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O protagonismo da criança no cenário hospitalar: um ensaio sobre estratégias de sociabilidade

Child protagonism in the hospital setting: an essay on sociability strategies

Resumos

Nesse artigo, trabalhamos com a temática da doença crônica e suas marcas na infância. Recorremos à experiência da criação de espaços lúdicos no interior dos hospitais como estratégia para afirmar o lugar de sujeito da criança e sua condição de liberdade para fazer escolhas e questionar valores. Discutimos a visão da socialização como diferenciada da sociabilidade. Abordamos a perspectiva interacionista da sociologia da infância e discutimos conceitualmente a utilização do brincar como ferramenta de humanização das relações. Concluímos apontando a necessidade de realização de pesquisas que tenham as crianças como sujeitos de expressão e apontamos o potencial do brincar enquanto dispositivo de humanização e construção de referência e de uma clínica ampliada.

Infância; Doença crônica; Humanização; Sociologia da infância


In this article we discuss chronic disease and its impacts upon childhood. We discuss the experience of providing play activities for hospitalized children as a strategy to ensure their freedom to make choices and to question values. We discuss the notion of socialization as being different from sociability. We discuss the interactionist perspective of Child Sociology and discuss conceptually the use of play activities as a tool for humanizing relations. We conclude that there is a need for further investigations approaching children as subjects of expression and point to the potential of play as an instrument of humanization.

Childhood; Chronic disease; Humanization; Child sociology


TEMAS LIVRES FREE THEMES

O protagonismo da criança no cenário hospitalar: um ensaio sobre estratégias de sociabilidade

Child protagonism in the hospital setting: an essay on sociability strategies

Martha Cristina Nunes Moreira; Aline Duque de Macedo

Saúde & Brincar Programa de Atenção Integral à Criança Hospitalizada, Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz. Av. Rui Barbosa 716/ 5ºandar, Flamengo. 22250-020 Rio de Janeiro RJ. moreira@iff.fiocruz.br

RESUMO

Nesse artigo, trabalhamos com a temática da doença crônica e suas marcas na infância. Recorremos à experiência da criação de espaços lúdicos no interior dos hospitais como estratégia para afirmar o lugar de sujeito da criança e sua condição de liberdade para fazer escolhas e questionar valores. Discutimos a visão da socialização como diferenciada da sociabilidade. Abordamos a perspectiva interacionista da sociologia da infância e discutimos conceitualmente a utilização do brincar como ferramenta de humanização das relações. Concluímos apontando a necessidade de realização de pesquisas que tenham as crianças como sujeitos de expressão e apontamos o potencial do brincar enquanto dispositivo de humanização e construção de referência e de uma clínica ampliada.

Palavras-chave: Infância, Doença crônica, Humanização, Sociologia da infância

ABSTRACT

In this article we discuss chronic disease and its impacts upon childhood. We discuss the experience of providing play activities for hospitalized children as a strategy to ensure their freedom to make choices and to question values. We discuss the notion of socialization as being different from sociability. We discuss the interactionist perspective of Child Sociology and discuss conceptually the use of play activities as a tool for humanizing relations. We conclude that there is a need for further investigations approaching children as subjects of expression and point to the potential of play as an instrument of humanization.

Key words: Childhood, Chronic disease, Humanization, Child sociology

Introdução

No presente artigo, problematiza-se a vivência com a doença crônica na infância, utilizando como recurso para tratar de tal temática a experiência do brincar enquanto recurso terapêutico e dispositivo humanizador das relações que constroem o cotidiano do cuidado, recepção e hospitalização das crianças atendidas em um hospital terciário, referência para a saúde da criança no Rio de Janeiro. No curso deste artigo, relativiza-se uma perspectiva presente nas definições de infância, que afirmam que o sujeito desse período, a criança, é um ser que desconhece o que se passa ao seu redor e que está submetido aos rituais de socialização e regras do mundo dos adultos.

