tanto num sentido clínico quanto simbólico, como uma sobreposição entre patologia e signo: como algo submerso, o sintoma permitiu apreender o que, ao dobrar e desdobrar as linhas que compõem a doença de Alzheimer, revela e ofusca, aparece e desaparece, num movimento de cavar para irromper, como um sismógrafo que capta tremores silenciosos e profundos (Didi-Huberman 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. 2013. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto.).

Além disso, como mostrei em outro lugar (Feriani 2019aFERIANI, Daniela. 2019a. “Da alucinação na clínica ao ver alucinatório da imagem: um percurso etnográfico”. GIS - Gesto, Imagem, Som -Revista de Antropologia , 4 (1):14-49.), o diálogo entre doença de Alzheimer e xamanismo - e também com as imagens da pesquisa - abriu o meu próprio modo de ver o meu tema e de fazer etnografia. Mapear esse campo de relações levou meu estudo para outras direções: da alucinação na clínica ao ver alucinatório da imagem, da “dissolução do self” ao ponto de vista demente (ou grafia-demente), da névoa como embaçamento da visão à névoa como outro modo de ver-viver. Foi assim que eu também atravessei o espelho, puxei linhas de fuga. Doença de Alzheimer, xamanismo e etnografia funcionaram como uma tríade para pensar e experimentar o deslocamento, a estranheza, o devir, a troca de posição e a dissolução do sujeito: tudo aquilo, enfim, que atravessa quem sofre um processo demencial, um ritual xamânico e uma (boa) pesquisa.

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Notas

  • 1
    Este artigo é parte de uma pesquisa que venho realizando desde o doutorado - Entre sopros e assombros: estética e experiência na doença de Alzheimer, orientado por Guita Grin Debert - e que se desdobrou no projeto de pós-doutorado - Como narrar a perda do narrar: autobiografias de pessoas em processo demencial, com supervisão de Sylvia Caiuby Novaes -, ambos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O material aqui apresentado resulta de pesquisa de campo em diferentes frentes, como: acompanhamento de consultas médicas nos ambulatórios de neurologia e psiquiatria geriátrica de um hospital universitário; participação em reuniões do grupo de apoio da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz); visitas domiciliares às famílias; reunião de imagens sobre doença de Alzheimer disponíveis na internet; leitura de blogs e autobiografias de pessoas em processo demencial. Os sujeitos da pesquisa são, sobretudo, as pessoas com demência e os familiares-cuidadores (cônjuges e filhos, na maioria), provenientes principalmente de classes sociais mais desfavorecidas.
  • 2
    Alguns se referem aos “foggy days” como dias de grande desarticulação e desordem no cotidiano, que os impedem de fazer tarefas habituais, como cozinhar, fazer supermercado, acompanhar uma conversa, pagar contas, limpar a casa, ligar a máquina de lavar roupa, tomar banho, mudar o canal da televisão. Os relatos autobiográficos de pessoas com a doença têm sido buscados em pesquisa de campo, blogs e livros.
  • 3
    A noção de dobra é inspirada em Gilles Deleuze. Trata-se de um recurso analítico para pensar a relação entre doença de Alzheimer e xamanismo não como oposições binárias ou dualidades, mas como paradoxos, analogias, coexistências tensas - por vezes, contraditórias - entre sujeitos, questões, situações. Deslocar a doença de Alzheimer para além da biomedicina é uma estratégia tanto para compreender e problematizar o discurso biomédico quanto para buscar outros modos de ver e viver a doença.
  • 4
    Há vários tipos de demência (como frontotemporal, Corpus de Levy, alcóolica, pós-Acidente Vascular Cerebral, mista), sendo a doença de Alzheimer considerada a mais comum (de 60 a 80% dos casos, segundo Alzheimer´s Association, em https://alz.org/alzheimers-dementia/difference-between-dementia-and-alzheimer-s). Ainda que haja algumas particularidades, as fronteiras são tênues e passíveis de controversas (Feriani 2017bFERIANI, Daniela. 2017b. “Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de Alzheimer”. Ponto Urbe, v. 20, n. 01.). Além disso, com a popularização e a visibilidade que vem ganhando nos últimos anos, “doença de Alzheimer” acaba sendo um termo guarda-chuva para designar uma multiplicidade de situações. Tendo em vista a complexidade do diagnóstico e uma vez que não cabe a mim diagnosticar, mas ver como se dá a constituição desse nome ao longo de diferentes campos e sujeitos, tenho preferido usar “demência” ou ainda “processos demenciais”.
