Acessibilidade / Reportar erro

Associação entre febre reumática e arterite de Takayasu – Relato de caso

RESUMO

A arterite de Takayasu (AT) e a febre reumática (FR) são doenças que podem ter início commanifestação cardíaca, o que dificulta o diagnóstico. Há relatos de associação de FR com AT que se inicia com comprometimento cardíaco na faixa etária pediátrica. O objetivo deste estudo é relatar a possibilidade da associação de FR e AT em paciente com alteração cardíaca. Descrevemos o caso de uma adolescente diagnosticada inicialmente como FR que apresentou na evolução alterações que permitiram o diagnóstico de AT. A AT e a FR são duas causas importantes de envolvimento valvular que podem apresentar manifestações sistêmicas.

Palavras-chave:
Febre reumática; Arterite de Takayasu; Manifestações cardíacas

ABSTRACT

Takayasu’s arteritis (TA) and rheumatic fever are diseases that can start with cardiac fea-tures, making the diagnosis difficult. There are reports of association of RF with Takayasu’sarteritis beginning with cardiac involvement in pediatric patients. The aim of this study isto report the possible association of RF and TA in patients with cardiac abnormalities. Wedescribe the case of an adolescent initially diagnosed with RF who progressed with changesthat allowed making the diagnosis of TA. TA and RF are two important causes of valveinvolvement that may have systemic manifestations.

Keywords:
Rheumatic fever; Takayasu’s arteritis; Cardiac manifestations

Introdução

A arterite de Takayasu (AT) é uma doença inflamatória granulomatosa crônica que pode afetar aorta, seus ramos e artéria pulmonar.1Brunner J, Feldman BM, Tyrrell PN, Kuemmerle-Deschner JB, Zimmerhackl LB, Gassner I, et al. Takayasu’ arteritis in children and adolescents. Rheumatology. 2010;49:1806-14.,2Mesquita ZBM, Sacchetti SB, Andrade OVB, Mastrocinque TH, Okuda EM, Bastos W, et al. Arterite de Takayasu na infância. Revisão de Literatura. A propósito de 6 casos. J Bras Nefrol. 1998;20:263-75.

Na faixa etária pediátrica, acomete o sexo feminino na proporção de 2:1, semelhante à encontrada em estudo multicêntrico brasileiro, com 71 crianças e adolescentes (2,6:1).3Clemente G, Hilario MO, Lederman H, Silva CA, Sallum AM, Campos LM, et al. Takaysu arteritis in a Brazilian multicenter study: children with a longer diagnosis delay than adolescents. Clin Exp Rheumatol. 2014;32(2 Suppl. 82):5128-31. A média de idade de início é de 11,4 anos, 20% antes dos 19 e 2% antes dos 10.4Mendiola Ramírez K, Portillo Rivera AC, Galicia Reyes A, García Montes JA, Maldonado Velázquez Mdel R, Faugier Fuentes E. Type III Takayasu's arteritis in a pediatric patient case report and review of the literature. Reumatol Clin. 2012;8:216-9.

As manifestações iniciais podem ser insidiosas e inespecíficas, como astenia, cefaleia, febre, sudorese noturna, artralgia, dor muscular e emagrecimento, com início em tempo variável antes da doença vascular, ou podem ser agudas, com hipertensão arterial, convulsão e insuficiência cardíaca congestiva.5Aypar E, Celebi-Tayfur A, Keser M, Odabas D, Özaltin F, Paksoy Y, et al. Takayasu’ arteritis in a 4-year-old girl: case report and brief overview of the pediatric literature. Turk J Pediatr. 2012;54:536-9.

O comprometimento cardíaco ocorre em aproximadamente 50% dos pacientes no curso da doença e qualquer estrutura cardíaca pode ser afetada. Quando se apresenta com regurgitação valvular, o paciente pode inicialmente ser diagnosticado como febre reumática.

Relatamos um caso de AT em uma adolescente com comprometimento cardíaco valvular com diagnóstico inicial de febre reumática.

Relato de caso

Adolescente de 15 anos, feminina, branca, admitida com história de palpitação associada à adinamia e emagrecimento de sete quilos havia 10 meses. Ao exame físico, apresentava-se descorada, taquicárdica, afebril, com pressão arterial (PA) de 130 × 70 mmHg (no percentil-90). À ausculta cardíaca, hiperfonese de P2 e sopro sistólico em foco mitral com irradiação para dorso, pulsos presentes e simétricos.

Exames laboratoriais evidenciaram anemia, com discreta leucocitose e plaquetose, elevação das provas de atividade inflamatória e do título do anticorpo antiestreptolisina O (Aslo) (tabela 1).