Algumas produções das crianças que freqüentam o hospital são utilizadas como uma estratégia para reafirmar seu protagonismo, suas experiências, valorizando os significados construídos acerca do mesmo e da doença como marcas diferenciadoras. Os dados ilustrativos desta discussão advêm das reflexões sobre a prática de atendimento em espaços lúdicos e dos desenhos de crianças que freqüentam os ambulatórios do hospital. Esses espaços lúdicos organizados no interior da instituição por uma equipe profissional funcionam como salas de espera diferenciadas, contribuindo para que os procedimentos, consultas e exames se tornem menos angustiantes e sejam incorporados como uma experiência passível de elaboração por parte das crianças.

O artigo pretende contribuir para a reflexão sobre o contexto hospitalar na vida de uma criança portadora de doença crônica e as interveniências da cultura técnica deste espaço para o processo de socialização da mesma. Destacamos inclusive a carência de produções que analisem o hospital como espaço de socialização e a criança com doença crônica como um sujeito que incorpora o hospital em sua experiência, valorizando as relações que nele constrói, a partir de uma análise pautada na literatura da sociologia da infância.

A socialização no hospital como uma dimensão da sociabilidade da criança com doença crônica

A fim de superar limites ou imposições de caráter formal, faz-se necessário ir além do conceito durkeiminiano de socialização enquanto introjeção de valores e ampliar essa perspectiva a partir da questão da sociabilidade pela vertente simmeliana1, pensando nas interações sociais em si, na forma como estas se estabelecem através do encontro entre adultos e crianças, e entre crianças e outras crianças. O princípio da sociabilidade é formulado por Simmel enquanto o compromisso de garantia ao outro de valores sociáveis, quais sejam, alegria, liberação, vivacidade, compatíveis com o máximo de valores recebidos por esse indivíduo. A base da sociedade, segundo esse autor, está na interação entre os indivíduos e, nesse jogo de reciprocidade, de relações de troca, também cabem conflitos enquanto uma possibilidade da interação social. Na perspectiva simmeliana, ganha destaque ainda o jogo entre semelhança e diferença, como dois grandes princípios do desenvolvimento humano. A diferenciação é a possibilidade de emergência do sujeito humano e de sua singularidade. Tal postulado é caro às análises que se dedicam aos estudos sobre as crianças e a infância e, no caso desse artigo, é pertinente para se pensar sobre o impacto das diferenças provocadas pela experiência de ser portador de uma doença crônica. Portanto, é possível afirmar que a socialização é uma das dimensões de expressão das relações sociais e de suas exigências, sendo englobada pela perspectiva da sociabilidade, e das necessidades de sociação e construção de vínculos sociais.

Em conformidade com Plaisance2, é possível dizer que a socialização é antes de tudo uma inclusão na sociedade, com um afastamento da família para experienciar outras organizações sociais, e esse processo abarca toda a vida humana, constituindo os seres humanos como seres sociais. Ao discutirmos no curso desse ensaio a experiência das crianças com doenças crônicas a partir de uma tradição sócio-antropológica3,4,5, objetivamos ressaltar o protagonismo e a expressão da experiência da criança sobre freqüentar um hospital, perceber a diferença de quem o freqüenta, indicando, por exemplo, nos desenhos, as marcas de uma doença/deficiência.

A criança na perspectiva interacionista é destacada como ser ativo, um ator social que participa das trocas, das interações, que atribui significado aos processos de que participa na sociedade, não sendo reduzida, e nem muito menos identificada, às instituições que assumem sua socialização. Aqui cabe-nos abrir um parênteses para referir, a partir de Plaisance, duas perspectivas centrais acerca da socialização, uma referida à tradição durkeiminiana, e a outra baseada na perspectiva interativa. Para a primeira, a socialização é um modelo vertical, de imposições, cujos estudos iluminam os adultos que constroem o sistema educativo, e não as crianças, meramente relegadas a receptáculos da socialização. Já na socialização segundo o modelo interativo, predomina a perspectiva da construção do ser social, de uma ordem de múltiplas negociações entre os sujeitos ligados por relações de proximidade e alteridade, na qual se forja a identidade social. Nessa segunda perspectiva, o conceito de experiência é central e contribui para a análise de situações e instituições de referência para a criança com doença crônica. Isso porque se reivindica nesse artigo a necessidade de considerar que, para essa clientela de crianças, o hospital é uma instância importante no intercâmbio de valores e a criança constrói significados sobre essa experiência de viver com uma doença crônica.

