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A MODIFICAÇÃO DO SABER E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A TRANSFERÊNCIA

LA MODIFICACIÓN DEL SABER Y SUS IMPLICACIONES PARA LA TRANSFERENCIA

RESUMO.

Este artigo é um recorte da pesquisa de mestrado do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicologia, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - Fapemig. Sua proposta é a de investigar as implicações do discurso contemporâneo no estabelecimento da transferência na análise hoje. Dentre suas formulações, Lacan (1964-2008) teoriza o fenômeno transferencial a partir da dimensão epistemológica, quando postula a função do ‘sujeito suposto saber’ como o seu pivô. Todavia, a incidência do discurso do mestre contemporâneo modifica a relação que o sujeito estabelece com o campo do saber. Quais as consequências clínicas dessa nova relação? Quais usos o sujeito faz do analista hoje? Buscaremos verificar a existência de novas formas de transferência, que não se instauram unicamente pela via da suposição de saber. Veremos, assim, que há diferentes usos para o analista, podendo a transferência ser estabelecida pela via do saber, mas também pela sua dimensão pulsional.

Palavras-chave:
Transferência; sujeito suposto saber; discurso do mestre contemporâneo

RESUMEN.

Este artículo es un recorte de la investigación de maestría del Programa de Postgrado Stricto Sensu en Psicología de la Pontificia Universidad Católica de Minas Gerais, financiada por la Fundación de Amparo a la Investigación del Estado de Minas Gerais - FAPEMIG. Su propuesta es la de investigar las implicaciones del discurso contemporáneo en el establecimiento de la transferencia en el análisis hoy. Entre sus formulaciones, Lacan (1964-2008) teoriza el fenómeno transferencial a partir de la dimensión epistemológica, cuando postula la función del ‘sujeto supuesto saber’ como su pivote. Sin embargo, la incidencia del discurso del maestro contemporáneo modifica la relación que el sujeto establece con el campo del saber. ¿Cuáles son las consecuencias clínicas de esta nueva relación? ¿Qué usos el sujeto hace del analista hoy? Buscaremos verificar la existencia de nuevas formas de transferencia, que no se instaura únicamente por la vía de la suposición de saber. Veremos, así, que hay diferentes usos para el analista, pudiendo la transferencia ser establecida por la vía del saber, pero también por su dimensión pulsional.

Palabras clave:
Transferencia; sujeto supuesto saber; discurso del maestro contemporáneo

ABSTRACT

This article is an excerpt from the research for a Master's degree in the Stricto Sensu Graduate Program in Psychology at the Pontifical Catholic University of Minas Gerais, supported by the Foundation for the Support to the Researches in Minas Gerais (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - [FAPEMIG]). It aimed to investigate the implications of contemporary discourse in establishing transference in analysis today. Among his formulations, Lacan (1964-2008) theorizes the transferential phenomenon from the epistemological dimension when he postulates the function of the ‘subject supposed to know’ as its pivot. However, the incidence of the contemporary master's discourse modifies the relation that the subject establishes with the knowledge field. What are the clinical consequences of this new relationship? What uses does the subject make of the analyst today? We will seek to verify the existence of new forms of transference, which are not established solely by the knowledge assumption. Thus, we will see that there are different uses for the analyst, and the transference can be set through knowledge via, but also through its drive dimension.

Keywords:
Transference; subject supposed to know; contemporary master's discourse

Introdução

A transferência está intimamente relacionada a uma questão relativa ao saber. Isso não se dá por acaso. No Seminário livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964-2008Freud, S. (1914-1996). Recordar, repetir e elaborar(Novas recomendações à técnica da psicanálise II). In J. Strachey (Ed.). Obras Completas (Vol. 12, p. 159-171, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago .) configura a transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, junto ao inconsciente, à pulsão e à repetição. Todavia, a maior das contribuições lacanianas ao tema é justamente a formulação da função do ‘sujeito suposto saber’. Tal função se estabelece a partir de um erro subjetivo, de uma crença no analista que sabe e de um endereçamento ao Outro e, nessa perspectiva, a questão do saber estará em jogo.

A partir do Seminário livro 17 - O avesso da psicanálise, Lacan (1969/1970-1992Lacan, J. (1970-1992). O avesso da psicanálise. In J. Lacan. O Seminário(p. 135-186, Vol. 17). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar .) formaliza a Teoria dos Discursos e postula o Discurso do Mestre como o discurso do inconsciente, e o Discurso do Analista como o seu avesso. Anos mais tarde, diante de uma modificação do Discurso do Mestre, Lacan (2017Miller, J.-A. (2004). Uma fantasia. Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba. In Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, 8., A Ordem Simbólica no Século XXI. Recuperado de http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
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) apontará o Discurso do Capitalista, legitimando-o como o discurso do mestre moderno. Hoje, testemunhamos suas consequências na maneira dos sujeitos se relacionarem, de consumirem, de fazerem laço social.

Buscaremos investigar a incidência do discurso contemporâneo na clínica, demonstrando de quais maneiras ela implica em uma modificação na relação que o sujeito estabelece com o saber. Questionaremos o lugar do psicanalista a partir dos usos particulares que o sujeito faz do dispositivo analítico, fundando novos modos de manifestação da transferência, para além da relação com o saber.

O discurso contemporâneo

A psicanálise acompanha as questões relativas ao horizonte de sua época. Qual o lugar para a psicanálise no mundo contemporâneo? Miller (2004Miller, J.-A. (2004). Uma fantasia. Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba. In Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, 8., A Ordem Simbólica no Século XXI. Recuperado de http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
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) se interrogará sobre o status da civilização hipermoderna, na qual se encontra aquilo que ele denomina de ‘sujeitos desbussolados’. O autor associará esse desnorteamento dos sujeitos à dissolução da ‘moral civilizada’ - tal qual nomeada por Freud -, que se mantinha enquanto uma bússola frente ao desamparo estrutural do sujeito. Se nós perdemos a moral sexual civilizada como a bússola de outrora é porque hoje temos outra: o objeto a; o que podemos perceber como característico de nossa época é a ascensão do objeto a - objeto mais-de-gozar - ao zênite social.

