RESUMO
pesquisas indicam a necessidade do trabalho individualizado com estratégias específicas aos alunos Público Alvo da Educação Especial (PAEE) nos processos de inclusão na rede comum de ensino para o desenvolvimento de suas aprendizagens. Entretanto, ainda são poucos os estudos que apresentam estratégias eficazes para efetivação das aprendizagens desses alunos. Dessa forma, este artigo tem como intuito apresentar atividades propostas para um aluno com Transtornos do Espectro Autista (TEA) que frequentou o segundo ano do Ensino Fundamental em uma escola na rede privada de ensino em uma cidade de médio porte do interior do Estado de São Paulo. Foram realizadas uma entrevista com a professora e uma revisão dos materiais oferecidos para o aluno. A análise dos dados foi qualitativa e de natureza exploratória, seguindo categorias estabelecidas pelos pesquisadores. Os resultados mostraram adequações realizadas pela professora e a identificação do desenvolvimento da aprendizagem do aluno durante o ano letivo, reforçando-se a ideia da prática de procedimentos especiais aos alunos PAEE por meio de adequações eficazes. A professora não deixou o aluno com TEA com atividades diferentes em relação à toda a turma, oferecendo a ele condições diversificadas para a aprendizagem. O trabalho realizado pode indicar caminhos para o trabalho com outros alunos PAEE.
PALAVRAS-CHAVE:
Inclusão Educacional; Autismo; Adaptação Curricular
ABSTRACT:
Research indicates the need for individualized work with specific strategies for students who are Target Population of Special Education (TPSE)4 4 Note of translation: There seems to be no consensus on the translation of the term ‘Público-alvo da Educação Especial' in Brazil. We have found, in different works: Special Education Target Audience, Target Audience of Special Education; Special Education Target- Audience; Target Audience Students of Special Education; Target Audience of Special Education Students; Special Education Target Public, among others. Despite ‘audience' being a term broadly used in Brazil in translations, we have decided not to use this term as it may refer to the one who ‘watches', going to the opposite idea of what is intended by Special Education. Thus, we have decided to translate the expression as Target Population of Special Education (TPSE), firstly to try to keep a translation more closely to the original. Secondly, we have opted for the term ‘population' instead of ‘public', due to what the term ‘public' encompasses - people as a whole or people of a particular community. Whereas ‘population' means a group of individuals, all people of a specific group, and mainly ‘[...] a complete set of elements (persons or objects) that possess some common characteristic'. Retrieved February 15, 2018 (Available from University of Missouri-St Louis https://www.umsl.edu/~lindquists/sample.html). in the processes of inclusion in the common teaching network for the development of their learning. However, there are still few studies that present effective strategies for the effectiveness of these students' learning. Thus, this article intends to present activities offered to an Autism Spectrum Disorder (ASD) student who attended the second grade of Elementary School in a private school of a medium-sized city located in the hinterland of the State of São Paulo, Brazil. An interview with the teacher was carried out and the materials offered to the student were analysed. Data analysis was qualitative and of exploratory nature, following categories established by the researchers. The results showed adaptations made by the teacher and the identification of student learning development during the school year, reinforcing the idea of a special procedure practice for the TPSE students through effective adaptations. The teacher did not give the student with ASD nor the rest of the class different activities, she offered him different conditions to learn. The work done can indicate ways to work with other TPSE students.
KEYWORDS:
Inclusive Education; Autism; Curriculum Adaptation
1 Introdução
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n º 9.394/96 - Capítulo V) estabelece a oferta da Educação Especial preferencialmente nas classes da rede comum de ensino (BRASIL, 1996BRASIL. Lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 24 maio 2016.
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) e refere-se à questão do currículo para os alunos que são Público
Alvo da Educação Especial (PAEE), anteriormente denominados como alunos com necessidades educacionais especiais.
Em relação à questão do currículo para os alunos PAEE nas salas comuns, o Conselho Nacional de Educação estabeleceu, na resolução CNE/CEB n º 2, de 11, de setembro de 2001 (BRASIL, 2001BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica. Brasília: SEESP, 2001.), a proposta de flexibilizações e adaptações curriculares, instrumentalizando e deixando com sentido prático os conteúdos básicos, metodologias de ensino, recursos didáticos diferenciados e os processos de avaliação relacionados ao projeto pedagógico da escola. Além disso, em 2015, entrou em vigor a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei n º 13.146) (BRASIL, 2015BRASIL. Lei n º 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm%3E.>. Acesso em: 24 maio 2016.
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). Tal lei, no Art. 3º, refere-se ao desenvolvimento do desenho universal como forma de acessibilidade, isso “[...] significa a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, até onde for possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico” (BRASIL, 2007BRASIL. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência - SICORDE. Brasília, 2007. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=424-cartilha-c&category_slug=documentos-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 26 maio 2016.
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).
A ideia do desenho universal, como tendência mundial, surge considerando a necessidade do desenvolvimento de um ambiente mais abrangente e com conhecimento sobre as especificidades das pessoas por meio de um planejamento dos espaços de forma mais abrangente, explorando na arquitetura sua vocação como veículo de integração social (CAMISÃO; PAMPLONA; ADES, 2004CAMISÃO, V.; PAMPLONA, M.; ADES, R. Acessibilidade & Educação Inclusiva. 2004. Disponível em: <http://www.acessibilidade.net/at/kit2004/Programas%20CD/ATs/cnotinfor/Relatorio_Inclusiva/pdf/Acessibilidade_extra_pt.pdf>. Acesso em: 24 maio 2016.
