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Proposta de um novo método para a definição de indicadores de segurança hídrica no abastecimento público

A new approach for defining water security indicators for water utilities

RESUMO

A compreensão de segurança hídrica requer a utilização de índices, que são estabelecidos com base em indicadores. A escassez de indicadores para compor um índice para avaliar a segurança hídrica no abastecimento público foi o que motivou a realização deste estudo. O objetivo central do artigo é apresentar um novo método capaz de identificar indicadores para o abastecimento na escala municipal. Para tanto, foram realizadas modificações em um método de análise de processos do tipo causa-efeito, no qual foram inseridos os aspectos e impactos gerados pelos agentes envolvidos. O método foi aplicado no município de Caxias do Sul (RS). Os indicadores obtidos foram verificados com especialistas e com as partes interessadas. Os resultados mostraram que, para o caso da área de estudo, 34 indicadores são capazes de compor um índice de segurança hídrica.

Palavras-chave:
risco; abastecimento; segurança hídrica

ABSTRACT

Understanding water security requires the use of indices, which are established from indicators. The dearth of indicators to compose an index to assess water security in the public water supply was the motivation for this study. The main objective of this paper was to present a novel method capable of identifying indicators for water supply at a local scale. In order to do so, modifications were made to a cause-effect process analysis method, which included the aspects and impacts generated by the parties involved. The method was applied in the municipality of Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. The indicators were verified with experts and stakeholders. Results showed that, for the area of study, 34 indicators are capable of adequately composing a water security index.

Keywords:
risk; water supply; water security

INTRODUÇÃO

Diversos estudos sobre segurança hídrica concentram suas pesquisas em grandes regiões, não apresentando indicadores que possam ser utilizados no abastecimento público (OBRACZKA et al., 2019OBRACZKA, M.; PINTO, S.O.M.; MARQUES, C.F.; OHNUMA, A.A. Emprego de indicadores na avaliação do saneamento - região hidrográfica médio Paraíba do Sul. Revista Internacional de Ciências, v. 9, n. 1, p. 3-21, 2019. https://doi.org/10.12957/ric.2019.34288
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; BRITO et al., 2020BRITO, F.S.L.; PESSOA, F.C.L.; CRISPIM, D.; ROSÁRIO, K.K.L. Uso de indicador hídrico na Ilha de Cotijuba, município de Belém-PA. Revista de Gestão de Água da América Latina, v. 17, n. 2020, e11, 2020. https://doi.org/10.21168/rega.v17e11
https://doi.org/https://doi.org/10.21168...
; SANTOS; REIS; MENDIONDO, 2020SANTOS, A.C.; REIS, A.; MENDIONDO, E.M. Segurança hídrica no Brasil: situação atual, principais desafios e perspectivas futuras. Revista DAE, v. 68, n. 225, p. 167-179, 2020. https://doi.org/10.36659/dae.2020.060
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). Além disso, o conceito de segurança hídrica (ANA, 2019AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO (ANA). Plano Nacional de Segurança Hídrica. Brasília: ANA, 2019. Disponível em: Disponível em: http://arquivos.ana.gov.br/pnsh/pnsh.pdf . Acesso em: 23 set. 2020.
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) é muito amplo e abrange uma escala continental, o que desfavorece sua aplicação direta na escala municipal. Por conseguinte, a dificuldade está em definir uma maneira mais precisa de avaliar a segurança hídrica em nível local, especialmente no setor do abastecimento público, que desempenha papel fundamental para garantir o desenvolvimento social e econômico de uma cidade.

Uma maneira de mensurar a segurança hídrica no abastecimento público, de forma que seja possível sua comparação entre regiões distintas, é com a utilização de índices. A composição de um índice requer a identificação de indicadores adequados para sua quantificação. Entretanto, esse termo possui diversas definições na literatura e é normalmente confundido ou mal interpretado. Assim, no contexto deste estudo, o indicador é uma variável mensurável que descreve o sistema, ajudando a gerar discussão, o que o torna um instrumento poderoso na gestão dos recursos hídricos em direção à meta estabelecida (GARRIGA; FOGUET, 2013GARRIGA, R.G.; FOGUET, A.P. Unravelling the linkages between water, sanitation, hygiene and rural poverty: the WASH Poverty Index. Water Resources Management, v. 27, n. 5, p. 1501-1515, 2013. https://doi.org/10.1007/s11269-012-0251-6
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; COUTO, 2018COUTO, E.A. Aplicação dos indicadores de desenvolvimento sustentável da norma ABNT NBR ISO 37120:2017 para a cidade do Rio de Janeiro e análise comparativa com cidades da América Latina. 2018. Monografia (Graduação em Engenharia Civil) - Escola Politécnica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.). Os indicadores de segurança hídrica devem ser, preferencialmente, baseados em dados disponíveis e complementados com a opinião de especialistas (VAN BEEK; ARRIENS, 2014VAN BEEK, E.; ARRIENS, W.L. Water security: putting the concept into practice. Stockholm Environment Institute, Technical Committee (TEC), Global Water Partnership, 2014.). Contudo, não há soluções e indicadores únicos e aplicáveis para todos os contextos.

