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Possibilidades de reflexão e reflexividade em Administração em tempos de crise

Abro esse novo número da REAd destacando outra vez o contexto de crise. Não se trata de falta de criatividade ou de um alarmismo repetitivo, mas da constatação que a crise sanitária, econômica, social e ecológica que vivemos no Brasil e no mundo nos últimos anos repercute de forma incontornável no fazer acadêmico. Em resposta, é necessário que os pesquisadores empreendam uma reflexão sobre esse momento e sobre as próprias possibilidades (refletidas) de ação.

Ao mirar pela primeira vez o conjunto de artigos que compõem o v. 28, n. 1, de 2022, da REAd, me dei conta de que, apesar das muitas diferenças entre si, eles se comprometeram com a nossa política editorial, de “alta consistência teórica e rigor metodológico (quando for o caso)”2 2 Disponível em https://seer.ufrgs.br/read/. ; esse compromisso possibilitou artigos que contribuem para a teoria e, consequentemente, para o nosso campo de conhecimento, em suas mais variadas áreas de especificidade.

Paulo Freire (2020FREIRE, Paulo. FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020., p. 7) afirma que “o compromisso seria uma palavra oca, uma abstração, se não envolvesse a decisão lúcida e profunda de quem o assume. Se não se desse no plano do concreto”. Nesse sentido, o compromisso dos autores desse número não foi apenas com a linha editorial da REAd, mas com a comunidade acadêmica de administração e, indiretamente, com a sociedade, como sujeitos não alheios ao contexto que lhes cerca, ou às suas determinações históricas.

Ainda que a reflexão se dê em abstrato, como se fosse uma espécie de pensamento ‘de segundo grau’ a respeito de si mesmo, “[...] ela está associada indissoluvelmente à sua ação sobre o mundo” (FREIRE, 2020FREIRE, Paulo. FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020., p 8). No campo da Administração, é cada vez mais necessário avançarmos na produção de conhecimento refletida, comprometida com as vítimas na situação de crise que vivemos.

Esse compromisso não é apartado do conhecimento, mas justamente coloca-o a serviço daqueles que mais necessitam. Freire (2020FREIRE, Paulo. FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020., p. 15), aponta que, quase sempre, técnicos de boa vontade, embora ingênuos, deixam-se levar pela tentação tecnicista (mitificação da técnica). Todavia, em nossos países a alienação cultural é, sem dúvida, uma ameaça perene ao compromisso de pesquisadores.

Com o centro de decisão econômica e cultural, em grande parte fora delas (portanto, sociedades de economia periférica, dependente, exportadora de matérias-primas e importadoras não somente de produtos manufaturados, mas também de ideias, de técnicas, de modelos), são sociedades “seres para outro”. Assim, o primeiro grande obstáculo que se apresenta nestas sociedades ao compromisso autêntico encontra-se na falta de autenticidade de seu próprio ser dual. Estas sociedades são e não são elas próprias.

Aqui, é inevitável mencionar a colonialidade epistêmica e a reprodução acrítica do conhecimento disponível no Norte global. Não que a colonialidade epistêmica e sua origem na dependência dos capitais nacionais sejam novidades. Vêm sendo debatidas e aprofundadas na Administração de modo bastante competente por autores clássicos e contemporâneos. Mas, ainda é necessário ponderar sobre a reflexividade de pesquisadores de nosso campo, no Brasil em específico, desde essas determinações.

Em tempos de crise, com recursos escassos para o investimento público em pesquisa, a REAd tem recebido diversos trabalhos de autores que, claramente, buscam alternativas para garantir a produtividade no cenário adverso do teletrabalho que invadiu lares, do ensino remoto emergencial e da escassez de fontes de financiamento das pesquisas. Cresceu expressivamente nos últimos dois anos o número de bibliometrias e revisões sistemáticas submetidas. Ainda que apliquem de modo correto as técnicas de levantamento e organizações dos dados, a grande maioria desses trabalhos não apresenta densidade teórica, o que justamente dificulta superar a limitação de trabalhos puramente descritivos e avançar em análises que qualifiquem a discussão no campo, bem como evidenciem uma agenda de pesquisa que permita avançar na teoria. Felizmente, há bons trabalhos de revisão sistemática e um deles consta nessa edição da REAd.

Em menor número, mas não menos importante, é a recepção de trabalhos teóricos, que se debruçam sobre algum tema, autor ou conceito específico. Alguns, presos às amarras formais de uma suposta escrita acadêmica ‘de qualidade’, são chamados por seus autores de pesquisas exploratórias com dados secundários. Expõem procedimentos metodológicos nos quais são informadas fontes de consulta, estratégias de busca e organização dos dados etc., mas que, muitas vezes, não têm suficiente fôlego argumentativo, a autoria desvanece e sua contribuição resta bastante limitada.

