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DESENHO INFANTIL E AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM EM CRIANÇAS SURDAS: UM OLHAR HISTÓRICO-CULTURAL1 1 http://dx.doi.org/10.1590/S1413-65382115000400008

CHILDREN'S DRAWING AND LANGUAGE ACQUISITION IN DEAF CHILDREN: A HISTORICAL-CULTURAL VIEW

RESUMO

Este estudo pretendeu analisar a inter-relação da atividade simbólica de desenhar com o desenvolvimento de linguagem de crianças surdas, usuárias tardias da língua brasileira de sinais, e em fase de aquisição da escrita da Língua Portuguesa como segunda língua. Assumindo a abordagem qualitativa, apoiou-se na perspectiva Histórico-Cultural, que busca reunir em um modelo explicativo tanto os mecanismos cerebrais implícitos ao funcionamento psicológico como o desenvolvimento da espécie humana e do indivíduo ao longo de um processo histórico e cultural, incluindo a especificação do contexto social. Participaram do estudo três crianças, com idade entre quatro e sete anos, que se encontravam em fase de aquisição da língua de sinais e em fase inicial de contato com a língua portuguesa escrita e a professora bilíngue da sala de aula. Os dados coletados foram analisados à luz da abordagem Histórico-Cultural buscando a relação entre essa forma sígnica de expressão - o desenho, a língua que está sendo adquirida pelas crianças surdas e o processo de significação de mundo que está sendo construído por meio da mediação do outro. Com base na literatura que trata da interpretação de desenhos infantis, também foi realizada análise da construção dos significados que as representações gráficas das crianças surdas apresentam. Os resultados apontam para a importância da língua de sinais e da atividade de desenho como recurso sígnico, que contribui para o progresso linguístico e cognitivo destas crianças que buscam ser bilíngues.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Desenho infantil; Teoria Histórico-Cultural; Surdez; Linguagem

ABSTRACT

The present paper aimed to analyze the interrelation between the symbolic activity of drawing and language development in deaf children, who were late on the acquisition of Brazilian sign language, and who were at the beginning level of Portuguese writing as a second language. In a qualitative approach, this paper was based on a cultural-historical perspective aiming to gather in one explicative model both brain mechanisms that are implicit to the psychological operation and human and individual development throughout a long historical and cultural process, including the social context. Three deaf children, ages between four and seven years, their bilingual teacher participated in the study. All of them were beginning the acquisition of Brazilian Sign Language and Portuguese writing. Data collected were analysed through the cultural-historical theory in order to evaluate the relation between the sign form of expression - the drawings, the language in process of acquisition by deaf children and the signification process of the world that is in building process through the mediation with others. Children's drawing interpretation literature was used to analyze the meaning construction of deaf children's graphical representation. Data showed that sign language and drawing are important signal resources that contribute to language and cognitive development of children who are becoming bilingual.

KEYWORDS:
Special Education; Children's drawing; Cultural-Historical Theory; Deafness; Language

1 INTRODUÇÃO

Políticas e documentos normativos que garantem o direito da escolarização de indivíduos surdos na perspectiva da Educação Inclusiva objetivam o desenvolvimento da comunicação e melhor integração social desses sujeitos por meio da perspectiva bilíngue (BRASIL, 2005BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto nº5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a lei nº10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais, e o artigo da lei nº10.098, de 10 de dezembro de 2000. Brasília, DF: MEC/SEESP, 2005.). Para isso, é necessário que os familiares sejam orientados a respeito do significado da surdez, de suas consequências para a comunicação infantil e da importância da aquisição da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira língua, fator fundamental para garantir o desenvolvimento cognitivo e linguístico para inserção da criança na sociedade (GUARINELLO; LACERDA, 2007GUARINELLO, A.C.; LACERDA, C.B.F. O grupo de familiares de surdos como espaço de reflexão e de possibilidades de mudança. In: SANTANA, A.P. et al. (Org.). Abordagens grupais em Fonoaudiologia: contextos e aplicações. São Paulo: Plexus, 2007. p.105-120.). Entretanto, grande parte dos surdos é exposta inicialmente apenas à linguagem oral, acarretando um significativo atraso de linguagem e consequente prejuízo no processo de significação (ARAÚJO; LACERDA, 2010ARAÚJO, C.C.M.; LACERDA, C.B.F. Linguagem e desenho no desenvolvimento da criança surda: implicações histórico-culturais. Psicologia em Estudo, Maringá, v.15, n.4, p.695-703, 2010.).

É neste contexto e, fundamentando-se na teoria Histórico-Cultural, que este estudo discutiu a inter-relação da atividade simbólica de desenho e a mediação do outro com o desenvolvimento da linguagem de crianças surdas, usuárias tardias da Libras, e em fase de aquisição da língua portuguesa na modalidade escrita como segunda língua. E no que a atividade do desenho e a mediação do professor podem contribuir para o desenvolvimento de sua linguagem e expressão?

Primeiramente, deve-se considerar que a criança surda não poderá construir por meio da oralidade a modalidade escrita da língua portuguesa. A criança surda percorre caminhos próprios, uma vez que deve aprender a escrever uma língua que ela, em geral, não fala e não domina (FERNANDES, 2006FERNANDES, S. Letramentos na educação bilíngue para surdos. In: BERBERIAN, A.P.; ANGELIS, C.M.; MASSI, G. (Org.). Letramento: referenciais em saúde e educação. São Paulo: Plexus, 2006. p.117-44.).