A escassez de indicadores na escala local foi a lacuna identificada na bibliografia que motivou este estudo. Diante disso, a presente investigação propõe um novo método para auxiliar na identificação de indicadores para avaliar a segurança hídrica no abastecimento público de água em escala municipal, utilizando as dimensões humana e econômica como base para tanto. Essas dimensões permitem quantificar os déficits de atendimento às demandas efetivas e seus riscos associados (ANA, 2019AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO (ANA). Plano Nacional de Segurança Hídrica. Brasília: ANA, 2019. Disponível em: Disponível em: http://arquivos.ana.gov.br/pnsh/pnsh.pdf . Acesso em: 23 set. 2020.
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), por isso elas respondem adequadamente às exigências de segurança hídrica no abastecimento. Para atingir essa meta, tomou-se como base um método de análise de processos que é capaz de avaliar a sustentabilidade em diferentes áreas e que permite relacionar as características do local de estudo com os impactos gerados. A aplicabilidade do método foi testada no município de Caxias do Sul (RS).

METODOLOGIA

O Método de Análise de Processo (TAHIR; DARTON, 2010TAHIR, A.C.; DARTON, R.C. The process analysis method of selecting indicators to quantify the sustainability performance of a business operation. Journal of Cleaner Production, v. 18, n. 16-17, p. 1598-1607, 2010. https://doi.org/10.1016/j.jclepro.2010.07.012
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) avalia a sustentabilidade de empreendimentos. Para representar de forma mais clara a definição dos indicadores, foi modificado pela incorporação de etapa do Método de Gestão Ambiental (MOURA, 2004MOURA, L.A.A. Qualidade e gestão ambiental. 4. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.), com a avaliação dos aspectos e impactos sobre as dimensões humana e econômica (ANA, 2019AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO (ANA). Plano Nacional de Segurança Hídrica. Brasília: ANA, 2019. Disponível em: Disponível em: http://arquivos.ana.gov.br/pnsh/pnsh.pdf . Acesso em: 23 set. 2020.
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) envolvidas no abastecimento público. Para a definição do conjunto de indicadores, cinco passos (Figura 1) foram seguidos:

  1. Diagnóstico do abastecimento público: Esta etapa envolve a análise do sistema de abastecimento: a situação dos mananciais, a capacidade de tratamento e distribuição de água e os riscos relacionados à água no município;

  2. Identificação do conceito e abrangência da segurança hídrica: Conceituar a segurança hídrica para guiar a definição dos indicadores. Este estudo foi delimitado nas dimensões humana e econômica, conforme proposto no Plano Nacional de Segurança Hídrica - PNSH (ANA, 2019AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO (ANA). Plano Nacional de Segurança Hídrica. Brasília: ANA, 2019. Disponível em: Disponível em: http://arquivos.ana.gov.br/pnsh/pnsh.pdf . Acesso em: 23 set. 2020.
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    ). Sendo assim, existe segurança hídrica quando há acesso a quantidade e qualidade adequadas de água de forma a sustentar o desenvolvimento socioeconômico;

  3. Definição da abrangência espacial e temporal: Os limites do sistema são definidos em escala espacial e temporal. A primeira é o tamanho físico do sistema, neste caso o município. A segunda consiste no período em que os impactos serão considerados; neste caso serão utilizados dados históricos de economia e população desde 2000 e projeções de crescimento populacional e demandas para o ano de 2050;