Esse segundo tipo de trabalho me faz ponderar sobre a importância dos ensaios teóricos: isso que Meneghetti (2011MENENEGHETTI, Francis K. O que é um ensaio-teórico?. Revista de Administração Contemporânea [online]. 2011, v. 15, n. 2, p. 320-332. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1415-65552011000200010>. Acessado 28 Mar. 2022.
https://doi.org/10.1590/S1415-6555201100...
, p. 321), chama de “relação permanente entre o sujeito e objeto, um vir-a-ser constituído pela interação da subjetividade com a objetividade dos envolvidos [...], que requer sujeitos, ensaísta e leitor, capazes de avaliarem que a compreensão da realidade também ocorre de outras formas”.

A forma ensaística gera novos conhecimentos; é meio para apreender a realidade, por renúncia ao princípio da identidade. Assim, surge como tentativa permanente de resolver a questão central da filosofia moderna: a separação e tensão permanente entre sujeito e objeto na compreensão da realidade. É radical, não é dogmático (MENEGHETTI, 2011MENENEGHETTI, Francis K. O que é um ensaio-teórico?. Revista de Administração Contemporânea [online]. 2011, v. 15, n. 2, p. 320-332. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1415-65552011000200010>. Acessado 28 Mar. 2022.
https://doi.org/10.1590/S1415-6555201100...
).

Essa forma de escrita é conhecido nos Estudos Organizacionais, mas ainda é pouco explorada na Administração de modo geral. Nessa edição, temos duas contribuições ensaísticas, uma de Administração Pública e outra de Marketing, apresentadas alguns parágrafos abaixo.

Não me proponho a fazer desse Editorial um elogio ao ensaio, mas apenas reiterar o seu potencial, que ainda pode bastante explorado. Essa forma privilegia, a meu ver, a constituição de um saber fronético, ou seja, na virtude intelectual ponderada e posta em ação com base em julgamento sobre o que é bom ou mau. O conceito de frônese é situado por Aristóteles em sua discussão sobre técnica e episteme. Para Flyvberg (2006)FLYVBERG, Bent Making Organization Research Matter: Power, Values, and Phronesis. In: CLEGG, Stewart R.; HARDY, Cynthia; LAWRENCE, Thomas; NORD, Walter (Eds.). The Sage Handbook of Organization Studies. 2 ed. Thousand Oaks: Sage, 2006. p. 370-387., a frônese em uma pesquisa organizacional diz respeito realizar análises e gerar interpretações de valores e interesses em organizações que tenham como objetivo a transformação. Na crise que enfrentamos, a academia está em transformação e os pesquisadores também participamos ativamente dela.

Flyvberg (2006)FLYVBERG, Bent Making Organization Research Matter: Power, Values, and Phronesis. In: CLEGG, Stewart R.; HARDY, Cynthia; LAWRENCE, Thomas; NORD, Walter (Eds.). The Sage Handbook of Organization Studies. 2 ed. Thousand Oaks: Sage, 2006. p. 370-387. diz que uma pesquisa organizacional fronética é reflexiva e está orientada por quatro perguntas essenciais: (a) para onde estamos indo?; (b) esse desenvolvimento é desejado?; (c) Se devemos, fazer algo, o quê?; (d) quem ganha e quem perde? Por quais mecanismos de poder?

Essas perguntas são igualmente pertinentes quando nos voltamos à produção de conhecimento em Administração nesses tempos de crise. É preciso refletir sobre a área, mas também sobre os compromissos que firmamos em nossa própria produção acadêmica. Isso ajuda a evita a mitificação da técnica, que Freire (2020)FREIRE, Paulo. FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. denunciou, atribui sentido à tarefa que nos propomos a realizar, em um contexto no qual poucas coisas ainda parecem fazer sentido e pode contribuir para superação da crise. Reflexão, reflexividade e ação precisam andar juntas.

Antes de apresentar os artigos que compõem esse número da REAd, agradeço às e aos avaliadores, que abraçaram a tarefa e cujo trabalho é de grande valia para a REAd.

No texto que abre essa edição, Contribuições da problematização filosófica para o estudo da administração pública, Sandro Trescastro Bergue aborda a filosofia como um fazer crítico-reflexivo e radical, desde sua contribuição para o estudo da administração pública. O ensaio explicita a natureza transdisciplinar dos problemas neste campo e propõe a problematização de natureza filosófica como recurso para o aprofundamento de conceitos em oficinas de problematização filosófica.

Na sequência, continuamos na esfera pública, com o artigo de Thaís Alves da Silva e João Marcelo Crubellate, no qual discutem os Efeitos do modelo de financiamento na autonomia das universidades públicas: análise sob o enfoque institucional. Eles suscitam proposições iniciais para a compreensão de um modelo alternativo de autonomia universitária capaz de superar os problemas presentes nos modelos com foco na redução do financiamento público implantados em diversos países, inclusive no Brasil, no escopo da Nova Administração Pública.