Tabela 1
Evolução das alterações laboratoriais

A radiografia de tórax revelou área cardíaca no limite superior, o ecocardiograma demonstrou dilatação moderada de ventrículo esquerdo, com espessamento de válvula mitral e refluxos mitral (discreto) e aórtico (discreto a moderado), com fração de ejeção de 51% e processo inflamatório à cintilografia de miocárdio. Com esses dados, foi diagnosticada como febre reumática (FR). Iniciado tratamento com prednisona, digoxina e hidroclorotiazida e profilaxia com penicilina benzatina, com normalização das provas de atividade inflamatória. No acompanhamento ambulatorial, o corticosteroide foi progressivamente reduzido e suspenso após três meses do seu início e manteve-se a profilaxia secundária adequada.

Após a suspensão do corticosteroide, iniciou um quadro de dispneia aos esforços, taquicardia, edema de membros inferiores, ausculta de sopro epigástrico e aumento da pressão arterial. Na investigação laboratorial, as provas de atividade inflamatória estavam elevadas e o PPD negativo. O ecocardiograma mostrou válvula mitral normal e discreta insuficiência aórtica e fração de ejeção de 63%. A tomografia de tórax detectou espessamento parietal de aorta e seus ramos e presença de dilatação (2,6 cm) na transição toracoabdominal, sugestiva de arterite. A hipótese de AT foi confirmada pelas alterações evidenciadas na arteriografia (fig. 1). Foi associado metotrexate à prednisona, com controle do processo inflamatório clínico e laboratorial.

Figura 1
Alterações arteriográficas

Atualmente, a paciente segue em acompanhamento com diagnóstico de AT e FR e faz uso de prednisona, metotrexate, acido fólico, digoxina, anti-hipertensivos e profilaxia com penicilina benzatina.

Discussão

A AT é pouco frequente, principalmente na faixa pediátrica, embora seja uma das principais causas de hipertensão renovascular.

Fatores genéticos e processos infecciosos e imunológicos são descritos na etiopatogenia.

No caso descrito, o preenchimento dos critérios de Jones permitiu o diagnóstico de FR, porém as manifestações inespecíficas que precederam o quadro de FR sugerem a presença de uma vasculite sistêmica inflamatória de início insidioso.6Weiss PF, Corao DA, Pollock AN, Finkel TH, Smith SE. Takayasu’ arteritis presenting as cerebral aneurysms in an 18 month old: a case report. Pediatr Rheum. 2008;6:4 Na evolução, a presença de sopro epigástrico, hipertensão e alterações da arteriografia possibilitou o diagnóstico de AT baseado nos critérios revisados Eular/PReS.7Ozen S, Ruperto N, Dillon MJ, Bagga A, Barron K, Davin JC, et al. Eular/PReS endorsed consensus criteria for the classification of childhood vasculitides. Ann Rheum Dis. 2006;65:936-41. A associação da FR e AT é infrequente.8Roghi A, Pedrotti P, Milazzo A, Vignati G, Martinelli L, Paino R. Acute myocardial infarction and cardiac arrest in a typical Takayasu’ aortitis in a young girl. Unusual diagnostic role of cardiac magnetic resonance imaging in emergency setting. Circulation. 2010;121:e370-5. Tejada et al. relataram dois casos de doença cardíaca reumática em uma série de 125 pacientes com AT.9Tejada O, Torres S, Alfaro K. Cardiac damage in Takayasu's arteritis study in 125 patients. Arch Inst Cardiol Mex. 1983;53:441-7. Em nosso serviço, em 11 casos de AT, somente essa paciente apresentava alterações cardíacas compatíveis com FR.

O envolvimento cardíaco ocorre em até 50% dos pacientes com AT e pode comprometer qualquer estrutura do coração.10Ravelli A, Pedroni E, Perrone S, Tramarin R, Martini A, Burgio GR. Aortic valve regurgitation as the presenting signo of Takayasu’ arteritis. Eur J Pediatr. 1999;158:281-3.,11Miloslavsky E, Unizony S. The heart in vasculitis. Rheum Dis Clin Nam. 2011;40:11-26. Arterite de coronária, lesão valvular cardíaca e aneurisma ventricular são as principais manifestações relatadas em crianças com AT.

