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Contextos ecológicos em uma instituição de acolhimento para crianças

Ecological contexts in a host institution for children

Resumos

Esta pesquisa teve como objetivo conhecer o cotidiano de uma instituição de acolhimento de crianças de zero a seis anos localizada em um município do estado do Espírito Santo. Além disso, buscou-se compreender fatores implicados no desenvolvimento psicossocial das crianças em situação de acolhimento institucional, tendo como base a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano e o procedimento metodológico da inserção ecológica. Entre os núcleos apresentados na teoria, este artigo priorizou a análise do contexto. Os resultados mostram que vários aspectos relacionados ao cotidiano da instituição contribuem para o desenvolvimento psicossocial das crianças - dentre os quais, a oferta de condições institucionais que conduzem a oportunidades de convívio saudável com cuidadores e outras crianças, além da promoção de vivências em vários níveis ambientais -, o que amplia e fortalece a rede de apoio social das crianças e das suas respectivas famílias.

inserção ecológica; acolhimento institucional; criança; desenvolvimento humano


This research aimed at examining the daily life of a host institution for children, from birth to six years old, located in the state of Espírito Santo (Brazil). It also aimed at understanding the factors involved in the psychosocial development of children in residential care. The work is based on the Bioecological Human Development theory and on the methodological procedure of ecological engagement. In this article, among the nuclei presented by the theory, the priority is the analysis of the core context. Results showed that several aspects of daily life in the institution contribute to the psychosocial development of children - such as offering institutional conditions that lead to opportunities of healthy interaction with caregivers and other children, as well as the promotion of environmental experiences on several levels -, and it expands and strengthens the network of social support of the children and their families.

ecological engagement; residential care; child; human development


ARTIGOS

Contextos ecológicos em uma instituição de acolhimento para crianças1 1 . Este artigo apresenta parte do projeto de pesquisa e extensão "Crianças e Adolescentes em Situação de Abrigamento no Município de Vitória – ES", desenvolvido por professores e estudantes do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. A pesquisa recebeu auxílio por meio de bolsa de Iniciação Científica contemplada no PIBIC/2008 concedida pela FACITEC. Nossos agradecimentos à agência financiadora.

Ecological contexts in a host institution for children

Edinete Maria Rosa; Ana Paula dos Santos; Carla Ramos da Silva Melo; Mônica Rocha de Souza

Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo conhecer o cotidiano de uma instituição de acolhimento de crianças de zero a seis anos localizada em um município do estado do Espírito Santo. Além disso, buscou-se compreender fatores implicados no desenvolvimento psicossocial das crianças em situação de acolhimento institucional, tendo como base a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano e o procedimento metodológico da inserção ecológica. Entre os núcleos apresentados na teoria, este artigo priorizou a análise do contexto. Os resultados mostram que vários aspectos relacionados ao cotidiano da instituição contribuem para o desenvolvimento psicossocial das crianças - dentre os quais, a oferta de condições institucionais que conduzem a oportunidades de convívio saudável com cuidadores e outras crianças, além da promoção de vivências em vários níveis ambientais -, o que amplia e fortalece a rede de apoio social das crianças e das suas respectivas famílias.

Palavras-chave: inserção ecológica, acolhimento institucional, criança, desenvolvimento humano.

ABSTRACT

This research aimed at examining the daily life of a host institution for children, from birth to six years old, located in the state of Espírito Santo (Brazil). It also aimed at understanding the factors involved in the psychosocial development of children in residential care. The work is based on the Bioecological Human Development theory and on the methodological procedure of ecological engagement. In this article, among the nuclei presented by the theory, the priority is the analysis of the core context. Results showed that several aspects of daily life in the institution contribute to the psychosocial development of children - such as offering institutional conditions that lead to opportunities of healthy interaction with caregivers and other children, as well as the promotion of environmental experiences on several levels -, and it expands and strengthens the network of social support of the children and their families.

Keywords: ecological engagement, residential care, child, human development.

O objetivo do trabalho aqui descrito foi conhecer o cotidiano de uma instituição de acolhimento à criança de zero a seis anos localizada em um município de aproximadamente 300 mil habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2009) do estado do Espírito Santo e compreender fatores implicados no desenvolvimento psicossocial das crianças em situação de acolhimento institucional. Com esse intuito, buscou-se identificar os contextos ecológicos de desenvolvimento através da análise da dinâmica de funcionamento da instituição, das práticas promovidas junto à família e a comunidade e das relações interpessoais desenvolvidas no contexto institucional.

Partiu-se da concepção de que o desenvolvimento psicossocial é influenciado por múltiplos sistemas ao longo do tempo, pois uma variedade de inter-relações ocorre entre os contextos mais imediatos e os contextos sociais mais amplos (Bronfenbrenner & Morris, 1998). Nesse sentido, para investigar integradamente os múltiplos subsistemas do indivíduo, o trabalho adotou a perspectiva sistêmica proporcionada pela Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano de Urie Bronfenbrenner (Bronfenbrenner, 1996; Bronfenbrenner & Ceci, 1994; Bronfenbrenner & Morris, 1998), e a proposta metodológica da Inserção Ecológica, sistematizada por Cecconelo e Koller (2003).

Para Bronfenbrenner (1996) o desenvolvimento ocorre a partir da interação entre o meio e o indivíduo, entendendo que o contexto ambiental sofre múltiplas influências das ações que estão sendo executadas, das percepções da pessoa, das atividades realizadas e das interações estabelecidas com o meio, influenciando e sendo influenciado pelo indivíduo. Esse contexto ambiental é construído a partir da influência de inúmeros aspectos (como o cultural, o social, o psicológico, o histórico, dentre outros), indo além da situação imediata estabelecida (Kobarg & Vieira, 2008).