Um dos sinais da transformação do espaço hospitalar a partir da presença da criança pode ser indicado na valorização da expressão lúdica, com a adequação desse espaço para a criança, com cores, mobiliário, práticas e profissionais habilitados a valorizar sua presença e construindo canais para a expressão de sua experiência enquanto criança, e nos espaços de sua vida. A expressão lúdica é o mecanismo por excelência do processo de construção de si e de significação da criança como ser no mundo e como um sujeito digno de expressar-se. Assim, no segmento de crianças que vivem com doenças crônicas, o hospital torna-se um lócus de construção de relações sociais, de expressão sobre sua experiência com a doença.

Com base nessas considerações, retomamos o levantamento de trabalhos referidos a à sociologia da infância realizado por Montandon6, no qual o papel atribuído às crianças, mesmo quando o assunto é a socialização das mesmas, é de passividade. As crianças não são encaradas como atores sociais, isentas de responsabilização por qualquer situação; inclusive, transformações percebidas ao longo do tempo sobre à infância foram atribuídas à atuação dos pais e até mesmo ao papel da escola, ficando a criança mais uma vez à parte. É importante destacar ainda que a chamada sociologia da infância por muitos anos teve seus estudos sempre voltados para a criança enquanto objeto de análise dentro de algum tipo de relação, que a submete aos adultos, sejam esses seus pais ou seus professores, estudando os conflitos de gerações, ou a própria instituição voltada à criança por exemplo, a escola. Ainda são grandes os esforços no sentido de reconhecer as crianças como um grupo social, sujeitos de suas experiências e, portanto, atores sociais.

Esta passividade atribuída como característica da infância nos estudos sociológicos analisados pela autora congela a criança enquanto objeto, receptáculo de informações e, de certo modo, paciente de uma socialização oferecida pelas instituições, seja a família ou a escola. A criança precisa ser vista para além das instituições, para desempenhar a função de ator social. Como a escolaridade é a ocupação principal da infância4, em muitos estudos sociológicos, a criança fica restrita ao papel de aluno, e os demais aspectos de seu contexto de vida não são considerados. Na socialização de uma criança, é fato que a família, a escola, o hospital (no caso das crianças doentes crônicas) desempenham papéis importantes, mas, ainda assim, a criança é o ator de sua própria socialização.

Delgado e Muller6 discutem a busca de superar o reducionismo biológico, substituindo-o pelo reducionismo sociológico que se apresenta como problemático e assim as crianças e os adultos devem ser vistos em sua multiplicidade de seres em formação, incompletos e dependentes, e é preciso superar o mito da pessoa autônoma e independente, como se fosse possível não pertencermos a uma complexa teia de interdependências. A discussão das autoras pode contribuir para os estudos sobre crianças portadoras de deficiências e/ou doenças crônicas que valorizem a perspectiva de um certo "inacabamento" intrínseco ao ser humano, que o coloca potencialmente como um ser que constrói e é construído em rede. Esse caráter de inacabamento e abertura em possibilidade para o exterior, próprio do humano, contribui para reflexões que percebam uma certa integração entre a normalidade e a anormalidade e as visões e definições acerca da doença, da deficiência e da eficiência. Assim, a interdependência nos constitui e, portanto, a autonomia e a independência estão sempre referidas a um processo complexo de alteridade, reciprocidade e solidariedade, e daí devem ser relativizadas, considerando que todos nós somos, em certa medida, dependentes e limitados, já que referidos a uma necessidade de construir vínculos sociais.

