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Domesticação contra a plantation

Domesticación contra la plantación

Domestication against the plantation

Resumo

A plantation esteve no centro do projeto colonial europeu no Caribe e em outras partes das Américas. Contudo, para que pudesse florescer como uma infraestrutura moderna, a plantation dependia de múltiplas conexões regionais e globais, assim como de um amplo espectro de interações entre humanos e mais-que-humanos. Neste artigo, me debruço sobre um conjunto de fontes coloniais, tais como relatos de viagem e romances históricos para retraçar a jornada dos porcos europeus ao Caribe. Ao olhar especificamente para este animal, com um enfoque particular sobre a ilha de Espanhola - atualmente dividida entre o Haiti e a República Dominicana - mostro como o par domesticação e feralização (ou marronage) definia ritmos de colonização ao mesmo tempo em que possibilitava o surgimento de novas e desafiadoras alianças nas margens e fraturas das paisagens coloniais - alianças que podemos chamar também de contraplantation.

Palavras-chave:
Caribe; Porcos (Sus scrofa); Plantation; Contraplantation; Alianças

Resumen

La plantación estuvo en el centro del proyecto colonial europeo en el Caribe y en otras partes de las Américas. Sin embargo, para que prosperase como una infraestructura moderna, la plantación dependía de múltiples conexiones regionales y globales, así como de una amplia gama de interacciones entre humanos y más que humanos. En este artículo, me baso en fuentes coloniales, como relatos de viajeros y novelas históricas, para remontar el viaje de los cerdos europeos al Caribe. Al enfocarme en este animal específico, con una mirada particular sobre la isla de La Española - actualmente dividida entre Haiti y República Dominicana - muestro cómo tanto la domesticación cuanto la feralización (o marronage) definieron los ritmos de colonización al mismo tiempo que permitieron el surgimiento de nuevas y desafiantes alianzas en los márgenes y fracturas de los paisajes coloniales - alianzas que podemos llamar también de contraplantación.

Palabras clave:
Caribe; Cerdos (Sus scrofa); Plantación; Contraplantación; Alianzas

Abstract

The plantation was at the center of the European colonial project in the Caribbean and other regions of the Americas. However, for it to thrive as a modern infrastructure, it depended on multiple regional and global connections as well as on a wide range of human and more-than-human interactions. In this article, I draw on colonial sources such as traveler’s accounts and historical novels to retrace the journey of European pigs to the Caribbean. Focusing on this specific animal, particularly in the island of Hispaniola - currently divided between Haiti and the Dominican Republic - I show how both domestication and feralization (or marronage) defined rhythms of colonization while allowing for the rise of new and defiant alliances at the margins and fractures of plantation landscapes - alliances we might also call counterplantation.

Keywords:
Caribbean; Pigs (Sus scrofa); Plantation; Counterplantation; Alliances

Introdução1 1 Versões anteriores deste artigo contaram com diálogos e comentários críticos de Ludmila de Souza Maia, Handerson Joseph, Marcelo Moura Mello, Renzo Taddei, Guilherme Moura Fagundes, Cristiana Bastos, Robin Derby, Caetano Sordi, Rosa Vieira, Karen Shiratori, Omar Ribeiro Thomaz, Alyne Costa, Marta Macedo, Colette Le Petitcorps, Irene Peano, Carlos Sautchuk, Luisa Pessoa, Felipe Vander Velden, Luísa Reis Castro e Federico Neiburg. A eles e elas expresso meu maior reconhecimento. Agradeço também aos dois pareceristas anônimos e à revisora Maria Lucia Resende da revista Mana pelas sugestões tão cruciais. A pesquisa que deu origem ao texto foi financiada pela Fapesp, processo n. 2019/04170-4.

Imagem 1:
Ilustração da chegada dos espanhóis e outros seres, detalhe da presença dos porcos no canto esquerdo inferior.

Destas oito porcas”, escreve Bartolomé de Las Casas (1957LAS CASAS, Bartolomé de. 1957 [1559]. História de las Indias. 2 vols. J Pérez de Tudela & Emílio Lopez Oto (eds.). Madri: Biblioteca de Autores Españoles. [1559]) em sua célebre Historia de las Indias, “multiplicaram-se todos os porcos que até hoje existiram e que hoje existem em todas as Índias, que foram e são infinitos” (vol. 1:246). O comentário hiperbólico do conhecido frade dominicano relata um fato importante associado à segunda viagem de Cristóvão Colombo às Índias Ocidentais. Em 1493, o viajante genovês trouxe consigo, entre outros animais, oito porcas. Como matrizes iniciais que povoaram a partir dali todo o continente, estas porcas deram origem, na visão de Las Casas, a todas as populações de porcos dos séculos seguintes. Com efeito, a chegada desses animais às Antilhas aconteceu de forma irregular e foi marcada por fugas, disputas por espaços com outros seres e pelo seu estabelecimento como populações ferais.

“Criaturas do império” (Anderson 2004ANDERSON, Virginia DeJohn. 2004. Creatures of Empire: How Domestic Animals Transformed Early America. New York: Oxford University Press.), sua presença foi central para os primeiros momentos da Conquista, quando piratas, caçadores, comerciantes e outros atores que Julius Scott (2018SCOTT, Julius Sherrard. 2018. The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. London: Verso.) chamou de uma “classe sem senhores” se instalavam nas diferentes ilhas e territórios da região a fim de explorar a carne e as peles desses animais que, outrora fugidos, aclimataram-se e acabaram, por ventura, mas sempre de maneira instável, se tornando animais de criação. Com o tempo e a consolidação da plantation como infraestrutura principal do sistema colonial, os porcos exerceram um papel crucial no cotidiano de populações africanas escravizadas e de seus descendentes, participando não só de uma economia produtiva que se estabelecia às margens da plantation açucareira - e que a historiografia da escravidão conhece pelo nome de brecha camponesa (Lepkowski 1970LEPKOWSKI, Tadeusz. 1970. Haiti. La Habana: Casa de las Américas.; Cardoso 1987CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. 1987. Escravo ou camponês?: o protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Editora Brasiliense.) - mas da constituição de outros futuros ecológicos.

Foi durante meu trabalho de campo nas montanhas do norte do Haiti que comecei a prestar mais atenção nesses animais, sobretudo pelo modo como muitos moradores e moradoras rurais falavam dos porcos como um índice de abundância e de liberdade. Contudo, como mostrei em outra ocasião (Bulamah 2020BULAMAH, Rodrigo C. 2020. “Pode um porco falar? Doença, sistemas e sacrifício no Caribe”. Horizontes Antropológicos, 26 (57):57-92.), os porcos se tornaram figuras espectrais cuja história foi interrompida em razão de um massacre coordenado por especialistas de diferentes partes do globo no final da década de 1970. Neste texto, aproximando etnografia e arquivo, retorno um pouco no tempo para abordar as discussões de Sidney Mintz (1989MINTZ, Sidney W. 1989 [1974]. Caribbean Transformations. New York: Columbia University Press . , 1985) sobre plantation e terrenos de provisão, repensando-as a partir de um olhar crítico sobre os animais. Para tanto, me pauto em um esforço maior, proposto por pesquisadores como Robin Derby (2011DERBY, Lauren. 2011. “Bringing the Animals Back in: Writing Quadrupeds into the Environmental History of Latin America and the Caribbean”. History Compass, 9 (8):602-21.) e Carlos Sautchuk (2018SAUTCHUK, Carlos E. 2018. “Os antropólogos e a domesticação: derivações e ressurgências de um conceito”. In: Jean Segata & Theophilos Rifiotis (eds.), Políticas etnográficas no campo da ciência e das tecnologias da vida. Porto Alegre: Editora da UFRGS. pp. 85-108.), de tentar compreender a multiplicidade de formas de animalidade e domesticação em diferentes tempos e espaços. Atento às maneiras como animais participaram da constituição de um modo de habitar colonial - estando na gênese do que Ghassan Hage (2017HAGE, Ghassan. 2017. Is Racism an Environmental Threat? Malden, MA: Polity.) chamou de domesticação generalizada - busco também evidenciar o estabelecimento de outras alianças que denomino aqui, inspirado nos trabalhos de Sylvia Wynter (1971WYNTER, Sylvia. 1971. “Novel and history, plot and plantation”. Savacou, 5: 95-102.) e Jean Casimir (2001CASIMIR, Jean. 2001. La culture opprimée. Porto-Príncipe: Lakay., 1981), de contraplantation.

Porcos, o foco deste artigo, possibilitaram um “movimento no sistema”, conectando espaços e escalas (Trouillot 1982TROUILLOT, Michel-Rolph. 1982. “Motion in the System: Coffee, Color & Slavery in 18th Century Saint-Domingue”. Review (Fernand Braudel Center), V (3):331-88.) e produzindo “efeitos múltiplos” (Cunha 2011CUNHA, Olivia Gomes da. 2011. «Multiple Effects: On Themes, Relations, and Caribbean Compositions». Review (Fernand Braudel Center), 34 (4):391-405.). Sua chegada e seu trânsito no Novo Mundo foram vistos como um excesso e sua domesticação como um problema prático e conceitual, definindo possibilidades, ritmos e movimentos da colonização, da exploração da natureza e também da resistência em sentido amplo. De fato, como espero mostrar, esses encontros inaugurais revelam o caráter indissociável da dominação ecológica e racial enquanto parte fundamental dos modos coloniais de habitar o mundo ou do que alguns preferem chamar de Plantationceno (Haraway et al. 2016HARAWAY, Donna; ISHIKAWA, Noburu; GILBERT, Scott F.; OLWIG, Kenneth; TSING, Anna L. & BUBANDT, Nils. 2016. “Anthropologists Are Talking - About the Anthropocene”. Ethnos, 81 (3):535-64.). Mais do que influenciar diretamente um ao outro, racismo e dominação ecológica se constituem mutualmente e os exemplos históricos que trarei aqui nos ajudam a superar isso que Malcom Ferdinand (2022FERDINAND, Malcom. 2022. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Trad. Letícia Mei. São Paulo: Ubu.) chama provocativamente de uma dupla fratura que separa, de um lado, a história colonial e, de outro, o pensamento ambientalista moderno.

Sobre origens, caças e criações

O fascínio contemporâneo pela velocidade, pela densidade e pelo impacto dos fluxos globais e nossa atenção excessiva ao presente talvez nos façam esquecer que a propagação mundial de animais, plantas, fungos e vírus ocorreu muito antes do que se convencionou chamar de globalização. Como nota Sidney Mintz (2001MINTZ, Sidney W. 2001. “Comida e Antropologia: Uma Breve Revisão”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 16 (47).:33),

A difusão do milho, da batata, do tomate e da pimenta-do-reino, da mandioca e do pimentão, do amendoim e da castanha, tanto no Novo quanto no Velho Mundo, não precisaram de transporte aéreo, de cientistas de aventais brancos, do McDonald’s, nem da engenharia genética - nem tampouco de propaganda, e muito menos de antropólogos - e começou a acontecer há quinhentos anos.3 3 Esta e outras traduções que seguem são de minha autoria.

Esse grande intercâmbio a que se refere o antropólogo, denominado “troca colombiana” por Alfred Crosby (1972CROSBY, Alfred W. 1972. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport: Greenwood Pub. Co.), foi o que trouxe as primeiras espécies de porcos à ilha de Espanhola, hoje dividida entre Haiti e República Dominicana, onde foi fundado o primeiro povoado colonial europeu no Novo Mundo. Foi durante a expansão europeia e a posterior Conquista que se constituíram as fases iniciais desse “momento atlântico”, definido por Trouillot (2003TROUILLOT, Michel-Rolph. 2003. Global Transformations: Anthropology and the Modern World. Nova York: Palgrave Macmillan. ) como o primeiro momento da globalidade, no qual se desenvolveu uma “contínua centralidade do Atlântico como a porta giratória de grandes fluxos globais ao longo de quatro séculos” (:29).