Instituições de acolhimento: considerações a partir da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano

De acordo com Bronfenbrenner e Morris (1998) o desenvolvimento humano se dá em quatro núcleos inter-relacionados: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo.

O contexto é analisado através da interação de quatro níveis ambientais: o microssistema, o mesossistema, o exossistema e o macrossistema. O microssistema é definido como o ambiente ecológico em que a pessoa em desenvolvimento experiencia face-a-face um padrão de atividades, papéis sociais e relações interpessoais (Bronfenbrenner, 1996). Dessa forma, o microssistema é o ambiente mais próximo da pessoa e pode ser compreendido pelas relações que ela estabelece com seus pais ou outros cuidadores. Essas relações precisam ter certa estabilidade, serem mútuas, onde o poder esteja equilibrado entre os papéis desempenhados (De Antoni & Koller, 2001). No caso de acolhimento institucional, a instituição será o microssistema central do ambiente ecológico dos infantes nela acolhidos (Siqueira & Dell'Aglio, 2006). Já o mesossistema é formado pelo conjunto de microssistemas que uma pessoa freqüenta e na inter-relação estabelecida entre os mesmos, ampliando-se cada vez que uma pessoa passa a freqüentar e participar de um novo ambiente de forma ativa (Bronfenbrenner, 1996). No caso de acolhimento institucional, o mesossistema consistirá nas interações estabelecidas e ou percebidas pela criança, entre a instituição de acolhimento a qual frequenta e sua família de origem, entre a escola e o serviço de acolhimento institucional (Siqueira & Dell'Aglio, 2006) e ainda entre a instituição e a comunidade.

Siqueira, Betts e Dell'Aglio (2006) lembram que o microssistema e o mesossistema são os ambientes mais importantes para o desenvolvimento das crianças devido à proximidade das relações que são estabelecidas nesses dois níveis. As relações desenvolvidas na transição de vários microssistemas podem agregar mais pessoas à rede de apoio social e afetiva da criança, podendo assumir o papel de fornecer apoio para ela se adaptar e superar eventos estressantes e adversos. Nesse sentido, a transição ecológica entre os microssistemas será eficaz se as interações desenvolvidas nesses contextos forem saudáveis (Bronfenbrenner, 1996).

Já o nível ambiental do exossistema diz respeito aos ambientes nos quais a pessoa não é um participante direto em todas as relações, mas é influenciada indiretamente pelas mesmas no seu contexto mais imediato (Alves, 1997; Bronfenbrenner, 1996). A fim de exemplificar, no que se refere aos serviços de acolhimento, pode-se considerar como constituintes do exossistema: o Conselho Tutelar, o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, assim como a direção da própria entidade (De Antoni & Koller, 2001; Siqueira & Dell'Aglio, 2006).

Segundo Bronfenbrenner (1996) o macrossistema corresponde

às consistências, na forma e conteúdo de sistemas de ordem inferior (micro-, meso- e exo-) que existem, ou poderiam existir, no nível da subcultura ou da cultura como um todo, juntamente com qualquer sistema de crença ou ideologia subjacente a essas consistências. (p.19)

Siqueira e Dell'Aglio (2006) esclarecem que o macrossistema abrange os valores, as ideologias e a organização das instituições sociais, os quais são traduzidos no dia-a-dia das crianças e dos adolescentes acolhidos, de modo especial na maneira como as relações interpessoais são estabelecidas dentro e fora da instituição. Por isso, é essencial que o pesquisador considere o macrossistema em estudos envolvendo sujeitos institucionalizados para que se possa compreender a rede de significações que envolvem a complexa vivência institucional (Santana, 2003).

O Estatuto da Criança e do Adolescente e as instituições de acolhimento

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei nº 8.069 (1990), fundamenta-se nos princípios da proteção integral e prioridade absoluta da criança e do adolescente, visando assegurar os direitos à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à cultura, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Além disso, o ECA proíbe práticas coercitivas relacionadas às crianças e aos adolescentes em condições de risco pessoal e social, além da reafirmação da condição de sujeitos de direito, garantindo-lhes os direitos humanos universalmente reconhecidos. Quando a família não assegura o cumprimento desses direitos, o Estado assume o compromisso de prover órgãos de apoio, como os serviços de acolhimento, para os quais são encaminhadas crianças e adolescentes que estão expostos a vários tipos de abuso, negligência, exploração, vulnerabilidade e outras formas de violência.

No artigo 101, parágrafo único, o ECA caracteriza os serviços de acolhimento como uma medida de proteção provisória e excepcional, ou seja, de caráter transitório para posterior reinserção das crianças e adolescentes no ambiente familiar, não implicando privação da liberdade. Apesar da transitoriedade dessa medida de proteção, pode-se observar que é frequente a permanência do acolhido por um longo período, tornando a instituição um espaço referencial onde são estabelecidos vínculos afetivos, sociais e onde se dá a construção do seu projeto de vida, ou seja, o seu desenvolvimento.