  • 5
    O contexto de enunciação chama a atenção para o acordo pragmático que as pessoas envolvidas na comunicação estabelecem entre si - ver Favret-Saada (1977FAVRET-SAADA, Jeanne. 1977. Les mots, La mort, les sorts. Paris: Gallimard.). Funciona, aqui, para mostrar que a deterioração causada pela demência não é resultado apenas de um processo neurológico, mas sociocultural, em que a capacidade de interação depende da disposição dos sujeitos envolvidos - dementes e não dementes. Em alguns relatos autobiográficos, as pessoas em processo demencial se perguntam de quem, afinal, é o problema - dos enfermos ou dos supostamente saudáveis que não são capazes de entrar nesse mundo-outro e estabelecer uma relação possível. Talvez a demência cause tanto temor por revelar nossa incapacidade de nos comunicarmos de outras maneiras - isto serve, inclusive, para repensar estratégias de pesquisa. Criar um contexto de enunciação pode ter ressonância na ideia de “não bater de frente”, dita aos cuidadores pelos médicos e voluntários da Associação Brasileira de Alzheimer em situações tidas como difíceis, como quando o enfermo diz querer ir para casa ao não reconhecer o próprio local de moradia, recusar-se a tomar banho ou desejar ver os pais e outros parentes já falecidos.
  • 6
    Residente é um estudante de medicina em processo de especialização (ou residência, como dizem) e é quem, em um hospital universitário, atende o paciente acompanhado pelo cuidador. Após a realização dos procedimentos necessários à consulta, o médico (professor) é chamado para ouvir o relato do caso e auxiliar no diagnóstico e nas medidas a serem tomadas, como solicitação de exames e medicamentos.
  • 7
    A expressão “dissolução do self” foi ouvida principalmente dos residentes e médicos do ambulatório de neurologia, onde acompanhei as consultas. De qualquer forma, a expressão é bem conhecida e usada para se referir à doença, de maneira geral, tanto na bibliografia quanto por médicos, profissionais de saúde, cuidadores e familiares - ver Herskovits (1995HERSKOVITS, Elizabeth. 1995. “Struggling over subjectivity: debates about the “self” and Alzheimer´s Disease”. Medical Anthropology Quarterly. 9 (2):146-164.), Clare (2003CLARE, Linda. 2003. “Managing threats to self: awareness in early stage Alzheimer´s disease”. Social Science & Medicine , 57:1017-1029.), Langdon, Eagle & Warner (2007LANGDON, Shani A.; EAGLE, Andrew & WARNER, James. 2007. “Making sense of dementia in the social world: a qualitative study”. Social Science & Medicine , 64:989-1000.) e Beard & Fox (2008BEARD, Renée L. & FOX, Patrick J. 2008. “Resisting social disenfranchisement: negotiating collective identities and everyday life with memory loss”. Social Science & Medicine, 66:1509-1520.), Sabat, S.R. & Harré, R. (1992SABAT, Steven R. & HARRÉ, Rom. 1992. “The construction and deconstruction of self in Alzheimer´s disease”. Ageing and Society, 12:443-461.). Apesar de esses autores mostrarem como a “dissolução do self é ressignificada pelos relatos dos próprios enfermos, eles não questionam a expressão em si, ainda que a tomem de maneira contextual, relacional e heterogênea. Estudos centrados na pessoa, com a valorização da experiência subjetiva dos enfermos, do ambiente interacional e contexto sociocultural, em contraposição ao estigma da “dissolução do self”, tiveram como precursor o psicólogo social Kitwood (1997KITWOOD, Tom. 1997. Dementia reconsidered: the person comes first. Buckingham: Open University Press.), desencadeando o que ficou conhecido como personhood movement (Leibing 2006LEIBING, Annette. 2006. “Divided gazes: Alzheimer’s disease, the person within, and death in life”. In: Annette Leibing & Lawrence Cohen, Thinking about dementia: culture, loss, and the anthropology of senility. New Jersey: Rutgers University Press. pp. 240-268.) - ver O’Connor et al ((2007O’CONNOR, Deborah. et al. 2007. “Personhood in dementia care: Developing a research agenda for broadening the vision”. Dementia, v. 6, n. 1:121-142. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1471301207075648.
    https://doi.org/10.1177/1471301207075648...