No período das navegações europeias às Índias, embarcações carregavam parte da alimentação dos tripulantes que, entre um porto e outro, passavam longos períodos em alto-mar. Com o surgimento dos primeiros núcleos de povoamento europeu no Caribe e nas Américas, animais vindos do velho continente eram utilizados como formas de proteção, no caso dos cães, ou formaram as primeiras criações, como vacas, porcos e cavalos, servindo assim ao intuito, por vezes frustrado, de europeização das paisagens transformando-as em algo cada vez mais familiar aos colonizadores (Alves 2011ALVES, Abel A. 2011. The Animals of Spain: An Introduction to Imperial Perceptions and Human Interaction with Other Animals, 1492-1826. Boston: Brill.; Crosby 1986CROSBY, Alfred W 1986. Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe, 900-1900. Cambridge: Cambridge University Press.; Johnson 2012JOHNSON, Sara E. 2012. The Fear of French Negroes: Transcolonial Collaboration in the Revolutionary Americas. Berkeley: University of California Press.). Os animais nativos, por sua vez, causavam fascínio e foram objeto de descrições detalhadas, contribuindo para a construção de uma visão edênica do Novo Mundo (Paravisini-Gebert 2008PARAVISINI-GEBERT, Lizabeth. 2008. “Endangered Species: Caribbean Ecology and the Discourse of the Nation”. In: Displacements and Transformations in Caribbean Cultures. Gainesville: University Press of Florida. pp. 8-23.).

Ao lado de tais esforços contemplativos, a caça e a criação eram paradigmas cruciais nessas interações. Segundo a historiadora Marcy Norton (2013NORTON, Marcy. 2013. “Animals in Spain and Spanish Americas”. In: Kenneth Mills & Evonne Levy (eds.), Lexikon of the Hispanic Baroque: Transatlantic Exchange and Transformation. Austin: University of Texas Press . pp. 17-23. ), enquanto uma extensão de práticas comuns à Europa, a fauna nativa do Caribe e das Américas, durante os princípios da expansão espanhola, foi encarada segundo estes dois prismas: o da caça, atividade nobre e elitizada, e o da criação, atividade relegada aos plebeus. A adoção, prática ameríndia correntemente descrita por viajantes e agentes coloniais, era, portanto, um enigma. Como afirma a autora, “a adoção ameríndia correspondia às formas de vida social e de conflito intergrupal tal como a caça e a criação europeias o eram em relação ao governo e à guerra” (:22).

Para as longas viagens marítimas rumo ao Novo Mundo, os porcos eram animais ideais, pois constituíam importantes fontes de carne e gordura e eram onívoros, não exigindo uma alimentação especial. Ademais, mesmo submetidos a intensas formas de confinamento, desconforto e sofrimento, conseguiam sobreviver a grandes travessias (Donkin 1985DONKIN, Robin Arthur. 1985. The Peccary: With Observations on the Introduction of Pigs to the New World. Philadelphia: The American philosophical Society.). Como observa o abade Guillaume-Thomas Raynal (1770RAYNAL, Guillaume-Thomas. 1770. Histoire philosophique et politique des établissemens et du commerce des européens dans les deux Indes. Tomo 3. Vol. A. Amsterdam: s.n.), na segunda metade do século XVIII:

A América, no tempo da descoberta, não possuía nem porcos, nem cabras, nem bois, nem cavalos, nem mesmo qualquer animal doméstico. Colombo trouxe alguns desses animais úteis a São Domingos, de onde eles se espalharam por todos os lados [...]. E se multiplicaram prodigiosamente. Contam-se aos milhares os animais de chifres cuja pele se tornou o objeto de uma exportação considerável. Os cavalos degeneraram, mas sua qualidade é compensada pelo número. A banha de porcos ocupa o lugar da manteiga (:53, grifos meus).4 4 Pode-se consultar também a descrição feita por Louis-Élie Moreau de Saint-Méry (1958 [1796], tomo 1:67-78) sobre os rebanhos (hattes) e os diferentes animais, particularmente, as complexas classificações feitas pelos espanhóis segundo seu comportamento. O trabalho mais completo sobre a difusão dos porcos no Caribe e nas Américas, que traz ainda uma atenção especial aos pecaris e a outros animais nativos, é o de Donkin (1985:41-47).

Imagem 2:
Porcos (Sus scrofa domesticus) no Novo Mundo.

De fato, como comenta Bartolomé de Las Casas, Cristóvão Colombo, em 1493, ao parar no porto de La Gomera, nas Ilhas Canárias, embarcou, junto a outros bichos, oito porcas. Possivelmente observando esses mesmos animais de perto na própria ilha de Espanhola, onde começou a escrever sua História de las Indias, Las Casas nota que os primeiros espécimes trazidos por Colombo viriam a formar as primeiras criações do Caribe, multiplicando-se de tal modo a garantir, como já mencionado, a existência de “todos os porcos que até hoje existiram e que hoje existem em todas as Índias, que foram e são infinitos” (Las Casas, 1957 [1559], vol. 1:246).

Em São Domingos, denominação francesa para a ilha, essa abundância de que fala o frade, ou a “multiplicação prodigiosa”, conforme Raynal, ocorreu, em grande parte, entre os séculos XVI e XVII quando a ilha inteira era colônia espanhola e rebanhos de animais, como porcos, cabras, bois e cavalos, além de cachorros, abandonados ou fugidos, tornaram-se ferais. Marrons, maroons ou cimarróns ou ainda montarazes (do espanhol montes), como os classificavam os cronistas da época, esses animais se multiplicaram, sobretudo em razão de interações propícias com as novas paisagens. A geografia montanhosa do interior da ilha, imprópria à economia de plantation, a falta de predadores naturais e a vegetação densa tiveram um peso notável nessa expansão, além, é claro, da baixa densidade humana e de instabilidades políticas próprias à colonização espanhola (Digard 1992DIGARD, Jean-Pierre. 1992. «Un aspect méconnu de l’histoire de l’Amérique: la domestication des animaux». L’Homme, 32 (122-124):253-70.).

O termo marronage revela a maneira como animais foram classificados e imaginados no processo colonial de domesticação da natureza. Cimarrón, como explica Tardieu (2006TARDIEU, Jean-Pierre. 2006. «Cimarrón-Maroon-Marron: note épistemologique». Outres-mers, 93 (350-351):237-47.), resolvendo uma questão que percorre a literatura sobre o tema, é um termo de origem arawak cujo significado original é fugitivo, mas que foi incorporado ao léxico colonial de diferentes impérios para definir plantas, animais nativos e tudo aquilo que escapava do domínio europeu no sentido prático, de fuga, mas também ontológico, de algo que era externo à ordem europeia e, por isso, feral.5 5 Jean-Pierre Tardieu (2006) identifica no texto do cronista Gonzalo Fernández de Oviedo, Historia General y Natural de las Indias, de 1535, o primeiro registro da origem arawak do termo (:246). Antes disso, em dezembro de 1531, em Santo Domingo, capital da ilha de Espanhola, uma circular municipal tratava da necessidade de se criarem patrulhas para perseguir indígenas e negros “cimarrones” (:240). Como destaca o autor, levaram algumas décadas para que o termo chegasse aos registros reais para tratar de negros e indígenas “huidos y alzados por los montes” em outras partes das Américas e do Caribe espanhóis. Já o termo marronage aparece de maneira mais evidente na documentação francesa a partir do século XVIII, quando uma porção ocidental da ilha de Espanhola já havia passado ao domínio francês, sendo renomeada São Domingos, para logo se tornar uma das mais lucrativas colônias açucareiras do Caribe. Ver, por exemplo, Labat (1742:193-194). Sobre o tema da feralização, ver também Sordi e Lewgoy (2017). Com o tempo, o termo marronage passou também a ser utilizado para definir indígenas, negros e negras que evadiam do cativeiro, como na expressão francesa partir marron, utilizada em anúncios de jornal visando à busca por escravizados fugidos.6 6 Uma das traduções possíveis da palavra marronage, que subscrevo, é quilombismo (ou aquilombamento). Quilombola, termo de origem kimbundu, era utilizado na América portuguesa para definir os escravizados fugidos. A palavra cognata marrano, em língua portuguesa, ficou restrita aos animais e aos judeus conversos. Recentemente, traduções brasileiras de livros de autores caribenhos, como de Édouard Glissant (2021), de Malcom Ferdinand (2022) e a peça de Aimé Césaire (Césaire 2016), têm empregado quilombismo (e suas variações) como tradução direta de marronage, aproximando processos de fuga em diferentes contextos do Atlântico Negro. Sobre este tema, ver ainda o texto recente de Díaz-Benítez e Rangel (2022). Essa contiguidade linguística entre animais e africanos escravizados e entre feralização e fuga é inclusive um indício de como a domesticação, em um sentido mais estrito, opera, segundo a célebre formulação de Keith Thomas (1983THOMAS, Keith. 1983. Man and the Natural World: A History of the Modern Sensibility. Nova York: Pantheon Books.), como um “padrão arquetípico de outras formas de subordinação social” (:46).

Com efeito, tal extensão semântica é um exemplo da domesticação generalizada definida por Hage (2017HAGE, Ghassan. 2017. Is Racism an Environmental Threat? Malden, MA: Polity.) como uma forma estruturante de um modo de habitar o mundo que opera por metáforas de animalização e pauta o pensamento racista e as formas de exploração da natureza. Para o autor, mais do que revelar um sistema classificatório, “as metáforas encarnam uma orientação prática” (:10). Nesse sentido, se no centro do sistema escravista e da plantation estava a busca pela imobilidade da mão de obra, conferir aos negros e às negras o estatuto de seres ferais (marrons) naturalizava a caça, a captura, a punição e a morte (Brown 2010BROWN, Vincent. 2010. The Reaper’s Garden: Death and Power in the World of Atlantic Slavery. Cambridge, MA: Harvard University Press.).

Como em outras colônias espanholas das Antilhas, a ocupação da ilha de Espanhola passou de uma concentração das atividades em torno das minas de ouro - empregando trabalho de nativos arawaks, de europeus sob contrato e de africanos escravizados - para um ciclo localizado de produção de açúcar, que durou até princípios do século XVII (Mintz 2003MINTZ, Sidney W. 2003. “Era o escravo de plantation um proletário?”. In: Christine Dabat (ed.), O poder amargo do açúcar: produtores escravizados, consumidores proletarizados. Recife: Editora Universitária UFPE. pp. 117-146.). A efetiva passagem para uma economia de plantation só viria a acontecer tardiamente nos domínios espanhóis, diferentemente do que se desenhava nos outros territórios coloniais do Caribe e das Américas. Como nota o historiador Juan Giusti-Cordero (2009)GIUSTI-CORDERO, Juan. 2009. “Beyond sugar revolutions: rethinking the Spanish Caribbean in the seventeenth and eighteenth century”. In: Aisha Khan, George Baca & Stephan Palmié, Empirical Futures: Anthropologists and Historians Engage the Work of Sidney W. Mintz. Chapel Hill: University of North Carolina Press . pp. 58-83.:

Um Caribe relativamente coerente ganhou forma a partir da conversão de territórios insulares em plantations pertencentes à Inglaterra, França, Holanda e Dinamarca que se tornaram colônias densamente povoadas, a maioria por escravos africanos, ao mesmo tempo em que interagiam com regiões mais extensas e selvagens que conformavam as ilhas espanholas; e, de fato, por vezes conquistando ou tentando conquistar essas mesmas áreas selvagens (:66).