No caso das crianças surdas que não tiveram a oportunidade de desenvolver a Libras, como crianças surdas de famílias ouvintes, torna-se necessário que os trabalhos - fonoaudiológico e educacional - se desenvolvam dentro de uma abordagem bilíngue, e sejam orientados para o conhecimento, valorização e apropriação desta língua, sobre a qual elas poderão refletir e construir os significados de uma segunda língua, no caso, a escrita do português (LODI, 2000LODI, A.C.B. Educação bilíngue para surdos. In: LACERDA, C.B.F.; NAKAMURA, H.; LIMA, M.C. (Org.). Surdez e abordagem bilíngue. São Paulo: Plexus, 2000. p.64-83.). Pois, estas crianças, filhas de pais ouvintes, acabam prejudicadas em relação ao acesso às conversas que ocorrem em casa, assim como às narrativas que são passadas de gerações a gerações.

Além disso, atividades que envolvem leitura e escrita, como contar história, leitura de gibis, jornais, revistas, são pouco utilizadas na interação entre familiares ouvintes e crianças surdas. Considerando que estas experiências de letramento contribuiriam para aquisição e sentido da leitura e da escrita, é possível imaginar a defasagem com que estas crianças chegam à escola (KARNOPP; PEREIRA, 2013KARNOPP L. B.; PEREIRA, M.C.C. Concepções de leitura e escrita na educação de surdos. In: LODI, A.C.B; HARISSON, K.M.P; CAMPOS, S.R.L. (Org.). Leitura e escrita no contexto da diversidade. 5.ed. Editora Mediação: Porto Alegre, 2013.).

Por isso, o ensino na perspectiva bilíngue tem se tornado uma alternativa de sucesso para o aprendizado e desenvolvimento de linguagem em crianças surdas, pois uma vez adquirida a língua de sinais, como primeira língua, essa terá papel fundamental na aquisição do português escrito, como segunda língua. Além disso, as estratégias e práticas educativas para o ensino da Libras devem ser planejadas levando em conta suas características próprias, que a definem como uma língua visual e espacial, que possui estrutura gramatical própria e parte de uma cultura surda. A Libras é reconhecida como um sistema linguístico verdadeiro e natural, que nasce a partir da cultura surda e da experiência visual, por isso, seu aprendizado acontece por vias diferentes do aprendizado da língua portuguesa, que é oral-auditiva; o aprendizado da Libras acontece por meio das vias visuais, espaciais e manuais. E quais são as contribuições da atividade do desenho para a aquisição da língua de sinais e do português escrito na modalidade de segunda língua em crianças surdas?

Evidenciou-se o interesse de pesquisadores pelo desenho infantil desde o fim do século XIX (MEREDIEU, 1994MÈREDIEU, F. O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 1994.; GREIG, 2004GREIG, P. A criança e seu desenho: nascimento da arte e da escrita. Porto Alegre: Artmed. 2004.; FERREIRA, 2005FERREIRA, S. Imaginação e linguagem no desenho da criança. 4.ed. Campinas: Papirus, 2005.; ARAÚJO, LACERDA, 2008ARAÚJO, C.C.M.; LACERDA, C.B.F. Esferas de atividade simbólica e a construção de conhecimento pela criança surda. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v.14, n.3, p.427-446, 2008.). Este interesse deve-se ao fato de que a imagem, em todas as suas formas, ocupa um papel importante na comunicação e interação social dos seres humanos desde o início de sua história e evolução e, se constata que o desenho é um recurso visual bastante utilizado pela criança.

O desenho pode ser considerado a escrita primitiva da criança na primeira infância. Entre os dois e os quatro anos de idade, nós a encontramos aprendendo a falar e aprendendo a desenhar. Palavra e desenho são equivalentes simbólicos. O desenho é a primeira maneira de "escrever" a palavra que nomeia o objeto (DUARTE, 2011DUARTE, M.L.B. Desenho infantil e seu ensino a crianças cegas: razões e método. Curitiba: Editora Insight, 2011., p.28).

Pensando nos anos iniciais de escolarização, o desenho pode ser considerado uma forma agradável para se trabalhar a coordenação motora, a capacidade de atenção e concentração, conhecimentos variados sobre cores, formas, entre outros, além de estimular a imaginação e a criação e ser um lugar de produção simbólica. Porém, infelizmente, mesmo na educação infantil, o desenho é pouco valorizado e vem perdendo espaço para outras atividades mecânicas, de repetição, que nem sempre fazem sentido à criança. E conforme o nível de ensino vai avançando, o espaço para a atividade do desenho vai se tornando bem restrito, restando-lhe somente as aulas de Arte ou Educação Artística em alguns casos (FONTANA; CRUZ, 1997FONTANA R.; CRUZ, M.N. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo. Atual, 1997.).

Assim, a atividade do desenho nos primeiros anos da infância não deveria ser apenas mero passatempo. É importante que, em um determinado momento, os primeiros traços da criança comecem a fazer sentido e trazer algum significado, e é aí que entra o papel do adulto, da fala e da mediação. O desenho infantil passa a ser significativo pelo ato de nomear.

