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Os dilemas do desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro

The dilemmas of the Brazilian scientific and technological development

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Os dilemas do desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro

The dilemmas of the Brazilian scientific and technological development

Cristovam Wanderley Picanço Diniz

Departamento de Morfologia da UFPA. cwpdiniz@ufba.br

Das palavras-chave às referências bibliográficas, "A pesquisa em saúde e os objetivos do milênio: desafios e oportunidades globais, soluções e políticas nacionais", do dr. Carlos Morel, carrega o exercício reflexivo do cientista, a perspectiva organizacional do administrador e o choque de realidade do formulador de políticas. Aponta oportunidades em meio às nossas fragilidades, e metodologias coletivas em meio às nossas iniciativas isoladas para perseguir o que ele denomina de salto científico-tecnológico-sanitário que os países necessitam para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Ao listar no texto algumas áreas que acredita mereçam maior atenção, orienta seus argumentos para valorizar as ações que induzam à discussão da necessidade de instalação de um sistema nacional de pesquisa em saúde que de fato contribua para maior eqüidade e ética. Esse sistema, se pautado nas recomendações para o sistema de pesquisa em saúde formulado na Tailândia em 2001, se organizaria para integrar, coordenar objetivos, monitorar e gerenciar atividades e recursos, atores, processos, culturas e produtos com a finalidade de promover a pesquisa necessária ao desenvolvimento efetivo e eqüitativo da saúde nacional (WHO, 2002). Consistente com esse espírito estariam as recomendações da Comissão de Ciência e Tecnologia da Abrasco definindo prioridades para projetos que aumentem o grau de eqüidade do sistema, promovam a integração de grupos de pesquisa e instituições, respeito permanente à ética e a padrões de qualidade científica e tecnológica estabelecido pelos pares, tanto quanto o desenvolvimento de C&T na fronteira do conhecimento dos diferentes campos estratégicos (Abrasco, 2001). Se a iniciativa ainda é matéria de discussão para seu aperfeiçoamento, o mérito de promover o debate em momento que antecede a realização da II Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde é inconteste.

Vou me ater, pela natureza de minha formação e experiência, a um dos temas apontados por Morel como relevantes para a II CNCT&I/S qual seja o da Política de recursos humanos e sua relação com a indução da pesquisa necessária ao sistema nacional de pesquisa em saúde.

Começo enfatizando que, embora desejável como definição das necessidades, o salto científico-tecnológico-sanitário a que se refere Morel não virá. Acho mesmo que a crença de que se pode dar saltos (encurtar caminhos) na esfera da educação (e por extensão em ciência, tecnologia e saúde) tem adiado o enfrentamento do cenário que fazia Anísio Teixeira se envergonhar, quando na década de 1930 computava o muito que se havia dito e o pouco que se havia feito para alcançar as mesmas melhorias que hoje se pretende na educação brasileira. Assim é que no Brasil de hoje, a classe trabalhadora tem em média 4,6 anos de escola, apenas 20% da faixa etária relevante alcança o ensino médio e a educação superior matricula apenas 15% do grupo etário relacionado. Na esfera científica e tecnológica os números das Nações Unidas revelam que a densidade de engenheiros e cientistas no Brasil está muito aquém das necessidades que o desenvolvimento sustentado e a economia globalizada nos impõe desde já (pelo menos dez vezes menos quando comparado ao padrão europeu de mediano desenvolvimento científico). Se instituíssemos como meta para o atual governo matricular 30% da faixa etária relevante para o ensino superior, a consulta ao Inep revela que teríamos de aumentar o número de matrículas em quatro milhões. Caso a meta para o ensino médio fosse matricular 50% da faixa etária relevante, teríamos de aumentar as matrículas em 12 milhões num intervalo de quatro anos.