Um novo astro se elevara no céu social, no ‘sociel’. Lacan registrou esse novo astro sociel, se assim posso dizer, como objeto a, resultado de um forçamento, de uma passagem ao mais além dos limites descobertos por Freud, à sua maneira, precisamente em um mais além. Elemento intenso que perime toda noção de medida, indo sempre em direção ao mais, em direção ao sem medida (Miller, 2004Miller, J.-A. (2004). Uma fantasia. Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba. In Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, 8., A Ordem Simbólica no Século XXI. Recuperado de http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
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, p. 2).

Quando falamos no objeto a em ascensão, somos levados a pensar no Discurso do Capitalista. Cabe lembrar que a Teoria dos Discursos se encontra no Seminário livro 17 - O Avesso da Psicanálise, proferido entre os anos de 1969 e 1970, período marcado pela turbulência de um marco histórico e social - o movimento estudantil francês em maio de 1968. Nessa ocasião, Lacan formaliza os quatro discursos radicais: O discurso do mestre, da histeria, da universidade e do analista. O discurso seria o modo como a relação do sujeito com o objeto é regida. Em todo discurso, temos o lugar do agente como aquilo que o promove; o outro, que o discurso faz trabalhar; o produto gerado, e ainda o lugar da verdade. Esses lugares são ocupados de diferentes modos pelos seguintes termos: objeto a, objeto causa de desejo; sujeito barrado; significante mestre e saber, produzindo os quatro discursos.

Posteriormente, a partir de uma modificação do Discurso do Mestre, surgirá o Discurso do Capitalista, legitimado como o discurso do mestre moderno. Há uma “[...] mutação capital [...] que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista” (Lacan, 1969/1970-1992, p. 160). Essa mutação é possível a partir de uma inversão na posição dos dois elementos presentes no Discurso do Mestre: ‘significante’ (S¹) e ‘sujeito barrado’ ($). No Discurso do Mestre o S¹ ocupa o lugar de agente e o $ ocupa o lugar de verdade do discurso. A mutação capital irá conferir ao $ o lugar de agente e ao S¹ o lugar de verdade. É somente em 1972, na conferência de Milão, que Lacan trará a sua grafia:

Figura 1
Modificação do Discurso do Mestre ao Discurso do Capitalista.

Não podemos nos esquecer de que o objeto a possui a face de objeto causa de desejo, mas também de objeto mais-de-gozar. No Discurso do Capitalista, o objeto a mais-de-gozar aparece no lugar de produção do discurso. O capitalismo produz modos de gozo, e esse objeto a se revela através dos gadgets, os objetos de consumo que permitem livre acesso do sujeito ao gozo (a > $). No Discurso do Capitalista, há a produção de um gozo e a busca por um mais-além do gozo, expresso no consumismo e seus excessos.

Miller (2004Miller, J.-A. (2004). Uma fantasia. Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba. In Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, 8., A Ordem Simbólica no Século XXI. Recuperado de http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
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) formula aquilo que se mostra tão vigente e atual em nossa civilização hipermoderna: o objeto a como orientador do discurso contemporâneo. Enquanto o novo guia da civilização hoje, ele aponta para uma nova era, a era do gozo. O mais-de-gozar se faz ver no consumismo exacerbado, no imperativo de gozo, nas novas formas de sintoma, nas toxicomanias, naquilo que se configura como um mais-além, o sem medida. Se o objeto pequeno a se situa na civilização hipermoderna como seu orientador, ou então como o seu agente, por consequência, podemos compreender a constatação milleriana (que o próprio autor denomina como ‘uma fantasia’) de que “[...] o discurso da civilização hipermoderna tem a estrutura do discurso do analista” (Miller, 2004Miller, J.-A. (2004). Uma fantasia. Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba. In Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, 8., A Ordem Simbólica no Século XXI. Recuperado de http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
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, p. 3). Lacan apresenta o Discurso do Analista como o avesso do Discurso do Mestre, que é a própria estrutura discursiva do inconsciente - o avesso da psicanálise é o Discurso do Mestre. Contudo, “O discurso da civilização não é mais o avesso da psicanálise. É seu sucesso” (Miller, 2004Miller, J.-A. (2004). Uma fantasia. Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba. In Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, 8., A Ordem Simbólica no Século XXI. Recuperado de http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
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, p. 3). E isso implica em consequências à prática da psicanálise. Cabe ainda pontuar que tomamos como orientação para compreender nossa sociedade como uma sociedade hipermoderna, a leitura milleriana que define nossa civilização como regida menos pelos ideais do que pelo objeto.

Lendo os elementos do Discurso do Analista como uma proposta para o novo discurso da civilização hipermoderna, podemos localizar que é o objeto mais-de-gozar que está no lugar dominante do discurso. Esse objeto a impõe-se ao sujeito desbussolado, fazendo-o produzir os S¹ da modernidade, simbolizado pelas inúmeras avaliações e questionários produzidos sobre o sujeito. Já o saber S² se situa no lugar de verdade, mas enquanto um semblante da mentira. Todavia, Miller (2004Miller, J.-A. (2004). Uma fantasia. Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba. In Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, 8., A Ordem Simbólica no Século XXI. Recuperado de http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
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, p. 3) dirá que “[...] esses diferentes elementos estão dispersos na civilização e que só na psicanálise, na psicanálise pura, esses elementos se ordenam em discurso”. Interessante notar que tanto no Discurso do Analista quanto no Discurso do Capitalista, o objeto a está diretamente endereçado ao sujeito barrado (a > $), demonstrando, assim, como o sujeito do mundo moderno tem livre acesso aos modos de gozo em ambos os discursos, em sua leitura civilizatória. Portanto, podemos compreender que é o mais-de-gozar que se apresenta como o elemento norteador para o sujeito contemporâneo.

