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Persistem estratégias políticas ultraliberais para a saúde do trabalhador: uma contribuição ao debate

Subjacent liberal political strategies for workers’ health: contribution to debate

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Persistem estratégias políticas ultraliberais para a saúde do trabalhador: uma contribuição ao debate

Subjacent liberal political strategies for workers’ health: contribution to debate

Danilo F. CostaI; Paulo G. L. PenaII

IMinistério do Trabalho e Emprego/São Paulo. danilofc@usp.br

IIDepartamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina, Universidade Federal da Bahia. pena@ufba.br

Os autores Minayo Gomez e Lacaz discutem o texto intitulado "Saúde do Trabalhador : novas-velhas questões", e apresentam pontos essenciais para a formulação do que denominam uma efetiva Política Nacional para a Saúde do Trabalhador (PNST). São três as questões que consideram importantes para o debate atual nessa temática e a perspectiva de contribuir para a 3ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador: a ausência de uma efetiva PNST; a fragmentação e dispersão da produção científica da área; e o enfraquecimento ou pouca capacidade de pressão dos movimentos sociais e dos trabalhadores sobre estes assuntos.

As questões que levantamos visam desvelar um projeto político que necessita ser conhecido e criticado, por ser antagônico à saúde do trabalhador. Concordamos com a hipótese central apresentada pelos autores de que não há uma efetiva Política Nacional de Saúde do Trabalhador no Brasil, mas apenas iniciativas fragmentadas. Na análise política e institucional, os autores se concentram na dimensão da saúde em relação ao trabalho. Entretanto, um projeto de política nacional de saúde e segurança na dimensão do trabalho contrário aos esforços empreendidos na esfera da saúde tornou-se hegemônico durante alguns anos no âmbito das instituições do Ministério do Trabalho e da Previdência Social.

Em torno desse objeto particular constitui-se a nossa contribuição para o presente debate, que se concentra em uma breve análise do campo institucional do trabalho, a partir da qual formulamos a hipótese do desenvolvimento de uma Política Nacional de Saúde e Segurança do Trabalho resultante do "ultraliberalismo" instalado no país. Esta política se caracterizou como contraditória aos princípios que nortearam a reforma sanitária, a constituição do SUS e ainda manteve estratégias de fomento de conflitos com o campo da saúde.

De fato, no Ministério da Saúde há a busca de construção hegemônica de um PNST em conformidade com as lutas estabelecidas na reforma sanitária e na construção do SUS. Entretanto, no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e na Previdência Social, a partir da metade da década de 1990, consolidou-se um projeto de PNST articulada ao ciclo neoliberal no nosso país. Esse ciclo se instalou efetivamente em 1990, e se configurou como hegemônico para as políticas de governo. Ou seja, o processo de ajuste estrutural no país seria efetivado no âmbito setorial de uma política de saúde do trabalhador, mas houve resistência institucional centrada no Ministério da Saúde, em alguns grupos da área sindical e de técnicos do MTE.

A presente análise tem como método a consulta a documentos políticos oficiais formulados, principalmente, no Ministério do Trabalho e em iniciativas normativas e institucionais que têm se acumulado nos últimos anos.

Nos anos 90, emergiu a era de reformas em um contexto de predominância do denominado "pensamento único" (Bourdieu, 1998). Assim, as profundas transformações no mundo do trabalho aceleraram os processos de reformas do Estado na perspectiva de favorecer ainda mais a acumulação do capital, em detrimento do trabalho e da proteção do trabalhador. A estrutura de regulação do fordismo mitigado no Brasil ocorreu essencialmente no âmbito dos Ministérios do Trabalho e da Previdência Social, a partir dos anos 30 com a Consolidação das Leis Trabalhistas e previdenciárias. A reforma sanitária, com a 1ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, inicia um processo de ampliação da política de saúde do trabalhador, da esfera institucional do trabalho para a saúde. Com a crise do fordismo e o refluxo do movimento sindical houve uma redução das condições de efetivação da política de saúde do trabalhador. No esteio da crise previdenciária o Ministério do Trabalho e Emprego retomou a iniciativa de construir uma PNST antagônica ao modelo do SUS para atender à nova ordem liberal de ajuste estrutural.