... A crescente conscientização do papel central da saúde, da ciência e tecnologia como requisitos para o desenvolvimento econômico e social e não apenas como suas conseqüências..., referida no texto, é, na minha opinião, a constatação moderna da necessidade estratégica de educação avançada em sociedades que se construíram verdadeiramente democráticas por oferecerem oportunidades mínimas de acesso aos direitos fundamentais para todos os seus cidadãos. O tempo em educação continua a se contar em décadas a despeito da revolução científica e tecnológica do tempo presente. Nada avança com agilidade nessa esfera. No caso específico da educação científica, condição preliminar para ações indutoras a que se refere o autor, as escalas temporais se dilatam ainda mais. Dou-lhes um exemplo: a Organização Mundial de Saúde reviu recentemente o currículo médico no Reino Unido identificando a necessidade de alterar o modelo vigente para enfrentar os novos desafios do século 21 na área da saúde. Para a WHO a oferta de serviços de saúde deve se mover do cuidado episódico de indivíduos em hospitais para um sistema contínuo e pertinente de ações promotoras de saúde focalizadas na preservação da saúde na comunidade, deslocando a abordagem individual provida pelo médico para a de equipe multiprofissional em nível de atendimento primário (Anon, 1999). Para promover essa reforma com eficiência e segurança, impôs-se a implantação de medicina baseada em evidência em substituição aos procedimentos clínicos individuais baseados em experiências isoladas. Em função da maior expectativa de vida, a prevalência crescente de doenças infecciosas, a explosão do conhecimento na área de genética molecular humana, a consolidação e expansão da rede mundial de computadores, e a indução de pesquisa translacional em grande escala nos países desenvolvidos, é esperado que todas as áreas no campo da saúde sofram mudanças substantivas, particularmente no que tange à educação dos atores (Roger et al., 2001). Mesmo para a tarefa de apropriação do conhecimento na prática clínica em áreas estratégicas, a educação avançada e continuada dos atores precisa se instalar e deverá vir para ficar. A velocidade de crescimento das áreas de investigação básicas e a ausência do seu equivalente nas mesmas proporções nas áreas de aplicação têm sido objeto de preocupação crescente e motivo de ações indutoras em países desenvolvidos. Essa necessidade de investimentos em pesquisa translacional, para a transferência dos avanços da pesquisa fundamental em áreas de aplicação está refletida em muitas publicações recentes (e.g. Nathan et al., 2001): ... Da bancada ao leito, do conceito à aplicação clínica, da descoberta à disseminação, a tradução da descoberta científica em novas formas de prevenção, de diagnóstico e de tratamento é o objetivo último da pesquisa em saúde....

No caso brasileiro, em que a cultura científica da investigação em saúde sequer se distribuiu em densidade e qualidade pelos estados da federação, é fundamental a construção de uma abordagem sistêmica que garanta a difusão da investigação científica cooperativa em âmbito nacional. Para Guimarães (2002), o calcanhar de Aquiles da sociedade brasileira é a desigualdade, e essa característica se estende ao provimento da educação (em todos os níveis) e se aprofunda dramaticamente na esfera dos serviços de saúde, ciência e tecnologia. Um indicador objetivo do nível de desenvolvimento da pesquisa em saúde nas diferentes instituições é a quantidade de recursos captados por unidade a partir das agências de financiamento. Uma consulta ligeira aos bancos de dados das agências de financiamento torna desnecessário dizer que os investimentos para pesquisa são insuficientes em densidade e qualidade na grande maioria das escolas de saúde do país. Sem um pacto federativo e acadêmico que distinga e reconheça as necessidades, e desenhe programas adaptados à diversidade dos problemas de cada região em particular, não haverá como se aproximar das metas apontadas por Morel. Mais recentemente a democratização do acesso à informação científica implementado pela Capes através do portal de periódicos demonstra a capacidade das agências de agir concretamente para redução das assimetrias de competência instaladas no país. No caso específico da cooperação internacional, desejável tanto do ponto de vista do financiamento (privado, filantrópico ou público) quanto do ponto de vista acadêmico, sua implantação continuará assimétrica mesmo naquelas instituições assentadas em regiões privilegiadas do ponto de vista econômico, com todos os riscos que isso pode representar aos interesses nacionais.