Mais importante do que o açúcar era exatamente a exploração de produtos de origem animal, seja de rebanhos ou daqueles oriundos da caça, além da pesca de pérolas, da produção de gengibre, de tabaco e da extração de madeiras e de sal para a produção do arenque salgado do Mar Báltico. Apesar das ocupações esparsas, o Caribe era, com efeito, alvo de uma constante atenção da Coroa espanhola devido ao imenso fluxo de riquezas oriundo das produções locais e das demandas por commodities europeias e por africanos escravizados (Giusti-Cordero 2009GIUSTI-CORDERO, Juan. 2009. “Beyond sugar revolutions: rethinking the Spanish Caribbean in the seventeenth and eighteenth century”. In: Aisha Khan, George Baca & Stephan Palmié, Empirical Futures: Anthropologists and Historians Engage the Work of Sidney W. Mintz. Chapel Hill: University of North Carolina Press . pp. 58-83.).

Variações, disputas e brechas nos processos de ocupação e subsequente intensificação da produção, somadas a doenças diversas e a uma pluralidade de animais e outros seres, nativos, africanos e europeus, garantiram o desenvolvimento de uma “ecologia crioula” (McNeill 2010McNEILL, John Robert. 2010. Mosquito Empires: Ecology and War in the Greater Caribbean, 1620-1914. New Approaches to the Americas. New York, N.Y: Cambridge University Press.) que, apesar da preponderância econômica e social da plantation e da monocultura, abriu espaço para a produção de um mundo social completamente novo. Porcos europeus, junto com outros mais-que-humanos, se tornaram parte de um conjunto de recursos comuns que orientaram as primeiras ocupações e os esforços coloniais. Esses seres tomaram parte no estabelecimento de formas de vida que Malcom Ferdinand (2022FERDINAND, Malcom. 2022. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Trad. Letícia Mei. São Paulo: Ubu.) denomina de “habitar colonial”, um modo de habitar o planeta baseado em formas de violência racial e na dominação ecológica na qual a plantation era a infraestrutura principal. De fato, o termo em francês para plantation, habitation, enfatiza exatamente uma dimensão excludente, já que apenas os colonos brancos europeus eram sujeitos de direito, como lembra Sybille Fischer (2016FISCHER, Sibylle. 2016. “Inhabiting Rights”. L’Esprit Créateur, 56 (1):52-67.), e por isso lhes era permitido ter uma vida digna no espaço colonial - daí o emprego comum do habitan (habitante) para defini-los.7 7 Após a independência do país, nota Fischer (2016), abitan (em crioulo haitiano) ganhou outros sentidos, sendo retomado para falar de todos os cidadãos da nação recentemente liberta. Com o tempo, abitan se tornou um termo específico para tratar de pessoas originárias do mundo rural haitiano, algo que pode ganhar tons pejorativos, sobretudo quando enunciados por pessoas do meio urbano (moun lavil), consideradas as “mais capazes” ou civilizadas (moun kapab). Paradoxalmente, enquanto os animais crioulos forjavam paisagens coloniais no Novo Mundo, porcos também garantiram novas formas de vida baseadas exatamente no que era incomum (de la Cadena & Blaser 2018CADENA, Marisol de la & BLASER, Mario (orgs.). 2018. A World of Many Worlds. Illustrated edition. Durham: Duke University Press.), estabelecendo outras ecologias agrícolas nas margens e nas fraturas da “máquina da plantation” (Burnard & Garrigus 2016BURNARD, Trevor & GARRIGUS, John. 2016. The Plantation Machine: Atlantic Capitalism in French Saint-Domingue and British Jamaica. Filadélfia: University of Pennsylvania Press. ).

Nesse ponto, a ordem agroindustrial da plantation caribenha e, poderíamos acrescentar, americana em geral, ia muito além do esforço de controle e alienação generalizada que define algumas leituras clássicas e contemporâneas sobre a plantation (Thompson 2013THOMPSON, Edgar T. 2013. The Plantation. George Baca & Sidney W. Mintz (eds.). Columbia: University of South Carolina Press.; Wolf & Mintz 1957WOLF, Eric R. & MINTZ, Sidney W. 1957. “Haciendas and Plantations in Middle America and the Antilles”. Social and Economic Studies, 6 (3):380-412.). Anna Tsing (2015TSING, Anna Lowenhaupt. 2015. Mushroom at the End of the World: On the Possibilities of Life in Capitalist Ruins. Princeton: Princeton University Press.), por exemplo, utiliza a plantation açucareira que marcou o Brasil Colônia como um exemplo prototípico para ilustrar sua definição de escalabilidade: um projeto que encontrava espaço para se reproduzir em diferentes escalas exatamente por sua estrutura imutável, que, por sua vez, dependia de “poucas relações interespécies” e “era comparativamente autocontida [e] avessa aos encontros” (:39). Mais do que isso, continua a autora destacando comparativamente o lugar dos africanos escravizados neste projeto: “sem relações sociais locais e, por isso, sem rotas estabelecidas de fuga”, “[c]omo a própria cana-de-açúcar, que não tinha histórias partilhadas com espécies companheiras ou relações com enfermidades no Novo Mundo, [as pessoas escravizadas] estavam isoladas” (:39). Contudo, mesmo diante dessa imensa violência, pessoas escravizadas encontravam possibilidades de recriar suas vidas e seus mundos nas margens da plantation orientadas, como veremos, por uma brecha camponesa (Lepkowski 1970LEPKOWSKI, Tadeusz. 1970. Haiti. La Habana: Casa de las Américas.:58-60), entendida como uma experiência social distinta da sujeição à ordem escravocrata.

De fato, em todo o Caribe, entre os séculos XVII e XVIII, riquezas diversas e a própria caça a esses animais ferais atraíram a presença de piratas, contrabandistas, comerciantes e aventureiros - de origens sociais e territoriais as mais distintas (Scott 2018SCOTT, Julius Sherrard. 2018. The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. London: Verso.). Havia grande ambiguidade na prática de roubo e contrabando, sempre ocupando uma posição dúbia entre a legalidade e a ilegalidade, e o rescate (como eram denominadas essas atividades) tornou-se algo rentável a ponto de orientar trocas, circulações, conflitos e guerras na região (Andrews 1978ANDREWS, Kenneth Raymond. 1978. The Spanish Caribbean: Trade and Plunder, 1530-1630. New Haven: Yale University Press.). Conhecidos como bucaneiros, em razão da prática indígena de defumação das carnes de caça, chamada de barbacoa entre os Arawak (que deu origem ao boucan, em francês), ou flibusteiros (possivelmente derivado de “barcos leves”, vrijbuiter, em holandês), piratas e comerciantes ocupavam por longos períodos ilhas e regiões específicas do arquipélago, como a ilha da Tartaruga (Île de la Tortue), na costa noroeste de São Domingos.8 8 Sobre a ilha da Tartaruga, ver o trabalho de Manuel Arturo Peña Batlle (1988 [1951]). Este ilustre nacionalista, advogado, historiador e diplomata dominicano, foi um dos ideólogos da modernização da fronteira entre o Haiti e a República Dominicana. Abdicou do cargo quando Rafael Leónidas Trujillo chegou ao poder, em 1930, mas retomou sua função em 1942 para consolidar o processo que ficou conhecido localmente como “dominicanización de la frontera”. Foi posteriormente diplomata em Porto-Príncipe, em um acordo entre o presidente Dumarsais Estimé e Trujillo, no qual o intelectual Jean Price-Mars foi nomeado para a mesma função em Santo Domingo (Vega 2010:487). Parte de seu acervo pessoal está na biblioteca do Museu Fernando Peña Defilló, na capital dominicana, dedicado ao importante pintor dominicano, filho de Peña Batlle. Ali estão expostos ainda dois exemplares das pedras esculpidas utilizadas na demarcação da fronteira. O romance histórico de Jules Lecomte (1837LECOMTE, Jules. 1837. L’Île de la Tortue: roman maritime, vol. 1 - Histoire des flibustiers. Paris: Hyppolite Souverain. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k56864353.
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k56...
), L’Île de la Tortue: roman maritime, ilustra bem esse momento, trazendo descrições de costumes de caça, casamentos homoafetivos e trocas entre piratas, corsários e grupos de comerciantes que, à época, podiam ou não estar vinculados aos grandes impérios. Comparando-os com os colonos (habitans), o autor assim destaca:

Os colonos foram aqueles cuja atitude se pareceu mais apropriada às construções e às plantações; as gentes de costumes e temperamentos pacíficos. Os bucaneiros se declaravam caçadores; a busca por bovinos e porcos nos bosques de São Domingos, a preparação dos couros e das carnes salgadas que constituíam suas ocupações diárias ofereceram mais tarde, à sociedade, os primeiros elementos de suas trocas e de seu comércio. [...] Por fim, os flibusteiros ou corsários formavam a terceira classe dos aventureiros, multiplicando seus ataques aos barcos espanhóis (:18-20, grifos meus).

A caça aos bois e porcos ferais e o comércio de seu couro e de sua carne constituíram assim as atividades centrais de piratas e aventureiros. Se estes e outros animais foram cruciais à expansão inicial dos europeus nas ilhas do Caribe e no continente americano, sendo um exemplo daquilo que a historiadora Alida Metcalf (2005METCALF, Alida C. 2005. Go-Betweens and the Colonization of Brazil, 1500-1600. Austin: University of Texas Press.) chamou de intermediários (go-betweens), as posteriores fuga, adaptação e reprodução de espécies europeias propiciaram a ocupação e a formação de núcleos de povoamento e de postos de comércio em diversas partes da região. Além disso, a presença desses animais motivou também o próprio assentamento de bucaneiros e corsários, que passaram a criá-los para a venda de carnes e para o uso em transportes e máquinas à tração, tornando-se eles mesmos grupos sedentários (Oexmelin 1930OEXMELIN, Alexandre. 1930. Les Aventuriers et les Boucaniers d’Amérique, par Alexandre Oexmelin, chirurgien des aventuriers de 1666 à 1672. Bertrand Guégan (ed.). Paris: Aux Editions du Carrefour. , cap. 5). Foi exatamente a constituição de povoados na parte ocidental da ilha de São Domingos, sobretudo por grupos de franceses, que motivou a cessão da porção oeste à Coroa francesa em 1697 pelo tratado de Ryswick. Todavia, entre as duas colônias, manteve-se intensa a circulação de comerciantes, animais e riquezas, além de conflitos pontuais.

Particularmente ao longo da costa norte de São Domingos, nota um viajante no final do século XVIII, “[o]s bosques são o asilo de porcos ferais [cochons marons]”. É o célebre jurista, natural da Martinica, Louis-Élie Moreau de Saint-Méry quem faz esta observação, acrescentando uma descrição sobre a geografia do norte da ilha e a sua ocupação (Moreau de St-Méry 1958 [1796], tomo 1:175). À exceção de vilarejos como Monte-Cristi, Puerto-Plata e Samaná, “a porção Norte da parte espanhola é quase inabitada” (:207). “Contudo”, continua o cronista, “todos os terrenos próximos ao mar são concedidos [pela Coroa], não em pequenos lotes, [...] mas em grandes porções. Em alguma medida é para a pesca que tais concessões são solicitadas, mas mais ainda para a caça ao porco feral” (:207, grifos meus). As interações entre caçadores, cães, porcos e plantas chamam a atenção de Moreau de St-Méry, que as descreve em detalhes (:207-208, grifo removido):

O tempo dessa caçada é aquele no qual uma espécie de palmeira começa a dar grãos em cachos e pelos quais o animal nutre um gosto particular. Um espanhol, se está sozinho, vai armado de uma lança, uma machete e de uma faca às partes do bosque onde estão as palmeiras, acompanhado de alguns cães, que, ao verem o porco feral se juntam à sua volta e começam a latir até que o caçador o mate com sua lança. A besta é aberta e esvaziada, dispensam-se a cabeça e os pés e o caçador se ocupa somente do corpo que ele corta em partes a fim de facilitar o transporte.