De acordo com Luquet (1969LUQUET, G. H. O desenho infantil. Porto: Editora do Minho, 1969.), o desenho infantil apresenta quatro estágios. São eles: 1) Realismo fortuito: começa por volta dos dois anos. Neste estágio, a criança somente nomeia o desenho depois que o faz. Descobre uma semelhança qualquer entre o traçado no papel (traçado feito sem intenção de representar algo) e um objeto depois que fez o desenho; 2) Realismo fracassado: representa as primeiras tentativas da criança em reproduzir algumas formas. Aparecem as primeiras tentativas de desenhos das formas humanas; 3) Realismo intelectual: entre os quatro anos e pode ir até aos dez ou doze anos. Nesse período aparece o plano deitado e a transparência, mostrando que a criança realmente desenha o que sabe sobre os objetos e não o que vê, por isso, é comum a criança desenhar plantas ou pessoas em uma rua na forma deitada (exemplo do plano deitado) ou desenhar o feto na barriga da mãe (exemplo de transparência); 4) Realismo visual: o quarto e último estágio é próprio da fase da adolescência e caracteriza-se pelo surgimento da perspectiva no ato de desenhar, ou seja, o mesmo desenho da mãe grávida não necessita mais ser desenhado transparecendo o feto dentro da barriga; um rosto de perfil já é desenhado apenas com um olho, e um carro de lado, apenas com duas rodas.

Outros autores propuseram etapas mais ou menos parecidas em relação ao desenvolvimento do desenho, mas para a finalidade deste estudo as etapas definidas por Luquet se mostram bastante ilustrativas.

De acordo com a perspectiva Histórico-Cultural proposta por Vygotsky (1998VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998), o desenho se fundamenta como atividade sígnica, que pode promover na criança, por meio das interações sociais e da mediação do outro, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Assim, esta pesquisa parte de alguns questionamentos: De que maneira o desenho infantil pode colaborar para a construção simbólica e aquisição de língua na criança surda? O progresso no desenvolvimento da língua de sinais contribui para o aperfeiçoamento das produções gráficas nas crianças surdas? Como a mediação do outro pode favorecer o desenvolvimento das atividades simbólicas em crianças surdas?

Este estudo pretendeu responder a esses questionamentos e para tal apoiou-se na perspectiva Histórico-Cultural para discutir o desenho infantil como esfera de signos e significados, motivador e possível facilitador do processo de significação para a criança surda com aquisição tardia de língua e linguagem. Dessa forma, o objetivo geral deste estudo é analisar a relação do desenho infantil com o processo de aquisição e construção da língua de sinais em crianças surdas, e compreender como uma função simbólica colabora com a outra, enquanto favorecedora do desenvolvimento de significação e expressão da língua de sinais, fundamentando-se na teoria Histórico-Cultural. E como objetivo específico discutiu a influência de diferentes atividades simbólicas e da mediação no processo de desenvolvimento da língua em crianças surdas.

2 MÉTODO

Este estudo apoiou-se na abordagem Histórico-Cultural (VYGOTSKY, 1981VYGOTSKY, L. S. The genesis of the development of higher mental functions. In: WERTSCH, J. V. (Org.). The concept of activity in Soviet Psychology. Nova Iorque: M. E. Sharpe, 1981., 1994VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de defectologia. In: Obras completas. Havana: Editorial Pueblo y Educación, 1994. v. 5., 1998VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998, 2003VYGOTSKY, L. S. Imaginación y el arte en la infancia. Madri: Akal Ediciones, 2003.), pois esta busca reunir num modelo explicativo tanto os mecanismos cerebrais implícitos ao funcionamento psicológico como o desenvolvimento da espécie humana e do indivíduo ao longo de um processo histórico e cultural, incluindo a especificação do contexto social; compreende o desenvolvimento do homem e a história do funcionamento de ordem superior como diretamente relacionados às possibilidades de interações sociais. Esse modo de funcionamento psicológico está presente desde os primeiros momentos de vida, pela mediação do outro que atribui significado social à realidade, e assim, suas funções psicológicas superiores (pensamento, linguagem, percepção, memória, atenção, imaginação) vão sendo desenvolvidas e aprimoradas (ARAÚJO; LACERDA, 2008ARAÚJO, C.C.M.; LACERDA, C.B.F. Esferas de atividade simbólica e a construção de conhecimento pela criança surda. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v.14, n.3, p.427-446, 2008.).

Como instrumento para coleta de dados, foi utilizada a atividade do desenho, apoiada sempre pela Libras como meio de comunicação entre pesquisador e participantes. Para a realização das atividades de desenho foram utilizados diferentes materiais como canetas hidrográficas, giz de cera, lápis coloridos, giz pastel, folhas de tamanhos, cores e recortes diferentes, entre outros. Também foi utilizada uma câmera filmadora para gravação dos encontros e um diário de campo para registro e posterior análise dos diálogos que surgiram durante a realização das atividades.