No que tange aos efeitos de um período de acolhimento institucional por tempo prolongado, Rizzini (2007) e Carvalho (2002) apontam a interferência na sociabilidade e a dificuldade para estabelecer vínculos afetivos e sociais na vida adulta. Nessa perspectiva, Carvalho (2002) afirma que a instituição de acolhimento não constitui o melhor ambiente de desenvolvimento, pois o atendimento padronizado, o grande número de crianças sob responsabilidade de um único cuidador, a escassez de atividades planejadas e a fragilidade das redes de apoio social e afetiva são alguns dos aspectos relacionados aos prejuízos que a vivência institucional pode operar no indivíduo. Outro aspecto apontado por Yunes, Miranda e Cuello (2004) é o despreparo dos educadores para lidar com crianças e adolescentes com histórico de privação material e emocional e a falta do convívio familiar como fator de risco para a vivência prolongada em instituições de acolhimento. Siqueira e Dell'Aglio (2007) expõem em seu estudo que a institucionalização pode representar um fator de risco ou de proteção, o que dependerá dos efeitos produzidos sobre os infantes e adolescentes. Entende-se "fator de proteção" como o processo que tem um potencial de reduzir os efeitos negativos mediante um fator de risco, além de atuar como ponto de apoio para seu desenvolvimento (Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004). São exemplos de fatores de proteção nas instituições de acolhimento: a atitude receptiva e acolhedora no momento da chegada das crianças, os vínculos afetivos estabelecidos entre os acolhidos e a equipe, o bom relacionamento entre as crianças, dentre outros. Já como "fator de risco", entende-se o evento que se configura como um obstáculo sob o aspecto individual ou ambiental e que potencializa a vulnerabilidade da pessoa a resultados não almejáveis no seu desenvolvimento (Pesce et al., 2004). Como fatores de risco nas instituições de acolhimento pode-se citar o acolhimento inadequado, a hostilidade entre as crianças, a desorganização na elaboração das atividades, a ausência de vínculos afetivos, dentre outros.

Em relação aos direitos assegurados pelo ECA (1990), o estudo realizado por Silva (2004) identificou o descompasso entre a legislação e a realidade dos serviços de acolhimento. O tempo de permanência ultrapassava o estipulado, sendo que quase metade das crianças e adolescentes pesquisados (52,6%) vivia nas instituições há mais de dois anos. Dentre elas, mais de 1/3 (32,9%) estava nesses serviços de acolhimento por um período entre dois e seis anos, 13,3% entre seis e 10 anos, e 6,4% por um período superior a dez anos. Por outro lado, os dados mostraram que 87% das crianças e adolescentes participantes da pesquisa tinham família, sendo que 58% mantinham vínculo com seus familiares.

Nesse sentido, é importante entender que a instituição de acolhimento é uma medida provisória de proteção que pressupõe um contínuo comprometimento no restabelecimento, para a criança, da possibilidade da reinserção familiar. Assim, a função desse tipo de serviço é desenvolver atendimentos pautados pelos princípios da excepcionalidade e provisoriedade do afastamento familiar, visando fortalecer e preservar os vínculos com a família e a comunidade. Tais diretrizes estão estabelecidas no ECA (1990), nas Orientações Técnicas para os serviços de acolhimento às crianças e aos adolescentes (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente & Conselho Nacional de Assistência Social, 2008) e na Lei nº 12.010 (2009) que dispõe a reavaliação periódica no máximo a cada seis meses da situação das crianças e dos adolescentes inseridos em serviços de acolhimento institucional. Este estudo diagnóstico é realizado por uma equipe interprofissional ou multidisciplinar que apontará a possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta. Esse dispositivo reafirma o caráter transitório da medida de acolhimento institucional que não poderá se prolongar por mais de dois anos e fará parte do Plano de Atendimento Individual (PIA) de cada criança.

Método

Como modelo teórico-metodológico para a realização desse trabalho utilizou-se, como já citado, a inserção ecológica originalmente proposta por Cecconello e Koller (2003) embasada na Teoria Biecológica do Desenvolvimento Humano, e cujo objetivo é o estudo do desenvolvimento humano através da interação de quatro núcleos que se inter-relacionam (Pratti, Couto, Moura, Poletto, & Koller, 2008).

Segundo Cecconello e Koller (2003), na inserção ecológica, o estabelecimento dos processos proximais entre pesquisadores e participantes se apóia nos seguintes aspectos: interação e engajamento em uma tarefa comum; vários encontros em um período relativamente regular e estável; atividades informais que progredirão para atividades mais complexas; reciprocidade nas relações interpessoais não visando questões diretamente relacionadas ao propósito do estudo, mas a postura de informalidade no diálogo dos pesquisadores e participantes que permitirão o desenvolvimento dos processos no contexto estudado; e, os temas abordados nas atividades da pesquisa precisam estimular a atenção e o interesse dos participantes e pesquisadores. Com isso, entende-se por processo proximal um padrão de interação estável e recíproco entre pessoas e seus ambientes, que implicam engajamento, tempo, acréscimo de complexidade nas inter-relações e reciprocidade. Para Bronfenbrenner e Ceci (1994), os processos proximais são os principais propulsores do desenvolvimento de uma pessoa, por possibilitar que seus recursos subjetivos sejam instigados e ampliados através das relações interpessoais.

Nesse sentido, a inserção ecológica como método tem os processos proximais como base de investigação que possibilita efetuar pesquisas em ambientes naturais, tais como, as instituições de acolhimento para crianças.

Participantes

Com o objetivo de obter um resultado representativo, foram incluídas todas as crianças acolhidas pela instituição no período da pesquisa (em média 13 crianças), todas as educadoras sociais (08) e todos os profissionais técnicos (03), totalizando 24 sujeitos participantes da pesquisa. A equipe de pesquisadoras foi composta por três estudantes do sétimo período do curso de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, uma das quais, bolsista, e as demais voluntárias, cuja função foi auxiliar a primeira no acompanhamento, observação e registro das percepções relacionadas ao desenvolvimento das crianças em acolhimento institucional. A professora orientadora da pesquisa realizou visitas à instituição no início e no término da inserção ecológica.