Quando os caçadores partiam coletivamente, continua o jurista (:208, grifo no original):

eles escolhem um lugar onde acreditam que a caça será abundante; e ali constroem uma pequena barraca ou ajoupa, coberta de trapos ou de folhas de palmeira e dispõem várias lanças com espetos para salgar e secar as metades dos porcos ferais ou para empilhá-las quando estão prontas. É muito comum que o transporte se faça pelo mar, ao menos quando se trata de uma caça considerável.

Essa dinâmica - individual ou coletiva, de caça, secagem e salgamento da carne, seu transporte e comércio - dominava a economia do norte da ilha de Espanhola e fazia da fronteira entre a colônia de São Domingos e a Capitania Geral de Santo Domingo um espaço bastante fluido. Diferente da pujante sociedade colonial que o cronista observara no lado ocidental, Moreau de St-Méry traz à vista a situação de penúria na porção espanhola da ilha. Ao falar do povoado de Cotuy, próximo às minas de ouro da província do Cibao, o autor afirma que a região, no começo do século XVIII, “não se encontrava em um estado de menor abandono e miséria, tal como a Parte Espanhola em geral” (:213). Os colonos pobres dessa região, “descendentes de proprietários europeus primitivos”, a maioria franceses, por possuírem um título ou ação de concessão, eram conhecidos como “acionários” (actionnaires) e raramente eram contados nos recenseamentos coloniais.

A formação topográfica dessa porção da ilha tornava-a pouco adaptada à agricultura de larga escala, diferentemente da parte noroeste, como a Planície do Norte (Plaine du Nord), onde ficava o Cabo Francês, capital da colônia francesa. Restava aos moradores da região centro-nordeste a atenção ao rebanho, que deveria ser limitado em quantidade, e à caça ou monteira, permitida em dias específicos.

Imagem 3:
“Mapa da ilha de São Domingos confeccionada para a obra de M. L. E. Moreau de St Méry”, por L. Sonis e Vallance, 1796. Cabo Francês destacado em amarelo e Cotuy, em vermelho.

“É à educação de animais, sobretudo de porcinos, que os habitantes de Cotuy se dedicam quase exclusivamente, e esses animais necessitam de cuidados intensos” (:214), destaca Moreau de St-Méry. Havia uma tensão constante entre doma e selvageria, pois mesmo com uma atenção dedicada à alimentação e ao cuidado, os porcos “atraídos aos bosques na esperança de encontrarem raízes, frutos e insetos [...] nem sempre retornam [à casa] pela noite, se alongando ao ponto de tornarem-se selvagens e, por vezes, em elevado número” (:215). Triste destino daquele que os cria, “constantemente traído em sua espera, limita-se a caçar aqueles que acreditava ter domado” (:215). Esses relatos revelam que a domesticação era, de fato, um problema tanto prático quanto metafísico durante os momentos iniciais da formação do Atlântico. Enquanto algo instável, a domesticação expressava não só dimensões pastoris de controle, mas também práticas cinegéticas (ver Sautchuk 2018SAUTCHUK, Carlos E. 2018. “Os antropólogos e a domesticação: derivações e ressurgências de um conceito”. In: Jean Segata & Theophilos Rifiotis (eds.), Políticas etnográficas no campo da ciência e das tecnologias da vida. Porto Alegre: Editora da UFRGS. pp. 85-108.).

Tais instabilidades entre criação e caça faziam parte fundamental de uma economia baseada no aprovisionamento, que se associava, direta ou indiretamente, às zonas de plantation do Caribe, tanto por mar, em circuitos de troca entre as ilhas, quanto por terra, como no caso da ilha bipartida de São Domingos ou Espanhola. Tal disparidade foi, de fato, encarada por muitos historiadores como o indício de um atraso particularmente marcante nas colônias espanholas nas Antilhas. Não tendo seguido em direção ao “complexo da plantation”, de que fala Philip Curtin (1990CURTIN, Philip D. 1990. The Rise and Fall of the Plantation Complex: Essays in Atlantic History. Cambridge: Cambridge University Press .), nem passando pela “revolução da plantation”, nos termos de Ira Berlin (1998BERLIN, Ira. 1998. Many Thousands Gone. The First Two Centuries of Slavery in North America. Cambridge: Belknap Press.), essas colônias, particularmente entre os séculos XVII e XVIII, parecem ter ficado à margem da história (ou da historiografia), como argumenta de modo convincente Juan Giusti-Cordero (2009)GIUSTI-CORDERO, Juan. 2009. “Beyond sugar revolutions: rethinking the Spanish Caribbean in the seventeenth and eighteenth century”. In: Aisha Khan, George Baca & Stephan Palmié, Empirical Futures: Anthropologists and Historians Engage the Work of Sidney W. Mintz. Chapel Hill: University of North Carolina Press . pp. 58-83..9 9 É consenso que a plantation encontra seu lugar no Caribe espanhol em um momento tardio se comparado às colônias britânicas, francesas e holandesas. No caso de Cuba, isso se dá somente no final do século XVIII; em Porto Rico, a partir de 1820 e, na República Dominicana, já não tendo relação direta com a escravidão atlântica, em princípios do século XX (Giusti-Cordero 2009:59-60). Entretanto, a atenção aos animais e às suas interações com humanos pode trazer um importante questionamento a essas conclusões excessivamente esquemáticas e por vezes pouco atentas às conexões transcoloniais e aos fluxos que ligavam diferentes espaços sem necessariamente passar pela metrópole (Johnson 2012JOHNSON, Sara E. 2012. The Fear of French Negroes: Transcolonial Collaboration in the Revolutionary Americas. Berkeley: University of California Press.). A importância econômica do Caribe espanhol, mesmo não tendo se orientado inicialmente à plantation, estimulava tentativas de ataque, guerras e invasões por parte de outras potências coloniais europeias. E tais iniciativas ocorreram não sem uma resposta por parte da Coroa hispânica.

Cartografias de guerra e domesticação

Ao descrever os colonos franceses do norte de São Domingos, Moreau de Saint-Méry (1796, tomo 1) fala de uma “reprovação dos costumes grosseiros e do caráter pouco social” dos habitantes de Cotuy. “Talvez”, continua o jurista, “o hábito de uma vida cujos cuidados têm quase sempre animais como objeto a faz adquirir certa rudeza que choca aqueles que não a compartilham” (:216). Mas pode ainda ser tal traço o resultado de uma história de disputas por territórios, algo que se fazia por meio da participação de animais como agentes disso que Vincent Brown (2020BROWN, Vincent. 2020. Tacky’s Revolt: The Story of an Atlantic Slave War. Cambridge, MA: Harvard University Press .) chamou de uma “cartografia da guerra atlântica”: “Talvez haja ainda uma precaução nesse julgamento, próprio aos franceses que ainda se lembram, um século depois, do massacre de seus compatriotas em Samaná” (Moreau de St-Méry 1796, tomo 1:216). Moreau de St-Méry se refere aqui às ravages ou devastaciones: massacres de criações ou populações inteiras de animais com o objetivo de realocar ou expulsar os ocupantes da região em finais do século XVII (ver Moya Pons 2007:40-43MOYA PONS, Frank. 2007. History of the Caribbean: Plantations, Trade, and War in the Atlantic World. Princeton: Markus Wiener Publishers.). O resultado, contudo, sempre se mostrou bastante insuficiente.

A colônia francesa de São Domingos foi se compondo, assim, a partir de um conjunto de interações sociais, materiais e ecológicas nas quais as criações serviam para suprir o transporte e o trabalho mecânico na plantation e, junto à caça, forneciam carne e couro às colônias e, não raro, também às metrópoles. Com efeito, esses animais vinham não só do território espanhol contíguo, Santo Domingo, mas também de ilhas como Porto Rico e da parte oriental de Cuba - trocas que, muitas vezes, eram resultado de contrabando (Giusti-Cordero 2014GIUSTI-CORDERO, Juan. 2014. “Sugar and Livestock: Contraband Networks in Hispaniola and the Continental Caribbean in the Eighteenth Century”. Revista Brasileira do Caribe, XV (29):13-41.). Já em princípios do século XVIII, como declarou o governador de Cabo Francês, Monsieur de Charitte, “[Os espanhóis] sabem que, em relação às nossas plantações de açúcar, não podemos prescindir de seu gado, já que nossos rebanhos não estão suficientemente povoados para sacarmos deles o que temos necessidade...”.10 10 Citado em Moya Pons (1977:233). Como nota o autor em outra obra (Moya Pons 2007), “In 1702 the Spanish exports of livestock, horses, and hides to the French colony increased to 50,000 escudos annually. This trade defined the relationship between the two colonies for the next ninety years and helped foster the sugar revolution in Saint-Domingue in the eighteenth century” (:94).

Imagem 4:
“Mapa itinerário das duas rotas principais entre Cabo Francês à vila espanhola de Santo Domingo”, confeccionado por Daniel Lescalier (1764).

Animais eram uma importante energia motriz e operavam particularmente na tração das moendas de cana-de-açúcar, no transporte, no preparo das terras para o cultivo e compunham a dieta de colonos franceses, de libertos e dos próprios escravizados. Nesse sentido, se os rebanhos eram fornecidos por criadores da parte oriental da ilha e de outros territórios caribenhos, a força de trabalho humana vinha de muito mais longe. Para suprir a crescente demanda europeia por açúcar e por outros produtos tropicais, como café, cacau e índigo, a sociedade colonial em formação tornava-se cada vez mais dependente do trabalho de africanos sujeitos à violência do tráfico e da escravidão.11 11 Desde o importante trabalho de Eric Williams (2012), sabemos que a montagem do sistema escravista no Caribe inglês ocorreu a partir de escolhas econômicas que, inicialmente, se valiam da captura e do desterro de grupos marginalizados ou dissidentes políticos e religiosos (que incluía prisioneiros irlandeses além de mulheres e crianças) para então submetê-los a formas de engajamento e cativeiro. “Essa política era seguida de maneira tão sistemática”, sublinha o autor, “que a língua inglesa ganhou um novo verbo de ação: ‘barbadoar’ (to barbadoes) alguém” (:42). Porém, é a partir do emprego sistemático de mão de obra africana que a plantation começou a ganhar uma dimensão infraestrutural e, daí em diante, a racialização passou a definir novas formas de hierarquização e violência. Sobre isso, ver o pioneiro trabalho de E. T. Thompson (2013) e as discussões recentes propostas por Cristiana Bastos (2020). Já sob o domínio francês desde o final do século XVII, o terço ocidental da ilha de Espanhola passou a receber gradativamente uma quantidade massiva de africanos escravizados, o que alterou enormemente a composição social e a paisagem da ilha. Se é fato que estatísticas sobre o número de escravizados devem ser encaradas com cautela, elas nos fornecem uma imagem aproximada da sociedade colonial da época. Para se ter uma ideia, em 1700, registrou-se uma população de 9.082 escravizados em São Domingos em face de um grupo de algumas centenas de brancos. Já em meados do século XVIII, acompanhando a expansão drástica do açúcar, a população escravizada chegou a aproximadamente 150.000, enquanto os brancos não passavam de 14.000. No final do século, já próximos à Revolução Haitiana, 90% da colônia era composta por escravizados (Dubois 2004DUBOIS, Laurent. 2004. Avengers of the New World: The Story of the Haitian Revolution. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press.:19).