    ), Halewood (2016HALEWOOD, Michael. 2016. “Do those diagnosed with Alzheimer’s disease lose their souls? Whitehead and Stengers on persons, propositions and the soul”. The Sociological Review, v. 64, n. 4:786-804. Disponível em: https://doi.org/10.1111/1467-954X.12398.
    https://doi.org/10.1111/1467-954X.12398...
    ) e Leibing (2018LEIBING, Annette. 2018. “On Heroes, Alzheimer’s, and Fallacies of Care: Stories of Utopia and Commitment”. In: H.-P. Zimmermann (org.), Kulturen der Sorge: Wie unsere Gesellschaft ein Leben mit Demenz ermöglichen kann. Rio de Janeiro: Campus. pp. 177-194.). Na proposta de Das (2015), a antropologia pode contribuir para uma mudança de perspectiva da psicopatologia ao perceber que o que está em jogo não é a teoria narrativa do self em si, mas como nós colocamos as palavras dessas pessoas no mundo. O desafio é o de como posicionar essas vozes no cotidiano, como devolvê-las à vida. Nessa direção, seja a partir da linguagem ou da valorização do corpo como expressão primordial da subjetividade, temos os estudos de Biehl (2008BIEHL, João. 2008. “Antropologia do devir: psicofármacos - abandono social - desejo”. Revista de Antropologia, USP, v. 51, n. 02.), McLean (2006McLEAN, Athena. 2006. “Coherence without facticity in dementia: the case of Mrs. Fine”. In: Annette Leibing & Lawrence Cohen (orgs.), Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. New Brunswick, New Jersey, andLondon: Rutgers University Press . pp.157-179.), Kontos (2006KONTOS, Pia C. 2006. “Embodied selfhood: an ethnographic exploration of Alzheimer´s Disease”. In: Annette Leibing & Lawrence Cohen (orgs.), Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. New Brunswick, New Jersey, andLondon: Rutgers University Press .), Chatterji (1998CHATTERJI, Roma. 1998. “An Ethnography of Dementia: A Case Study of an Alzheimer’s Disease Patient in the Netherlands”. Culture, Medicine and Psychiatry, 22:355-382.; 2006CHATTERJI, Roma. 2006. “Normality and Difference: Institutional Classification and the Constitution of Subjectivity in a Dutch Nursing Home”. In: Annette Leibing & Lawrence Cohen (orgs), Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. New Brunswick, New Jersey, and London: Rutgers University Press. pp. 218-239.). É nessa linha de pesquisa, de recolocar as vozes das pessoas em processo demencial no mundo - ou em um mundo possível -, que meu trabalho se insere, questionando a expressão “dissolução do self” ao mostrar como ela se conecta a determinada noção de pessoa, doença e realidade, numa tentativa de alargar os referenciais metodológicos e teóricos ao buscar conexões inesperadas, como, por exemplo, com o xamanismo, a arte, as imagens e a literatura.
  • 8
    Programa foi ao ar pelo canal Discovery em 24/06/2014.
  • 9
    Ele escreveu um livro intitulado My Mysterious Son: A Life-Changing Passage Between Schizophrenia and Shamanism. A notícia pode ser lida em https://www.washingtonpost.com/posteverything/wp/2015/03/24/how-a-west-african-shaman-helped-my-schizophrenic-son-in-a-way-western-medicine-couldnt/. Acesso em 12/04/2015.
  • 10
    Por ter sintomas semelhantes, a esquizofrenia já foi considerada “demência precoce”. No ambulatório de psiquiatria geriátrica, acompanhei o caso de uma senhora que vinha sendo tratado como esquizofrenia e que posteriormente foi reclassificado como doença de Alzheimer.
