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Editorial

EDITORIAL

O Conselho Editorial da Revista Brasileira de Educação, atento ao momento das comemorações dos "500 anos de Brasil", decidiu produzir dois números especiais com o objetivo principal de repensar a memória construída e celebrada na nossa herança pedagógica. O intuito era o de que outra apropriação dessa herança, dirigida pelos desafios do nosso presente, permitisse a elaboração de novos sentidos. Os organizadores do primeiro número optaram pela concentração dos artigos em torno do tema da educação escolar, que, desde a época moderna, configurou-se como a forma principal e dominante de educação.

A comissão organizadora deste segundo número entende que a atual crise da instituição escolar, correntemente apontada na literatura pedagógica, está também denunciando a nossa crise de compreensão dos processos de transmissão e apropriação dos saberes, que passa pela escola, mas não exclusivamente por ela. Sem desmerecer ou secundarizar a importância da escola na formação das novas gerações, o nosso desafio, aquele que procuramos concretizar neste número da Revista, foi o de promover o descentramento da instituição escolar, para que, na tessitura que cruza a cultura, a história e a pedagogia da nossa sociedade, pudéssemos realizar uma reflexão mais ampla sobre os processos educativos e até surpreender, através dela, a instituição escolar e seus dispositivos em ângulos não usuais, ângulos que nos oferecessem uma perspectiva matizada para reelaborar a crítica ao próprio processo de escolarização ou à sua ausência e mesmo ineficácia.

Nosso objetivo foi, portanto, o de provocar uma interlocução entre presente e passado; passado que nunca se entrega a nós, mas que nos envia sinais cifrados do seu misterioso desejo de redenção, redenção de energias humanas nele dolorosamente encarceradas e que nos advertem não só para o constante perigo de ceder à opressão, mas também para a importância de tecer laços de inteligibilidade numa via de mão dupla em que se sai da experiência cotidiana, retornando ao passado e dele partindo para o futuro, que é o nosso presente, com uma compreensão mais larga da complexidade que envolve os nossos problemas culturais e pedagógicos.

A proposta concebida foi a de abordar temas relevantes para a produção da cultura, da sociedade, da história e da educação brasileiras, de um lado, privilegiando as vozes não reconhecidas, desqualificadas ou silenciadas na nossa memória e nas políticas educacionais: as crianças, as mulheres, os índios, os negros, os imigrantes, aqui tratados como sujeitos produtores de fazeres, saberes e sentidos. De outro, buscávamos redesenhar as múltiplas imagens do Brasil nos relatos dos viajantes, nos livros didáticos, nos romances, nos periódicos, nos livros de ciências humanas e sociais. Vasculhamos as pistas de diferentes registros produzidos em diferentes lugares e que, com diferentes intenções, produziram diversas representações sobre quem somos, o que desejamos, como vemos os outros, como pensamos nossas instituições culturais e escolares, nossos projetos de sociedade e de futuro.

Pretendíamos que os articulistas mantivessem o rigor da pesquisa, mas ao mesmo tempo se animassem a encontrar o tom adequado ao envolvimento de um amplo público de educadores das mais variadas áreas do conhecimento, sócios ou não da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação — ANPEd. Dessa forma, convidamos os articulistas a efetuarem um rastreamento do tema sob sua responsabilidade de modo que os leitores pudessem ter uma idéia das transformações, das questões, dos impasses e/ou dilemas significativos, que, ainda hoje, nos afetam de forma direta e indireta. Os autores ficaram à vontade para definir suas questões decisivas, seus recortes espaço-temporais e sua forma de entrada na interlocução com os educadores e a educação. No seu conjunto, os artigos demonstram as diferentes maneiras com que cada autor se aproximou da educação e que muito tem a ver com o lugar social de onde escreve, com as práticas institucionais nas quais está mergulhado e o nível de intimidade com o tema proposto. Todos, porém, partem do mesmo desafio: experimentar surpreender os processos educativos no movimento da história, nas suas práticas socioculturais, políticas e de organização da sociedade civil, tornando visíveis certos lugares pouco freqüentados nas nossas leituras sobre a educação brasileira.

Este investimento foi feito com certas dificuldades iniciais. Alguns especialistas em certas temáticas renunciaram à possibilidade de oferecer sua contribuição pelo acúmulo de tarefas e compromissos anteriormente assumidos. Outros, porém, aceitaram imediatamente o desafio e realizaram esse gesto coletivo traçando seus textos com apuro. Seguiram a diretriz comum que lhes foi proposta, mas não perderam sua originalidade. Esta está plenamente garantida em cada texto, o que nos faz convidar o leitor a focalizar aquilo que é único em cada reflexão sem se preocupar com uma unidade entre os diferentes artigos, entre os diferentes estilos e decisões. Cada escolha ou enfoque tem, no entanto, como ponto de partida a concepção de que a educação é uma espécie de região de fronteiras entre grupos sociais, entre conhecimentos produzidos e em produção, entre poderes e saberes.