Miller (2017Miller, J.-A. (2017). Questão de Escola: sobre a garantia. Revista Opção Lacaniana Online, 8(23).) vai esclarecer que o Discurso do Mestre não é sem-variação, ele se altera e modifica em nossa área e em nossa época. A cada momento, pode haver um elemento ocupando o lugar dominante do mestre, seja o sujeito dividido ($) do individualismo democrático, seja o saber (S²) sob a aparência da burocracia, ou o objeto a situado no zênite social como vimos há pouco. No entanto, “[...] é sempre o S¹ que, definitivamente, sustenta o discurso do mestre” (Miller, 2017Miller, J.-A. (2017). Questão de Escola: sobre a garantia. Revista Opção Lacaniana Online, 8(23)., p. 2). Assim, o discurso da civilização contemporânea remete, necessariamente, ao Discurso do Mestre, que é o discurso do inconsciente tal qual estabelecido por Lacan.

Não há mais uma bússola que sirva de guia e faça um ordenamento para o ‘sujeito desbussolado’ e, portanto, somos confrontados com a presença descomedida do mestre em suas múltiplas faces, variações e formas de discursos. O mestre contemporâneo mudou, e essa modificação não opera somente no âmbito social, mas se impõe também ao âmbito individual e particular de cada sujeito. Hoje, o imperativo de gozo que se expõe no modo de vida capitalista-consumista coloca uma série de impasses ao sujeito em sua relação com esse gozo. Vivemos em um mundo de excessos, um mundo que demanda a satisfação dos modos de gozo de cada um; entretanto, essa satisfação nunca se dá por completo, portanto, o sujeito quer sempre mais, quer gozar sempre mais. Se só o que se leva em conta para o mestre contemporâneo é a satisfação das variadas formas de gozar de cada um, logo, à medida que ele se fortalece, é a divisão do sujeito que se apaga.

Freud cria a psicanálise em uma época cuja ‘moral civilizada’ ainda permanecia enquanto um ideal ordenador. O sintoma era aquilo que fazia enigma e se apresentava enquanto um sentido a ser decifrado. Nessa perspectiva, entendemos que a relação do sujeito com o sintoma sempre foi marcada por um não saber, entretanto, havia algo do sintoma que era possível de ser apreendido, ordenado e significado pela via do sentido. Essa relação sofre uma modificação no mundo contemporâneo - e isso se expressa com clareza na clínica dos novos sintomas, das toxicomanias, da bulimia, da anorexia, dentre outros (Marcos, 2015Marcos, C. M. (2015). Ato e deriva pulsional na clínica da anorexia e bulimia. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 67(1), 115-129.; Marcos & Mendonça, 2017Marcos, C. M., & Mendonça, R. L. (2017). A pesquisa intervenção-psicanalítica com adolescentes: o que elas nos ensinam sobre gravidez e maternidade a partir de uma Conversação. Psicologia em Revista, 23(2), 707-727. DOI: http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n2p707-727
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; Marcos & Sales, 2018Marcos, C. M., & Sales, C. F. (2018). Para além do paradigma histérico da anorexia: a ordem de ferro do supereu materno. Psicologia Clínica, 30(2), 329-348. DOI: http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02A07
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). Aquilo que se leva em conta pelo ‘sujeito desbussolado’ é somente o império do seu gozo em uma busca incessante pelas variadas formas de satisfazê-lo.

Se, por um lado, nós podemos localizar um imperativo do Goza!, que se prolifera no gozo do sintoma, por outro lado, nós podemos perceber que ele não parece produzir enigma, permanecendo desvestido de sentido. Algo do sentido está excluído para o sujeito nessa relação: escapa-lhe a dimensão do saber. O imperativo de gozo, próprio do discurso contemporâneo, modifica a relação que o sujeito estabelece com o saber.

A modificação do saber na atualidade

Diante do advento da tecnologia, da internet e do site Google, a contemporaneidade inaugura uma nova relação do sujeito com o saber. Ao se confrontar com o não saber, o sujeito moderno busca suas respostas no lugar em que ele supõe poder encontrá-las: nos sites, nos aplicativos, na internet, no computador, nos smartphones. O imperativo do gozo coloca, para o sujeito, uma urgência, um empuxo que é da ordem do consumo; e o saber também entra nessa diretriz. Seria o saber mais um objeto de consumo que o sujeito procura no lugar onde ele acha que vai poder encontrá-lo? Sabemos, com Lacan (1964-2008Freud, S. (1914-1996). Recordar, repetir e elaborar(Novas recomendações à técnica da psicanálise II). In J. Strachey (Ed.). Obras Completas (Vol. 12, p. 159-171, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago .), que a transferência possui sua dimensão epistemológica, a qual só pode ser instaurada diante do estabelecimento daquilo que se coloca como seu alicerce, seu pivô: a função do ‘sujeito suposto saber’. Qual o lugar para o ‘sujeito suposto saber’ nessa era regida pelo objeto a, em que parece não haver uma suposição de saber ligada ao sujeito?

Miller (2007Miller, J.-A. (2007). Sobre o sujeito suposto saber e o objeto a. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 59, 5-25.) apontará que dentre os possíveis efeitos de uma pergunta, nem sempre haverá a instauração de um ‘sujeito suposto saber’. Quando o sujeito acessa a internet e questiona o saber através de um computador, os efeitos dessa pergunta não aparentam se tratar de uma suposição de saber, mas de algo de outra ordem. “Hoje interroga-se a enciclopédia pelo computador, pela internet, e talvez não se trate tanto de uma suposição quanto da antecipação de que encontrarei o que procuro” (Miller, 2007Miller, J.-A. (2007). Sobre o sujeito suposto saber e o objeto a. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 59, 5-25., p. 8). A interrogação do sujeito não partiria tanto de uma suposição, mas de uma demanda imperativa de saber, uma antecipação de que haveria no outro - seja no próprio Google, ou na busca por um analista-google - uma resposta pronta e com estatuto de verdade. O sujeito passaria a utilizar o saber enquanto mais um objeto a ser consumido.