O envolvimento da válvula aórtica é o mais frequente, secundário à aortite, com dilatação anular ou retração inflamatória da válvula.10Ravelli A, Pedroni E, Perrone S, Tramarin R, Martini A, Burgio GR. Aortic valve regurgitation as the presenting signo of Takayasu’ arteritis. Eur J Pediatr. 1999;158:281-3. Há relatos de comprometimento de válvulas mitral e tricúspide em aproximadamente 20% dos pacientes com AT, geralmente com regurgitação, sem evidência de espessamento valvar.11Miloslavsky E, Unizony S. The heart in vasculitis. Rheum Dis Clin Nam. 2011;40:11-26. Em estudos de necropsia, há relatos de espessamento de válvula aórtica secundário à arterite de aorta que se estende para válvula e endocárdio mural.12Chhetri MK, Pal NC, Chandrika N, Chowdhury ND, Basu Mullick KC. Endocardial lesion in a case of Takayasu's arteriopathy. Br Heart J. 1970;32:859-62.

A presença de espessamento de válvula mitral associado à estreptococcia, com desaparecimento após tratamento com corticosteroide, não permite a exclusão de FR associada à AT. Segundo Vale et al., a associação de FR e AT levanta a possibilidade de uma base imunológica comum na patogênese de ambas as doenças.13Vale TC, Maciel ROH, Maia D, Beato R, Cardoso F. Takayasu's arteritis in a patient with Sydenham's chorea: is there an association?. Tremor Other Hyperkinet Mov. 2012;2:94

A AT e a FR são duas causas importantes de envolvimento valvular. A presença de manifestações sistêmicas e os achados ecocardiográficos e arteriográficos são úteis no diagnóstico do comprometimento cardíaco.

REFERENCES

  • Brunner J, Feldman BM, Tyrrell PN, Kuemmerle-Deschner JB, Zimmerhackl LB, Gassner I, et al. Takayasu’ arteritis in children and adolescents. Rheumatology. 2010;49:1806-14.
  • Mesquita ZBM, Sacchetti SB, Andrade OVB, Mastrocinque TH, Okuda EM, Bastos W, et al. Arterite de Takayasu na infância. Revisão de Literatura. A propósito de 6 casos. J Bras Nefrol. 1998;20:263-75.
  • Clemente G, Hilario MO, Lederman H, Silva CA, Sallum AM, Campos LM, et al. Takaysu arteritis in a Brazilian multicenter study: children with a longer diagnosis delay than adolescents. Clin Exp Rheumatol. 2014;32(2 Suppl. 82):5128-31.
  • Mendiola Ramírez K, Portillo Rivera AC, Galicia Reyes A, García Montes JA, Maldonado Velázquez Mdel R, Faugier Fuentes E. Type III Takayasu's arteritis in a pediatric patient case report and review of the literature. Reumatol Clin. 2012;8:216-9.
  • Aypar E, Celebi-Tayfur A, Keser M, Odabas D, Özaltin F, Paksoy Y, et al. Takayasu’ arteritis in a 4-year-old girl: case report and brief overview of the pediatric literature. Turk J Pediatr. 2012;54:536-9.
  • Weiss PF, Corao DA, Pollock AN, Finkel TH, Smith SE. Takayasu’ arteritis presenting as cerebral aneurysms in an 18 month old: a case report. Pediatr Rheum. 2008;6:4
  • Ozen S, Ruperto N, Dillon MJ, Bagga A, Barron K, Davin JC, et al. Eular/PReS endorsed consensus criteria for the classification of childhood vasculitides. Ann Rheum Dis. 2006;65:936-41.
  • Roghi A, Pedrotti P, Milazzo A, Vignati G, Martinelli L, Paino R. Acute myocardial infarction and cardiac arrest in a typical Takayasu’ aortitis in a young girl. Unusual diagnostic role of cardiac magnetic resonance imaging in emergency setting. Circulation. 2010;121:e370-5.
  • Tejada O, Torres S, Alfaro K. Cardiac damage in Takayasu's arteritis study in 125 patients. Arch Inst Cardiol Mex. 1983;53:441-7.
  • Ravelli A, Pedroni E, Perrone S, Tramarin R, Martini A, Burgio GR. Aortic valve regurgitation as the presenting signo of Takayasu’ arteritis. Eur J Pediatr. 1999;158:281-3.
  • Miloslavsky E, Unizony S. The heart in vasculitis. Rheum Dis Clin Nam. 2011;40:11-26.
  • Chhetri MK, Pal NC, Chandrika N, Chowdhury ND, Basu Mullick KC. Endocardial lesion in a case of Takayasu's arteriopathy. Br Heart J. 1970;32:859-62.
  • Vale TC, Maciel ROH, Maia D, Beato R, Cardoso F. Takayasu's arteritis in a patient with Sydenham's chorea: is there an association?. Tremor Other Hyperkinet Mov. 2012;2:94

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2014
  • Aceito
    5 Out 2014
Sociedade Brasileira de Reumatologia Av Brigadeiro Luiz Antonio, 2466 - Cj 93., 01402-000 São Paulo - SP, Tel./Fax: 55 11 3289 7165 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: sbre@terra.com.br