Instrumentos

Como instrumento foi elaborado um roteiro de entrevista semi-estruturado, com algumas questões norteadoras que permitissem extrair relatos pertinentes à dinâmica de funcionamento da instituição, das práticas promovidas junto à família e a comunidade e das relações interpessoais desenvolvidas no contexto da instituição. As entrevistas foram realizadas com a equipe técnica e os educadores sociais da instituição de acolhimento. Os prontuários das crianças institucionalizadas foram utilizados como fontes de dados secundários relativos ao órgão encaminhador, ao tempo e ao motivo do acolhimento, além de conterem informações retiradas de relatórios psicossociais.

Durante o trabalho, as pesquisadoras produziram um diário de campo no qual foram registradas todas as atividades realizadas com as crianças (tais como oficinas de desenhos, seção de filmes e contos de histórias e conversas informais), bem como impressões sobre tais momentos e os discursos emergentes nos espaços da instituição, principalmente aqueles oriundos de suas conversas informais tanto com os educadores quanto com a equipe técnica.

Procedimentos

Na instituição de acolhimento, foram feitos contatos iniciais e reunião com a equipe técnica e educadores sociais para apresentação dos objetivos e do método da pesquisa, e solicitação da colaboração de todos através de informações e esclarecimentos necessários. As três pesquisadoras foram apresentadas às crianças pela equipe técnica que, por sua vez, informou que suas visitas aconteceriam com frequência, tendo como intuito conhecê-las e desenvolver atividades lúdicas, nas quais elas teriam autonomia para participar ou não.

A inserção ecológica no espaço de acolhimento ocorreu a partir do acompanhamento da sua dinâmica de funcionamento por meio de visitas regulares previamente agendadas, observações da rotina institucional e das relações interpessoais, conversas informais e realização de entrevistas com as educadoras sociais e a equipe técnica. A pesquisa de campo ocorreu entre maio de 2008 e janeiro de 2009, período durante o qual foram realizadas trinta visitas à instituição.

Após cada visita, eram realizadas anotações no diário de campo, relacionadas aos discursos emergentes nos espaços da instituição, das impressões das pesquisadoras naquele encontro, assim como das interações provenientes das atividades realizadas com as crianças. As anotações eram apresentadas e discutidas pela equipe de pesquisadores em reuniões com a coordenação.

Nas visitas, primeiramente as pesquisadoras se engajaram nas percepções e descrições do espaço físico da instituição, das relações interpessoais desenvolvidas no contexto institucional, além de análise dos históricos das crianças acolhidas. Posteriormente, foram desenvolvidas atividades (como brincadeiras infantis, desenhos, contos de histórias com fantoches e exibição de filmes infantis), visando proporcionar a interação das pesquisadoras com as crianças. Além disso, foram realizadas entrevistas com a equipe técnica e as educadoras sociais, na fase final do processo de inserção ecológica.

As entrevistas com a equipe técnica foram gravadas, transcritas e analisadas. Já as opiniões das educadoras sociais foram coletadas por meio de questionários, pois as mesmas não se sentiram à vontade para a gravação.

A realização das entrevistas foi precedida pela apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido informando sobre os propósitos do estudo e seus aspectos éticos, garantindo anonimato aos participantes. Como a instituição de acolhimento faz parte dos serviços de alta complexidade da Assistência Social, sendo, portanto de responsabilidade do poder executivo, a pesquisa teve autorização da Secretaria Municipal de Assistência Social do município, além de respaldo da ONG executora do projeto de acolhimento institucional e do comitê de ética da Universidade Federal do Espírito Santo.

Método de análise

A inserção ecológica implica que os pesquisadores sistematizem quatro núcleos: processo, pessoa, contexto e tempo (PPCT). Embora todos esses núcleos tenham sido analisados, este trabalho apresenta apenas os resultados referentes ao contexto ecológico, tendo em vista o volume de material coletado e, com isso, a impossibilidade de exposição e análise de mais de um núcleo em um mesmo artigo científico.

Depois de repetidas leituras do material coletado, os dados foram organizados em categorias, correspondentes aos quatro níveis ambientais definidos pela Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. No microssistema buscou-se identificar conteúdos que se referiam ao contexto imediato do ambiente ecológico investigado, ou seja, a instituição de acolhimento. Como critério de análise do mesossistema procurou-se observar os efeitos da interação dos contextos imediatos, presentes nos discursos proferidos pela equipe técnica, pelas educadoras sociais e pelas crianças. No que se refere ao exossistema, priorizou-se verificar a participação e a influência indireta dos contextos não imediatos na dinâmica de funcionamento da instituição. E, por fim, buscou-se pontuar em quais falas apareceram os elementos como valores, concepções, crenças, ideologias e estereotipias que constituem o contexto ecológico do macrossistema.

Resultados e Discussão

A análise qualitativa dos dados obtidos com a equipe técnica e as educadoras sociais, das informações coletadas nos prontuários e relatórios técnicos das crianças, bem como do material constante do diário de campo, permitiu a identificação dos contextos ecológicos da instituição de acolhimento.

Microssistema

O microssistema imediato pesquisado é uma instituição de acolhimento gerenciada por uma organização não governamental de caráter filantrópico e que atende crianças de ambos os sexos. Além da própria receita da ONG executora, a instituição conta com recursos financeiros oriundos da Prefeitura Municipal e contribuições de doadores espontâneos.

O planejamento das atividades é estruturado pelo regimento interno da ONG que gerencia a instituição de acolhimento com capacidade para atender 12 crianças, na faixa etária entre zero e seis anos de idade, podendo chegar ao limite de 15 crianças, em caso de extrema necessidade. Na época em que foram avaliados os prontuários, havia 13 crianças na instituição, número condizente com o estabelecido nas Orientações Técnicas para o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes que é de 20 pessoas por estabelecimento (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente & Conselho Nacional de Assistência Social, 2008).