Morel lembra entretanto que o Brasil se distingue dentre os países em desenvolvimento por possuir um conjunto de cientistas dedicados tanto à área básica quanto às áreas de aplicação relacionadas; que o país exige um conjunto de soluções próprias em função de suas dimensões continentais e particularidades regionais; e que tem a seu favor um sistema de pós-graduação que forma a grande maioria do pessoal especializado que emprega na área de saúde. Essas são razões suficientes que o habilitam à busca da construção de um sistema de pesquisa em saúde pactuado com a comunidade de atores (tanto na área de serviços quanto nas áreas de investigação). Acrescente-se a esses o comentário de que o sistema de pós-graduação precisa entretanto se expandir para dar conta das novas necessidades. Isso significa injetar dinheiro novo na pós-graduação particularmente para a formação de quadros a serem absorvidos pelas universidades onde a pesquisa em saúde é incipiente ou inexistente. Nesse sentido há um conjunto de instrumentos novos desenvolvidos pela Capes, envolvendo programas de cooperação interinstitucionais (Procad e Minter) que podem, resguardadas as peculiaridades de cada setor, ser adaptados às necessidades da grande área da saúde. Programas de fixação de recém-doutores (Prodoc da Capes e Profix do CNPq) podem igualmente contribuir para a organização e fixação de novos grupos de pesquisa em áreas estratégicas nas diferentes regiões do país. O outro conjunto de fatores relevantes para a discussão apontado por Morel e que precisa ser considerado quando da definição de áreas prioritárias nos sistemas de saúde são as matrizes analíticas que caracterizam as doenças e suas prioridades em investigação. Uma boa ilustração é a análise conjunta do perfil demográfico da população mundial e da carga global de doenças. A maioria das pessoas de 60 anos ou mais em números absolutos estão vivendo em países do Terceiro Mundo. Uma projeção desses números feita pela Organização Mundial de Saúde revela que em 2020 o mundo terá mais de 400 milhões de idosos e o Brasil ocupará a 6a posição do ranking dentre o grupo dos dez países com a população mais velha do planeta. Em números atuais, 20% da população do mundo industrializado está acima dos 60 anos e a proporção daqueles com mais de 85 está crescendo seis vezes mais rápido do que a população como um todo e 60% deles se torna demente como conseqüência de processos neurodegenerativos. É também sabido que durante o último ano de vida os custos de saúde são os maiores do sistema e que o número de enfermeiras dedicadas a doentes acamados crescerá de cerca de quatro vezes dentro dos próximos 5 a 20 anos (ver Wick et al., 2000 para revisão). No Brasil em particular estima-se que o número presente de pacientes idosos dementes está em torno de 450 a 600 mil com cerca de 115 mil hospitalizações associadas à demência por ano; e que vivemos uma transição demográfica com a população de idosos (pessoas com mais de 65 anos) se deslocando dos 7,5% atuais para 15% em 2025 (ver o documento "Saúde do idoso", publicado na página do Ministério da Saúde), com as infecções respondendo pela segunda causa de morte no mundo (Fauci et al., 2001). Assim, conhecer o impacto das infecções sobre o cérebro em degeneração pode ser estratégico para orientação de políticas públicas. Apesar disso, as escolas médicas brasileiras de um modo geral se moveram pouco no sentido de implementar as reformas no currículo médico de que precisarão no curto prazo, para adequar seus egressos a essa e outras necessidades do sistema de saúde. Essa dissociação entre formação de recursos humanos especializados (em todos os níveis) e as necessidades do sistema de saúde precisam ser atacadas em paralelo às iniciativas de pesquisa em saúde, o que implica integrar os ministérios e suas agências e as universidades e institutos de pesquisa quando da formulação das novas políticas. A forma de fazê-lo deve ir além da criação de assentos nos conselhos, posto que sobram evidências de ser iniciativa insuficiente para o ataque colegiado dos problemas.

Referências bibliográficas

Fauci AS 2001. Infectious diseases: considerations for the 21st century. Clinical Infectious Diseases 32(5):675-685.

Guimarães R 2002. A migração de pesquisadores do Brasil. Ciência Hoje 32(187):40-43.

Morel CM 2003. A pesquisa em saúde e os objetivos do milênio: desafios e oportunidades globais, soluções e políticas nacionais. Ciência e Saúde Coletiva 9(2): 261-270.

Nathan DG, Fontanarosa PB, Wilson JD 2001. Opportunities for medical research in the 21st century. JAMA 285(5):533-534.

Wick G, Jansen-Dwr P, Berger P, Blasko I. & Grubeck-Loebenstein B 2000. Diseases of Aging. Vaccine 18(16): 1567-1583.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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