Neste contexto, a partir da segunda metade dos anos 90, observou-se a aplicação de preceitos neoliberais nas relações de trabalho e na reforma das instituições responsáveis pelas políticas trabalhistas. Essa estratégia política correspondeu ao processo de reestruturação produtiva, desencadeada com a crise de fordismo. A primeira inflexão ocorreu com a mudança radical nas concepções de saúde e segurança do trabalho quando estas passaram a ser tratadas como mercadorias e o próprio mercado, não mais o Estado, regularia o setor. A noção de saúde e segurança do trabalho como direito social e dever do modelo de Estado Social desenhado na Constituição de 1988 deixou de ser o marco referencial das políticas sociais, embora ainda continuasse como retórica institucional de uma estratégia dissuasiva junto do movimento social. Nesta ótica, estabelecia-se a eliminação ou redução significativa do papel do Estado na esfera social, incluindo-se as ações em segurança e saúde no trabalho (SST) relacionadas à inspeção do trabalho. Segundo Pena et al. (2004), o processo de redução do papel dos órgãos do MTE responsáveis pela SST e a concepção da política instalada podem ser resumidos da seguinte forma:

1. O fim da Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho (SSST) e a sua transformação em Departamento. Esta decisão retirou o comando da política de saúde do trabalhador do centro das decisões do MTE, desencadeando o esvaziamento do setor. O processo continuou com o fim do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho (DSST), projeto este mantido pela Secretaria de Inspeção no Trabalho (SIT) no atual governo. Observe-se que a política de saúde e segurança do trabalho do Ministério do Trabalho se caracteriza apenas como um processo de desmonte de um sistema de regulação do Estado e não a sua transferência para a esfera do SUS ou da Previdência Social.

2. O fim da inspeção em segurança e saúde no trabalho no MTE na perspectiva da privatização do Seguro do Acidente de Trabalho (SAT). Esta estratégia se desenvolveu sem qualquer transparência para a sociedade civil. O fim da inspeção em segurança e saúde no trabalho pelo MTE representa uma espécie de transferência futura desta prática para as empresas privadas/mutualistas de seguro acidentário, sob a supervisão de uma agência nacional de redução de danos no trabalho, cuja sigla chegou a ser definida como ANART (Agência Nacional de Riscos e Danos do Trabalho). O gigantesco mercado gerado pela privatização do SAT seria regulamentado pela agência citada, reduzindo ou mesmo eliminando o papel do Estado na inspeção do trabalho e, dessa forma, as estruturas de SST do MTE passariam a perder importância. Para complementar este projeto, haveria uma reforma na legislação constituída, com a retirada do capítulo V da CLT (referente à medicina e segurança no trabalho) e a sua substituição por um código nacional de segurança e saúde no trabalho.

3. A rede de serviços de medicina e segurança do trabalho (SESMT) próprios e contratados se constitui na maior rede de serviços de saúde sem relação funcional com o SUS. O projeto da ANART precederia de uma reformulação da norma regulamentadora nº 4, não apenas para manter a rede de SESMT fora do SUS, mas sobretudo para construir os fundamentos necessários para a sua inclusão na estrutura do futuro sistema de seguro privado. Esta proposta se constitui, na prática, na terceirização dos SESMT e a consolidação das empresas prestadoras de serviços em SST como forma de organização da prevenção sob o controle de seguradoras privadas, definindo assim a hegemonia do safety business.

4. A utilização do modelo de tripartite (Estado, sindicato e empresário), não como forma de participação e controle social, mas como estratégia de manipulação social. Esta estratégia fomentava debates menores da política nos setores da sociedade civil, e enquanto isso se projetava no Ministério do Trabalho e Previdência Social as modificações de fundo para o setor, ou seja, a privatização do SAT, a criação de um Código Nacional de Segurança e Saúde do Trabalho, a construção da ANART, o desmonte da SST no âmbito do Estado, dentre outros. As representações de trabalhadores tornaram-se incapazes de descortinar esta estratégia pelo refluxo do movimento social no campo da saúde do trabalhador.

Pode-se concluir que houve uma tentativa de privatizar o SAT, com o conseqüente desmonte da inspeção em SST no MTE (redução ou eliminação das ações pelo Estado) e o deslocamento do SUS para um papel periférico no processo da saúde do trabalhador. Nessa perspectiva, o mercado passaria a determinar as ações neste campo, como para as outras áreas e agências reguladoras a serem criadas.

São estes, alguns exemplos, significativos do que se configurou uma política de segurança e saúde do trabalhador setorial. Esse projeto político busca construir a hegemonia no âmbito do Estado e assim se configurar como uma política nacional para o campo da saúde do trabalhador. A 3ª CNST não poderá desconsiderar essa hipótese sob pena de possibilitar a retomada desse projeto da completa monetarização da saúde do trabalhador, que hoje dormita sob a égide do liberalismo extremo.

Colaboradores

Este texto é resultado das discussões e proposições feitas pelos autores quando estiveram à frente do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego no período de janeiro a novembro de 2003.

Referências bibliográficas

Bourdieu P 1998. L’essence du néolibéralisme. Le Monde Diplomatique. Paris, Mars 1998, p. 3.

Pena PGL, Costa DF, Lippel TH, Osório CGM 2004. Proposta de política para área de segurança e saúde no trabalho no Ministério do Trabalho e Emprego 2004-2007, pp. 31-44. In MABC Takahashi, RAG Vilela (orgs.). A saúde do trabalhador e saúde ambiental: cenário, experiências e perspectivas – 2003. I Conferência de Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental de Piracicaba e Região, Piracicaba.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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