A estrutura física da instituição ocupa duas casas. A primeira casa contém escritório (parte administrativa), sala de visitas, cozinha, sala de vídeo e brinquedos, área de serviços, dois banheiros (um infantil e um para adultos), espaço recreativo gramado contendo alguns brinquedos e uma pequena quadra esportiva. A segunda casa é composta por quatro dormitórios, um banheiro e espaço destinado aos armários coletivos das crianças. A instituição possui uma equipe formada por coordenadora (pedagoga), assistente social, psicólogo, oito educadoras sociais, duas cozinheiras, dois motoristas e duas auxiliares de serviços gerais.

O cuidado com as crianças envolve rotina diária de alimentação, higiene, banho, vestuário, ida à escola, medicação, entre outros. Esse cuidado é desenvolvido principalmente pelas educadoras que, como constatado nas diversas idas à instituição, também se envolvem em outras atividades previstas no projeto pedagógico, como brincadeiras, colagem, pintura, desenhos e modelagem com massinha.

Os encaminhamentos para a instituição são realizados pelo Conselho Tutelar e pelo Juizado da Infância e Juventude após o recebimento de denúncia e a constatação de violação dos direitos das crianças. O acolhimento ocorre quando as crianças estão impossibilitadas de se manterem, definitiva ou temporariamente, no convívio da família. Apesar do caráter transitório do acolhimento, o tempo de permanência na instituição geralmente não é breve, pois, conforme relatório da equipe técnica e registro dos documentos pessoais das crianças, a permanência das crianças no local é, em média, cerca de um ano e nove meses, embora sejam relatados casos em que o acolhimento durou apenas um dia.

Os registros da equipe técnica mostraram que no ano de 2008, 33 crianças foram acolhidas pela instituição. No que tange aos motivos do acolhimento, o relatório anual aponta: negligência (39,4%), abandono (18,2%), recambiamento (retorno à cidade de origem da criança, 15,1%), situação de rua (15,1%), violência doméstica (caracterizada pela violência física, 15,1%), dependência química dos pais (12,1%), ameaça de morte (6,0%), abuso sexual (3,0%) e transferência de outra instituição acolhedora (3,0%). Ressalte-se que a causa de acolhimento de algumas das crianças relaciona-se a dois ou três dos motivos citados.

Por sua vez, dados referentes ao ano de 2008 apontam que, naquele ano, 34 crianças saíram da instituição de acolhimento, sendo que 44,1% foram reintegradas à família de origem, 20,6% foram recambiadas, 20,6% adotadas por famílias brasileiras, 8,8% adotadas por famílias estrangeiras, 2,9% transferidas para outra instituição acolhedora e 2,9 % devido à concessão jurídica da guarda.

No que tange às relações entre crianças e suas educadoras, observou-se momentos de manifestação de afeto, em que as educadoras eram carinhosas, faziam elogios às crianças, ofereciam oportunidades de atenção e trocas afetivas através de beijos e abraços. Algumas educadoras disseram gostar do que fazem apesar do trabalho cansativo e da quantidade excessiva de crianças por educador. Devido ao número reduzido de educadoras para realizar o cuidado das crianças (duas educadoras por turno para 13 crianças), em algumas situações as relações estabelecidas eram prejudicadas pela escassez do tempo que elas podiam dedicar a cada criança, tornando, muitas vezes, o trabalho mecanizado, como pôde ser observado pelas pesquisadoras no momento do banho.

As crianças apresentaram vínculo afetivo positivo com a comunidade estabelecido principalmente nas visitas semanais, ocasião em que desenvolvem brincadeiras com os visitantes, grande parte dos quais moradores do bairro, e demonstravam alegria na interação com eles.

Avaliando a relação estabelecida entre as crianças, algumas educadoras disseram que "se tratam como se fossem irmãos: brincam juntas, conversam, brigam por atenção, desenvolvem uma relação de amizade onde há cooperação e em outras vezes disputam brinquedos". Segundo informações dadas pela equipe técnica e pelas educadoras sociais, as crianças que estão a mais tempo na instituição demonstram sentirem falta daquelas que vão embora (reintegradas às famílias de origem ou encaminhadas para adoção).

O contato inicial das pesquisadoras com as crianças foi mediado pelas educadoras e pela equipe técnica, que auxiliaram dando informações de como proceder nas interações. Com o passar do tempo, conseguiu-se desenvolver interações sem a mediação das educadoras e as crianças passaram a pedir a realização de atividades e a escolher brincadeiras a realizar. Assim, as educadoras sociais deram autonomia às pesquisadoras na realização das atividades junto às crianças, passando a observá-las de longe.

Com o estreitamento de vínculos, as crianças passaram a demonstrar afeto pelas pesquisadoras solicitando abraços, beijos e colo, ou seja, pedindo atenção individualizada. Em algumas sessões de desenho livre, elas demonstraram desejo de retornar à família, desenhando os familiares, a casa, e descrevendo características do pai e da mãe. Em vários momentos dessa interação, as pesquisadoras observaram a relação fraternal estabelecida entre os acolhidos, como tinha sido relatado no discurso das educadoras. Dentre essas evidências, podem-se citar situações de cuidado um com o outro, solidariedade e realização de atividades em grupo, bem como disputas por brinquedos e pela atenção dos adultos.

Mesossistema

Mediante a análise do diário de campo e das entrevistas realizadas com a equipe técnica e com as educadoras sociais, constatou-se a interação da instituição de acolhimento com os seguintes microssistemas: família (nuclear, extensa e substituta), Escola, Conselho Tutelar, Unidade de Saúde, Comunidade, Juizado, locais de lazer e outros serviços de acolhimento administrados pela ONG.