  4. Definição dos indicadores: Inicialmente, os aspectos causadores de impactos no sistema são identificados. Um aspecto ambiental caracteriza-se pela associação de um agente da poluição com um dado evento (MOURA, 2004MOURA, L.A.A. Qualidade e gestão ambiental. 4. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.). Os agentes geradores desses aspectos são denominados Geradores de Impacto (GI), entre os quais, por exemplo, os munícipes, as atividades econômicas, as mudanças climáticas e as alterações nas legislações. A combinação do agente da poluição com a causa do aspecto resulta em impacto no sistema, que pode ser positivo ou negativo. Esses impactos geram problemas no sistema e são enfrentados pelas partes interessadas, chamadas de Receptores dos Impactos (RI), sendo elas os próprios munícipes (atuais e futuros) e a empresa de abastecimento. Sendo assim, os indicadores foram definidos conforme a necessidade de monitorar cada um desses impactos no sistema (os negativos e os positivos);

  5. Verificação: A última etapa deste método submete os indicadores a verificação por meio de revisão e consulta de especialistas e das partes interessadas (a empresa de saneamento). Para tanto, o conjunto final de indicadores, com um formulário solicitando a avaliação quanto à relevância deles, foi enviado para 29 pessoas, divididas entre acadêmicos e profissionais do saneamento. Ao fim da pesquisa, foram obtidas 22 respostas.

Os passos 4 e 5 podem se repetir até que seja obtido um conjunto refinado de indicadores.

Figura 1 -
Fluxograma de Aplicação do Método de Análise de Processo.

APLICAÇÃO DA METODOLOGIA: O CASO DE CAXIAS DO SUL, NO RIO GRANDE DO SUL

O município de Caxias do Sul (Figura 2) está localizado na parte nordeste do Estado do Rio Grande do Sul e possui área de 1.648,60 km². O clima é subtropical, com temperatura média anual variando entre 14 e 17°C, enquanto a temperatura média do mês mais frio oscila entre 8 e 14°C e a temperatura média do mês mais quente varia entre 17 e 23°C (ROSSATO, 2011ROSSATO, M.S. Os climas do Rio Grande do Sul: variabilidade, tendências e tipologia. 2011. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia, Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.), com altimetria que varia de 30 até 1.000 m (BELLADONA; VARGAS, 2017BELLADONA, R.; VARGAS, T. Space-time precipitation distribution and the relevance of the orography of Caxias do Sul, Brazil. Revista Brasileira de Cartografia, n. 69/3, p. 607-620, 2017.) em relação ao nível mar. Por sua natureza topográfica, ele possui um sistema complexo de abastecimento de água, o que dificulta sua operação.

Figura 2 -
Localização de Caxias do Sul, RS.

Precipitação

A análise da precipitação tem papel importante na avaliação da segurança hídrica. A Figura 3 apresenta a precipitação adimensional, com a média anual de 1946 até 2016, e média móvel de dez anos. Com a média móvel, observa-se que a precipitação se mantém em conformidade com a média esperada ou supera esse valor na maior parte do tempo.

Figura 3 -
Precipitação adimensional de Caxias do Sul (1946 até 2016).

População

Caxias do Sul possui 517.451 habitantes (IBGE, 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Caxias do Sul. 2020. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/caxias-do-sul/panorama . Acesso em: 14 out. 2020.
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). As informações da população brasileira e mundial dos anos 2000 até 2050 foram obtidas de United Nations (2019UNITED NATIONS. World Population Prospects 2019. United Nations. Disponível em: Disponível em: https://population.un.org/wpp/ . Acesso em: 22 dez. 2019.
https://population.un.org/wpp/...
), o que permitiu a comparação dessas taxas de crescimento com o esperado para o município (Figura 4), que revelou que Caxias do Sul apresenta taxa maior que aquela observada no Brasil e no mundo.

Figura 4 -
Comparação entre as taxas de crescimento populacional.

Economia

A economia caxiense apresenta perfil diversificado, com segmentos em diversas áreas. O setor industrial de material de transporte representa o maior valor adicionado bruto (VAB) do Estado (SPGG; DEE, 2020SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, GOVERNANÇA E GESTÃO (SPGG); DEPARTAMENTO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA (DEE). Produto Interno Bruto dos Municípios do RS 2018. Porto Alegre: Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão e Departamento de Economia e Estatística, 2020. Disponível em: Disponível em: https://dee.rs.gov.br/upload/arquivos/202012/15174130-pib-municipal-2018-notatecnica.pdf . Acesso em: 1º nov. 2020.
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). O setor primário destaca-se pela presença marcante da atividade agropecuária, cuja característica é a de pequena propriedade (CAXIAS DO SUL, 2014CAXIAS DO SUL. Perfil socioeconômico. Caxias do Sul, 2014. 42 p.). A maior parcela do VAB de Caxias do Sul vem das atividades de comércio e serviços, que apresentam o maior crescimento entre os três setores do município nos últimos anos (Figura 5).