Leguil (2011Leguil, F. (2011). As demandas contemporâneas feitas à psicanálise I e II. Curinga: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 33, 19-48.), ao se questionar sobre esses efeitos do mundo contemporâneo para a psicanálise, dirá da diferença entre a prática psicanalítica na era freudiana e nos dias de hoje. Segundo o autor, na época freudiana a medicina estava ancorada em uma espécie de magia, a magia das palavras. “Essa magia das palavras dava aos médicos uma aura, uma reputação que os tornava capazes de melhorar o estado do paciente devido ao saber que lhes era suposto” (Leguil, 2011Leguil, F. (2011). As demandas contemporâneas feitas à psicanálise I e II. Curinga: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 33, 19-48., p. 41). Leguil nos lembra de que em suas primeiras publicações, Freud utiliza o termo ‘médico’, mas, posteriormente, o substitui por ‘psicanalista’. Podemos dizer que há certa antecipação de Freud a Lacan. Freud antecipa uma associação entre o poder da palavra e a dimensão da crença na figura do analista; a magia das palavras e a suposição de saber no médico possuíam uma virtude curativa na medida em que a singularidade daquele tratamento era capaz de produzir algum alívio para o sujeito. Esse amor capaz de curar pela via do saber e da fala não se trata justamente da função do ‘sujeito suposto saber’? O que Freud de certa maneira antecipa a Lacan é que a função da palavra, associada à suposição de saber no analista, é capaz de tratar o sintoma do sujeito.

Não obstante, na atualidade, o poder da medicina não advém mais dessa aura médica, advém da ciência e seus gadgets. O que antes era um saber suposto, agora se torna um ‘saber exposto’. Essa modificação do lugar que o saber ocupa na contemporaneidade traz implicações à prática analítica, visto que a relação do sujeito com o saber também se modificou. Leguil (2011Leguil, F. (2011). As demandas contemporâneas feitas à psicanálise I e II. Curinga: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 33, 19-48.) ressalta que hoje o sujeito não chega mais à clínica com uma demanda de tratamento endereçada à figura do analista, àquele em quem se suporia um saber capaz de desvendar o enigma de seu sintoma; hoje não é tanto a suposição que está em questão: o que há é uma exigência, uma reivindicação de saber.

Quando se sai do consultório médico, vai-se diretamente ao computador para saber se os remédios prescritos não são uma bobagem. Isso significa que o saber exposto substitui totalmente o saber suposto. Os médicos, os psicólogos e os psiquiatras, que perceberam isso e que estão no discurso do mestre, captaram que essa supressão do saber suposto pelo saber exposto destrói a relação com o doente, uma vez que este último vai buscar este saber exposto em outro lugar (Leguil, 2011Leguil, F. (2011). As demandas contemporâneas feitas à psicanálise I e II. Curinga: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 33, 19-48., p. 42).

Se hoje nós vemos o saber tomar o lugar de uma exigência e de uma reivindicação, isso ocorre em função de certo modo de discurso circulante do nosso tempo. O objeto a como norteador da nossa civilização, aponta para um imperativo do gozo que modifica a maneira como o sujeito faz laços e se relaciona no mundo - inclusive como ele se relaciona com o saber -, e dessa forma, tudo passa a ser da ordem do consumo, pautado na relação do sujeito com os seus objetos, agora situado na dimensão do ‘ter’. Com essa expressão, estamos nos referindo à lógica fálica na qual o sujeito busca ser através do ter, ou seja, na qual o gozo fálico se dá a ver no gozo do proprietário, da posse, dos bens.

Podemos ainda ponderar que há, na contemporaneidade, um livre acesso pelo sujeito ao consumo do objeto-saber. Vivemos em um mundo da oferta, cujo uso do conhecimento nos sites de busca pela internet, pelo Google, nos tablets e nos smartphones está na palma das mãos de cada um. Todos sabem! Todos sabem sobre tudo. Todavia, essa crescente onda de conhecimento ‘para-todos’ acaba por horizontalizar o saber, ao ponto que tanto a ignorância quanto o conhecimento passaram a ter o mesmo valor. Como consequência, atestamos o fenômeno contemporâneo da pulverização do saber. A partir do momento em que o sujeito contemporâneo passa a ter livre acesso a todo tipo de informação e de dados pela via da internet, logo todos se tornam ‘especialistas’ em qualquer tema que seja. Em contrapartida, os verdadeiros especialistas têm agora menos conhecimento que outrora. Aquele saber que antes era localizado, hoje se encontra disperso. Pode-se dizer então que, ao mesmo tempo que todos têm um livre acesso a todo tipo de conhecimento disponível, poucos são aqueles aos quais se credita saber sobre qualquer coisa. Esse fenômeno vem ganhando tamanha proporção a ponto de também se adentrar no consultório do psicanalista. Se antes era possível localizar a suposição de saber na figura do analista, hoje o que podemos observar é uma espécie de descrédito nesse. O saber do analista passa a ter o mesmo valor da minha ignorância. Sem suposição, resta o lugar da exigência, da reivindicação.

No entanto, a exigência e a reivindicação não são os únicos efeitos que encontramos na contemporaneidade no que diz respeito ao lugar que o saber ocupa para o sujeito. Segundo Leguil (2011Leguil, F. (2011). As demandas contemporâneas feitas à psicanálise I e II. Curinga: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 33, 19-48.), são diversas as suas mutações. Diante do mestre contemporâneo, cada vez mais vemos o ‘saber exposto’ ceder ao ‘saber imposto’, ou seja, aos inúmeros protocolos, exames e técnicas que produzem um saber dito científico e, ao fazerem isso, deixam de lado o sujeito e seu saber inconsciente, que como sabemos, está situado do lado da suposição.

Aprendemos com a psicanálise que é fundamental que nós sejamos precisos quando estamos no terreno da linguagem e das palavras. Ora, ‘suposição de saber’, ‘antecipação de saber’ e ‘exigência de saber’ são três expressões muito distintas e que precisam ser diferenciadas entre si. Enquanto a suposição de saber leva em consideração o saber do inconsciente, quando estamos falando de uma antecipação ou de uma exigência de saber, parece que essa demanda é de outra ordem que não a de um saber inconsciente, mas de um saber pleno, científico, no discurso do ‘para todos’ e com estatuto de verdade universal.