Assim, é preciso relativizar as definições que no caso do adoecimento crônico podem vir a tipificar e rotular as crianças, reduzindo-as a um aspecto deficitário e anormal, e anulando a possibilidade de tê-las como atores importantes e legítimos sujeitos de direitos que precisam de um suporte do Estado e dos equipamentos sociais para poderem expressar-se.

Por definição, no interior dos estudos da sociologia da infância e da juventude, o ser social é construído por meio de múltiplas negociações com seus próximos, sendo assim um trabalho de um ator que experimenta o mundo social e nessa experimentação o transforma. Ao considerarmos a infância como uma categoria sociológica mais geral que engloba a experiência de ser criança em diferentes contextos, nos baseamos na perspectiva teórica que analisa criticamente as expectativas acerca dos comportamentos que seriam considerados mais adequados, as formas de socialização encaradas, na maior parte das vezes, como passagens naturais por instituições e mecanismos de adaptação a valores e normas que deveriam ser encarados sem conflitos ou questionamentos acerca desse campo institucional. Por exemplo, Mayall7 faz questão de destacar que as crianças e a infância como experiência tradicionalmente tiveram um baixo status no interior da sociologia. Os estudos remetiam, bem de acordo com uma inspiração da sociologia da educação, às considerações sobre projetos de socialização, pouco problematizados e remetidos ao domínio privado.

Em uma crítica acerca da noção de socialização Mollo-Bouvier5,8 afirma que a utilização dessa noção e de seus parâmetros pode gerar expectativas e uma política estigmatizante que visa corrigir aqueles que não se socializaram ou que tiveram uma "má-socialização". Essa visão contribui para uma desconsideração de que a socialização é um processo contínuo, mas que não implica uma linearidade, que inclui crises e que implica diversos ajustes, dessocializações e ressocializações. Essa discussão baseia uma linha interacionista da noção de socialização, considerando que a criança participa como sujeito social que tanto reproduz como transforma.

A consideração do hospital como espaço de referência para crianças com doenças crônicas e suas expressões

Após a discussão encaminhada, vale ressaltar que não se pode fixar um momento de socialização da criança. Destacamos espaços de socialização, como a família, a escola, incluindo para o segmento de crianças com doenças crônicas o hospital, e seu papel de referência não só técnica, como afetiva. Para as crianças, o desenrolar do processo de socialização se dá mediado pelo seu caráter lúdico, pela brincadeira, que vai perpassar todos os momentos/situações de vida das mesmas, servindo como instrumento cultural de transmissão de valores, de construção de sociabilidade.

Percebe-se que a imagem que a criança tem do espaço hospitalar é construída paralelamente à percepção que a mesma tem de sua própria doença, destacando o que aponta Helman9 quando afirma que crianças enfermas, apesar da pouca idade, entendem a seu modo suas enfermidades, suas causas e seu tratamento, especulando porque estão naquela situação e quais são os cuidados que estão sendo realizados com ela, ou seja, assumem uma postura ativa semelhante a dos adultos que se encontram nessa mesma situação. Portanto, por esta mesma razão, conforme salienta este autor, é importante explicar apropriadamente à criança o que está acontecendo, de modo que faça sentido para a mesma. E, nesta direção, o brincar é a linguagem que vai fazer sentido para a criança10. Ainda neste contexto, de acordo com pesquisas realizadas na área de pediatria por Santa Roza11, o brincar é importante forma de intervenção em saúde junto à criança hospitalizada, contribuindo para vários setores do desenvolvimento infantil. O modo como o sujeito lida com sua doença, suas marcas e conseqüências, vai refletir em todos os campos de sua vida. No caso da infância, a família e a escola se configuram como os principais locais de sociabilidade, e para crianças esses espaços se apresentam também como os primeiros locais onde os recursos para se lidar com a doença começam a ser construídos e/ou elaborados.