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). No ambiente escolar, por exemplo, a falta da acessibilidade pode prejudicar o desenvolvimento das aprendizagens dos alunos. Para um aluno PAEE, de acordo com Camisão, Pamplona e Ades (2004)CAMISÃO, V.; PAMPLONA, M.; ADES, R. Acessibilidade & Educação Inclusiva. 2004. Disponível em: <http://www.acessibilidade.net/at/kit2004/Programas%20CD/ATs/cnotinfor/Relatorio_Inclusiva/pdf/Acessibilidade_extra_pt.pdf>. Acesso em: 24 maio 2016.
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, a falta da acessibilidade pode, na maioria dos casos, impedir o acesso a essas aprendizagens, sendo indicado o desenvolvimento do desenho universal.
Apesar da circulação recente desse novo termo (Desenho Universal), encontra-se na literatura pesquisas sobre as adequações favoráveis ao desenvolvimento individualizado das aprendizagens dos alunos (DINIZ, 2013DINIZ, R. O. Gerando possibilidades de uso da proposta curricular do estado para alunos com necessidades especiais. 2013. 69 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Matemática) - Instituto de Ciência Matemáticas e de Computação - ICMC, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2013.; SUPLINO, 2005SUPLINO, M. Inclusão escolar de alunos com autismo. Petrópolis: Vozes, 2005.; SERRA, 2004SERRA, D. C. G. A inclusão de uma criança com autismo na escola regular: desafios e processos. 2004. 113 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.). Para Leite, Laura e Martins (2013)LEITE, L. P.; LAURA, M. B.; MARTINS, O. Currículo e deficiência: análise de publicações brasileiras no cenário da educação inclusiva. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, n. 1, p. 63-92, 2013., as adequações feitas no currículo podem ser entendidas como estratégias didático-pedagógicas que alcancem o maior número de diferenças. Dessa forma, as autoras defendem que é necessário o desenvolvimento de um plano de ensino que contemple as especificidades dos alunos, respeite as diferenças acadêmicas e seus ritmos de aprendizagem (LEITE; LAURA; MARTINS, 2013LEITE, L. P.; LAURA, M. B.; MARTINS, O. Currículo e deficiência: análise de publicações brasileiras no cenário da educação inclusiva. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, n. 1, p. 63-92, 2013.), provendo e prevendo, desse modo, a organização do ensino e das classes comuns considerando os conteúdos, a metodologia de ensino e o processo de avaliações básicas (MESQUITA, 2010MESQUITA, A. M. A. Currículo e educação inclusiva: as políticas curriculares nacionais. Espaço do Currículo, Paraíba, v. 3, n. 1, p. 305-315, 2010.). Além disso, a prática pedagógica deve estar pautada na valorização dessas diferenças (SIEMS, 2008SIEMS, M. E. R. A construção da identidade profissional do professor da educação especial em tempos de educação inclusiva. 2008. 58 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008.) e dentro dos princípios de individualização dos processos de ensino e aprendizagem (DENARI, 2014DENARI, E. F. De classes especiais e atendimento educacional especializado: a elegibilidade de alunos como foco. Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, Marília, v. 1, n. 1, p. 45- 52, 2014.).
Desse modo, é fundamental ter uma compreensão individual do aluno olhá-lo como uma pessoa única, com suas aprendizagens sociais específicas. Vygotsky (1983)VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983. explica que a deficiência não é proveniente somente do caráter biológico, mas também de fatores sociais, de tal forma que a educação deve ser baseada em procedimentos especiais. Uma limitação biológica em si, de acordo com o autor, não traz impedimentos necessários ao sujeito. O que marca seu funcionamento deficiente são as demandas sociais e, nesse sentido, modos diferentes de proceder as práticas podem minimizar ou maximizar limitações. Entende-se por procedimentos especiais aqueles que consideram as especificidades do aluno para organização de um ensino individualizado. Dessa forma, pode-se ressaltar a importância do desenvolvimento de estratégias pensadas e criadas para as características de cada aluno, considerando as diferenças entre o alunado. Se assim for, não olhar-se-á para a pessoa com deficiência como alguém com incapacidades, mas como um indivíduo que necessita de procedimentos especiais de acordo com suas necessidades.
Entretanto, de acordo com Leite, Laura e Martins (2013)LEITE, L. P.; LAURA, M. B.; MARTINS, O. Currículo e deficiência: análise de publicações brasileiras no cenário da educação inclusiva. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, n. 1, p. 63-92, 2013., pesquisas ainda são escassas no que diz respeito às estratégias para efetivação da educação inclusiva, circunscrevendo-se, prioritariamente, às reflexões e às discussões teóricas que envolvem os princípios e as políticas educacionais. As pesquisas pouco retratam experiências didático-pedagógicas que promovam ajustes curriculares e/ou formas de flexibilizações do ensino.
Considerando que alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) integram o PAEE, Nunes, Azevedo e Schimidt (2013)NUNES, D. R.; AZEVEDO, M. Q. O.; SCHIMIDT, C. Inclusão educacional de pessoas com Autismo no Brasil: uma revisão da literatura. Revista Educação Especial, Santa Maria, v. 26, n. 47, p. 557-572, 2013. afirmam que as práticas educacionais adotadas nas escolas da rede comum de ensino têm produzido poucos efeitos na aprendizagem desses alunos. De Vitta, De Vitta e Monteiro (2010)DE VITTA, F. C. F.; DE VITTA, A.; MONTEIRO, A. S. R. Percepção de professores de educação infantil sobre a inclusão da criança com deficiência. Relato de pesquisa. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 16, n. 3, p. 415-428, 2010., em diálogo com professores da Educação Infantil de diferentes escolas, concluíram que o conceito de deficiência para tais profissionais estava associado ao conceito de incapacidade, diferença e anomalia.