Figura 5 -
Valor adicionado bruto anual de Caxias do Sul, por setor, de 2002 até 2018.

Sistemas: mananciais e respectivas estações de tratamento de água

Caxias do Sul atualmente possui seis bacias hidrográficas destinadas ao abastecimento da população, além de outras três (Tabela 1) previstas para o suprimento futuro de água da cidade (CAXIAS DO SUL, 2005CAXIAS DO SUL. Lei Complementar nº 246, de 6 de dezembro de 2005. Zona das Águas (ZA). Caxias do Sul, 2005.). Entre aquelas em operação, três estão integralmente inseridas em área urbana e as outras o estão parcialmente, o que impõe maior desafio quanto ao controle do uso e ocupação do solo e à poluição advinda das atividades humanas.

Tabela 1 -
Bacias de captação em Caxias do Sul.

Atualmente, seis estações de tratamento de água (ETA) estão em funcionamento abastecendo a população urbana, enquanto a população rural, em sua maioria, é abastecida por poços tubulares. Somando todos os sistemas de abastecimento de água, aproximadamente 2.317 L∙s-1 de água tratada são distribuídos por meio das ETA, enquanto somente 9,16 L∙s-1 são distribuídos por poços.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com a aplicação do método proposto nesse artigo, foram definidos os principais GI para balizar a avaliação dos indicadores de segurança hídrica no abastecimento público. O caso de Caxias do Sul auxiliou na obtenção dos principais GI no sistema, permitindo relacioná-los aos aspectos, impactos e problemas enfrentados pelos RI. Cada conjunto de indicadores busca monitorar o avanço de cada um dos problemas levantados. Alguns indicadores e problemas são recorrentes, demonstrando que diferentes GI causam problemas similares, e problemas diferentes podem ser monitorados com os mesmos indicadores. Da sequência constam os indicadores definidos para monitorar a segurança hídrica para as dimensões econômica e humana. O item seguinte apresenta o resultado obtido da verificação com os especialistas e partes interessadas.

Os geradores de impacto e seus efeitos no abastecimento

Foram identificados três GI para o caso de Caxias do Sul: o crescimento populacional, o crescimento econômico e as políticas e legislações.

O crescimento populacional foi apontado como um GI, considerando-se que seu aumento tende a gerar impactos negativos aos RI, que são, paradoxalmente, a própria população. O contínuo aumento desta exige que os recursos hídricos tenham disponibilidade suficiente para abastecê-la e que a empresa de abastecimento tenha condições de tratar e distribuir a água. O aumento do consumo de água e a urbanização das áreas de bacia de captação podem gerar racionamento e a contaminação dos corpos hídricos. Esse último processo pode exigir da empresa de abastecimento infraestrutura adicional e avançada para remover ou reduzir elementos a fim de atender aos padrões de potabilidade.

Outro GI identificado foi o crescimento econômico. A implantação de novas atividades econômicas ou a expansão das já existentes, além de alterar o potencial poluidor na região, aumenta a impermeabilização do solo. Em áreas de bacia de captação, por exemplo, esse problema é ainda mais grave. Como impacto positivo, o crescimento econômico traz aumento da renda, emprego e arrecadação para o município. O crescimento econômico desenfreado pode prejudicar a qualidade e a quantidade de água, comprometendo a segurança hídrica. O trade-off entre a expansão econômica e a preservação dos recursos hídricos ainda requer mais estudo.

Finalmente, as políticas e legislações podem gerar impactos. Para avaliar os problemas gerados por esse GI, dois cenários foram considerados: um em que a legislação seria mais rígida e outro em que ela seria menos rígida. No primeiro caso, o cenário é de maior preservação dos recursos hídricos e redução do desperdício de água, com impacto positivo no sistema. Todavia, nesse mesmo cenário, maiores restrições legais podem reduzir a viabilidade econômica e financeira. Por outro lado, em cenário de legislação menos rígida, que permita, por exemplo, a ocupação e a expansão urbana para áreas rurais e até mesmo para áreas de proteção de manancial, pode gerar um conflito contraditório, em que a redução dessas áreas pode causar diminuição na segurança hídrica e vice-versa. Nesse caso, também se observa um trade-off que necessita ser integrado ao planejamento municipal.