Porcos e outras espécies tiveram um peso central na produção dessa nova paisagem e influenciaram viajantes, piratas, colonos e africanos escravizados, motivando ocupações e disputas e interagindo de maneiras diversas com a sociedade colonial e as divisões de classe e raça que passaram a constituí-la. Porém, estas interações iam muito além do espaço da plantation. No final do século XVIII, o relato de um certo Crublier de Saint-Cyran (1790)CRUBLIER DE SAINT-CYRAN, Paul-Edme. 1790. Réfutation du projet des amis des noirs, sur la suppression de la traite des nègres et sur l’abolition de l’esclavage dans nos colonies. Paris: Imprimerie de Devaux., opondo-se às teses abolicionistas da recém-criada Sociedade dos Amigos dos Negros de Paris (Société des Amis des Noirs de Paris), fala das casas e parcelas geridas por famílias escravas em São Domingos, cuja condição de trabalho era “geralmente menos dura do que a dos operários na França” (:4). Ademais, completa o viajante, “não há nenhum [escravizado] que não possua uma casa e terras para si e para os seus, que não tenha frangos, porcos e outras propriedades, sempre cuidadosamente respeitados pelo senhor...” (:5).12 12 Sobre a Société des Amis des Noirs e o processo de abolição na França e em suas colônias, ver Trouillot (2016:134 et passim), Dubois (2004:61-90), Sala-Molins (2008 [1992]) e Buck-Morss (2011).

Relatos de autoridades coloniais ou viajantes como este devem ser encarados com cautela. De Saint-Cyran reproduz, em sua descrição, um tema que passou a ser conhecido como a “hipótese do escravo feliz”, algo que ganhava terreno em discussões e círculos metropolitanos (Pálsson 2016PÁLSSON, Gísli. 2016. The Man Who Stole Himself: The Slave Odyssey of Hans Jonathan. Trad. Anna Yates. Chicago and London: The University of Chicago Press. ). Ademais, esses relatos, além de terem sido produzidos em condições de extrema violência, repressão e expropriação de populações negras escravizadas, tinham objetivos políticos específicos dentro do debate abolicionista que se constituía em diversas partes do Atlântico. Porém, é nas frestas dessas mesmas fontes históricas que podemos encontrar importantes observações que, apesar de insuficientes, se lidas a contrapelo, fornecem fragmentos das formas de socialidade, concepções e práticas cotidianas de grupos escravizados.13 13 O debate historiográfico sobre escravidão atlântica, emancipação, domesticidade e noções concorrentes de liberdade é vastíssimo. Cito apenas alguns, entre os quais, Carneiro da Cunha (2014); Cooper, Holt e Scott (2000); Slenes (2011 [1990]), Chalhoub (2011 [1990]); e, com particular referência a São Domingos, Scott e Hébrard (2014). Mais do que isso, tais documentos podem não só nos ajudar a entender as mudanças de atitude de diferentes grupos humanos em relação ao “mundo natural” (Thomas 1996THOMAS, Keith. 1996. Homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). Trad. João Roberto MartinsFilho . São Paulo: Companhia das Letras.), mas também o modo como animais compartilhavam uma experiência de lugar enquanto criavam materialmente novas paisagens.

A descrição rápida que de Saint-Cyran faz das casas e parcelas de usufruto de pessoas escravizadas em São Domingos confirma uma política geral nas Antilhas francesas e também britânicas de garantir porções de terra e um dia de trabalho destinados à produção de alimentos para a subsistência e, por ventura, à própria troca em mercados regionais (cf. Tomich 1993TOMICH, Dale. 1993. “‘Une Petite Guinée’: Provision Ground and Plantation in Martinique, 1830-1848”. In: Ira Berlin & Philip Morgan (eds.), Cultivation and Culture : Labor and the Shaping of Slave Life in the Americas. Charlottesville: University Press of Virginia. pp. 221-242.). Nas palavras de Dale Tomich, “[e]sse arranjo alterou o peso dos custos de reprodução dos escravos e os manteve convenientemente ocupados mesmo em períodos em que não havia trabalho a ser realizado nas plantações de açúcar” (Tomich 2004:145TOMICH, Dale. 2004. Through the Prism of Slavery: Labor, Capital, and World Economy. Lanham: Rowman & Littlefield.).14 14 Esse arranjo técnico era conhecido como “costume brasileiro” e, de acordo com Tomich (2004:145-146), foi trazido por refugiados holandeses de Pernambuco que se instalaram nas Antilhas francesas na primeira metade do século XVII. Para o caso de São Domingos, relatos que consultei mostram uma outra origem possível, como a apropriação de costumes e espaços agrários indígenas conhecidos como conacos (ou conucos) inicialmente por brancos pobres e posteriormente por escravizados africanos. Além de representarem esforços de moralização pelo trabalho e pela propriedade, essa garantia de terras para criação e cultivo e de “tempo livre” serviam também ao sistema colonial como uma forma de evitar que escravizados, africanos ou nascidos no Caribe “se tornassem marrons”, vocábulo que, como vimos, é próprio ao léxico das interações entre racialização e animalização nos primeiros anos da colonização. “Nada é mais adequado para reter [os escravizados] e impedi-los de escapar do que fornecer-lhes algo de onde possam tirar algum benefício, como aves, porcos, uma plantação de tabaco, algodão, ervas ou coisas do tipo”, afirma o reverendo dominicano Jean-Baptiste Labat (1724LABAT, Jean-Baptiste. 1724. Nouveau voyage aux isles de l’Amérique. Tomo I. Haia: P. Husson editeur. Disponível em: http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb30701887x.
http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb307...
, tomo 2:50), a partir da colônia francesa da Martinica, em princípios do século XVIII, acrescentando: “o confisco [das terras e dos animais] é suficiente para impedir, talvez de maneira definitiva, que todos os negros de uma plantation [habitation] pratiquem semelhante fuga” (:50).

Olhando para os cães, Sara Johnson (2012JOHNSON, Sara E. 2012. The Fear of French Negroes: Transcolonial Collaboration in the Revolutionary Americas. Berkeley: University of California Press.) mostra que, entre o final do século XVIII e a primeira metade do XIX, esses animais eram cuidadosamente treinados para perseguir escravizados que evadiam do cativeiro, mobilizando redes transcoloniais que conectavam cães e seus criadores em Cuba a outras colônias europeias a partir de uma agenda de propagação do terror e da violência em sociedades escravocratas (ver também Velden 2018VELDEN, Felipe Ferreira Vander. 2018. “Os primeiros cachorros: encontros interétnicos e multiespecíficos no Sudoeste da Amazônia”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 33 (julho): 1-23. Diaponível em: https://doi.org/10.1590/339713/2018.
https://doi.org/10.1590/339713/2018...
). Contudo, cães não eram os únicos animais a participar das tentativas de controlar a mobilidade de africanos e seus descendentes. Como é possível notar pelas observações de Labat, porcos assumiam mais uma vez um lugar importante nessa cartografia da guerra que definia a colonização. Ao estarem sujeitos ao confisco, impunham o medo aos escravizados e, logo, produziam a imobilidade da força de trabalho tão importante para a plantation.15 15 Em muitos contextos escravistas, como o sul dos EUA, a possibilidade de ter cães era terminantemente proibida aos escravizados, pois isso, afirma John Campbell (1994), “representava a afirmação vital e a demonstração da humanidade do escravizo” (:56), indo contra toda a lógica e as práticas de desumanização próprias do escravismo. Tal proibição foi repetida na Alemanha nazista quando judeus foram proibidos de terem cães por serem considerados sujeitos moralmente inferiores (ver Boisseron 2018:149).

Dentro do ordenamento socioeconômico da plantation, as terras de cultivo e criação, entendidas como terrenos de provisão (habitation ou place à vivres, em francês; conacos ou conucos, em espanhol; e provision grounds, em inglês), possibilitaram o desenvolvimento de técnicas de trabalho, práticas agrícolas e formas de troca entre grupos escravizados e livres, orientando aquilo que Sidney Mintz (1985MINTZ, Sidney W. 1985. “From Plantations to Peasantries in the Caribbean”. In: Sidney W. Mintz & Sally Price (eds.), Caribbean Countours. Baltimore: Johns Hopkins University Press. pp. 127-153. ) definiu como uma experiência de proto-campesinato, central para a ulterior formação dos campesinatos reconstituídos em todo o Caribe (Mintz 1989 [1974]).16 16 Moreau de St-Méry (1958 [1796], tomo 1) assim descreve tais terrenos para a parte espanhola de São Domingos: “denominados conacos, nome que equivale ao de terrenos ou plantações de provisão (habitation ou place à vivres) nas ilhas francesas; é a parcela comum de alguns colonos pouco afortunados e mais usualmente dos homens de cor ou libertos” (:67, grifos meus). Variações quanto ao tamanho da plantation, sua geografia e sua cultura principal (que determinavam a quantidade e a sazonalidade do trabalho) poderiam ainda conferir um maior ou menor grau de autonomia produtiva aos escravizados, como argumenta de modo convincente Trouillot (1993TROUILLOT, Michel-Rolph. 1993. “Coffee planters and coffee slaves in the Antilles: the impact of a secondary crop”. In: Ira Berlin & Philip Morgan (eds.), Cultivation and culture: labor and the shaping of slave life in the Americas. Charlottesville and London: University Press of Virginia.) para o caso das plantations de café em São Domingos.17 17 O que o autor chama de “revolução do café” esteve diretamente associada ao aumento da demanda pelo produto na Europa Ocidental na segunda metade do século XVIII, fato que foi acompanhado pela chegada de novos colonos franceses, a partir de 1763, com o restabelecimento das rotas comerciais entre a França e São Domingos, reduzidas em razão da Guerra dos Sete Anos, e pelo crescente número de libertos que estabeleceram suas pequenas plantações de café em terrenos íngremes e elevados (Trouillot, 1990:36-37). Em 1789, São Domingos chegou a produzir 60% de todo o café consumido no Ocidente (:36-37). Por isso, era exatamente nos arredores das planícies onde florescia o açúcar, nessa geografia montanhosa e marginal que compunha a paisagem vizinha à plantation, que tais técnicas e habilidades foram elaboradas durante o regime escravocrata, tanto entre os escravizados aos quais era garantida a possibilidade de plantarem nesses terrenos íngremes, avessos à cana-de-açúcar, como nas comunidades de escravizados fugidos que se formavam no interior das colônias.18 18 Sobre escravizados fugidos, ver o volume editado por Price (1979) e, mais recentemente, a coletânea organizada por Cunha (2018). Para um enfoque sobre o Brasil, ver Arruti (2006) e Gomes (2015).

O argumento de Mintz sobre o que podemos chamar de uma tecnogênese do campesinato negro no Caribe e nas Américas centra-se, sobretudo, nas práticas agrícolas, do trato da terra ao plantio e, a partir dali, ao processamento, armazenamento, à conservação e seleção de sementes, deixando de lado o conhecimento prático desenvolvido na relação com animais de caça ou criação. A fonte histórica que o antropólogo utiliza em sua análise é o conhecido relato de viagem de John Stewart (1823STEWART, John. 1823. View of the past and present state of the Island of Jamaica with remarks of the moral and physical conditions of the slaves, and on the abolition of slavery in the colonies. Edinburgh: Oliver & Boid, Tweeddale-House. Edinburgh: Oliver & Boid/ Tweeddale-House.), cujas observações centram-se na Jamaica inglesa. Nesses terrenos de provisão, pessoas escravizadas cultivavam tubérculos, bananas, frutas e pimentas e o excedente era destinado às trocas locais e à venda nos mercados, o que lhes garantia o acesso ao pecúlio (logo uma relativa mobilidade social), particularmente no caso das mulheres escravizadas.19 19 Especificamente para São Domingos francês, Moreau de St-Méry (1875 (1796):84) fala em uma média de 15 mil negros (o gênero não é marcado) que iam ao Mercado de Clugny, no centro do Cabo Francês, aos domingos, para comprar ou vender produtos diversos, alguns dos quais vinham de seus próprios roçados.