Neves et al. (2014)NEVES, A. J. et al. Escolarização formal e dimensões curriculares para alunos com autismo: o estado da arte da produção acadêmica brasileira. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 30, n. 2, p. 43-70, 2014. analisaram 157 teses e dissertações, no período de janeiro de 1987 a dezembro de 2011, e verificaram que há uma restrita produção acadêmica pelos programas de Mestrado e Doutorado no país sobre o processo de escolarização formal e as dimensões curriculares para alunos com TEA. Os autores sugerem o desenvolvimento de mais pesquisas que ofereçam e confirmam estratégias pedagógicas para que o aluno com TEA aprenda os conteúdos nos espaços formais de ensino (NEVES et al., 2014NEVES, A. J. et al. Escolarização formal e dimensões curriculares para alunos com autismo: o estado da arte da produção acadêmica brasileira. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 30, n. 2, p. 43-70, 2014.).
Dessa forma, a partir da necessidade do ensino individualizado, indicado na literatura, e com o intuito de apresentar uma realidade de práticas de adequações, este estudo teve como objetivo apresentar atividades propostas para um aluno com TEA do segundo ano do Ensino Fundamental de uma escola na rede privada de ensino de uma cidade de médio porte do interior do Estado de São Paulo. A realidade pesquisada foi identificada pela pesquisadora em âmbito particular. Os envolvidos - professora, coordenadora, diretora, mãe e a própria pesquisadora, como profissional na área de Educação Especial que acompanhou a criança em atendimentos externos, relataram que o currículo era adequado ao aluno e que estava beneficiando o desenvolvimento da sua aprendizagem.
2 Método
2.1 Participante
Julia (nome fictício) tinha 44 anos, era formada em Pedagogia, lecionava há 20 anos, dos quais oito anos na mesma escola em que foi realizada a pesquisa. Era, então, professora no segundo ano do Ensino Fundamental, regente de uma turma de 22 alunos, entre os quais um aluno com TEA e outro com paralisia cerebral. O trabalho com um aluno com TEA, Paulo, em uma sala de ensino regular era a segunda experiência de Júlia com alunos com deficiência.
Paulo (nome fictício) tinha 10 anos e tinha o diagnóstico de TEA. Fazia atendimento domiciliar de Pedagogia e Fonoaudiologia no período contrário ao da escola. Além disso, realizava natação e aulas de música. Expressava-se e compreendia apenas frases curtas, necessitando, muitas vezes, de gestos. Por vezes, aparentava não ouvir ou não entender instruções ou solicitações simples. A criança estudava há dois anos na escola em que a pesquisa foi desenvolvida e estava no segundo ano do Ensino Fundamental. As aulas eram ministradas pela professora Júlia, que contava com um auxiliar de sala que acompanhava o ensino da professora direcionado aos alunos com deficiências, assim como acompanhava os alunos na ida ao banheiro e momento do lanche. Paulo frequentava o Atendimento Educacional Especializado (AEE), oferecido pela escola, uma vez na semana no período contrário ao da sala comum.
2.2 Materiais
Para a coleta de dados, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas adaptadas do estudo de Ramos (2013)RAMOS, D. M. Análise de avaliações de conteúdos pedagógicos propostas para alunos surdos em contexto educacional inclusivo bilíngue. 2013. 15 f. Projeto apresentado na disciplina Estudos Avançados I no Programa de Pós-Graduação em Educação Especial, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2013. (ver Apêndice A) e observação dos materiais utilizados com a criança com TEA e registros do pesquisador.
2.3 Delineamento
Esta pesquisa teve como objetivo proporcionar mais contato com o problema da adaptação curricular, a fim de torná-lo mais explícito ou de construir hipóteses (SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009SILVEIRA, D. T.; CÓRDOVA, F. P. Unidade 2 - a pesquisa científica. In: GERHARDT, T. E.; SILVEIRA, D. T. (Orgs.). Métodos de Pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. p. 31-42. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cursopgdr/downloadsSerie/derad005.pdf >. Acesso em: 26 maio 2016.
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). Dessa forma, foi realizada uma entrevista com um profissional que tinha experiência prática com o problema pesquisado e análise de exemplos que estimulassem a compreensão (SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009SILVEIRA, D. T.; CÓRDOVA, F. P. Unidade 2 - a pesquisa científica. In: GERHARDT, T. E.; SILVEIRA, D. T. (Orgs.). Métodos de Pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. p. 31-42. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cursopgdr/downloadsSerie/derad005.pdf >. Acesso em: 26 maio 2016.
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).
A fundamentação metodológica adotada nesta pesquisa foi qualitativa, de natureza exploratória. Optou-se pelo delineamento do estudo de caso com direcionamento de estudo de um fenômeno contemporâneo (YIN, 2015YIN, R. K. Estudo de Caso: planejamento e métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2015.). Tratou-se de uma professora que apresentou para a pesquisadora as atividades desenvolvidas com o aluno com TEA. A unidade de análise principal foram as estratégias de ensino específicas utilizadas com o aluno para um trabalho individualizado.
2.4 Procedimento da coleta de dados
Após o cumprimento dos aspectos éticos e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos4 4 Pesquisa aprovada sob o Parecer Nº 1.680.608. , a coleta foi iniciada. Inicialmente, a pesquisadora entrou em contato com o responsável pela escola para apresentar a proposta de pesquisa. Com a autorização da escola, foi agendado um horário para a professora responder a entrevista e apresentar os materiais à pesquisadora. Antes da entrevista e apresentação dos materiais, a professora assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Autorização, necessários para a realização da investigação. Foi realizada entrevista semiestruturada, observação dos materiais apresentados pela professora, além do registro escrito e fotografado pela pesquisadora.