O terceiro artigo deste número traz uma contribuição para a discussão metodológica sobre a Utilização da pesquisa-ação no campo das ciências sociais aplicadas. Ana Luiza Leite e Dannyela da Cunha Lemos analisam como os pesquisadores no campo das ciências sociais aplicadas têm utilizado a pesquisa-ação em seus trabalhos por meio de uma revisão sistemática da literatura nacional. As autoras apresentam cuidados e limites durante a sua operacionalização, vislumbrando uma estratégia de pesquisa que pode comportar diferentes paradigmas, epistemologias, ontologias e formas de coleta e análise de dados.

Em seguida, Pedro Luiz Maitan Filho e Ana Lucia Guedes analisam as Contestações discursivas dos trabalhadores à produção flexível em montadoras no sul fluminense de 2016 a 2018, em um artigo que aprofunda estudos acerca da produção flexível quanto ao ideal discursivo do encadeamento produtivo, do desenvolvimento regional ou da gestão da produção nas montadoras e as contestações de trabalhadores ao avanço desse discurso.

No quinto artigo dessa edição, Economia plural em ecovilas: para além da monocultura da mente, Guilherme Smaniotto Tres e Washington José de Souza sistematizam práticas que têm como referência a economia solidária plural e da dádiva. Os autores relacionam o processo produtivo em ecovilas, centradas em ideais de autossuficiência, tempos e processos naturais com uma vida social singular.

Na sequência, um tema polêmico e ao mesmo tempo incontornável é abordado por Marcelo Almeida de Carvalho Silva, Alessandra Costa e Cynthia Adrielle da Silva Santos no artigo A responsabilidade política corporativa por atos de violência no passado: a colaboração da Volkswagen do Brasil com a ditadura civil-militar brasileira. As autoras trazem a noção de responsabilidade política para analisar o colaboracionismo da montadora com o regime ditatorial no Brasil. Para elas, a lógica de continuidade ainda é um ponto sensível na teorização sobre responsabilidade histórica corporativa e que a responsabilidade das corporações por crimes, violações dos direitos humanos, má conduta ou qualquer ato passível de contestação cometidos no passado perpassa diferentes gerações de gestores porque as corporações no presente possuem responsabilidade política e não (necessariamente) só responsabilidade moral.

O sétimo trabalho deste número, Marketing social e ecossistemas de negócios: avaliação reflexiva para proposição de uma visão integrativa, de Marco Aurelio de Souza Rodrigues e Daniel Kamlot, é outro ensaio teórico. Nele, os autores exploram as relações entre Marketing Social e Ecossistemas de Negócio, buscando contribuir para a integração destas áreas de conhecimento e argumentando que a aplicação da análise de ecossistemas pode ser um instrumento valioso no desenvolvimento de estratégias de Marketing Social mais eficientes.

Em Derivativos, valor da firma e governança corporativa no Brasil, Daniel Ferreira Caixe e Matheus Albino Rodrigues abordam a influência da governança corporativa na relação entre o uso de derivativos financeiros e o valor da firma no contexto brasileiro. Os autores estabelecem uma relação entre o prêmio de governança corporativa e o uso de derivativos por empresas listadas na bolsa de valores, quando o mercado brasileiro acredita que esses instrumentos são utilizados para especulação ou benefício dos gestores.

Por fim, o nono e último artigo deste número, Escalabilidade da inovação social em um banco comunitário, de Júlia Mitsue Vieira Cruz Kumasaka, Barbara Braga Cruz, Fernanda Salvador Alves Alves e Andréa Torres Barros Batinga de Mendonça aborda a ocorrência desse processo quando o Banco Palmas, primeiro banco comunitário do Brasil, visa aumentar o seu impacto social e avança no planejamento e na divulgação da inovação social.

Com os votos de boa leitura!

REFERÊNCIAS

  • FLYVBERG, Bent Making Organization Research Matter: Power, Values, and Phronesis. In: CLEGG, Stewart R.; HARDY, Cynthia; LAWRENCE, Thomas; NORD, Walter (Eds.). The Sage Handbook of Organization Studies 2 ed. Thousand Oaks: Sage, 2006. p. 370-387.
  • FREIRE, Paulo. FREIRE, Paulo. Educação e mudança Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.
  • MENENEGHETTI, Francis K. O que é um ensaio-teórico?. Revista de Administração Contemporânea [online]. 2011, v. 15, n. 2, p. 320-332. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1415-65552011000200010>. Acessado 28 Mar. 2022.
    » https://doi.org/10.1590/S1415-65552011000200010

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022
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