O saber sob suspeita

Ao se indagar sobre o status da sociedade contemporânea, Ram Mandil (2005Mandil, R. (2005). O analista ligado. Revista Opção Lacaniana Online, 2, 1-3. Recuperado dehttp://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n2/pdf/artigos/RMAnalista.pdf
http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos...
, p. 2) dirá que “[...] uma das características desses novos tempos é o questionamento de todo o saber suposto e um estímulo à exposição do saber [...]”, indicando, dessa forma, que os sujeitos de hoje apresentam uma questão em relação ao saber, colocando “[...] sob suspeita toda suposição”.

Para Miller (2010Miller, J.-A. (2010). Vie de Lacan. In Cours d’Orientation Lacanienne III. [Conferência]. Recuperado de https://jonathanleroy.be/wp-content/uploads/2019/04/2009-2010-La-vie-de-Lacan-JA-Miller.pdf
https://jonathanleroy.be/wp-content/uplo...
), vivemos em uma ‘sociedade da suspeita’, cuja ideologia não é favorável ao alicerce da psicanálise, justamente pelo fato da prática psicanalítica ter sido estabelecida a partir da transferência e do ‘sujeito suposto saber’. O autor vai demarcar que o termo ‘suposição’, que compõe o sintagma ‘sujeito suposto saber’, pode ser entendido como uma instância que não é prontamente observável. Entretanto, quando ele nomeia a nossa sociedade atual como a ‘sociedade da suspeita’ é justamente para dizer dessa oposição entre o que é suspeito e o que é suposto. “Bem, o que eu chamei agora mesmo de a ‘sociedade da suspeita’ é intolerante ao suposto saber. Ela se anima a partir de um outro imperativo que é o de explicitar tudo, expor tudo, exibir tudo” (Miller, 2010Miller, J.-A. (2010). Vie de Lacan. In Cours d’Orientation Lacanienne III. [Conferência]. Recuperado de https://jonathanleroy.be/wp-content/uploads/2019/04/2009-2010-La-vie-de-Lacan-JA-Miller.pdf
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, p. 75, tradução nossa3 3 “Eh bien, ce que j'appelais tout à l'heure la société du soupçon est intolérante au savoir supposé. Elle est animée par un tout autre impératif qui est de tout expliciter, de tout exposer, de tout exhiber”. ). Em contrapartida, a suposição de saber pressupõe uma vacilação, a existência de um saber que não é imediatamente observável. De tal maneira que a suposição de saber é colocada em cheque no mundo contemporâneo. O saber que se credita hoje não é o saber que está velado, muito pelo contrário, é aquele que se mostra, que se expõe e se exibe prontamente.

Perante as modificações do mundo e do mestre contemporâneo, vemos emanar também modificações quanto às dimensões da crença, da transferência, da função do ‘sujeito suposto saber’. Ao que tudo indica, vivemos em uma época marcada por um enfraquecimento da suposição de saber sobre o sujeito do inconsciente, e uma consequente modificação da demanda de análise, que agora se apresenta de maneira imperiosa por um saber que é de outra ordem que não a da suposição, mas sim da exigência e do uso desse saber enquanto um objeto de consumo. Dessa maneira, quando o sujeito busca uma análise, é preciso que o analista localize, primeiramente, a partir de qual lugar está colocada a sua demanda e que relação esse sujeito estabelece com a suposição de saber. Poderia o sujeito demandar uma análise sem um endereçamento de saber ao Outro? Como operar com a transferência numa era regida pela falência do Nome-do-Pai?

Éric Laurent (2018Laurent, E. (2018, 17 de abril). Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Lacan em .pdf. Recuperado dehttp://lacanempdf.blogspot.com.br/2018/04/disrupcao-do-gozo-nas-loucuras-sob.html
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) se questiona a respeito dos usos que podemos fazer da técnica analítica a partir do último ensino de Lacan. Fazendo alusão a Miller, o autor vai frisar que a partir do momento em que Lacan formula o declínio do Nome-do-Pai e a teoria da foraclusão generalizada, o termo ‘transferência’ quase desaparece dos seus textos.

Essa maneira de deixar a transferência de lado, uma vez que o sujeito não é mais abordado a partir do Outro, não poderia ela nos libertar, já que precisamente ‘Lacan passa por cima da transferência, porque [...] a transferência supõe um Outro bem estabelecido e bem assentado. Há transferência quando já se supôs o saber que significaria alguma coisa’? (Laurent, 2018Laurent, E. (2018, 17 de abril). Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Lacan em .pdf. Recuperado dehttp://lacanempdf.blogspot.com.br/2018/04/disrupcao-do-gozo-nas-loucuras-sob.html
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, p. 3).

Para Lacan, a transferência é entendida a partir de uma ‘lógica atributiva’ na qual o analisante transfere/atribui ao analista o lugar de agente da produção de um saber em análise. Entretanto, essa atribuição não passa de um erro subjetivo, tendo em vista que aquele que sabe na análise é o sujeito, e não o analista. Segundo Laurent (2018Laurent, E. (2018, 17 de abril). Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Lacan em .pdf. Recuperado dehttp://lacanempdf.blogspot.com.br/2018/04/disrupcao-do-gozo-nas-loucuras-sob.html
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), a formulação do último ensino de Lacan aponta para uma ruptura da posição do analista na atribuição de um saber. Hoje, a transferência não se daria tanto mais pela via da suposição: “[...] devemos entender a ruptura do analista com sua ancoragem na suposição. Ele não está no lugar do sujeito suposto saber, ele está no lugar daquele que segue” (Laurent, 2018Laurent, E. (2018, 17 de abril). Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Lacan em .pdf. Recuperado dehttp://lacanempdf.blogspot.com.br/2018/04/disrupcao-do-gozo-nas-loucuras-sob.html
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, p. 4). Com o autor, podemos compreender o lugar do analista como daquele que segue a orientação fornecida pelo inconsciente. Seria essa a indicação de uma nova modalidade de transferência na contemporaneidade?

Se outrora o Outro se apresentava de modo consistente e os ideais guiavam o sujeito dentro de uma ‘moral civilizada’ bem estabelecida, em contrapartida, hoje esse Outro já não se apresenta mais tão encarnado - tudo não é senão semblante. Consequentemente, o sujeito não encontra mais os guias que façam bússola frente ao seu desamparo estrutural, ficando a mercê dos imperativos do mestre contemporâneo.