A interação com o microssistema familiar dá-se por meio de visitas de seus próprios familiares, de pessoas da comunidade ou de adotantes que estão na fila de espera. Por meio da participação das pesquisadoras em atividades em dias de visitas, foi possível perceber que poucas crianças recebem visitas frequentes dos seus familiares, sendo mais comuns visitas de pessoas da comunidade local ou de outras pessoas não tão próximas a elas.

A equipe técnica também realiza visitas às famílias de origem ou às famílias que buscam a guarda ou a adoção das crianças, promovendo uma aproximação da criança, sempre que possível. Tais visitas configuram-se como a principal ação da equipe técnica em prol da reinserção familiar dos infantes, assegurando-lhes o direito a convivência familiar e comunitária, conforme previsto no ECA (1990).

Apesar de se ter um dia determinado para as visitas, elas aconteciam cotidianamente fazendo com que o espaço institucional se apresentasse bem aberto à comunidade. As interações entre familiares, adotantes ou mesmo entre pessoas da comunidade e as crianças, na maioria das vezes, constituíram fatores de proteção, pois fortaleciam os vínculos afetivos, antes abalados, ajudando no resgate de uma relação mais confiante da criança com um adulto já que muitas foram marcadas pela violência que destrói total ou parcialmente a confiança que ela deposita em um adulto protetor.

Os mesossistemas relacionados ao lazer são praias, parques, circo, teatro, praça e mesmo supermercado. A ida a esses lugares proporciona alegria às crianças, e também algum aprendizado, conforme relatam os participantes adultos: educadora: Nossa! As crianças adoram, pedem para sair. Membro da equipe técnica: Quando eu cheguei aqui, há um ano e dois meses, essas crianças não sabiam reconhecer, diferenciar chips de pipoca, não sabiam o que é supermercado, não sabiam.

Os ambientes ecológicos da escola e da unidade de saúde são elementos constituintes da rede socioassistencial oferecidos pelo município, e configuram-se como mesossistemas das crianças, tanto no período em que se encontram na instituição quanto no processo de reintegração familiar. Durante e após o processo de reinserção da criança na família, a equipe técnica realiza acompanhamento a fim de verificar se os serviços que estavam sendo oferecidos continuam compondo a rede de apoio social delas.

A rede socioassistencial é apontada pela equipe técnica como "um serviço de apoio e aparato para manutenção e/ou efetivação da reintegração". No caso da unidade de saúde, essa é sempre acionada para atendimentos médicos, odontológicos e psicológicos. No que tange a interação com a escola, essa é apresentada como um ambiente ecológico que promove atividades externas para as crianças, além de um espaço de aprendizado e de uma alternativa de saída da rotina da instituição de acolhimento.

O mesossistema Conselho Tutelar relaciona-se com o ambiente imediato como órgão encaminhador das crianças à instituição de acolhimento mediante violação dos direitos, enquanto o Juizado atua mais fortemente no processo de desligamento do espaço institucional.

Exossistema

Captou-se por meio do relato das conversas informais registradas no diário de campo e das entrevistas, que os ambientes que constituem o exossistema das crianças acolhidas são: o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, o Conselho Tutelar, a Vara da Infância, o Ministério Público, o Juizado da Infância e Juventude, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), a rede de atendimento municipal e estadual (aúde, educação e assistência social), a ONG executora e a Secretaria Municipal de Assistência Social.

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária atua direcionando a prática psicossocial da equipe técnica. O Conselho Tutelar e o Juizado atuam no encaminhamento das crianças às instituições de acolhimento, tendo a função de sugerir (ou não) a destituição do poder familiar, algo de responsabilidade somente do Ministério Público, bem como a destituição do próprio juiz de direito em si. Dessa forma, o Juizado detém o poder decisório sobre o destino das crianças no que se refere à possibilidade de adoção ou retorno à família de origem.

Outros contextos que as crianças não participam diretamente, mas que de forma indireta influenciam suas vidas, são os CRAS e a rede de atendimento municipal e estadual que ofertam serviços para as famílias via o acionamento realizado pela equipe técnica da instituição, que as encaminham para inserção em programas socioassistenciais.

A ONG mantenedora também é parte importante do exossistema, cuja função é promover o gerenciamento administrativo da instituição de acolhimento, definindo o atendimento realizado na instituição e oferecendo curso de formação continuada aos educadores sociais. A prefeitura atua por meio da Secretaria Municipal de Assistência Social supervisionando a equipe técnica e definindo o tipo de atendimento a ser realizado nas instituições que recebem subsídios da mesma.

As educadoras mencionaram suas próprias famílias como um exossistema das crianças em acolhimento institucional que as influenciam principalmente na educação ministrada às crianças acolhidas na instituição. Por outro lado, a relação estabelecida dentro do ambiente de acolhimento repercute dentro dos lares de algumas educadoras fazendo-as modificar suas práticas educativas. A fim de exemplificação, tem-se a questão do estabelecimento de regras e a valorização do diálogo em detrimento de punições físicas.

Macrossistema

O macrossistema corresponde ao conjunto de crenças, ideologias e estereótipos de uma dada cultura ou subcultura. No caso da instituição de acolhimento, os elementos constituintes desse contexto ecológico apresentaram-se, majoritariamente, nos discursos proferidos pela equipe técnica e pelas educadoras sociais conjugando imagens de família, pobreza e crianças abandonadas.

Os conteúdos discursivos revelaram a persistente imagem que se tem da infância desprotegida caracterizada principalmente pela pobreza, como demonstra o discurso de um membro da equipe técnica: "as famílias [das crianças] são de baixíssima renda".