A participante foi entrevistada presencialmente na escola em que trabalha. A entrevista, que teve duração de uma hora, realizada em horário previamente combinado sem que prejudicasse suas atividades, possibilitou análises das atividades desenvolvidas pela professora frente ao ensino de um aluno com TEA em sua sala de aula. Com o intuito de facilitar o registro da entrevista e de torná-la mais dinâmica, toda a entrevista foi gravada e, posteriormente, transcrita.
Ao término da entrevista, foi agendado um novo encontro para a apresentação dos documentos com as atividades propostas para o aluno com TEA. A observação dos materiais contou com registro da pesquisadora, assim como fotos e fotocópias para futuras análises mais aprofundadas. O encontro para a observação de materiais também contou com uma hora de duração. Foi pedido para que a professora apresentasse as atividades desenvolvidas pelo aluno com TEA em sala de aula e em casa (caderno, apostila, folhas, entre outras), plano de aula da professora (conteúdo, objetivo, desenvolvimento, avaliação), provas e trabalhos desenvolvidos pelo aluno, entre outros.
2.5 Procedimento de análise de dados
A análise dos materiais levantados foi desenvolvida de forma qualitativa, com o objetivo de colher informações aprofundadas e ilustrativas para produzir novas informações (SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009SILVEIRA, D. T.; CÓRDOVA, F. P. Unidade 2 - a pesquisa científica. In: GERHARDT, T. E.; SILVEIRA, D. T. (Orgs.). Métodos de Pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. p. 31-42. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cursopgdr/downloadsSerie/derad005.pdf >. Acesso em: 26 maio 2016.
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). A entrevista foi transcrita a partir do áudio gravado e categorizada em temas definidos pelos pesquisadores. A partir da transcrição e análise da entrevista semiestruturada e análise dos materiais disponibilizados pela professora, os pesquisadores indicaram as categorias descritas neste artigo. As categorias foram destacadas no relato da professora baseadas em assuntos similares, por exemplo, todas as falas e atividades apresentadas em relação à aprendizagem do aluno com TEA foram agrupadas, independentemente do momento que aparecia durante a entrevista. Todas as categorias seguem apresentadas em tópicos com as descrições das falas de Julia, descrição dos exemplos de atividades e análises pela pesquisadora de acordo com a literatura. As falas citadas neste artigo foram transcritas de maneira literal, com exceção do nome do aluno que foi alterado para um nome fictício - Paulo.
3 Resultados e discussões
3.1 Atuação junto ao aluno com TEA no contexto inclusivo
No início da entrevista, como descrito na fala a seguir, Julia mencionou que se sentiu ansiosa com o ensino ao aluno com TEA no início do ano, questionando-se como seria esse ensino, pois, de acordo com sua fala, Paulo era diferente do padrão dos demais alunos.
Com relação ao... Paulo [...]. No início, gera uma certa ansiedade. Porque é... como eu vou trabalhar também, né?... Fico me questionando. E como fazer? Porque sai fora daquilo que a gente tem da normalidade, daquele ritmo que você entra na sala, você dá o seu conteúdo e a criança aprende. No caso do Paulo, ele requer mais atenção e essa atenção é que me preocupa no sentido de buscar algo que faça sentido pra ele. (Entrevista concedia por Julia).
A fala da professora revelou, em princípio, um olhar majoritariamente biológico para a questão da deficiência. Ou seja, mesmo sem conhecer bem o aluno, ela estava perpassada por uma imagem dele como alguém que teria dificuldades para aprender. Tal conclusão foi concebida a partir de aspectos físicos/biológicos do aluno, caracterizado com deficiência em comparação aos demais que têm características diferentes ou, ainda, pautadas pelo laudo médico.
Em relação a tal questão, Vygotsky (1983)VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983. esclarece que, quando se assume uma visão biológica, as pessoas são caracterizadas como deficientes a partir de alguma alteração física que as torna diferentes da maioria. Todavia, o autor esclarece que não necessariamente a alteração física trará prejuízos ao desenvolvimento da pessoa. Vygotsky (1983)VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983. afirma, ainda, que o mais importante é como a sociedade reage diante dessa alteração e que exigências fazem a esse sujeito. Assim, ao invés de considerar o ambiente como um fator para a exibição da deficiência, a maioria das pessoas considera a alteração física em si como determinante da deficiência. Pode ser por isso que Julia tenha demonstrado ansiedade perante o ensino, uma vez que o diagnóstico de TEA (alteração biológica) definiria por si só que o aluno teria dificuldades de aprendizagem. Vygotsky (1983)VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983. explica que a deficiência não vem somente do caráter biológico, mas também do ambiente social. Assim, o autor defende a necessidade de uma educação baseada em procedimentos especiais que podem colaborar para que o sujeito se desenvolva bem.
Em relação aos procedimentos de ensino, a professora também expressou, em seu depoimento, a concepção de um ensino homogêneo, pois considerava que, em uma sala sem alunos com deficiência, sua tarefa seria só ministrar o conteúdo e as crianças aprenderiam. Já com a presença de Paulo seria necessária mais atenção, dado que ele era diferente da maioria. De acordo com Vygotsky (1983)VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983., na perspectiva da visão biológica, a deficiência é vista como algo ruim, já que a pessoa tem uma incompetência. Essa visão está sobre a pessoa e não sobre o ambiente no qual ela está inserida. Em relação aos alunos de Julia, Paulo seria incompetente diante da aprendizagem homogênea dos outros, necessitando de mais atenção.