O local de realização da pesquisa foi uma sala de aula da Educação Infantil que trabalhava com a perspectiva bilíngue para o ensino de crianças surdas. Fica localizada em uma escola-polo, parte de um projeto maior, o Programa Inclusivo Bilíngue4 4 O Programa Inclusivo Bilíngue, baseado nos pressupostos do Decreto 5.626/2005 (BRASIL, 2005) foi implementado em 2012 em duas escolas-polos da rede, uma de Educação Infantil e outra de Ensino Fundamental I e II. Conta com professores bilíngues, na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, responsáveis por ministrar todas as aulas em Libras, em salas multiseriadas. Nos anos finais do Ensino Fundamental conta com intérpretes e professor de Língua Portuguesa bilíngue, que ministra as aulas de Português na modalidade escrita como segunda língua. Conta com uma coordenadora (fonoaudióloga) que atua na organização, planejamento das propostas e trabalho com as famílias, além de reuniões periódicas com pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos que assessoram as atividades desenvolvidas. , implementado na rede municipal de ensino da cidade de São Carlos desde 2012.

Participaram do estudo três alunos surdos matriculados na Educação Infantil com idade entre quatro e sete anos e a professora bilíngue. Esta era recentemente formada, graduada em Educação Especial no ano de 2013, tinha domínio da Libras e participado de vários cursos na área. Todos os responsáveis pelas crianças e a professora participante consentiram a realização da pesquisa, com assinatura dos termos de consentimento livre e esclarecido e do termo de imagem. Os nomes dos participantes são fictícios para preservar suas identidades. O Quadro 1 apresenta a caracterização dos alunos participantes.

Quadro 1
Caracterização dos alunos participantes da pesquisa. Fonte: elaboração própria.

Antes de iniciar as atividades de desenho, pesquisador e professora bilíngue se reuniram para organizar dias e horários adequados para realização da pesquisa de forma a não prejudicar as atividades de rotina da turma, e discutir também as estratégias e atividades para a realização da coleta de dados. Foi acordado entre professora e pesquisadora que seriam realizados cinco encontros com duração de uma hora cada e que cada encontro teria uma abordagem diferente para estimular a produção e a expressão das crianças pelos desenhos, sendo a Libras o meio de comunicação principal entre participantes e pesquisador.

Encerradas as intervenções, todo material coletado foi sistematizado, estudado e analisado com base em literatura na perspectiva Histórico-Cultural para discutir a relação entre o desenho e a língua que está sendo adquirida pelas crianças surdas e o processo de significação de mundo que está sendo construído através da mediação do outro. Também foram utilizadas as considerações sobre desenhos infantis, a partir de Mèredieu (2006MÈREDIEU, F. O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 2006.) e Luquet (1969LUQUET, G. H. O desenho infantil. Porto: Editora do Minho, 1969.) para construção dos significados que as representações gráficas das crianças surdas apontaram.

Além de considerar as próprias produções realizadas para a análise dos dados, as filmagens possibilitaram a descrição das interações transcorridas no contexto destas mesmas produções gráficas e as expressões que os participantes desenvolveram por meio da língua de sinais. De acordo com Lüdke e André (1986LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.), é importante nesta etapa que a análise não se restrinja ao que está explícito nos dados coletados, mas ir além, desvelando mensagens implícitas e dimensões contraditórias.

3 RESULTADOS

3.1 ENCONTRO 1: DESENHO LIVRE

No primeiro encontro realizou-se a produção de um desenho livre, para que as crianças se sentissem mais à vontade, se familiarizassem com a pesquisadora e entendessem a proposta das atividades. Como toda novidade, as crianças ficaram eufóricas e curiosas. Estavam presentes apenas Laura e Bruno. Estes queriam contar o que estavam aprendendo, o que viram na televisão, falavam sobre sua família, entre outros assuntos. Explicou-se aos alunos os dias que a pesquisadora estaria em sala e que a cada encontro realizariam uma atividade diferente, mas sempre utilizando o desenho como recurso. Foram levados diferentes materiais dentro de uma caixa fechada para instigar a curiosidade e desenvolver um primeiro diálogo em Libras:

Pesquisadora: O que vocês acham que eu trouxe na caixa? Bruno: É uma mágica! Professora: Não é uma mágica, pense! Laura: Deixa eu pensar! (E faz uma expressão com a mão na cabeça indicando que está pensando)5 5 Todas as interações com as crianças surdas se deram em Libras. Para fins deste estudo os diálogos foram transcritos para língua portuguesa para melhor compreensão. .

Após várias tentativas, o pano que encobria a caixa foi retirado e revelada a surpresa. Esse momento, que dura cerca de 11 minutos, propiciou um diálogo muito rico, mostrando que as crianças, apesar de serem usuárias tardias da Libras, já demonstravam aquisição de um diversificado vocabulário. Como resposta ao que havia na caixa apresentaram sinais de diferentes categorias como brinquedos, comidas e animais.

Ao iniciar a atividade do desenho livre, Laura escolheu uma folha cor de rosa (de sua preferência) de tamanho padrão, Bruno escolheu uma folha branca grande, de tamanho maior ao de uma cartolina. O aluno narrou previamente o que desenharia fazendo o sinal de um mastro e um barco. Laura estava mais preocupada com as cores e procurava o lápis cor de rosa para iniciar o seu desenho. Professora e pesquisadora também escolheram uma folha e fizeram um desenho para incentivar as crianças.