Estávamos cientes dos obstáculos com que cada autor se deparou para realizar o seu trabalho devido à provisoriedade,

à discrepância do conhecimento acumulado sobre os diversos temas. O mais interessante, numa visão do conjunto, é como certas questões emergem cruzadas na trama da constituição de diferentes objetos. Não é por acaso que o feminismo, como movimento de educação política da mulher que busca a sua participação na esfera pública e ganha consciência dos problemas sociais, reaparece num feminismo negro, quando se discutem estratégias educativas que criticam a exclusão e o abandono dos negros pobres em nossa sociedade. Ou, ainda, que diferentes estratégias de organização e afirmação criem associações culturais das quais fazem parte formas de mobilização dos jovens, jornalismo militante, propostas de educação que reaparecem quer se trate da questão das mulheres, dos negros, dos índios, dos imigrantes. Ou que, mesmo quando o foco é dirigido para as políticas públicas, entrem em cena os dispositivos pedagógicos como os diários de classe, a confecção e o uso de materiais didáticos, práticas de leitura e escrita e a formação de professores. De fato, surge uma escola plural no entremeio dessas discussões, uma escola que, na maioria dos casos, é assumida por organizações militantes, lideranças laicas e/ou religiosas, ou mesmo associações de pais que chamam a si a tarefa de educar e escolarizar suas crianças e adolescentes. Escolas nas quais emergem estratégias autoritárias de controle sobre a população pobre e trabalhadora e que propõem práticas pedagógicas violentas de despersonalização, como no caso das escolas para menores infratores e órfãos, ou estratégias inovadoras, como no caso das escolas da floresta.

Cabe ainda comentar um último e decisivo aspecto: os testemunhos reunidos de viajantes, literatos, pensadores, educadores e divulgadores da cultura obrigam-nos a interrogar a circulação de estereótipos, de formas de classificação de nós mesmos e dos outros como exercícios de poder, de reconstrução de uma atmosfera mental, de produção de representações de mundo e convenções autorizadas da qual partilharam (ou não) Brasil e Portugal. O mal-estar da relação entre dominadores e dominados revela, nas narrativas apresentadas, aspectos insuspeitos: o dominado aprende, para o bem e para o mal, com o dominador e também o ensina nas entranhas das relações vividas entre a opressão e a resistência para superá-las. Ainda: o conflito não se dá apenas entre dominadores e dominados, mas dentro do próprio grupo dos dominados, que criam sutilezas habilmente engendradas como reações astuciosas, ao mesmo tempo que têm interiorizada a dominação. A diversidade está presente em cada grupo que procura se organizar para se expressar de forma articulada, o que permite leituras mais ricas e menos lineares das silenciosas presenças que pulsam na nossa sociedade, cultura e educação.

Permanências e rupturas nos projetos de reprodução cultural, ressignificando práticas e representações nos contatos interétnicos na sociedade brasileira, opuseram tradições culturais e projetos de modernização, provocaram litígios em vários níveis e empurraram para um conflito aberto e/ou surdo negros e brancos, brancos e índios, homens e mulheres, adultos e crianças, pobres e ricos, Estado e Igrejas. A questão de fundo é a relação entre educação e cidadania. A importância de cada artigo reside não apenas nas novas informações que traz, mas sobretudo nas novas perguntas que levanta, frutos da impaciência de vontades construtivas que, abertas ao presente, retornam às fontes históricas com certo distanciamento em relação ao passado e impregnadas da intenção de recuperar sentidos perdidos, esquecidos. Este caminho de volta é, portanto, um retorno que renova o objeto de estudo e procura pensar simultaneamente as diversas faces do problema construído. As referências bibliográficas dos autores em seus artigos podem funcionar como bússolas para leituras de complementação e enriquecimento dos assuntos tratados.

Além dos artigos, as resenhas e as notas de leitura foram realizadas com a pretensão de divulgar obras, sobretudo algumas recentes e ainda pouco conhecidas, afinadas com a preocupação de repensar o processo formativo no movimento da história, colocar a educação em sintonia com os debates da produção de outras ciências humanas e sociais e apresentar aos leitores interpretações ousadas de alguns projetos educativos, institucionalizados (ou não), forjados no passado ou no presente.

O que apresentamos nessa revista é uma polifonia, dirigida a todos os educadores interessados em renovar a sua perspectiva dos temas educacionais, ancorando-os numa abordagem cultural, e ampliar a sua interlocução e debate com os estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação no país. É sobretudo indicado para os cursos de magistério nos seus diversos níveis com o intuito de repensar a construção das nossas tradições, do nosso imaginário histórico e do nosso legado pedagógico. Também celebramos, pelo avesso, a memória daquela "gente humilde", como diz o poeta em canção popular, afastada das suas raízes e deserdada na distribuição dos bens educacionais e escolares ao longo desses quinhentos anos. Fazemos dessa comemoração uma ocasião de alerta e aprendizado da memória para desenquadrar a pedagogia e perceber não apenas o movimento das idéias, mas também a sua imobilização. Não podemos deixar, diria Maiakovsky, que pisem nossas flores, matem nosso cão, roubem-nos a lua e arranquem a voz da nossa garganta. É forçoso admitir que a ignorância do passado não se limita a prejudicar o conhecimento do presente. Vai além. Compromete, no presente, a própria ação.

Antonio Flávio Moreira

Clarice Nunes

Maria Alice Nogueira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
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