Semelhante à fala da professora, professores da Educação Infantil de diferentes escolas revelaram que seu conceito de deficiência estava associado ao conceito de incapacidade, diferença e anomalia, como algo que define a criança e como se fosse inescapável (DE VITTA; DE VITTA; MONTEIRO, 2010DE VITTA, F. C. F.; DE VITTA, A.; MONTEIRO, A. S. R. Percepção de professores de educação infantil sobre a inclusão da criança com deficiência. Relato de pesquisa. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 16, n. 3, p. 415-428, 2010.).
3.2 Aprendizagem do aluno com TEA
Julia percebia, no decorrer das atividades e da interação com outros alunos, que Paulo também aprendia, mas que, para ele, o ensino deveria ser mais focado.
A parte da interação com os amigos, a parte assim social, o Paulo foi se mostrando cada vez mais assim próximo dos amigos, cada vez mais interessado em fazer as aulas práticas. Então, como eu via aquele retorno dele, envolvido na situação, pra mim o Paulo estava compartilhando das mesmas situações e aprendendo. Tinha essa visão. Mas aí que eu comecei a perceber, assim, que ele precisava realmente ser mais focado (Entrevista concedia por Julia).
A respeito da fala de Julia, pode-se recorrer à descrição de Vygotsky (1983)VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983. sobre uma educação baseada em procedimentos especiais. A professora percebeu, durante as atividades desenvolvidas em sala, que o aluno com TEA aprendia, em dissonância com seu conceito inicial, ou seja, de que o aluno com deficiência não aprende. A partir dessa percepção, identificou um funcionamento específico desse aluno e percebeu a necessidade de um ensino mais focado.
De Vitta, De Vitta e Monteiro (2010)DE VITTA, F. C. F.; DE VITTA, A.; MONTEIRO, A. S. R. Percepção de professores de educação infantil sobre a inclusão da criança com deficiência. Relato de pesquisa. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 16, n. 3, p. 415-428, 2010. mostram informações semelhantes quanto à noção dos professores sobre a viabilidade de uma educação humanitária em vez de uma educação voltada aos conteúdos escolares propriamente ditos. Em outras palavras, é quando a aprendizagem do aluno com deficiência tem como foco apenas o desenvolvimento social, o contato com os demais alunos sem deficiências, deixando de lado o desenvolvimento principal que uma escola oferece que são os conteúdos acadêmicos. A professora Julia revela essa forma de pensar em sua fala. Inicialmente, ela tinha uma visão mais humanitária, acreditando que atividades de contato social com os outros alunos eram suficientes para Paulo. Contudo, ela chegou à conclusão de que seu aluno com TEA também poderia aprender, de forma a realizar uma educação em sentido amplo, e não só a socialização.
[...] é... mais centrada a questão da alfabetização, a questão da matemática, até mesmo nas ciências e história e geografia. E então eu comecei a ver de uma maneira diferente. No início, eu colocava assim para o Paulo, acho que desafios que ele não saberia resolver, né? Estava assim, além das expectativas. Mas é porque eu não conhecia o Paulo. Então eu criei assim, algumas situações, né? (Entrevista concedia por Julia).
Na fala da professora, ficou clara a necessidade da sondagem inicial para o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem, a fim de conhecer o que o aluno já sabia, quais eram suas habilidades e dificuldades. Vygotsky (1983)VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983. afirma que é necessário conhecer a via de acesso de aprendizagem da pessoa para desenvolver uma educação de qualidade. Dessa forma, o ensino pode partir das habilidades da pessoa para, então, enfatizar o desenvolvimento de novas habilidades.
A partir do último excerto de entrevista apresentado, pode-se perceber que Julia, com o passar do tempo, e com mais contato com o aluno, passou a considerá-lo como um aprendiz, exatamente como destaca Vygotsky (1983)VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983.. O autor afirma que os alunos com deficiência devem ser colocados no lugar de aprendizes, assim como os alunos sem deficiências, para que seu desenvolvimento possa ocorrer. Além disso, é imprescindível o uso de um método, procedimento e técnicas específicas para esse ensino, sempre considerando as características e as necessidades do aluno, o que é descrito na categoria a seguir: procedimentos especiais.
3.3 Educação baseada em procedimentos especiais
Então, a partir do momento que eu comecei a conviver com ele e a conhecer um pouquinho do Paulo, é que eu pude entender. E aí, o que me passou pela cabeça? Eu preciso ajudar o Paulo. Em que sentido? É... toda vez que eu preparo alguma coisa, alguma atividade, por mais simples que seja a atividade, eu penso assim, quando o Paulo crescer [...], ele vai usar isso? Em quê? Qual é o sentido dessa atividade para o Paulo quando ele estiver maior? (Entrevista concedia por Julia).
A partir do momento que a professora conheceu melhor Paulo, suas especificidades e habilidades, ela começou a pensar e a preparar uma aula cujo conteúdo fosse significativo e alcançasse as vias de acesso dele. Assim, quando Julia olhou para o Paulo como um aprendiz, ela passou a construir as atividades visando também sua aprendizagem. Ao mesmo tempo, ela deixou para trás a visão biológica da deficiência e olhou para a construção social a favor do aluno.
Mas eu me pergunto nesse sentido, quando o Paulo estiver maior, quando ele crescer, pra ele vai ser funcional? É por aí que eu começo a preparar a aula. (Entrevista concedia por Julia).