Com Lacan (1964-2008Freud, S. (1914-1996). Recordar, repetir e elaborar(Novas recomendações à técnica da psicanálise II). In J. Strachey (Ed.). Obras Completas (Vol. 12, p. 159-171, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago .), aprendemos que a transferência possui uma dimensão epistemológica, a partir do momento em que a função do ‘sujeito suposto saber’ é estabelecida. Dirá o autor que “[...] desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber, há transferência” (Lacan, 1964-2008Freud, S. (1914-1996). Recordar, repetir e elaborar(Novas recomendações à técnica da psicanálise II). In J. Strachey (Ed.). Obras Completas (Vol. 12, p. 159-171, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago ., p. 226). Contudo, a relação que o sujeito estabelece com o saber já não é mais a mesma, visto que hoje há uma oferta ininterrupta do objeto-saber, fazendo tamponar o enigma e a questão.

Há uma modificação da transferência, na medida em que também se altera aquilo que é da ordem da suposição. O saber que antes era extraído da relação com o Outro, hoje está mais investido nos objetos da tecnologia da informação; é a esses gadgets que o sujeito demanda o saber hoje. Há algo no estabelecimento da transferência no mundo contemporâneo que parece estar em outro campo que não é puramente o da relação com a suposição de saber, convocando o olhar do analista para as novas formas de transferência que se fundam.

Um bom uso para o objeto-analista

Quando Freud (1912-1996Freud, S. (1914-1996). Recordar, repetir e elaborar(Novas recomendações à técnica da psicanálise II). In J. Strachey (Ed.). Obras Completas (Vol. 12, p. 159-171, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago .) estabelece a transferência enquanto o mecanismo no qual o paciente inclui o analista em uma de suas ‘séries psíquicas’, ele a está tratando pela sua vertente pulsional. Essa vertente pulsional fica novamente clara para Freud (1914-1996Freud, S. (1914-1996). Recordar, repetir e elaborar(Novas recomendações à técnica da psicanálise II). In J. Strachey (Ed.). Obras Completas (Vol. 12, p. 159-171, J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago .) quando ele trata da compulsão à repetição. A importância da repetição para a transferência se dá à medida que permite o deslocamento do conteúdo das representações inconscientes recalcadas ao analista, promovendo a continuidade da série de escolhas objetais do sujeito.

Posteriormente, quando Lacan (1964-2008Lacan, J. (1964-2008). Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. In J. Lacan. O Seminário (p. 119-248, 2a ed., Vol. 11, M. D. Magno, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) define a transferência enquanto a atualização da realidade sexual do inconsciente, enquanto um modo de presença do analista e como uma pulsação em seu modo de abertura e fechamento, ele também a está definindo pela sua dimensão pulsional. Todavia, podemos afirmar que o autor destaca a concepção de saber na leitura freudiana, tendo em vista a função do ‘sujeito suposto saber’. A partir dessas duas dimensões o analista poderá se fazer presente em uma análise. Podemos, então, nos perguntar se hoje o analista estaria sendo mais convocado a partir desse lugar de objeto pulsional do que no lugar de suposição de saber. Se atualmente a transferência não se inclina tanto na sua relação com a suposição de saber, hoje ela manifestaria mais a sua vertente pulsional?

Essa parece ser a indicação de Ram Mandil (2005Mandil, R. (2005). O analista ligado. Revista Opção Lacaniana Online, 2, 1-3. Recuperado dehttp://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n2/pdf/artigos/RMAnalista.pdf
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). O autor afirma que as manifestações da transferência na contemporaneidade demonstram maior articulação à dimensão pulsional que à dimensão da demanda. Diante da presença insistente e imperativa do gozo, em um contexto onde prevalece o consumo sem medida, o sujeito contemporâneo reduz o Outro a um objeto, como uma maneira de garantir seu acesso a esse gozo. “A transferência não parece visar à falta no Outro, dando a impressão de confundir-se com as exigências de uma presença absoluta como condição para o gozo” (Mandil, 2005Mandil, R. (2005). O analista ligado. Revista Opção Lacaniana Online, 2, 1-3. Recuperado dehttp://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n2/pdf/artigos/RMAnalista.pdf
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, p. 3). Devemos nos lembrar com Lacan (1964-2008Lacan, J. (1964-2008). Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. In J. Lacan. O Seminário (p. 119-248, 2a ed., Vol. 11, M. D. Magno, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 148), que a transferência é “[...] a atualização da realidade do inconsciente [...]”, sendo que “[...] a realidade do inconsciente é a realidade sexual [...]”, portanto, o sujeito contemporâneo busca fazer um uso do analista, visando o acesso ao gozo. Há uma questão da transferência colocada aí, nessas novas formas de transferência que se fundam a partir da sua dimensão pulsional, convocando o analista a partir desse lugar.

Miller (1999Miller, J.-A. (1999). As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. Revista Opção Lacaniana, 25, 52-55.) levantará uma discussão sobre a existência de casos inacessíveis ou impossibilitados ao tratamento ou à experiência psicanalítica. Segundo o autor, o uso do termo ‘tratamento’ é alterado na década de 50 a partir da leitura de Lacan, que atribuirá à psicanálise o sentido de uma ‘experiência’. Em se tratando de uma experiência, não se coloca mais em primeiro plano a questão de uma indicação ou contraindicação, mas a existência de uma demanda de análise do sujeito e o desejo relativo a essa demanda.

O que Miller (1999Miller, J.-A. (1999). As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. Revista Opção Lacaniana, 25, 52-55.) nos ensina é que a psicanálise é sempre possível nos casos em que o sujeito coloca para o analista uma demanda e um desejo, e que, para isso, o psicanalista deve se encarnar enquanto um objeto - o objeto-psicanalista. Há um lugar de objeto que o analista deve encarnar, sustentando, à sua maneira, o trabalho de análise.