Depois de já ter iniciado seu desenho, Bruno se desviou do que fazia para olhar o nome dos super-heróis que estavam escritos na lousa (tema possivelmente trabalhado em sala de aula), virou sua folha e, como não havia uma régua para riscar as linhas para imitar as folhas de um caderno, pegou outro lápis para servir de apoio e as riscou, apresentando habilidade para solução de problemas práticos. Ele pediu a pesquisadora que escrevesse o nome dos super-heróis na folha dele e Bruno foi ensinando o sinal de cada super-herói para ela enquanto os escrevia.

Enquanto isso, Laura desenhou sem intenção aparente e a todo o momento observava o desenho da pesquisadora e o da professora, demonstrando insegurança, perguntando sempre o que a professora desenhou. Bruno colocou o seu nome na folha da pesquisadora, mostrando que já reconhece as letras do seu nome. O aluno voltou a seu desenho inicial e fez movimentos circulares com o giz de cera. Depois disso, narrou mais uma vez seu desenho relatando que o barco que desenhou virou por causa do ciclone. Apontou para o ciclone desenhado e explicou que era um ciclone bem forte, sendo bastante expressivo e usando a Libras:

Bruno: Aqui é um barco, veio um ciclone (e faz o sinal de ciclone com muita expressão, partindo do chão até o alto de sua cabeça) e o barco tombou. O homem dentro do barco teve que sair nadando.

Laura após desenhar explicou à professora, utilizando gestos e alguns sinais, que fez a Bela Adormecida, história também já trabalhada em sala de aula com os alunos. Faz alguns rabiscos vermelhos e amarelos explicando que o desenho vermelho é a mãe e o amarelo é o pai da princesa. Seguem as duas ilustrações apresentadas na Figura 1.

Figura 1
Desenhos de Bruno e Laura no encontro 1. Fonte: elaboração própria.

Laura narra que desenhou a Bela Adormecida, mas não dá mais detalhes sobre sua produção. Resolve então escrever seu nome, mostrando domínio das letras que o compõem, e como não havia mais espaço para a última letra coloca-a abaixo, demonstrando solução de problemas práticos e não desconhecimento de como se escreve seu nome.

3.2 ENCONTRO 2: CURUPIRA PARTE I

Os segundo e terceiro encontros foram planejados para a realização de um desenho dirigido de acordo com um tema já trabalhado em sala de aula, neste caso, o Curupira, pois a turma estava realizando um projeto sobre esse personagem do Folclore.

Foram levados alguns objetos como peruca vermelha, chapéu de caçador, tiara de coelho para brincar de Curupira. Dirigiu-se até o espaço externo da escola e cada um escolheu o personagem que queria interpretar, e numa segunda vez de realização da brincadeira os papéis foram trocados. Após a brincadeira foi proposta a atividade de desenho sobre o Curupira. Os alunos demonstraram domínio sobre a história deste personagem e a narraram com grande riqueza de sinais.

Bruno não queria desenhar, pois queria brincar mais, então se fez um combinado e no próximo encontro se faria a brincadeira novamente. Porém, no ato de desenhar o aluno queria sair da atividade dirigida e fazer a personagem Malévola. Neste momento, outro acordo foi realizado: depois da produção do desenho proposto ele poderia desenhar o que quisesse. O aluno fez inúmeros rabiscos na folha e ia nomeando, fazendo o sinal de caçador, Curupira, árvore, porém só se enxergava rabiscos coloridos e não havia diferenciação nas formas gráficas, apenas alguns riscos que lembravam a forma humana foram feitos após insistência da professora. É interessante observar o desinteresse do aluno pela proposta por ter sido contrariado.

Já Laura queria uma folha cor de rosa novamente para desenhar, mas a pesquisadora não colocou essa opção de propósito, para levar a aluna a escolher outras cores. Começou escrevendo o seu nome e, em seguida, desenhou um peixe, desenho que já sabe fazer com maior segurança, ou seja, ela parece preferir desenhar aquilo que já sabe, ainda que esteja fora da proposta feita pela pesquisadora talvez optando por aquilo que é mais confortável. A pesquisadora, neste momento, tem papel importante no sentido de estimulá-la dando pistas para que ela avance no seu conhecimento, e enfrente novas formas ainda desconhecidas para ela.

Novamente Laura se apoia muito no que os outros estão fazendo, observando e perguntando o que desenharam. A pesquisadora que também fazia um desenho convidou Laura para que desenhassem juntas. Como a aluna gosta muito de coelhos, a pesquisadora pediu para ajudá-la a desenhar o coelho que o caçador pegou na floresta. Ela foi recebendo orientações da pesquisadora:

Pesquisadora: Vamos fazer a cabeça [...] agora o bigode [...] a orelha. O que falta agora? Laura: Os olhos! Pesquisadora: E agora: Laura: O nariz!

Aproveitando seu entusiasmo a pesquisadora pede a Laura que desenhe também uma árvore. Os resultados estão apresentados na Figura 2.

Figura 2
Desenhos de Laura no encontro 2. Fonte: elaboração própria.

Observou-se que Laura apresentou-se menos insegura quando teve o apoio do outro. No momento em que desenhou junto com a pesquisadora, que lhe dava pistas de como fazer o desenho, esta demonstrou maior interesse e conseguiu desenhar aquilo que já tinha um sentido para ela (coelho e árvore), ou seja, foi planejando antes o que ia ser desenhado, ainda que mediado pelo outro. Destaca-se que a dialogia em Libras e a produção de desenho coletiva (vários participantes desenhando ao mesmo tempo) favorecem que Laura se exponha e tente novas produções que revelam suas potencialidades, que talvez não fossem vistas se ela fosse convidada apenas a desenhar sozinha.