Embora atualmente já se legisle a favor do direito da criança viver com sua família de origem a despeito de sua condição financeira (ECA,1990), pesquisas têm apontado a pobreza como a principal causa de institucionalização de crianças e de adolescentes e a principal dificuldade para o retorno dessas para suas famílias de origem (Silva, 2004). Tal condição, associada à constatação de fragilidade, ausência ou perda do vínculo familiar, aumenta significativamente o contingente de famílias impedidas de terem consigo seus filhos e cria condições para o fortalecimento do estereótipo de incapacidade das famílias pobres.

Em menor proporção, as pesquisas indicam como dificuldade para o retorno familiar a ausência de políticas públicas e de ações institucionais de apoio à "reestruturação" familiar (Silva, 2004) o que faz pensar que, muitas vezes, os problemas são analisados superficialmente.

Outro conteúdo macrossistêmico presente nas entrevistas realizadas neste trabalho foi a concepção de acolhimento institucional como "instituição prisional", ancorada na imagem de "orfanato" muito presente na história da assistência à infância no Brasil (Rizzini & Rizzini, 2004), conforme comentário de membro da equipe técnica:

A gente procura estar sempre levando para atividades externas, e inseri-los em escola, atividades culturais e esportivas tentando fugir um pouco dessa coisa prisional, dessa coisa assim meio fechada dos abrigos, da idéia dos orfanatos.

Conforme Rizzini e Rizzini (2004), os orfanatos foram instituições para educação de órfãos e de órfãs instalados no Brasil por religiosos no século XVIII e funcionavam seguindo o modelo do claustro e da vida religiosa, com práticas religiosas e o restrito contato com o mundo exterior.

Essa idéia persiste, muito embora as práticas na instituição pesquisada já apontem para novas configurações da assistência voltada mais para a inclusão que para a segregação das crianças. Sobre a prática da instituição pesquisada um membro da equipe técnica esclarece:

A gente tem uma cultura de abrigo no país que historicamente as coisas eram feitas dentro dos abrigos, dentro dos grandes orfanatos... Hoje a cultura é de inserção à comunidade. Se elas precisam de algum atendimento que seja mais específico, vão até a unidade do bairro.

Outro discurso macrossistêmico proferido pela equipe técnica se referia a descrença na adoção tardia. Eles faziam menção à preferência dos adotantes por crianças com pouca idade em detrimento de crianças mais velhas o que conduzia suas práticas para uma tentativa maior de reinserção nesses casos.

Quando a criança é um pouco mais velha, a gente faz esse trabalho de aproximação, onde o risco de um retorno dessa criança a um abrigo é maior (...) a criança mais velha e tem aquela cultura que vai dar problema.

Esses estereótipos apresentam-se relacionados com o imaginário de enfrentamento de futuros problemas no que se refere à construção de vínculos afetivos e de comportamentos desajustados adquiridos pela vivência institucional, além do medo de que haja interesse do adotado em conhecer sua família biológica (Puretz & Luiz, 2007).

Segundo Oliveira Neto e Pachá (2008) o cadastro nacional de adoção aponta que 80,7% dos adotantes exigem crianças com no máximo três anos. Entretanto, o sistema mostra que apenas 7% das crianças que estão disponíveis para adoção possuem essa idade. Estudo realizado por Mariano e Rossetti-Ferreira (2008) revelou que nos 110 processos de adoção analisados em sua pesquisa e existentes na Comarca de Ribeirão Preto entre os anos 1991 a 2000, 70% das crianças adotadas tinham até um ano de idade. Porém, cabe lembrar que dos 110 processos, 72,7% referiam-se a adoção "pronta", ou seja, aquela em que a criança já se encontra com o adotante tendo sido dada diretamente pela família biológica ou por outros meios sem a intermediação da justiça.

Outro ideário presente nos discursos foi existência da estereotipia da criança acolhida como aquela digna de pena, assim como o ideário do tempo de acolhimento institucional como um período nocivo ao desenvolvimento da criança, o que se pode ver nos extratos de discursos a seguir:

Educadora: Algumas [pessoas da comunidade] até falam coitadas. Às vezes a gente pensa que só porque está abrigado é tudo igual [sem identidade], mas não é.

Membro da equipe técnica: (...) trabalhar para que o tempo de abrigamento seja o menor possível, que a gente sabe de como é nocivo esse período de abrigamento para o desenvolvimento de uma criança pessoalmente.

Bronfenbrenner esclarece que se o ambiente ecológico em que a criança está inserida for bom, o tempo contará a favor do seu desenvolvimento, caso contrário, o tempo contará desfavoravelmente. O potencial desenvolvimental do meio ambiente é observado na medida em que permite a motivação e o engajamento do sujeito em atividades e interações cada vez mais complexas (Bronfenbrenner, 1996).

Ainda outra percepção presente nos discursos dos educadores e que corrobora esse imaginário que idealiza a família nuclear como a única fonte segura de proteção e afeto foi a falta de reconhecimento da qualidade das políticas públicas para a infância apontando o serviço de acolhimento institucional como uma opção ruim para a criança como se depreende do discurso de um dos participantes:

A gente sabe que o abrigo não é a melhor, nem perto da melhor opção para eles, nada substitui uma família de verdade, mas assim a gente tenta fazer o melhor possível. (Membro da equipe técnica)

Isso indica que a instituição de acolhimento não é reconhecida como parte essencial da rede de apoio social e afetiva que pode oferecer para a criança que foi violada em seus direitos uma oportunidade para ser acolhida e criar vínculos afetivos fortes contribuindo para o seu desenvolvimento saudável, gerando bem estar, competência e autonomia (Cassol & De Antoni, 2006).