Mas nesses espaços ou próximo deles conviviam também animais, como porcos e aves. O mesmo John Stewart (1823STEWART, John. 1823. View of the past and present state of the Island of Jamaica with remarks of the moral and physical conditions of the slaves, and on the abolition of slavery in the colonies. Edinburgh: Oliver & Boid, Tweeddale-House. Edinburgh: Oliver & Boid/ Tweeddale-House.) afirma o seguinte, continuando seu relato sobre os terrenos de provisão na Jamaica (:267, citado em Mintz, 1989MINTZ, Sidney W. 1989 [1974]. Caribbean Transformations. New York: Columbia University Press . [1974]:187, grifos meus):

Este é o principal meio de sustento do [escravizado]; e tão produtivo é o solo, onde ele for bom e as estações regulares, que este terreno não só fornecerá a ele suficiente comida para seu próprio consumo, mas também um excedente para ser vendido no mercado. Por meio deste terreno, como dos porcos e aves que ele pode criar (a maioria dos quais é vendido), um negro laborioso pode não só sustentar a si mesmo confortavelmente, mas também poupar algo.20 20 Ver ainda, particularmente, o capítulo 5 do relato do viajante (Stewart 1823), seção dedicada aos animais selvagens. Como afirma o autor: “A caça ao porco feral era a diversão favorita tanto do audaz e ativo branco crioulo [nascido na colônia] quanto dos escravizados fugidos (marrons)” (:74, grifos meus).

Outras espécies, observa Stewart, eram proibidas às pessoas submetidas à escravidão, como cavalos, vacas, ovelhas e, na maioria das fazendas, também cabras, o que se explica, possivelmente, tanto pelo valor elevado que possuíam, estando restritos à propriedade dos senhores, quanto por exigirem mais espaço e mais cuidado. Sobre os porcos recaía, contudo, a proibição de andarem livres pelos terrenos, por exigência dos senhores. Porcos, assim como aves, eram parte integrante desses terrenos de provisão. Argumento aqui, acrescentando algo específico às teses de Mintz, que a domesticação desses animais foi crucial para essas novas formas de aliança que, seguindo Boisseron (2018BOISSERON, Bénédicte. 2018. Afro-Dog: Blackness and the Animal Question. New York: Columbia University Press.), podemos denominar “desafiadoras” (defiant). Elas revelam a possibilidade de superar “a construção de negros e animais como exclusivamente conectados pelo seu estado de sujeição e humilhação e, de outro modo, lançar um enfoque nas alianças interespécies” (:36).

Nessas zonas cinzentas nas margens e dentro das plantations, espaços e técnicas de cultivo e criação garantiram encontros mais-que-humanos, onde afetos políticos deram vazão ao que Jean Casimir (1981CASIMIR, Jean. 1981. La cultura oprimida. Mexico: Nueva Imagen., 2018) chamou de contraplantation, orientada “para a proteção e a regeneração da comunidade” (2018:101) ou que Sylvia Wynter (1971WYNTER, Sylvia. 1971. “Novel and history, plot and plantation”. Savacou, 5: 95-102.) denominou de um sistema da terra (plot system, no sentido de parcela, pedaço de terra ou simplesmente terra) em oposição ao sistema de plantation. Como afirma a autora, “[p]ois se a história da sociedade caribenha é aquela da relação dual entre a plantation e a terra, os dois polos que se originaram de um mesmo processo histórico [...], [e]ssa ambivalência é a um só tempo a raiz da nossa alienação; e a possibilidade da nossa salvação”21 21 Inspirado em Casimir (1981), Ángel Quintero-Rivera (1995) propõe que o mote da história do Caribe é a dialética entre plantation e contraplantation e entre escravidão e fuga, algo que inspira a síntese recente que Dubois e Turits (2019) traçam sobre a região caribenha. Ecoando as propostas de Wynter (1971) e expandindo o lugar da plantation para contextos africanos, Antonádia Borges (2020), por sua vez, mobiliza as noções de composição-terra e composição-plantation para pensar as formas como o conhecimento dentro da universidade está atrelado a projetos capitalistas e uniformizadores que acabam por aniquilar (ou zumbificar) outras formas de vida (ver também McKittrick 2013). (:99; ver também Quintero-Rivera 1995QUINTERO-RIVERA, Angel. 1995. “The Caribbean Counter-Plantation: Rural Formation Heritage and the Contemporary Search for Fundamentals”. In: Lieteke van Vucht Tijssen; Jan Berting & Frank J. Lechner (eds.), The Search for Fundamentals: The Process of Modernisation and the Quest for Meaning. Dordrecht, Netherland and Boston: Kluwer Academic Publishers. pp. 175-186.; Castellano 2021CASTELLANO, Katey. 2021. “Provision Grounds Against the Plantation: Robert Wedderburn’s Axe Laid to the Root”. Small Axe: A Caribbean Journal of Criticism, 25 (1 [64]):15-27. ).

Em um contexto em que a propriedade era algo extremamente racializado e a mobilidade social era restrita, pessoas que viviam sob o peso do cativeiro tinham a experiência, mesmo que reduzida, de formas de autonomia, rememorando noções de liberdade e dignidade que não se perderam na travessia atlântica e forjando, ao lado de outros seres, novas expectativas, paisagens e possibilidades de vida. É neste ponto que a brecha camponesa possibilitou a reafirmação da humanidade dos negros e o surgimento de novas alianças a partir das práticas, dos afetos e das técnicas desenvolvidos na relação com a terra, com os terrenos de provisão, com as plantas e com os animais, particularmente os porcos. “Além disso”, nota Trouillot (1990TROUILLOT, Michel-Rolph. 1990. Haiti: State Against Nation. New York: Monthly Review Press.:39),

à medida que os plantadores mais ricos se envolveram cada vez mais no açúcar, e que a revolução do café absorveu tanto os brancos com recursos mais limitados como os negros livres que até então se tinham dedicado à produção de alimentos, segmentos cada vez maiores da população crescente passaram a depender dos produtos agrícolas e artesanais das famílias escravas.

Com o início das revoltas no norte da colônia, “escravos rebeldes não pediam o fim da escravidão, mas apenas dias adicionais para cultivar seus roçados” (Trouillot 1990TROUILLOT, Michel-Rolph. 1990. Haiti: State Against Nation. New York: Monthly Review Press.). Ali, o uso da terra e sua propriedade se relacionava intensamente à noção de liberdade ou, como afirma a historiadora Carolyn Fick (1990FICK, Carolyn E. 1990. The Making of Haiti: The Saint Domingue Revolution from Below. Knoxville: University of Tennessee Press.), para os trabalhadores negros, “[u]ma reivindicação pessoal pela terra sobre a qual alguém laborava e da qual derivava e se expressava sua individualidade era [...] um elemento necessário e essencial de sua visão de liberdade”. “Pois sem essa realidade social e econômica concreta”, conclui a historiadora, “a liberdade para um ex-escravo não passava de uma abstração legal” (:249). Foi a partir de um conjunto de práticas e técnicas, entre as quais a agricultura e a domesticação animal, que esse sistema da terra conseguiu subverter a ordem da plantation. Para retomar as formulações de Wynter (1971WYNTER, Sylvia. 1971. “Novel and history, plot and plantation”. Savacou, 5: 95-102.), se no contexto da plantation a história ganha ares de ficção exatamente por ser “escrita, dominada, controlada por forças externas”, é quando “elementos da sociedade se erguem em rebelião contra esses autores externos e manipuladores que nossa prolongada ficção se torna temporariamente fato” (:95).

No conjunto de eventos que, ao se espalharem pela colônia, viriam a culminar no que hoje conhecemos como Revolução Haitiana, redefinindo a cartografia do Atlântico, a relação com os porcos foi crucial desde o início desta empreitada. Organizada nos arredores da cidade de Cabo Francês, entre meados e finais de agosto de 1791, a cerimônia de Bwa Kayman é tida por tradições historiográficas populares e acadêmicas como um evento que prefigura a Revolução Haitiana (Fick 1990FICK, Carolyn E. 1990. The Making of Haiti: The Saint Domingue Revolution from Below. Knoxville: University of Tennessee Press.; Dubois 2004DUBOIS, Laurent. 2004. Avengers of the New World: The Story of the Haitian Revolution. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press.:99-102). Nessa cerimônia, como é popularmente conhecida, foi selada uma grande aliança envolvendo africanos escravizados e seus descendentes, libertos (affranchis) e “pessoas livres de cor” (gens de couleur), que sacrificaram um porco em um serviço aos espíritos (lwa), trazidos ao Haiti por ancestrais africanos. Para Maurice Etienne, um importante interlocutor durante meu trabalho de campo no norte do Haiti, aquele foi um momento de sensibilização dos escravizados, uma tomada de consciência sobre a escravidão e a possibilidade de revolta: “e para terem a coragem necessária, eles sacrificaram um porco e acreditavam que se bebessem o sangue, o porco os tornaria invulneráveis”.22 22 E pou yo te gen kouraj pou yo te fè sa, yo te sakrifiye, yo te touye yon kochon e yo panse ke si yo bwe san kochon sa a, kochon sa a tap pran yo anvinerab. Com esse sacrifício, conseguiu-se a força necessária para levar à frente um projeto contraplantation, desestabilizando a instituição histórica da escravidão e revertendo a ordem colonial atlântica. Garantiu-se assim o caminho para a independência do país em 1º de janeiro de 1804.

Imagem 5:
“Celebração de 200 anos do Bois-Caïman, 1791-1991”, Jean-Baptiste Jean (1993).

Superando a dupla fratura

A colonização foi, em si, um empreendimento visceralmente atrelado a um conjunto amplo de espécies, entre animais, plantas e outros seres. Se a caça a animais selvagens e ferais e as criações em geral tiveram um papel importante na formação de novos territórios por piratas e colonos, a sociedade colonial passou a depender cada vez mais de animais para a alimentação e o transporte, além de fungos para a produção de álcool e de açúcar. O lugar da plantation como a infraestrutura moderna por excelência foi tema de trabalhos de autores clássicos, como C.L.R. James (2000JAMES, Cyril L. R. 2000. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a Revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo.), Williams (2012WILLIAMS, Eric. 2012. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras .), Thompson (2013THOMPSON, Edgar T. 2013. The Plantation. George Baca & Sidney W. Mintz (eds.). Columbia: University of South Carolina Press.) e Mintz (1985MINTZ, Sidney W. 1985. “From Plantations to Peasantries in the Caribbean”. In: Sidney W. Mintz & Sally Price (eds.), Caribbean Countours. Baltimore: Johns Hopkins University Press. pp. 127-153. ). Além disso, é sua lógica extrativista, tão central para o desenvolvimento do capitalismo, que inspirou alguns autores a chamar a era geológica atual de Plantationceno. “Para mim, plantations representam sobretudo a escravidão das plantas”, resume o antropólogo Noboru Ishikawa (Haraway et al. 2016HARAWAY, Donna; ISHIKAWA, Noburu; GILBERT, Scott F.; OLWIG, Kenneth; TSING, Anna L. & BUBANDT, Nils. 2016. “Anthropologists Are Talking - About the Anthropocene”. Ethnos, 81 (3):535-64.:556). Como mostrei aqui, atento às discussões propostas por Hage (2017HAGE, Ghassan. 2017. Is Racism an Environmental Threat? Malden, MA: Polity.), a plantation esteve no cerne de um modo de habitar colonial no qual a domesticação de animais e todo o léxico em torno da marronage definiam também orientações práticas no modo como africanos escravizados eram tratados, revelando uma aproximação histórica entre animalização e racialização.