Quanto a Bruno, professora e pesquisadora apontaram que era interessante que fi zesse outro desenho em outra folha, pois aquele estava difícil de entender. É fundamental mostrar os caminhos para a criança, e informá-la quando sua produção não alcançou os objetivos propostos. Dessa forma, Bruno pegou outra folha e começou seu novo desenho, primeiro fez uma árvore e informou que ia desenhar o Curupira, mas mudou de ideia, e disse que, em vermelho fez um caçador. Depois fez outro corpo em azul e narrou que era o outro caçado, como ilustrado na Figura 3.

Figura 3
Desenhos de Bruno no encontro 2. Fonte: elaboração própria.

Quando terminou, ele ficou livre para desenhar a personagem Malévola. Porém, o aluno decidiu escrever ao invés de desenhar, recorrendo a outra atividade simbólica, a escrita, e mostrando relação entre as letras e a palavra que pretendia escrever, mas como ainda não domina plenamente a escrita, grafou as letras do próprio nome para satisfazer seu objetivo. Bruno se mostra seguro em transitar entre diferentes atividades simbólicas e essa postura é fundamental para alcançar os objetivos da alfabetização.

3.3 ENCONTRO 3: CURUPIRA - PARTE II

No terceiro encontro levou-se à sala de aula diversas imagens do Curupira, desenhado e pintado de formas diferentes, mostrando que certa representação não precisa ser feita sempre do mesmo modo, com uma determinada forma ou cores, e que se pode criar desenhos de acordo com a imaginação, quebrando padrões rígidos.

Pediu-se a Laura para apontar qual das imagens gostou mais e ela escolheu a imagem mais próxima do Curupira de formato e cores daquele que ela já conhecia, mais comum e parecida com os padrões de corpos que se veem em livros, revistas, fotos. Já Bruno apontou para outra imagem e começou a explicá-la, fazendo o sinal da capivara, animal que corria junto ao personagem na figura, e ensinou o sinal à pesquisadora que o desconhecia. Ele também identificou que a outra imagem do Curupira lembrava um índio e fez o sinal correspondente. A professora também escolheu uma imagem diferente e explicou que gostou porque tinha várias cores diferentes. Laura, neste momento interfere inconformada, pois nesta imagem o Curupira está sem os traços do rosto, não há olhos, boca e nariz definidos, somente o contorno do rosto, demonstrando como para ela as formas padrão de imagens é importante.

No momento da atividade, os alunos se apoiam nas imagens apresentadas para fazer o seu desenho e foram detalhando o que estavam produzindo. Bruno aponta na folha e mostra que fez os dentes das capivaras. Como a imagem escolhida por ele estava pintada em tons escuros começou a usar o lápis de cor preto para preencher seu desenho. O aluno preenche corretamente o espaço, sem ultrapassar o que ele delimitou como o corpo do Curupira. A Figura 4 ilustra os desenhos.

Figura 4
Desenhos do Curupira no encontro 3. Fonte: elaboração própria.

Laura desenhou e se sentiu mais à vontade para narrar o que estava fazendo, pintou o cabelo do Curupira de vermelho e também fez os dentes do personagem. Algumas vezes ainda se voltou aos desenhos dos adultos, e continuou achando estranho o desenho do Curupira sem rosto feito pela professora.

3.4 ENCONTRO 4: DESENHO LIVRE II

O quarto encontro realizado foi (re) planejado, pois a aluna Bianca (quatro anos), que havia faltado nos três primeiros encontros devido a problemas de saúde, neste dia estava presente e como ela ainda não havia participado de nenhuma das atividades anteriores decidiu-se junto à professora que se faria novamente um desenho livre para integrar a aluna às atividades. Neste dia, Bruno faltou e Laura estava presente. Nesse encontro, a interação de Bianca com os materiais foi intenso, ela brincava e dava outro sentido aos objetos que lhe foram oferecidos, demonstrando que para além da atividade do desenho e a confecção do produto final, todo o processo é importante e traz elementos interessantes de como cada criança aproveita a atividade. Os resultados estão apresentados na Figura 5.

Figura 5
Desenho de Bianca no encontro 4. Fonte: elaboração própria.

3.5 ENCONTRO 5: O ESPAÇO SIDERAL

No quinto e último encontro, trabalhou-se o tema Espaço Sideral, pois era um tema ainda não trabalhado com a turma e o objetivo da atividade era explorar algo novo com as crianças. Levou-se três vídeos sobre o assunto, dois produzidos em Libras e um curta sem fala. O tema produziu muita curiosidade e possibilitou o diálogo e aprendizado de novos sinais referentes ao assunto como foguete, nave espacial, E.T., planetas e outros. As produções gráficas deste encontro demostraram mais liberdade e segurança para a elaboração dos desenhos. Bruno escolheu uma folha circular e desenhou um planeta; Laura, apresentando-se mais desenvolta e sem a necessidade de cópia ou mediação, desenhou um foguete, o sol e um astronauta e, a aluna Bianca, fez vários riscos no papel, que foram nomeados como estrelas. Os resultados são apresentados na Figura 6.