Considerações finais

A Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano proporciona a compreensão de vários sistemas de influência, desde os mais distais até os mais próximos, que acabam por constituir o entorno ecológico de cada pessoa. As instituições de acolhimento são espaços de diversas interações e vivências que podem influenciar em vários aspectos o desenvolvimento psicossocial das crianças.

O acompanhamento da dinâmica de funcionamento da instituição permitiu observar a proximidade das relações que são estabelecidas nos níveis ambientais por meio da metodologia da inserção ecológica. No ambiente imediato, chamado de microssistema, observamos aspectos positivos para o desenvolvimento psicossocial das crianças, dentre eles, o bom relacionamento entre as crianças e seus cuidadores. Estes buscam sempre interagir e atendê-las em suas necessidades, compondo relações proximais favoráveis ao seu desenvolvimento psicológico manifestado em relações positivas de apego. Entende-se por apego o desejo e a necessidade que as crianças manifestam por proximidade e contato com uma figura específica, nesse caso, o cuidador. Percebeu-se assim que, corroborando Alexandre e Vieira (2004), após a separação de suas famílias, as crianças acolhidas tentam encontrar outra figura de apego em diferentes situações e contextos.

Percebeu-se, também, o cumprimento dos direitos previstos no Estatuto e das recomendações presentes nas Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento, na medida em que a instituição oferece serviço de proteção integral à criança, com boas instalações físicas, além de promover ações de reintegração familiar, tendo em vista que o acolhimento institucional constitui uma medida de proteção provisória. O relatório técnico da Instituição indica que, em 2008, 73,5% das crianças acolhidas foram integradas em novas famílias adotivas ou reintegradas às suas famílias de origem.

Durante as visitas as crianças sempre se mostraram atenciosas e buscaram interagir de modo positivo. Em nenhum momento reclamaram da instituição, embora algumas relataram que as mães voltariam para buscá-las ou ainda que gostariam de morar em outras casas. Essas falas chamam a atenção para o fato de que, mesmo tendo boas condições nos serviços de acolhimento, as crianças manifestaram o desejo de voltar para a família de origem ou até mesmo serem adotadas.

O microssistema e o mesossistema são os níveis nos quais as crianças realizam maior número de atividades, assumem diferentes papéis e estabelecem interações recíprocas com as pessoas, com os símbolos e com os objetos. A ampla rede de apoio socioassistencial que é formada por órgãos governamentais e não governamentais é um elemento essencial para o desenvolvimento das crianças, pois organiza um sistema ecológico variado, dando qualidade ao mesossistema das crianças acolhidas.

O macrossistema correspondente, predominantemente, à concepção de família fundada no sentido biológico da união entre seus membros, esteve significativamente presente nos discursos dos educadores da instituição pesquisada. No entanto, faz-se necessário alertar educadores e equipe técnica para a necessidade de refletir com as crianças sobre a função da família, evitando reforçar estereótipos e preconceitos presentes no cotidiano de nossa sociedade. A análise das práticas diárias, tanto dos educadores sociais, quanto da equipe técnica junto às famílias e crianças atendidas pelo serviço de proteção integral, o incentivo à interação com outros microssistemas e, ainda, a implementação de políticas públicas de incentivo à adoção, são importantes dispositivos na desestigmatização de aspectos macrossistêmicos referentes ao acolhimento institucional.

Essas análises permitem concluir que a instituição de acolhimento configura-se como um ambiente propulsor de desenvolvimento, conforme as características aqui apresentadas, ao oferecer condições institucionais que conduzem oportunidades de convívio saudável com cuidadores significativos, além de promover vivências em vários níveis ambientais ampliando e fortalecendo a rede de apoio social das crianças e das suas respectivas famílias.

Apesar da instituição respeitar as Orientações Técnicas que sugerem a existência de uma educadora para cada seis crianças em instituições que tenham pelo menos dois usuários que demandam atenção especial (nesse caso por terem idade inferior a um ano), sugere-se aumentar o número de educadores. A redução da relação criança/educador para, no máximo, quatro para um, proporcionará uma relação de apego mais forte e favorável à superação das necessidades de carinho e proteção das crianças acolhidas.

Sugere-se, ainda, uma formação mais efetiva dos trabalhadores dos serviços de acolhimento que os capacite para lidar com crianças e adolescentes com histórico de privação material e emocional, contribuindo para a desmistificação de alguns ideários do macrossistema, fortalecendo a instituição como espaço de proteção para os seus acolhidos.

Nota

Recebido em 21.out.09

Revisado em 03.mai.10

Aceito em 24.dez.11

Edinete Maria Rosa, doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, é professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES, Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória-ES. CEP: 29075-910. Telefones: (27) 4009-7645/(27) 4009 -2501. E-mail: edineter@gmail.com

Ana Paula dos Santos é aluna da graduação em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: paulinha.st@hotmail.com

Carla Ramos da Silva Melo é aluna da graduação em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: carlameloramos@yahoo.com.br

Mônica Rocha de Souza é aluna da graduação em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: monikitapsi@gmail.com

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  • 1
    . Este artigo apresenta parte do projeto de pesquisa e extensão "Crianças e Adolescentes em Situação de Abrigamento no Município de Vitória – ES", desenvolvido por professores e estudantes do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. A pesquisa recebeu auxílio por meio de bolsa de Iniciação Científica contemplada no PIBIC/2008 concedida pela FACITEC. Nossos agradecimentos à agência financiadora.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Revisado
      03 Maio 2010
    • Recebido
      21 Out 2009
    • Aceito
      24 Dez 2011
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