A partir dessa visão de uma educação baseada em procedimentos especiais, Julia descreveu como organizava a preparação de cada um dos assuntos trabalhados para Paulo. Ela contou que desenvolveu atividades seguindo uma mesma estrutura tanto para as atividades e avaliações em sala, quanto para os trabalhos e tarefas para a casa. Ela utilizou a mesma instrução alterando as alternativas, figuras ou palavras. Tais estratégias ofereceram uma base para o aluno, uma vez que ele sabia exatamente o que a professora esperava dele com aquela atividade. O modo de apresentar a instrução da atividade mostrou-se fundamental, pois certos modos tornavam a atividade mais difícil para o aluno analisar o que era esperado dele. A nova forma de organizar o conjunto de atividades favoreceu uma ansiedade menor do aluno, de modo que ele conseguisse se expressar e responder melhor àquilo que era solicitado.
A seguir, algumas descrições específicas de acordo com as matérias citadas pela professora. Julia começou explicando sobre como pensava ensinar a leitura e escrita para o Paulo:
Então, o Paulo precisa aprender a ler e escrever. Quando eu paro e penso assim sobre a questão [...] de texto... Embora eu saiba que a diversidade, os gêneros são muitos, mas o Paulo vai ter contato com esses textos. Ele vai ter contato com a história em quadrinhos, ele vai ter contato com a narrativa, ele vai ter contato com poema... à medida que ele for crescendo, ele vai conhecer esses textos. É... num primeiro momento ele vai usar todos? Agora, nesta idade que ele está? Não! Mas ele vai ter contato com isso e outros textos mais, porque a gente tem assim, a internet, TV. (Entrevista concedia por Julia).
Então, como trabalhar? Primeiramente embora não faça sentido para o Paulo, o que é um poema, o que é um conto, neste momento, esta discriminação, mas trabalhar a leitura. Sem ficar especificando: isso é um poema... o poema é escrito em verso [...]. Isso para o Paulo não é funcional agora, mas a leitura em cima desses textos, sim. (Entrevista concedia por Julia).
Podemos relacionar o depoimento de Julia sobre oferecer textos sem ênfase para a conceituação ou tipologia, como dar oportunidades para Paulo conhecer e entrar em contato com a leitura. Conforme afirma Góes (1995, p. 77)GÓES, M. C. R. A construção do escritor: observações sobre a relação da criança com seu próprio texto. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 29, p. 77-84, 1995., as “[...] concepções cotidianas infantis permanecem por longo tempo não reflexivas ou não conscientes porque a atenção da criança está no objeto a que o conceito se refere e não no próprio ato de conceitualizar o objeto”. Assim, a professora poderia pensar que essa era uma atividade impossível de desenvolver com Paulo, por sua dificuldade em conceituar os tipos de textos, mas, em vez disso, ela utilizou o mesmo assunto trabalhado com todos os alunos e ensinou ao aluno Paulo aquilo que ele necessitava aprender, a leitura.
Distante da visão biológica inicial da professora sobre Paulo, depois de conhecê-lo melhor, ela desenvolveu com ele atividades de leitura e escrita, acreditando em seu potencial. Lacerda (2008)LACERDA, C. B. F. É preciso falar bem para escrever bem?. In: SMOLKA, A. L. B.; GÓES, M. C. R. A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. 12. ed. Campinas: Papirus, 2008. p. 63-98. aponta que se acreditava que crianças que não falavam ou que tinham uma comunicação muito prejudicada não fossem capazes de se alfabetizar. Como Paulo apresentava uma fala ininteligível, se comparada aos demais alunos, a professora poderia não colocá-lo em uma situação de aprendiz, acreditando na dependência de uma fala bem articulada para a aprendizagem da escrita. Ao contrário disso, ela percebeu que havia nele potencialidade para a alfabetização e investiu nessa direção.
E em português, agora, tudo que eu faço relacionado à leitura, sempre trago o Paulo pra próximo de mim. Vamos ler essa frase? Vamos ler essa palavra? Então ele está sempre lendo comigo alguma coisa, diariamente ou na lousa ou na apostila ou no caderno. Porque eu acho que isso é assim, um reforço, sabe? [...]. Ele consegue ler e escrever. Mas acho que precisa ter esse reforço, essa questão da composição, né? De escrever, de repetir. Como é mesmo? Ele fala, pergunta. Escreve! Pede que eu escreva, né? Então, por isso me passa a impressão, assim que eu tenho que reforçar o tempo inteiro, sempre, reforçando. Embora a gente tenha um vocabulário gigantesco, mas acho que todas as palavras que ele escreve e fala são válidas, né, pra reforçar esse vocabulário, essa leitura. (Entrevista concedia por Julia).
Quando a professora comentou sobre a repetição e o reforço do que o aluno já aprendeu, referiu-se a algo importante quanto ao ensino de pessoas com deficiências. Refere- se ao fato de que não há receitas e roteiros de como ensinar pessoas com deficiências, conforme seu comentário, mas que algumas dicas podem ser dadas, como os procedimentos já descritos nessa categoria, entre elas, a eficácia da repetição. Contudo, a prática pedagógica não pode se resumir a essa estratégia, é preciso criar diferentes situações de aprendizagem e exigir coisas variadas do aluno.
Também na matemática Julia organizou um ensino com procedimentos especiais e significativos para o Paulo. Um dos exemplos foi quando desenvolveu a atividade do “Jogo 21” com a sala. A proposta era que os alunos fizessem diversas atividades com operações que resultassem no número 21. Para Paulo, Julia utilizou as palavras-chave que eram de conhecimento do aluno - “igual” e “diferente”. A professora mostrava cartas com números diversos e pedia ao aluno para dizer se o numeral escrito era igual ou diferente ao número 21. As atividades desenvolvidas para os demais alunos poderiam não ser exatamente as mesmas dirigidas para a aprendizagem de Paulo, mas, independentemente disso, a professora seguiu com o mesmo assunto e adequou o conteúdo com procedimentos especiais ao aluno, de acordo com suas necessidades e possibilidades de aprendizagem. Ela montou uma atividade única - jogo 21 - e explorou, dentro do jogo, aspectos diferentes para os diferentes alunos. De Paulo, foi exigido algo que fizesse sentido para ele e o que ele conseguia realizar. Dos demais alunos, foram exigidos outros conhecimentos de acordo com o desenvolvimento de cada um.