Figura 6
Desenhos dos alunos no encontro 5. Fonte: elaboração própria.

O fato de ter sido uma temática pouco explorada anteriormente permitiu observar como o desenho pode ser um espaço de elaboração simbólica de novos conceitos em construção.

4 DISCUSSÕES

Este estudo pretendeu analisar o processo de produção do desenho enquanto atividade simbólica na criança surda, a relação com a língua que esta vai adquirindo para a construção de conhecimento de mundo e quanto à mediação do outro pode contribuir para este desenvolvimento.

No contexto analisado, as crianças surdas chegaram à escola desprovidas de uma língua e, consequentemente, de conhecimento de mundo sistematizado. Visando minimizar e reverter este quadro, a adoção da abordagem bilíngue na escolarização destes alunos desde a Educação Infantil têm se tornado um meio bastante eficaz, pois prioriza a língua de sinais como peça fundamental no desenvolvimento integral destes.

Nesse sentido, o processo de desenvolvimento das crianças passa a ser constituído e transformado pelas interações e relações de ensino que se dão na escola. A criança se apropriará de sua língua e de conceitos nas atividades mediadas, experimentadas e inter-relacionadas, ou seja, através da mediação pelo outro e a mediação pelos signos. Segundo Vigotski (2008)VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008., ao enfatizar a natureza social da atividade mental, ressalta-se que o processo de internalização da aprendizagem se dará por meio da mediação pelo outro e pela palavra.

O Encontro 2 ilustrou um momento em que primeiramente a brincadeira tomou conta da atividade, as crianças incorporaram papéis diferentes, puderam explorar a língua de sinais, a imaginação e os elementos já aprendidos previamente devido a intimidade com a história do Curupira. A insistência de Bruno em brincar mais demonstra quanto mais significativa foi a atividade lúdica do que a realização do desenho, porém ao observar o produto final, vê-se que uma atividade simbólica contribuiu com a outra. Para Vigotski (2008VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p.61):

A formação dos conceitos é resultado de uma complexa atividade em que todas as funções intelectuais fundamentais participam. No entanto, este processo não pode ser reduzido à associação, à tendência, à imagética, à inferência ou às tendências determinantes. Todas estas funções são indispensáveis, mas não são suficientes se não se empregar o signo ou a palavra, como meios pelos quais dirigimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e o canalizamos para a solução do problema com que nos defrontamos.

O fato de Laura apresentar-se menos insegura quando teve o apoio do professor indica que a mediação favoreceu a aluna a se arriscar em tentativas de novas produções, desvelando lhe novos conhecimentos e revelando suas potencialidades, situação que talvez não fosse possível de observar se ela fosse convidada apenas a desenhar sempre sozinha.

De acordo com Vigotski (2008)VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008., alguns profissionais compartilham da convicção de que a imitação é uma atividade meramente mecânica e que qualquer pessoa pode imitar praticamente tudo o que quiser se tiver o modelo. Para o pesquisador, a imitação exige domínios de meios necessários para avançar de algo que conhecemos para algo que desconhecemos. Com o auxílio externo, todas as crianças podem fazer mais do que o que conseguiriam por si sós, embora apenas dentro dos limites impostos pelo seu grau de desenvolvimento. "A criança fará amanhã sozinha aquilo que hoje é capaz de fazer em cooperação" (VIGOTSKI, 2008VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p.104).

Ao explorarem os materiais da atividade de desenho durante os encontros, crianças e adultos criam uma relação com esses materiais que vai além da atividade em si, descrevem e nomeiam objetos, aprendem cores e outros conceitos. Essas ações são inerentes ao ato de desenhar, chegando mesmo a constituí-lo. "Tais interações passam, necessariamente pelo outro, e é justamente devido à presença do outro que comparações e nomeações adquirem um caráter significativo" (SILVA, 2002SILVA, S. M. C. A constituição social do desenho da criança. Campinas: Mercado de Letras. 2002., p.52). Por isso, é importante olhar para o processo e não exclusivamente para o produto final, pois este cenário apresenta e produz conhecimentos que não estarão estampados no desenho em si, caracterizados como um verdadeiro jogo, uma atividade lúdica que contém elementos afetivos e cognitivos que fazem parte do desenvolvimento da criança no momento da atividade.

O quarto encontro apresentou episódios que exemplificam a importância de se aproveitar os momentos lúdicos para exploração da língua e da imaginação na criança surda. Bianca ficou mais interessada na exploração dos materiais, brincando a todo o momento com os lápis e os gizes de cera. Entrando no seu jogo simbólico, o adulto a incentivou a dar outro sentido ao giz de cera, brincando como se fosse um batom. Segundo Silva (2002SILVA, S. M. C. A constituição social do desenho da criança. Campinas: Mercado de Letras. 2002.), dificilmente professores promovem a exploração dos materiais, que muitas vezes é considerada como bagunça e desatenção, que atrapalham a atividade de desenho. Esse momento de interação das crianças em que se poderia explorar sua língua fica extremamente limitado, pois o interesse são os traços registrados no papel.