Este objeto-psicanalista é, doravante, disponível - disponível no mercado como se diz - e se presta a usos muito distintos daquele que fora concebido sob o termo de ‘psicanálise pura’. A ‘psicanálise pura’ não é, assim, mais do que um dos usos aos quais o psicanalista se presta. É a nova cara da indicação à análise. Trata-se menos de antecipar se a natureza do problema é ‘acessível’ à psicanálise do que de saber se o encontro com o analista será útil ou não, fará bem ou mal. Evitemos filosofar sobre o bem e o mal. O encontro com um analista, no geral, faz bem. É que o objeto-psicanalista é espantosamente versátil, disponível, multifuncional se posso dizer (Miller, 1999Miller, J.-A. (1999). As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. Revista Opção Lacaniana, 25, 52-55., p. 54).

O discurso contemporâneo é marcado por uma lógica mercadológica. Estamos diante de um mundo da oferta e da disponibilidade ao uso dos diversos objetos - seja o objeto de gozo, objeto-saber ou objeto-psicanalista. No entanto, Lacan já havia nos ensinado que o Discurso do Analista será sempre o avesso do Discurso do Mestre e, portanto, o acesso ao objeto-psicanalista se dá de outro modo na contemporaneidade, não pela via de um uso meramente mercadológico, mas sim pela via de um tratamento. Conforme nos ensina Miller (1999Miller, J.-A. (1999). As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. Revista Opção Lacaniana, 25, 52-55., p. 54) acima: “[...] o encontro com um analista, no geral, faz bem [...]”, visto que não há uma contraindicação ao encontro do sujeito com o seu desejo. Na medida em que o analista souber ocupar o lugar de objeto, para qualquer sujeito que demande uma análise portando seu desejo, haverá então lugar e indicação para a psicanálise no mundo de hoje. Caberá ao analista saber ser objeto, permitindo que o sujeito possa fazer um bom uso dele. Segundo Miller (1999)Miller, J.-A. (1999). As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. Revista Opção Lacaniana, 25, 52-55., ao passo que o analista comporta ser o objeto de uma análise, as contraindicações a ela se reduzem na mesma medida. É a presença do analista enquanto um objeto multifuncional que possibilitará o trabalho analítico.

Segundo Miller (1999Miller, J.-A. (1999). As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. Revista Opção Lacaniana, 25, 52-55.), o analista enquanto objeto multifuncional não apenas suporta ser, mas também se oferece como objeto em uma análise, permitindo que o sujeito possa fazer um bom uso dele, seja para desvelar as identificações ideais, servir-se como condensador do gozo, colocar um ponto de basta, organizar seu discurso, fornecer uma significação, introduzir uma dialética onde falta sentido. Diante da transferência, “[...] pode-se tomar o analista como um objeto libidinizado, que testemunha a plasticidade da libido e presentifica a própria formação do sintoma [...], isto é, o objeto analista” (Miller, 2007Miller, J.-A. (2007). Sobre o sujeito suposto saber e o objeto a. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 59, 5-25., p. 18). O analista é tomado como objeto de uma análise para cada sujeito, dentro do caso a caso. Há, portanto, uma enorme versatilidade no uso do analista a partir desse lugar.

Se hoje, na clínica, nós podemos observar a manifestação de sintomas que não passam por uma dialética do sentido e da suposição e, por consequência, o uso do analista passa pela vertente do objeto pulsional, logo, caberá a ele responder a partir desse lugar em que é convocado. É por meio de seus semblantes e a partir do não sentido e do não saber que poderá o analista fazer uma operação mínima na transferência, apostando no início de uma análise. Ram Mandil (2005Mandil, R. (2005). O analista ligado. Revista Opção Lacaniana Online, 2, 1-3. Recuperado dehttp://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n2/pdf/artigos/RMAnalista.pdf
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) dirá que diante dessa nova clínica, trata-se, sobretudo, de

Criar uma nova relação com o saber. Buscar melhores condições para que o inconsciente continue a ser um modo de acesso digno à causa analítica. Neste sentido, se há lugar para uma suposição de saber numa análise, ela deverá ser medida a partir do valor de uso do analista por parte do analisante, como parte de um saber fazer com a não-relação que se constrói através do sintoma. Podemos afirmar que há um saber no uso do parceiro-sintoma, um saber que inclui o analista em seu exercício (e não como uma forma de acesso ao gozo) (Mandil, 2005Mandil, R. (2005). O analista ligado. Revista Opção Lacaniana Online, 2, 1-3. Recuperado dehttp://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n2/pdf/artigos/RMAnalista.pdf
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, p. 4).

O autor vem nos indicar que a entrada em análise poderá ocorrer a partir da criação de uma nova relação do sujeito com o saber e com o seu sintoma, mas para isso, é preciso que haja também uma parceria possível com o analista; uma parceria que não seja pelo uso do analista como um meio de acesso livre ao gozo e como objeto de consumo, mas talvez como condensador desse gozo, ou tal como nos ensina Miller, um analista multifuncional que possa introduzir o mínimo de sentido no que há de mais opaco do sintoma. Talvez assim possa surgir algo no campo da suposição e do enigma.

De acordo com Miller (2004Miller, J.-A. (2004). Uma fantasia. Conferência de Jacques-Alain Miller em Comandatuba. In Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP, 8., A Ordem Simbólica no Século XXI. Recuperado de http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
http://2012.congresoamp.com/pt/template....
, p. 9), o último ensino de Lacan aponta para uma inversão à célebre e tradicional frase segundo a qual “[...] o sujeito suposto saber é o pivô da transferência”. Agora temos a transferência enquanto o pivô do sujeito suposto saber. Essa inversão parece ser característica do nosso tempo e necessária ao entendimento daquele que pratica a psicanálise. Se nós entendemos a transferência enquanto o pivô do sujeito suposto saber, trata-se de dizer que “[...] o que faz existir o inconsciente como saber é o amor” (Miller, 2004Miller, J.-A. (2007). Sobre o sujeito suposto saber e o objeto a. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 59, 5-25., p. 9). O amor é o elemento capaz de fazer mediação ao um-sozinho, os chamados ‘sujeitos desbussolados’. “O inconsciente primário não existe como saber. E para que se torne um saber, para fazê-lo existir como saber, é preciso o amor” (Miller, 2004Miller, J.-A. (2007). Sobre o sujeito suposto saber e o objeto a. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 59, 5-25., p. 9).