Além da adequação citada anteriormente, a professora também realizou adequações que pareciam simples, mas que foram significativas para o aluno. Por exemplo, a professora grifou algumas palavras das instruções expressas na apostila e escreveu alguns numerais para auxiliá-lo na resolução. Na instrução do exercício um (Veja as cartas que João recebeu no início do jogo “Vinte e Um”), a professora grifou as palavras “João recebeu”, “do jogo” e “vinte e um”. As palavras facilitaram o foco para o aluno resolver o problema. Além disso, ela escreveu a lápis a operação abaixo das cartas para que Paulo as resolvesse.
Em outra atividade da apostila (a qual a professora identificou como não tendo espaço suficiente para a resposta no exercício e que as atividades não continham instruções objetivas como o Paulo necessitava), a professora anexou uma folha pautada com clipes em cima da própria folha da apostila para que ele pudesse realizar a atividade, com instruções mais objetivas e com mais espaço para armar as operações e resolvê-las. Odom et al. (2010)ODOM, S. L. et al. Evidence-based practices in interventions for children and youth with autism spectrum disorders. Preventing school failure: Alternative education for children and youth, v. 54, n. 4, p. 275-282, 2010. desenvolveram um estudo de revisão de literatura para a identificação das práticas baseadas em evidências para alunos com TEA e encontraram 24 práticas com relevância de acordo com os critérios estabelecidos. Uma das práticas é o suporte visual, uma ferramenta que permite que um aluno acompanhe, de forma independente, eventos e atividades, descrita pelos autores como “focused intervention practices”, práticas de ensino individuais que os professores usam para o desenvolvimento de habilidades e conceitos para crianças com TEA. Julia apresentou, por meio de uma instrução acessível ao aluno, em uma folha anexa, uma prática baseada em evidência, com o desenvolvimento de uma estratégia específica para o desenvolvimento educacional do aluno. Ela utilizou de um suporte visual para o aluno acompanhar e responder a atividade de forma independente. Assim como a atividade apresentada anteriormente, essa adequação também pode parecer simples, mas ofereceu ao Paulo condições para que ele realizasse atividades semelhantes e com o mesmo assunto que todos os alunos, como foi expresso em duas falas:
Falar, não, vou colocar o Paulo pra fazer continhas, isoladas, assim separadas. Eu não consigo fazer isso com o Paulo. Eu acho que ele precisa estar junto. (Entrevista concedida por Julia).
Em história, geografia e ciências, da mesma maneira, eu faço a leitura do texto com ele na apostila. É, tem coisa que eu sei que não faz sentido algum pra ele, não... [...] tem uma compreensão daquilo e daquele ponto eu observo o que vai ser bom para o Paulo, o que ele vai tirar de proveito daquilo e aí, então, eu passo para o caderno para fazer atividade mais separada (Entrevista concedia por Julia).
A professora Julia descreveu como desenvolveu as atividades com o Paulo, sempre pensando em alternativas para sua aprendizagem efetiva e com significado. Apesar dessas práticas visando maior adequação pedagógica, ela ainda se questionou a respeito de sua prática, comentando que, por não haver uma receita ou roteiro a seguir, sentia-se insegura em relação à efetividade de seu trabalho.
[...] será que o que eu estou fazendo está correto? No sentido assim, de adaptar? Porque, à medida que a gente faz a adaptação, a gente acaba tirando frases, eliminando coisas [...]. No caso de ciências. Então, é aonde eu fico mais, assim, com dúvida. No português, na matemática eu acho que eu me sinto mais segura em adaptar. Ciências é que eu fico, às vezes, com dúvidas, assim, se o que estou colocando pra ele está pronto, é uma definição, por mais simples que seja, mas eu não estou distorcendo, né, a questão, não estou distorcendo o assunto pra ele (Entrevista concedia por Julia).
Mesmo insegura sobre sua prática, ela não deixou de preparar atividades com procedimentos específicos para Paulo e de olhar para as suas necessidades de ensino. É de grande importância destacar essa continuidade do trabalho mesmo diante de dúvidas e inseguranças. De fato, não existe um roteiro ou receita a seguir a respeito de adaptações aos alunos com deficiências, porque cada aluno é diferente e com necessidades de procedimentos específicos. O que existe é acreditar que o aluno pode aprender independentemente de suas características. Compete, assim, ao professor oferecer condições e oportunidades para que isso ocorra, assim como o faz para alunos sem deficiências (VYGOTSKY, 1983VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de Defectologia. Tomo V. Playa: Ciudad de La Habana, 1983.).
Em ciências, como nós trabalhamos sobre os animais, eu procurei trabalhar com o Paulo, [...] mais próximo da realidade do Paulo. Sempre buscando algo que se relacionasse com a vivência dele. (Entrevista concedia por Julia).
A fala da professora está relacionada aos aspectos teorizados por Vygotsky (1991)VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991. quando aborda a Zona do Desenvolvimento Proximal (ZDP) e Zona do Desenvolvimento Real (ZDR). A ZDR refere-se ao que a criança aprendeu e realizou de forma independente. A ZDP “[...] será o nível de desenvolvimento real amanhã - ou seja, aquilo que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha amanhã” (VYGOTSKY, 1991VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 98). Ao trabalhar com a realidade da criança, partindo de sua vivência, a professora ofereceu novas oportunidades de aprendizado.