Na tentativa de ir para além da atividade do desenho, durante os encontros procurou-se observar estes momentos e aproveitá-los em vários sentidos. Por meio da atividade lúdica buscou-se estimular as crianças na elaboração de suas produções, mas também se procurou estimular o uso da sua língua e avançar no seu desenvolvimento. Muitas vezes, parece haver uma exagerada e desnecessária cisão entre o brincar e uma atividade considerada pedagógica, porém não é possível demarcar essa faixa limite. O brincar é uma atividade geradora de desenvolvimento cognitivo, com valor educacional afetivo (SILVA, 2002SILVA, S. M. C. A constituição social do desenho da criança. Campinas: Mercado de Letras. 2002.), as situações de aprendizagem muitas vezes não estão nas atividades organizadas sistematicamente pelo professor e sim na atividade lúdica.

Pode-se concluir que a atividade do desenho realizada com a mediação do outro, seja ele adulto ou criança, é uma ferramenta capaz de contribuir para o desenvolvimento da linguagem, tornando-se possível observar modos de expressão e representação das crianças acerca de suas experiências com as atividades trabalhadas.

Cada um pode aproveitar-se de maneira diferente das atividades. Os alunos Bruno e Laura já se arriscaram na escrita junto ao desenho, tanto para escrever seus nomes ou outras palavras. Bruno, que possui maior domínio da Libras usou de maneira mais complexa sua língua ao narrar seus desenhos. Laura, que iniciou as atividades insegura e presa ao que o outro produzia (quase restrita a copiar os modelos dos outros), ao final dos encontros se mostrou mais independente e segura para realizar produções próprias, mas para isso o papel e apoio do outro foi fundamental.

Ao analisar os cinco encontros foi possível observar a relação e inter-relação linguístico-cognitiva entre gesto, desenho, narrativa, sinais e escrita. Em cada episódio tais atividades simbólicas foram exploradas e estimuladas, podendo ser identificado quando havia maior domínio de uma esfera sobre a outra, ou o momento em que uma favorecia e constituía a(s) outra(s). Ora as crianças tentavam, ora se arriscavam, ora se aproximavam, ora se afastavam destas esferas, mas mesmo com descontinuidades, sempre havia movimento, favorecendo a circulação de linguagem e de construção simbólica. As atividades simbólicas abriram espaço para a consolidação de signos (da significação), que por sua vez, favoreceram o desenvolvimento da Libras. Pela mediação e interação social, pensamento, linguagem e conhecimento foram constituídos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendendo que o desenho é uma das formas de elaboração das funções mentais superiores, e que este é marcado pela construção da língua, quanto mais língua a criança desenvolver mais chance terá de planejar e de formular elaborações cada vez mais complexas. Ao mesmo tempo, o desenho pode permitir que a língua se estruture, assim, fatos que a criança não saberia dizer por meio da palavra, ela poderia dizer desenhando, e isso ajuda a dizer, depois do desenho terminado que, dialeticamente, desenho e fala podem se inter-relacionar, ou seja, colaboram tanto para o desenvolvimento da fala como para o processo de significação.

O nível de língua também parece relacionado ao nível do desenho e vice-versa, mostrando inter-relação entre as diferentes linguagens. Concluiu-se que esse nível de linguagem, tanto gestual quanto gráfico, pode ser alterado e aperfeiçoado por meio de mediações efetivas. No caso das crianças surdas, intervenções usando diferentes tipos de linguagem mostraram-se efetivas para a construção e desenvolvimento das funções mentais superiores.

Neste sentido, este estudo fortalece o argumento da importância da língua de sinais e da atividade do desenho como recurso sígnico, que contribui para o progresso linguístico e cognitivo destas crianças que buscam ser bilíngues. O desenvolvimento da língua de sinais está diretamente relacionado com o desenvolvimento das atividades simbólicas e a mediação do outro na construção do conhecimento. Quanto mais o professor ou profissional que trabalha com crianças surdas oferecer atividades que propiciem o desenvolvimento da língua maior será o desempenho das crianças nas outras atividades simbólicas e vice-versa.

Espera-se que este estudo tenha possibilitado a discussão sobre a importância das atividades simbólicas, em especial da atividade do desenho, para a construção de língua e significado de mundo da criança surda. Além disso, que tenha contribuído para se pensar nas propostas de inclusão escolar e nas práticas docentes presentes nas escolas de ensino comum, se estas estão adequadas para atender as especificidades dos alunos ou necessitam ser repensadas.

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  • 1
    http://dx.doi.org/10.1590/S1413-65382115000400008
  • 4
    O Programa Inclusivo Bilíngue, baseado nos pressupostos do Decreto 5.626/2005 (BRASIL, 2005) foi implementado em 2012 em duas escolas-polos da rede, uma de Educação Infantil e outra de Ensino Fundamental I e II. Conta com professores bilíngues, na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, responsáveis por ministrar todas as aulas em Libras, em salas multiseriadas. Nos anos finais do Ensino Fundamental conta com intérpretes e professor de Língua Portuguesa bilíngue, que ministra as aulas de Português na modalidade escrita como segunda língua. Conta com uma coordenadora (fonoaudióloga) que atua na organização, planejamento das propostas e trabalho com as famílias, além de reuniões periódicas com pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos que assessoram as atividades desenvolvidas.
  • 5
    Todas as interações com as crianças surdas se deram em Libras. Para fins deste estudo os diálogos foram transcritos para língua portuguesa para melhor compreensão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2015
  • Revisado
    30 Nov 2015
  • Aceito
    01 Dez 2015
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