Isso nos conduz para outra inversão que Miller (2007Miller, J.-A. (2007). Sobre o sujeito suposto saber e o objeto a. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 59, 5-25.) vai apontar no pensamento lacaniano. Quando Freud formula a transferência, ele entende a presença libidinal do analista em primeiro plano, e por isso, dirá que, em análise, os sintomas do sujeito ganham um novo sentido na ‘neurose de transferência’. Em Freud, a transferência se estabelece a partir do momento em que o paciente faz uma troca, uma substituição da imago paterna pela figura do médico, incluindo-o em uma de suas ‘séries psíquicas’. O trabalho de análise é possível a partir do momento em que o sujeito atua a sua neurose na transferência, e por isso é necessário aguardá-la para dar início às interpretações. É a transferência enquanto um fenômeno libidinal que condiciona a interpretação e o tratamento no pensamento freudiano.

Entretanto, teremos em Lacan uma inversão desse pensamento. Para Lacan, há primeiramente a função do ‘sujeito suposto saber’, a crença fundamental de haver no Outro a causa do meu desejo e o saber sobre o meu sintoma, e por isso é a interpretação que condiciona a transferência. Essa inversão é de fundamental importância para compreendermos a direção da cura frente aos impasses colocados ao estabelecimento da transferência hoje. Nessa nova clínica, em que o sentido e o inconsciente estão cada vez mais calados e inauditos, parece que essa é uma operação necessária para que se crie uma nova relação do sujeito com o saber, que não seja a de uma exigência ou de uma antecipação impostas, mas que possa incluir o acesso ao sujeito do inconsciente.

Laurent (2008Laurent, E. (2008). Nascimento do sujeito suposto saber. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 60, 15-21.) irá trabalhar com a concepção de um nascimento da função do ‘sujeito suposto saber’. Esse nascimento se dá em nível particular do sujeito, enquanto o estabelecimento da transferência a partir de um significante qualquer no encontro com o analista. O significante da transferência nasce de uma questão, um ponto de interrogação sobre o sintoma do sujeito que “[...] é, sobretudo, um lugar vazio” (Laurent, 2008Laurent, E. (2008). Nascimento do sujeito suposto saber. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 60, 15-21., p. 16). Se o ‘sujeito suposto saber’ nasce a partir de um enigma, de uma questão e de um lugar vazio, há então a possibilidade de uma operação do analista dentro de um uso que se faz desse objeto-multifuncional para que surja, no sujeito, o encontro com a suposição de saber.

Temos a indicação de um movimento próprio e necessário à psicanálise na contemporaneidade, haja vista as inúmeras modificações do ser falante em sua relação com o saber, com o gozo e com o Outro. Uma operação clínica pode tornar-se o elemento essencial para o estabelecimento da transferência e a continuidade do tratamento analítico no mundo atual. Hoje, parece ser preciso uma interpretação ou um manejo do analista para que se abra, no sujeito, a suposição de um saber sobre seu inconsciente, sustentando a entrada na transferência em sua vertente epistemológica.

Assim, o analista deverá estar atento àquilo que o sujeito convoca na relação transferencial. Há um bom uso para o objeto-analista, a partir do momento em que esse se coloca como um objeto que proporciona a produção do saber, ou mesmo como um objeto pulsional. Diante das coordenadas subjetivas do analisando, o analista multifuncional poderá ter o valor da produção de um enigma, da interpretação pela via do sentido, ou até mesmo a partir de um uso na vertente pulsional da transferência, permitindo ao sujeito um deslocamento da sua economia de gozo.

Considerações finais

A psicanálise não é imutável ou estática. Cada vez mais, deparamo-nos com mudanças no mundo e com a presença descomedida do mestre, que, por sua vez, impõem mudanças também aos sujeitos que procuram a psicanálise como uma via de tratamento. Enquanto o avesso o Discurso do Mestre, a psicanálise deve sempre acompanhar aquilo que é relativo à sua época, operando a partir do seu lugar de subversão.

O mestre contemporâneo é aquele que retirou do sujeito a bússola que lhe dava certo ordenamento frente ao seu desamparo estrutural. Hoje o que se mostra crescente é a ascensão do objeto a ao lugar de zênite social. O objeto a, fazendo-se de novo guia civilizatório, demarca o que está em questão na contemporaneidade: a era do imperativo do gozo, do consumo exacerbado e sem medidas. Esse imperativo modifica também a relação que o sujeito estabelece com o saber.

Ao se deparar com o não saber, o sujeito não parte mais da suposição e do enigma na busca por uma resposta. Muito pelo contrário, as respostas já estão prontas para serem consumidas, bastando apenas que o sujeito encontre a forma de se ter acesso a esse saber que lhe falta. Por isso ele o antecipa, o exige e impõe. Há um empuxo ao gozo que inaugura um novo modo de se obter conhecimento a partir da lógica do capital. O saber tornou-se mais um objeto de consumo. Contudo, essa nova relação implica em uma modificação também no campo da transferência, pois, como vimos, uma das vertentes fundamentais da transferência é a epistemológica. Se na clínica clássica o sujeito buscava uma análise a partir da dimensão da crença, hoje há uma inversão dessa lógica, visto que a suposição pode se instaurar depois.

Frente aos impasses vividos no campo do saber, é possível ao analista criar uma nova relação do sujeito com o saber do inconsciente, fazendo surgir algo no campo da suposição e do enigma, possibilitando o nascimento do ‘sujeito suposto saber’. Mas a transferência não existe apenas enquanto saber, sendo o analista convocado também no lugar de amor e de gozo. Portanto, ele deve tornar-se multifuncional, fazendo-se objeto da análise de cada um, a partir do uso particular que o sujeito fará desse dispositivo. A contemporaneidade e as novas apresentações do sujeito para uma análise nos convocam para uma necessidade de reinventar a prática clínica e indagar a transferência a partir de um contexto que se impõe.

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  • 3
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2019
  • Aceito
    23 Dez 2020
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