Indo um pouco além, ao olhar para outras formas de domesticação nas margens e fraturas da plantation, foi possível entender como africanos e seus descendentes escravizados ou fugidos interagiam com animais dentro e fora da plantation, seja nos terrenos de provisão, ou nas comunidades quilombolas. Se a tecnogênese do campesinato negro nas Américas e no Caribe se explica por um conjunto de interações com a terra, ela também passa por animais e outros seres mais-que-humanos. A domesticação reafirmava a condição humana de africanos e seus descentes, questionando, assim, a estrutura racista montada a partir da expansão colonial europeia. Os porcos, com suas intencionalidades e projetos, tiveram um papel crucial na constituição de novos mundos agrários nos quais autonomia, liberdade e humanidade ganharam outros sentidos. A partir disso, me parece ser possível esboçar uma superação da dupla fratura identificada por Ferdinand (2022FERDINAND, Malcom. 2022. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Trad. Letícia Mei. São Paulo: Ubu.) como estruturante das análises contemporâneas que insistem em separar história colonial e pensamento ambientalista - e que encontram eco em debates sobre a crise ecológica contemporânea sem contudo encarar as formas de racialização que estruturam o presente. Nesse sentido, se a plantation pode definir uma era de crises, essa mesma era é também constituída por formas de associação contraplantation que estabeleceram novas e desafiadoras alianças (Casimir 2018CASIMIR, Jean. 2018. «Une lecture décoloniale de l’histoire du peuple haïtien de 1697 à 1915». Rencontre, n. 34:95-105.; Wynter 1971WYNTER, Sylvia. 1971. “Novel and history, plot and plantation”. Savacou, 5: 95-102.; Boisseron 2018BOISSERON, Bénédicte. 2018. Afro-Dog: Blackness and the Animal Question. New York: Columbia University Press.).

Apesar do enfoque deste artigo ter sido a ilha de Espanhola, não podemos desconsiderar as aproximações e as interdependências entre as diferentes ilhas e territórios que formam o Caribe. Como nota de modo preciso Juan Giusti-Cordero (2009)GIUSTI-CORDERO, Juan. 2009. “Beyond sugar revolutions: rethinking the Spanish Caribbean in the seventeenth and eighteenth century”. In: Aisha Khan, George Baca & Stephan Palmié, Empirical Futures: Anthropologists and Historians Engage the Work of Sidney W. Mintz. Chapel Hill: University of North Carolina Press . pp. 58-83., “a história ambiental do Caribe não pode ser escrita de ilha a ilha, mas sim observando as interações entre uma ilha e outra” (:70). Essas interações aconteciam através de circuitos oficiais, acompanhados e registrados por órgãos estatais, mas havia também uma miríade de formas de circulação e troca que passavam por contrabando e economias ilícitas que pouco deixaram de testemunho escrito. Seguindo as pistas lançadas por Giusti-Cordero, e inspirado em autores como Sidney Mintz (2012MINTZ, Sidney W. 2012. Three Ancient Colonies: Caribbean Themes and Variations. Cambridge: Harvard University Press.) e Olívia Gomes da Cunha (2011)CUNHA, Olivia Gomes da. 2011. «Multiple Effects: On Themes, Relations, and Caribbean Compositions». Review (Fernand Braudel Center), 34 (4):391-405., centrei minhas análises na ilha de Espanhola - dividida a partir de fins dos seiscentos até o início dos oitocentos entre o império espanhol e o francês - fazendo aproximações com outras localidades caribenhas tanto para revelar a interação entre regiões de plantation e regiões de aprovisionamento quanto para estabelecer comparações a fim de explicitar padrões, efeitos e diferenças.

Isto foi possível devido a uma aproximação entre etnografia e pesquisa de arquivo. Se documentos contendo descrições da socialidade de grupos subalternos, e poderíamos incluir aqui suas interações com animais, é escassa e pautada por silenciamentos (Trouillot 2016TROUILLOT, Michel-Rolph. 2016. Silenciando o passado: poder e produção da história. Trad. Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya . ), foi durante meu trabalho de campo que tive contato com outras formas de domesticação e animalidade relatadas e vividas pelos habitantes das regiões montanhosas do norte do Haiti. A partir disso, busquei olhar com mais atenção para as interações entre humanos, animais e meio ambiente no Caribe colonial. Diferente de um historiador, minha proposta aqui não foi esgotar a documentação, mas, em conjunto com outros autores e autoras, refletir sobre formas de vida que, mesmo quando submetidas à violência da plantation (e do arquivo), encontravam meios de superá-la.

Quase dois séculos depois da chegada dos porcos ao Caribe, em finais da década de 1970, sanitaristas, veterinários e outros especialistas estrangeiros, sobretudo dos Estados Unidos, desembarcaram na ilha de Espanhola com o objetivo de exterminar a população local de porcos crioulos, controlando, assim, a possível difusão de uma doença suína de origem africana pelo continente americano. Em poucos anos, o excesso de que falavam os viajantes do século XVIII foi reduzido a uma quase completa escassez, à exceção de alguns animais ainda fugidos ou intencionalmente escondidos por camponeses. Aquele episódio foi o início da “morte do próprio país”, como me disse um velho agricultor haitiano numa conversa no pátio de sua casa. Hoje, os porcos crioulos já não existem mais. Eles são o espectro de um passado e revelam a nostalgia dos dias em que alianças entre humanos e animais garantiam uma vida de afluência e liberdade. Porém, sua história ainda inspira posturas desafiadoras e a busca constante por outros futuros ecológicos.