Deve-se considerar que, além da escola, o hospital torna-se um ponto forte da rede social das crianças com doenças crônicas e/ ou deficiências. Essas crianças e suas famílias demonstram a necessidade de dominar as explicações técnicas sobre a doença, elaborá-las e relê-las à luz de suas experiências como usuárias do serviço de saúde. Essa ação permite que elas enfrentem as barreiras socialmente contruídas a partir do estigma da deficiência e da doença, esclarecendo equívocos e desfazendo preconceitos. Para as crianças portadoras de doenças crônicas, o hospital se torna um espaço de sociabilidade, enquanto um território de domínio comum, de encontros e desencontros, de referência e visibilidade de outras crianças e famílias com diagnósticos, tratamentos, temores e dúvidas semelhantes. Essa proximidade permite um compartilhamento e confronto de experiências e não deixa de provocar em algumas famílias receios: referidos a projetos futuros para essas crianças, marcados por incertezas quanto ao desempenho social, capacidade de desenvolver sua sexualidade, tornar-se independente, ter sua própria família e emprego12 . Levando em conta estes receios, percebemos que nos espaços lúdicos promovidos no hospital, estas famílias têm a oportunidade de descobrir o potencial de interação, criatividade e de brincar de suas crianças.

Tais espaços introduzidos no interior da organização hospitalar tornam-se locais propícios à interação efetiva entre as crianças, seus acompanhantes e a equipe de saúde, por meio da mediação produzida pelo convite para brincar. O convite para brincar pressupõe como sendo anterior ao prazer para brincar, a prerrogativa da liberdade para recusar esse mesmo convite13. Sabendo que esse convite serve como uma primeira estratégia de consideração da condição de sujeito da criança, está em questão a opção de liberdade da criança, o que favorece o encontro prazeroso com uma equipe de saúde disposta a valorizar a sua ludicidade12. Valorizar a liberdade de escolha da criança já demarca uma importante diferença na construção de um ambiente mais acolhedor para a mesma. A singularidade infantil e suas expressões (brincar, recusar procedimentos de cuidado, choros, questionamentos da rotina, barulhos, reivindicações variadas, dentre outros) ficam relegadas a um segundo plano na hierarquia de importância construída pela tradição hospitalar, que privilegia a técnica, as rotinas, os procedimentos. No caso das crianças, essa imagem reafirma a perspectiva que qualifica socialmente a infância como dependente do adulto, sem direito de escolha, caracterizada pelo desconhecimento e a irresponsabilidade com o que se passa ao seu redor14.

Encarar com seriedade a produção das crianças significa considerá-las como sujeitos de direito e de fato, descolando a etimologia da palavra infância o período daqueles que não falam–da identificação–de que a criança é um ser menor, inclusive no campo das pesquisas em sociologia4.

O mais importante para as crianças portadoras de doenças crônicas, que muitas vezes possuem marcas relacionadas à doença, é a atenção a sua experiência enquanto crianças e a valorização de seus mecanismos de sociabilidade, que têm no brincar um suporte importante para a expressão. Pois um olhar muito direcionado à marca corporal pode reduzir o potencial dessas crianças e impedir os recursos que ela pode desenvolver para lidar com as mesmas.

Com o intuito de trazer à tona a percepção das crianças sobre a realidade vivida pelas mesmas no que se refere ao adoecimento crônico, optamos por ilustrar este artigo com desenhos realizados pelas crianças nos espaços lúdicos a partir de solicitações de profissionais que trabalham com a promoção do brincar no interior do hospital. Em um dos casos, foi solicitado a uma criança que desenhasse a si mesma (Figura 3); e, no caso dos outros dois desenhos (Figuras 1 e 2), foi pedido às crianças que estavam no ambiente para desenharem o hospital, ou algo sobre ele, pois tratava-se da semana comemorativa de aniversário da instituição. Apesar da produção das crianças ter sido elaborada a partir de uma solicitação, dentro de um tema específico, a forma de condução deste processo foi livre e no momento em que as mesmas estavam desenhando não houve influência alguma do profissional, inclusive, os comentários ou títulos atribuídos ao desenho partiram das crianças espontaneamente e podem nos mostrar a percepção que as mesmas têm do ambiente hospitalar e de si mesmas. Consideramos importante ilustrar este trabalho com produções próprias das crianças no intuito de reforçar a postura ativa destes sujeitos e valorizar seus modos de perceber os diversos aspectos envolvidos em seu processo de adoecimento. Nesse processo, a representação da imagem de uma outra criança, ou da sua própria, bem como o desenho do hospital, permite concretizar a doença/diferença manifestada no corpo, e o local de tratamento da mesma, que faz parte da vida regular destas crianças.