  • 11
    Disponível em https://td38.wordpress.com/2015/06/05/lo-que-ve-un-chaman-en-un-hospital-psiquiatrico/. Acesso em 17/07/2015.
  • 12
    Em http://news.stanford.edu/2014/07/16/voices-culture-luhrmann-071614/. Acesso em 20/09/2016.
  • 13
    Post publicado em 20/12/2016, na página “Quem tem um mal de Alzheimer em casa”?
  • 14
    Disponível em https://www.tomhussey.com/PROJECTS/REFLECTIONS/thumbs. Acesso em 06/08/2020.
  • 15
    Em http://well.blogs.nytimes.com/2016/06/21/alzheimers-disease-as-an-adventure-in-wonderland/? smid=fb-share&_r=3 Acesso: 22/06/2016.
  • 16
    Disponível em www.psupress.org/books/titles/978-0-271-07468-9.html. Acesso em 22/06/2016.
  • 17
    Estadunidense diagnosticado em 2006 e autor do blog http://living-with-alzhiemers.blogspot.com.br/.
  • 18
    William Utermohlen (1933-2007) foi um artista norte-americano diagnosticado com doença de Alzheimer aos 61 anos. Ele fez uma série de autorretratos ao longo da evolução da demência - em https://www.williamutermohlen.org/index.php/about/9-about/essays. Acesso em 15/07/2020.
  • 19
    Estadunidense diagnosticada aos 46 anos e autora do blog http://creatingmemories.blogspot.com.br/.
  • 20
    Isso não significa negar que a doença de Alzheimer tenha uma materialidade - e que a medicina não seja um importante meio de conhecimento e tratamento da mesma -, mas mostrar como essa materialidade transborda e se conecta com/tensiona outras relações, como as noções de pessoa, doença, memória, velhice, realidade.
  • 21
    Essa é uma tentativa de fazer um acordo pragmático entre ontologias, uma tradução em que uma não se reduza à outra, de pensar o pensamento do outro ou levar o pensamento nativo a sério (Viveiros de Castro 2002). É diferente de quando os médicos reconhecem que a alucinação é real e, por isso, não se deve confrontar, mas, enquanto médicos que precisam oferecer tratamento e explicação, classificam a partir da realidade deles como “sintoma psicótico”, “perda da noção de realidade” - mas, afinal, de que realidade estamos falando?
  • 22
    Algumas pessoas se referem à doença de Alzheimer com a expressão “não está bem da cabeça” ou como “caducou” / “está caduco”.
  • 23
    Ainda que a doença de Alzheimer não seja vista como traço da personalidade - apesar de alguns traços de personalidade serem elencados como fatores de risco para a doença -, existe uma reivindicação de uma diferença ontológica criada pela doença - “Bem-vindo ao meu mundo”, escreve Joe. Se tal reivindicação pode ser importante para que essas pessoas sejam ouvidas e reconhecidas, ela pode criar um abismo ou uma dicotomia entre “nós”, saudáveis, e “eles”, doentes, podendo prejudicar a comunicação e a convivência.
  • 24
    Em uma reunião da ABRAz, uma filha disse: “minha mãe gosta de tomar banho à noite, mas ela engana a gente e não toma. Quando eu pergunto, ela diz que já tomou, mas eu não sei se ela esqueceu ou se tá sendo esperta, isso sim!”. Um filho, que também cuida da mãe, complementou: “ela tem resposta pra tudo. Não sei se é a doença ou a malandragem dela”.
  • 25
    A inspiração, aqui, é na advertência da própria Strathern ao pesquisar os processos de objetificação na Melanésia: “Na realidade, o sujeito individual esteve presente em toda a minha exposição; apenas ela/ele não assume a forma que estamos acostumados a ver” (Strathern 2006: 393).
  • 26
    As pessoas em processo demencial parecem radicalizar ou levar até as últimas consequências o argumento de Merleau-Ponty. Para estudos sobre o corpo nas demências, ver Kontos (2006KONTOS, Pia C. 2006. “Embodied selfhood: an ethnographic exploration of Alzheimer´s Disease”. In: Annette Leibing & Lawrence Cohen (orgs.), Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. New Brunswick, New Jersey, andLondon: Rutgers University Press .); Kontos & Naglie (2009KONTOS, Pia C. & NAGLIE, Gary. 2009. “Tacit knowledge of caring and embodied selfhood”. Sociology of Health & Illness, v. 31, n. 5:688-704. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1467-9566.2009.01158.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1467-9566.2009...