Em outra atividade da apostila, a professora fez um tipo diferente de adaptação muito significativo e simples, demonstrando que, para uma adequação eficaz, muitas vezes, não são necessários muitos materiais, mas, sim, o olhar para a necessidade do aluno. Em uma instrução da atividade da apostila, a professora alterou uma palavra, buscando palavras que o aluno já conhecia, em acordo com a sua ZDR, oferecendo instrução facilitada para ensinar conteúdos novos, ou seja, atuando em sua ZDP.
Outra adequação realizada por Julia para aproximar a instrução da realidade do aluno foi a alteração da questão na apostila: “Será que o mesmo acontece com os vegetais?”. A palavra “vegetais” não era do conhecimento de Paulo; desse modo, a professora utilizou outra palavra presente em seu repertório - “plantas”. Acima da palavra desconhecida, a professora escreveu a caneta a palavra “plantas”. Dessa forma, ela recebeu uma resposta do aluno uma vez que ele entendeu a instrução dada. Isso não quer dizer que ele não possa aprender novas palavras, ou não conheça a palavra “vegetais”. A questão central é que a professora, naquele momento, priorizou o conhecimento dele sobre o assunto estudado, a relação “luz solar e plantas”, e poderá explorar o conceito de vegetais em outro momento mais oportuno.
Para a atividade de história, a professora também desenvolveu uma adequação eficaz. O assunto trabalhado foi sobre escolas em diferentes lugares do mundo. Ao pensar em trabalhar a realidade do aluno, sabendo que o conhecimento da dimensão de mundo seria muito complexo para ele naquele momento, a professora trabalhou com ele a questão das diferenças, referindo-se, inicialmente, aos diversos espaços da própria escola. Paulo andou pela escola e fez os registros dos nomes dos espaços, entre eles, biblioteca, refeitório, sala de aula. Com essa adequação, o aluno acompanhou o assunto que estava sendo trabalhado com toda a turma, participando de forma efetiva.
3.4 Experiência de práticas de adequações
Ao final da entrevista, a professora foi questionada sobre sua prática anterior ao contato com Paulo e se ela já havia desenvolvido algumas estratégias de adequações anteriormente com outros alunos com ou sem deficiência. Como resposta, Julia mencionou que havia utilizado adequações para o ensino de matemática e de português para alunos com dificuldades de aprendizagem, acrescentando que, contudo, para Paulo, as adequações foram mais amplas, abrangendo todas as matérias.
A participante contou que percebeu o desenvolvimento da aprendizagem do aluno durante o ano, reforçando a ideia da prática de procedimentos especiais com Paulo em função das adequações eficazes. Julia não deixou Paulo com atividades diferentes de toda a turma, mas ofereceu condições para ele aprender com pequenas alterações dentro das atividades. Essa é uma das muitas práticas que os professores desenvolvem com seus alunos e que, infelizmente, são pouco conhecidas e divulgadas. Ao pensar nisso, este trabalho buscou mostrar alternativas do ensino à pessoa com TEA. Ressalta-se que essas foram adequações específicas a esse aluno, mas que poderão servir como inspiração e sugestões para adequações a outros alunos.
4 Conclusão
Tendo como objetivo apresentar atividades propostas para um aluno com TEA do segundo ano do Ensino Fundamental de uma escola comum da rede privada de ensino, situada em uma cidade de médio porte do interior do Estado de São Paulo, considerou-se pertinente relatar um caso de sucesso observado na prática. Com os resultados obtidos nesta pesquisa, pode-se indicar que o olhar individualizado possibilitou a organização de um ensino mais eficaz.
Ao conhecer as características do aluno, um procedimento especial pode ser elaborado para o desenvolvimento de novas habilidades. Considera-se pertinente indicar que esse processo não foi algo previamente programado, mas construído cotidianamente, junto ao aluno. Ressalta-se, também, que o trabalho de Julia revelou o potencial de atuação do professor, assim como possibilitou identificar sua fragilidade frente a uma demanda desconhecida - além da deficiência de alunos, outras dificuldades permeiam a atuação de um professor -, e apontar que sucessos nesse processo inclusivo é necessário.
Por fim, pesquisas futuras podem investigar outras realidades com o objetivo de identificar e apresentar processos bem-sucedidos de inclusão. Espera-se que os resultados obtidos desta pesquisa sirvam para indicar a possibilidade de práticas de sucesso; no entanto, mais estudos são necessários para ampliar esse conhecimento e as reflexões sobre ele.
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Pesquisa aprovada sob o Parecer Nº 1.680.608.
APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA
Identificação:
Nome:
Idade:
Formação:
Função que exerce na escola:
Tempo de exercício no magistério:
Experiência no trabalho com alunos com TEA:
Descreva o aluno com TEA:
Questões principais:
1) Como é para você ser professora de aluno com TEA incluído neste contexto de educação comum?
- A partir da seleção de três conteúdos trabalhados com o aluno com TEA no primeiro semestre de 2016 (incluindo: preparação, desenvolvimento e avaliação), responda:
2) Como é para você preparar, desenvolver e avaliar conteúdos para seu aluno com TEA nesse contexto?
3) Quais estratégias e recursos didáticos você utiliza na elaboração e no desenvolvimento dos conteúdos pedagógicos de seu aluno com TEA? Quais os desafios/as dificuldades enfrentados/as?
4) Antes, quando você não atuava com aluno com TEA, é assim que você preparava os conteúdos pedagógicos de seus alunos?
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2018
Histórico
-
Recebido
06 Jul 2017 -
Revisado
15 Jan 2018 -
Aceito
24 Jan 2018