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  • WYNTER, Sylvia. 1971. “Novel and history, plot and plantation”. Savacou, 5: 95-102.
  • 1
    Versões anteriores deste artigo contaram com diálogos e comentários críticos de Ludmila de Souza Maia, Handerson Joseph, Marcelo Moura Mello, Renzo Taddei, Guilherme Moura Fagundes, Cristiana Bastos, Robin Derby, Caetano Sordi, Rosa Vieira, Karen Shiratori, Omar Ribeiro Thomaz, Alyne Costa, Marta Macedo, Colette Le Petitcorps, Irene Peano, Carlos Sautchuk, Luisa Pessoa, Felipe Vander Velden, Luísa Reis Castro e Federico Neiburg. A eles e elas expresso meu maior reconhecimento. Agradeço também aos dois pareceristas anônimos e à revisora Maria Lucia Resende da revista Mana pelas sugestões tão cruciais. A pesquisa que deu origem ao texto foi financiada pela Fapesp, processo n. 2019/04170-4.
  • 2
    Reproduzida com permissão do MiC. Qualquer reprodução adicional por qualquer meio é proibida.
  • 3
    Esta e outras traduções que seguem são de minha autoria.
  • 4
    Pode-se consultar também a descrição feita por Louis-Élie Moreau de Saint-Méry (1958 [1796], tomo 1:67-78) sobre os rebanhos (hattes) e os diferentes animais, particularmente, as complexas classificações feitas pelos espanhóis segundo seu comportamento. O trabalho mais completo sobre a difusão dos porcos no Caribe e nas Américas, que traz ainda uma atenção especial aos pecaris e a outros animais nativos, é o de Donkin (1985:41-47)DONKIN, Robin Arthur. 1985. The Peccary: With Observations on the Introduction of Pigs to the New World. Philadelphia: The American philosophical Society..
  • 5
    Jean-Pierre Tardieu (2006)TARDIEU, Jean-Pierre. 2006. «Cimarrón-Maroon-Marron: note épistemologique». Outres-mers, 93 (350-351):237-47. identifica no texto do cronista Gonzalo Fernández de Oviedo, Historia General y Natural de las Indias, de 1535, o primeiro registro da origem arawak do termo (:246). Antes disso, em dezembro de 1531, em Santo Domingo, capital da ilha de Espanhola, uma circular municipal tratava da necessidade de se criarem patrulhas para perseguir indígenas e negros “cimarrones” (:240). Como destaca o autor, levaram algumas décadas para que o termo chegasse aos registros reais para tratar de negros e indígenas “huidos y alzados por los montes” em outras partes das Américas e do Caribe espanhóis. Já o termo marronage aparece de maneira mais evidente na documentação francesa a partir do século XVIII, quando uma porção ocidental da ilha de Espanhola já havia passado ao domínio francês, sendo renomeada São Domingos, para logo se tornar uma das mais lucrativas colônias açucareiras do Caribe. Ver, por exemplo, Labat (1742:193-194)LABAT, Jean-Baptiste (1663-1738) Auteur du texte. 1742. Nouveau voyage aux isles de l’Amérique. Tomo II. Paris: Chez Ch. J. B. Delespine. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k98002132.
    https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9...
    . Sobre o tema da feralização, ver também Sordi e Lewgoy (2017)SORDI, Caetano & LEWGOY, Bernardo. 2017.”Javalis no Pampa: invasões biológicas, abigeato e transformações da paisagem na fronteira brasileiro-uruguaia”. Horizontes Antropológicos, 48 (maio/ago): 75-98..
  • 6
    Uma das traduções possíveis da palavra marronage, que subscrevo, é quilombismo (ou aquilombamento). Quilombola, termo de origem kimbundu, era utilizado na América portuguesa para definir os escravizados fugidos. A palavra cognata marrano, em língua portuguesa, ficou restrita aos animais e aos judeus conversos. Recentemente, traduções brasileiras de livros de autores caribenhos, como de Édouard Glissant (2021)GLISSANT, Édouard. 2021. Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., de Malcom Ferdinand (2022)FERDINAND, Malcom. 2022. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Trad. Letícia Mei. São Paulo: Ubu. e a peça de Aimé Césaire (Césaire 2016CÉSAIRE, Aimé. 2016. A tragédia do Rei Christophe. Trad. Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya.), têm empregado quilombismo (e suas variações) como tradução direta de marronage, aproximando processos de fuga em diferentes contextos do Atlântico Negro. Sobre este tema, ver ainda o texto recente de Díaz-Benítez e Rangel (2022)DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira & RANGEL, Everton. 2022. “Evocações da escravidão. Sobre sujeição e fuga em experiências negras”. Horizontes Antropológicos, 63 (junho):39-69. .
  • 7
    Após a independência do país, nota Fischer (2016)FISCHER, Sibylle. 2016. “Inhabiting Rights”. L’Esprit Créateur, 56 (1):52-67., abitan (em crioulo haitiano) ganhou outros sentidos, sendo retomado para falar de todos os cidadãos da nação recentemente liberta. Com o tempo, abitan se tornou um termo específico para tratar de pessoas originárias do mundo rural haitiano, algo que pode ganhar tons pejorativos, sobretudo quando enunciados por pessoas do meio urbano (moun lavil), consideradas as “mais capazes” ou civilizadas (moun kapab).
  • 8
    Sobre a ilha da Tartaruga, ver o trabalho de Manuel Arturo Peña Batlle (1988 [1951])PEÑA BATLLE, Manuel Arturo. 1988. La Isla de la Tortuga: plaza de armas, refugio y seminario de los enemigos de España en Indias. Santo Domingo: Editora Taller.. Este ilustre nacionalista, advogado, historiador e diplomata dominicano, foi um dos ideólogos da modernização da fronteira entre o Haiti e a República Dominicana. Abdicou do cargo quando Rafael Leónidas Trujillo chegou ao poder, em 1930, mas retomou sua função em 1942 para consolidar o processo que ficou conhecido localmente como “dominicanización de la frontera”. Foi posteriormente diplomata em Porto-Príncipe, em um acordo entre o presidente Dumarsais Estimé e Trujillo, no qual o intelectual Jean Price-Mars foi nomeado para a mesma função em Santo Domingo (Vega 2010:487VEGA, Bernardo. 2010. “La Era Trujillo, 1930-1961”. In: Frank Moya Pons (ed.), História de la República Dominicana. Vol. II. Madri e Santo Domingo: Consejo Superior de Investigaciones Científicas/ Academia Dominicana de la História/ Ediciones Doce Calles. pp. 445-503.). Parte de seu acervo pessoal está na biblioteca do Museu Fernando Peña Defilló, na capital dominicana, dedicado ao importante pintor dominicano, filho de Peña Batlle. Ali estão expostos ainda dois exemplares das pedras esculpidas utilizadas na demarcação da fronteira.
  • 9
    É consenso que a plantation encontra seu lugar no Caribe espanhol em um momento tardio se comparado às colônias britânicas, francesas e holandesas. No caso de Cuba, isso se dá somente no final do século XVIII; em Porto Rico, a partir de 1820 e, na República Dominicana, já não tendo relação direta com a escravidão atlântica, em princípios do século XX (Giusti-Cordero 2009:59-60GIUSTI-CORDERO, Juan. 2009. “Beyond sugar revolutions: rethinking the Spanish Caribbean in the seventeenth and eighteenth century”. In: Aisha Khan, George Baca & Stephan Palmié, Empirical Futures: Anthropologists and Historians Engage the Work of Sidney W. Mintz. Chapel Hill: University of North Carolina Press . pp. 58-83.).
  • 10
    Citado em Moya Pons (1977:233)MOYA PONS, Frank. 1977. Historia colonial de Santo Domingo. Santiago, RD: Universidad Católica Madre y Maestra.. Como nota o autor em outra obra (Moya Pons 2007MOYA PONS, Frank. 2007. History of the Caribbean: Plantations, Trade, and War in the Atlantic World. Princeton: Markus Wiener Publishers.), “In 1702 the Spanish exports of livestock, horses, and hides to the French colony increased to 50,000 escudos annually. This trade defined the relationship between the two colonies for the next ninety years and helped foster the sugar revolution in Saint-Domingue in the eighteenth century” (:94).
  • 11
    Desde o importante trabalho de Eric Williams (2012)WILLIAMS, Eric. 2012. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras ., sabemos que a montagem do sistema escravista no Caribe inglês ocorreu a partir de escolhas econômicas que, inicialmente, se valiam da captura e do desterro de grupos marginalizados ou dissidentes políticos e religiosos (que incluía prisioneiros irlandeses além de mulheres e crianças) para então submetê-los a formas de engajamento e cativeiro. “Essa política era seguida de maneira tão sistemática”, sublinha o autor, “que a língua inglesa ganhou um novo verbo de ação: ‘barbadoar’ (to barbadoes) alguém” (:42). Porém, é a partir do emprego sistemático de mão de obra africana que a plantation começou a ganhar uma dimensão infraestrutural e, daí em diante, a racialização passou a definir novas formas de hierarquização e violência. Sobre isso, ver o pioneiro trabalho de E. T. Thompson (2013)THOMPSON, Edgar T. 2013. The Plantation. George Baca & Sidney W. Mintz (eds.). Columbia: University of South Carolina Press. e as discussões recentes propostas por Cristiana Bastos (2020)BASTOS, Cristiana. 2020. “Plantation Memories, Labor Identities, and the Celebration of Heritage: The Case of Hawaii’s Plantation Village”. Museum Worlds, 8 (1):25-45..
  • 12
    Sobre a Société des Amis des Noirs e o processo de abolição na França e em suas colônias, ver Trouillot (2016:134 et passim)TROUILLOT, Michel-Rolph. 2016. Silenciando o passado: poder e produção da história. Trad. Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya . , Dubois (2004:61-90)DUBOIS, Laurent. 2004. Avengers of the New World: The Story of the Haitian Revolution. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press., Sala-Molins (2008 [1992])SALA-MOLINS, Louis. 2008 [1992]. Les misères des Lumières: sous la raison, l’outrage. Paris: Homnisphères. e Buck-Morss (2011).
  • 13
    O debate historiográfico sobre escravidão atlântica, emancipação, domesticidade e noções concorrentes de liberdade é vastíssimo. Cito apenas alguns, entre os quais, Carneiro da Cunha (2014)CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2014. Cultura com aspas. São Paulo, SP: Cosac Naify.; Cooper, Holt e Scott (2000)COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C. & SCOTT, Rebecca J. 2000. Beyond Slavery: Explorations of Race, Labor, and Citizenship in Postemancipation Societies. Chapel Hill: University of North Carolina Press.; Slenes (2011 [1990])SLENES, Robert W. 2011 [1999]. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava : Brasil sudeste, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp . , Chalhoub (2011 [1990])CHALHOUB, Sidney. 2011. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, SP: Companhia de Bolso.; e, com particular referência a São Domingos, Scott e Hébrard (2014)SCOTT, Rebecca & HÉBRARD, Jean. 2014. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Editora da Unicamp..
  • 14
    Esse arranjo técnico era conhecido como “costume brasileiro” e, de acordo com Tomich (2004:145-146)TOMICH, Dale. 2004. Through the Prism of Slavery: Labor, Capital, and World Economy. Lanham: Rowman & Littlefield., foi trazido por refugiados holandeses de Pernambuco que se instalaram nas Antilhas francesas na primeira metade do século XVII. Para o caso de São Domingos, relatos que consultei mostram uma outra origem possível, como a apropriação de costumes e espaços agrários indígenas conhecidos como conacos (ou conucos) inicialmente por brancos pobres e posteriormente por escravizados africanos.
  • 15
    Em muitos contextos escravistas, como o sul dos EUA, a possibilidade de ter cães era terminantemente proibida aos escravizados, pois isso, afirma John Campbell (1994)CAMPBELL, John. 1994. “’My Constant Companion’: Slaves and Their Dogs in the Antebellum South”. In: Larry E. Hudson Jr., Working Toward Freedom: Slave Society and Domestic Economy in the American South. Rochester: University of Rochester Press. pp. 53-76., “representava a afirmação vital e a demonstração da humanidade do escravizo” (:56), indo contra toda a lógica e as práticas de desumanização próprias do escravismo. Tal proibição foi repetida na Alemanha nazista quando judeus foram proibidos de terem cães por serem considerados sujeitos moralmente inferiores (ver Boisseron 2018:149BOISSERON, Bénédicte. 2018. Afro-Dog: Blackness and the Animal Question. New York: Columbia University Press.).
  • 16
    Moreau de St-Méry (1958 [1796], tomo 1) assim descreve tais terrenos para a parte espanhola de São Domingos: “denominados conacos, nome que equivale ao de terrenos ou plantações de provisão (habitation ou place à vivres) nas ilhas francesas; é a parcela comum de alguns colonos pouco afortunados e mais usualmente dos homens de cor ou libertos” (:67, grifos meus).
  • 17
    O que o autor chama de “revolução do café” esteve diretamente associada ao aumento da demanda pelo produto na Europa Ocidental na segunda metade do século XVIII, fato que foi acompanhado pela chegada de novos colonos franceses, a partir de 1763, com o restabelecimento das rotas comerciais entre a França e São Domingos, reduzidas em razão da Guerra dos Sete Anos, e pelo crescente número de libertos que estabeleceram suas pequenas plantações de café em terrenos íngremes e elevados (Trouillot, 1990:36-37TROUILLOT, Michel-Rolph. 1990. Haiti: State Against Nation. New York: Monthly Review Press.). Em 1789, São Domingos chegou a produzir 60% de todo o café consumido no Ocidente (:36-37).
  • 18
    Sobre escravizados fugidos, ver o volume editado por Price (1979)PRICE, Richard. 1979. Maroon societies: rebel slave communities in the Americas. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press. e, mais recentemente, a coletânea organizada por Cunha (2018)CUNHA, Olivia Gomes da (org.). 2018. Maroon Cosmopolitics: Personhood, Creativity and Incorporation. Leiden: Brill. . Para um enfoque sobre o Brasil, ver Arruti (2006)ARRUTI, José Maurício. 2006. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru: EDUSC. e Gomes (2015)GOMES, Flávio dos Santos. 2015. Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma..
  • 19
    Especificamente para São Domingos francês, Moreau de St-Méry (1875 (1796):84) fala em uma média de 15 mil negros (o gênero não é marcado) que iam ao Mercado de Clugny, no centro do Cabo Francês, aos domingos, para comprar ou vender produtos diversos, alguns dos quais vinham de seus próprios roçados.
  • 20
    Ver ainda, particularmente, o capítulo 5 do relato do viajante (Stewart 1823STEWART, John. 1823. View of the past and present state of the Island of Jamaica with remarks of the moral and physical conditions of the slaves, and on the abolition of slavery in the colonies. Edinburgh: Oliver & Boid, Tweeddale-House. Edinburgh: Oliver & Boid/ Tweeddale-House.), seção dedicada aos animais selvagens. Como afirma o autor: “A caça ao porco feral era a diversão favorita tanto do audaz e ativo branco crioulo [nascido na colônia] quanto dos escravizados fugidos (marrons)” (:74, grifos meus).
  • 21
    Inspirado em Casimir (1981)CASIMIR, Jean. 1981. La cultura oprimida. Mexico: Nueva Imagen., Ángel Quintero-Rivera (1995)QUINTERO-RIVERA, Angel. 1995. “The Caribbean Counter-Plantation: Rural Formation Heritage and the Contemporary Search for Fundamentals”. In: Lieteke van Vucht Tijssen; Jan Berting & Frank J. Lechner (eds.), The Search for Fundamentals: The Process of Modernisation and the Quest for Meaning. Dordrecht, Netherland and Boston: Kluwer Academic Publishers. pp. 175-186. propõe que o mote da história do Caribe é a dialética entre plantation e contraplantation e entre escravidão e fuga, algo que inspira a síntese recente que Dubois e Turits (2019)DUBOIS, Laurent & TURITS, Richard Lee. 2019. Freedom Roots: Histories from the Caribbean. Chapel Hill: University of North Carolina Press . traçam sobre a região caribenha. Ecoando as propostas de Wynter (1971)WYNTER, Sylvia. 1971. “Novel and history, plot and plantation”. Savacou, 5: 95-102. e expandindo o lugar da plantation para contextos africanos, Antonádia Borges (2020)BORGES, Antonádia. 2020. “Very rural background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue à chamada educação superior”. Revista de Antropologia, 63 (3):1-22. , por sua vez, mobiliza as noções de composição-terra e composição-plantation para pensar as formas como o conhecimento dentro da universidade está atrelado a projetos capitalistas e uniformizadores que acabam por aniquilar (ou zumbificar) outras formas de vida (ver também McKittrick 2013McKITTRICK, Katherine. 2013. “Plantation Futures”. Small Axe: A Caribbean Journal of Criticism, 17 (3 [42]):1-15. ).
  • 22
    E pou yo te gen kouraj pou yo te fè sa, yo te sakrifiye, yo te touye yon kochon e yo panse ke si yo bwe san kochon sa a, kochon sa a tap pran yo anvinerab.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2021
  • Aceito
    03 Out 2022
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