Indicadores de segurança hídrica para as dimensões econômica e humana

Com base no método, foram apontados os seguintes indicadores e uma combinação deles para ser utilizados na análise da dimensão econômica:

  • o produto interno bruto (PIB) municipal;

  • o PIB per capita;

  • a área ocupada;

  • a quantidade de estabelecimentos econômicos;

  • a produção com relação à quantidade de água consumida.

A área ocupada por novos empreendimentos demonstra o quanto o município está se desenvolvendo e a área que está sendo comprometida para proporcionar esse crescimento, bem como o risco de poluição e contaminação antrópica dos corpos hídricos. O VAB dos setores produtivos representa o valor da produção, enquanto o volume de água consumido é parâmetro facilmente obtido da empresa de abastecimento. O PIB municipal e o PIB per capita são considerados dois dos indicadores de mais fácil obtenção nos órgãos oficiais.

Quanto à dimensão humana, optou-se por priorizar o abastecimento público e preocupou-se com as exigências impostas pela legislação. Para o caso do abastecimento, os seguintes indicadores foram aplicados:

  • o volume captado;

  • a capacidade de cada ETA;

  • o gasto com o tratamento da água;

  • as perdas dos sistemas;

  • a quantidade de habitantes abastecida por sistemas;

  • o crescimento populacional;

  • a densidade populacional;

  • o consumo per capita;

  • a área do município que possui rede de distribuição.

A segunda parte dos indicadores da dimensão humana envolve a análise da aplicação da legislação. Nesse caso, este estudo indica ser necessário avaliar:

  • a existência de políticas locais que assegurem a preservação dos recursos hídricos;

  • a existência de políticas locais que incentivam o consumo consciente de água;

  • a existência de fiscalização nas áreas de bacia de captação e/ou recursos hídricos;

  • a eficiência do processo fiscalizatório no âmbito administrativo.

A Tabela 2 apresenta, de forma simplificada, os indicadores apontados como adequados para compor um índice de segurança hídrica para Caxias do Sul. A grandeza corresponde à variável com a qual o indicador é mensurado e pode, nos casos específicos, ser adimensional (Adm), expressar intensidade ($/V) ou simplesmente ser quantificável, permitindo fácil comparação, como a área (A). No caso do saneamento, a vazão (Q), que é expressa na forma L³∙T-1, é uma variável que simboliza a capacidade volumétrica do sistema ao longo de determinado período de tempo. O código apresentado para cada indicador é meramente ilustrativo e tem como intuito sua identificação somente para simplificar a Tabela 3, evitando a repetição dos nomes dos indicadores e facilitando a compreensão.

Tabela 2 -
Indicadores das dimensões econômica e humana.
Tabela 3 -
Indicadores para cada problema gerado pelos geradores de impacto.

Na Tabela 3 constam os três GI, e para cada um deles são apresentados os aspectos ambientais mais relevantes, bem como os respectivos impactos esperados. Com base nisso, a quarta coluna dessa tabela apresenta o problema esperado dos impactos, independentemente de eles serem positivos ou negativos. Neste estudo foi aplicado o termo problema para designar uma visão hipotética de resultado de futuro, capaz de demonstrar um possível efeito oriundo de certo aspecto, que pode causar determinado impacto. Dois exemplos de problema são ilustrados: o primeiro é o do racionamento, o segundo é o caso da redução na arrecadação de impostos. O crescimento populacional é um GI porque pode demandar mais água do sistema de abastecimento que, por sua vez, aumentará o volume demandando do manancial. Caso o manancial não possua condições de atender ao crescimento da demanda, o racionamento de água na cidade é inevitável, tornando-se portanto o problema. O segundo exemplo é o caso de legislações que se tornam um GI quando são muito restritivas, especialmente quanto ao uso e ocupação do solo em áreas de preservação de mananciais. Essa restrição, quando ausente de compensação, pode ser um desincentivo ao crescimento econômico, ocasionando um problema de arrecadação de impostos. Cada problema deve ser objeto de avaliação de um ou de vários indicadores.