    ); Kontos et al (2011KONTOS, Pia. C. et al. 2011. “Dementia care at the intersection of regulation and reflexivity: a critical realist perspective”. Journal of Gerontology, v. 66, n. 1:119-128. Disponível em: https://doi.org/10.1093/geronb/gbq022.
    https://doi.org/10.1093/geronb/gbq022...
    ); Engel (2017ENGEL, Cíntia. 2017. “Corpos e experiências com demências: seguindo emaranhados de subjetividades e substâncias”. Anuário Antropológico, II:301-326.).
  • 27
    Ao longo da pesquisa, encontrei muitas imagens sobre doença de Alzheimer, como ensaios fotográficos, obras de arte, vídeos de campanhas de conscientização etc. Chamou-me a atenção a quantidade de rostos/retratos: mais de 70%. O discurso médico da “dissolução do self” coexiste, assim, com uma grande quantidade de rostos, gestos, expressões. Isto também me incentivou a discutir a noção de pessoa que está em jogo nos processos demenciais. Sobre os autores das fotos, temos: Susan Falzone, no ensaio “Grace”, fotografa a tia, com doença de Alzheimer. Disponível em: http://www.hypeness.com.br/2014/04/fotografo-capta-o-cotidiano-da-tia-com-alzheimer-em-serie-sombria-e-emocionante/; Alejandro Kirchuk, no ensaio “La noche que me quieras”, fotografa a avó, com doença de Alzheimer, e o avô, como cuidador. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2012/02/120214_galeria_alzheimer_pu.shtml; Alex ten Napel, no ensaio “Alzheimer”, fotografa idosos em uma Instituição de Longa Permanência, na Holanda. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2014/10/10/alex-ten-napel_n_5955594.html; Fábio Messias, no ensaio “Essa luz sobre o jardim”, fotografa o cotidiano dos avós - ele, com doença de Alzheimer; ela, como cuidadora. Disponível em: http://cargocollective.com/fabiomessias/Essa-Luz-Sobre-o-Jardim; Fausto Podavini, no ensaio “Mirella”, fotografa um casal de idosos - ele, com doença de Alzheimer, e a esposa como cuidadora. Disponível em: http://www.hypeness.com.br/2013/05/projeto-fotografico-tocante-mostra-o-dia-a-dia-de-uma-esposa-cuidando-do-marido-com-alzheimer/.
  • 28
    Tomo estética tal como Cesarino (2011): como “uma reflexão sobre a configuração dos códigos sensíveis, das imagens e das metáforas” (: 16) - para ele, que constitui o pensamento xamanístico; para mim, que constitui a doença de Alzheimer.
  • 29
    Esse comportamento estranho pode levar a ser identificado como loucura. Para Severi (2007), a loucura é interpretada em termos acústicos, com a presença de uma “voz outra” - por exemplo, a voz do animal - no corpo do doente.
  • 30
    Em alguns momentos da pesquisa, ao conversar com as pessoas em processo demencial, era comum familiares e/ou médicos fazerem sinais negativos, numa tentativa de fazer com que eu desconsiderasse aquelas falas.
  • 31
    É importante dizer que, apesar de estabelecer uma tríade entre doentes de Alzheimer, xamãs e escritores/antropólogos como uma analogia boa para pensar proximidades e distanciamentos, não considero que existe uma alteridade radical entre tais sujeitos, uma vez que coexistem e um pode vir a se tornar o outro - inclusive, um dos fantasmas de estudar este tema é a possibilidade sempre latente de que eu também poderei ser uma pessoa em processo demencial. A estratégia de pensar em “nós” e “eles”, “mundo de lá” e “mundo de cá” foi para ajudar a mapear o campo de relações aqui proposto, bem como de levar a sério o convite de Joe - “bem-vindo ao meu mundo”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2020
  • Aceito
    09 Ago 2020
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