Verificação dos indicadores

Os formulários que solicitavam a avaliação dos indicadores definidos neste estudo foram enviados para professores e acadêmicos de Engenharia Ambiental da Universidade de Caxias do Sul, para técnicos do Serviço Autônomo Municipal de Água e Esgoto e para profissionais da área de recursos hídricos. Todos os indicadores foram avaliados e respondidos pelos 22 entrevistados que completaram o formulário. Os resultados foram compilados e a informação foi organizada na forma gráfica. A Figura 6 apresenta o compêndio das respostas obtidas, nas quais é possível identificar, por meio da linha azul, o percentual de entrevistados que não consideram aquele respectivo indicador relevante. Ao mesmo tempo, na linha vermelha é mostrado o percentual de entrevistados que pensam que todos os indicadores apresentados são relevantes.

Figura 6 -
Resultado da avaliação dos entrevistados (especialistas e partes interessadas). A barra em azul mostra o percentual dos entrevistados que consideram o indicador de segurança não relevante. A barra em vermelho quantifica o percentual dos entrevistados que julgaram o indicador relevante para compor um índice.

Para a dimensão humana, 72,7% dos entrevistados julgam todos os indicadores muito importantes e 27,3% importantes, e nenhuma sugestão pertinente foi adicionada.

Quanto à dimensão econômica, 68,2% dos entrevistados consideram os indicadores como muito importantes e 31,8% como importantes. Na avaliação individual dos indicadores, 81,8% dos entrevistados responderam que todos são relevantes, 18,2% responderam que a área ocupada por indústria e estabelecimentos de comércio e serviços em bacia de captação não é relevante e 13,6%, que a área para a produção agropecuária e de novos empreendimentos na bacia não é relevante para a segurança hídrica. Os entrevistados sugeriram acrescentar para essa dimensão: o PIB gerado na bacia de captação e o valor acumulado total de multas ambientais, também na bacia de captação.

De maneira geral, os entrevistados demonstraram grande aceitação dos indicadores definidos pelo método desenvolvido neste estudo, que foram considerados relevantes para as dimensões econômica e humana. O fato de o conjunto de indicadores ter passado por verificação e aceite por profissionais da área corrobora sua aplicabilidade para, em etapa futura, definir-se um índice de segurança hídrica para o abastecimento público.

CONCLUSÕES

A avaliação da segurança hídrica no abastecimento público de água pode ser realizada por meio de um índice, porém ele é elaborado com base em indicadores. Para otimizar a obtenção destes, eles podem estar divididos em quatro distintas dimensões (humana, resiliência, ecossistêmica e econômica). Neste estudo, utilizou-se o Método de Análise de Processo com a associação de aspectos e impactos sobre as dimensões humana e econômica de segurança hídrica no abastecimento público. O caso do município de Caxias do Sul (RS) foi usado para aplicar o método modificado e para realizar sua verificação com recurso a especialistas.

Foram definidos 32 indicadores mais dois sugeridos pelos especialistas durante a etapa de verificação do método, sendo 16 para a dimensão econômica e 18 para a dimensão humana. Essa quantidade de indicadores contrasta com a encontrada em estudos de segurança hídrica, principalmente com o PNSH. Mesmo assim, o método mostrou-se adequado, pois foi utilizado para obter um indicador para a segurança hídrica exclusivamente no abastecimento público de água.

O crescimento populacional e econômico bem como as políticas e a legislação são os principais GI que podem interferir na segurança hídrica no abastecimento.

Este estudo contribui para reduzir a lacuna que existe sobre a segurança hídrica na área do abastecimento, uma vez que adiciona indicadores para a escala municipal. O método modificado nesta pesquisa pode ser replicado para outros municípios, que poderão avaliar outros possíveis GI, obtendo indicadores mais adequados à realidade local, em vez de utilizar modelos em escala regional ou continental.

Finalmente, estudos futuros são necessários para avaliar os trade-offs entre a expansão econômica e a preservação dos recursos hídricos. Outra investigação futura sugerida é a aplicação desses indicadores de forma a compor um índice para a segurança hídrica do abastecimento em nível local, possibilitando o acompanhamento dos objetivos e metas da empresa de abastecimento por meio do índice medido ao longo do tempo.

REFERÊNCIAS

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  • 3
    Reg. ABES: 20210325

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2021
  • Aceito
    31 Mar 2022
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