No caso das crianças que se tratam em um hospital de referência para o tratamento de diversas patologias, há um espectro de diferenças que vão desde aquelas crianças que vivem com doenças muito graves e não possuem nenhuma marca que as diferencie visualmente, até aquelas que além de uma grave síndrome têm a elas associado algum tipo de deficiência. Ao expressarem através do desenho (Figuras 1 e 2) quais seriam as crianças que vêm se tratar no hospital, há a necessidade de demarcar o tratamento, ou a gravidade da doença pela marca física, por exemplo, pela falta de uma perna ou pelo uso de muletas:

As crianças que se tratam em um hospital terciário de alta complexidade têm plena noção de que mesmo estando em um hospital que tem um parque para brincar e pessoas responsáveis por esse espaço, há uma referência para a doença, a deficiência e até mesmo a gravidade. Essa noção é expressa nos desenhos e essa expressão não vem associada a valores discriminatórios, mas é uma expressão espontânea da diferença que marca as crianças que se tratam nesse local. Ainda que elas mesmas que desenharam não tenham nenhuma dessas marcas de deficiência, essas marcas no desenho permitem englobar o espectro da gravidade, da diferença e da falta que no repertório infantil demarca o significado da doença e é por elas percebido e expressado.

Tanto as crianças que vivem com um estigma de uma doença, quanto aquelas que não possuem visivelmente nenhuma deficiência física, têm a possibilidade, na interação com outras crianças, de negociar a expectativa socialmente construída do déficit/falta decorrente da marca em uma diferença como um fato não necessariamente negativo. O brincar funciona enquanto mediador e facilitador para as relações de troca, em que as diferenças podem ser diluídas. Vale retomar aqui o conceito de sociabilidade no sentido de "ser um jogo onde se faz de conta que são todos iguais, e ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular"1.

As crianças portadoras de algum tipo de estigma, em geral, são destacadas por esta marca mais pelos adultos. Ao contrário desses, as crianças rapidamente naturalizam a diferença, e o que se destaca é o papel que aquela ocupa na brincadeira. Para elas, esse processo é mais espontâneo e ocorre num ciclo de reconhecimento, estranhamento, incorporação e convivência, que não depende da mediação dos adultos. Nesse caso, se desenhar com uma marca de deficiência torna-se um mecanismo de expressão, elaboração e reconhecimento que facilita a convivência com a diferença (Figura 3).

O desenho possibilita que a criança retrate aspectos da sua realidade, incluindo sua percepção sobre a diferença de forma espontânea. Essa espontaneidade é a base da expressão lúdica, que permite, através da brincadeira, um universo de negociações. Segundo Winnicott10, o brincar ocupa uma zona intermediária para além do psíquico e do comportamento. O brincar conduz à experiência cultural e constitui seu fundamento, tornando-se, portanto, um componente fundamental na construção da subjetividade infantil. Quando a criança aponta uma marca de outra criança, ou sua própria, é a possibilidade de desmistificar e incluir na sua experiência a diferença e o impacto que esta provoca. Ou seja, a interação lúdica cria condições para o exercício de elaboração destas marcas, confrontando dúvidas e possibilitando a transformação de expectativas.

No caso de um hospital no qual a clientela de crianças possui uma doença crônica, pode-se entender sua importância em um duplo sentido, pois, ao mesmo tempo em que o hospital é o lugar dos cuidados com a doença, dos procedimentos necessários e das medicações, é também um espaço de sociabilidade para estas crianças; neste ambiente, se estabelecem novas relações, são criados espaços onde elas têm a possibilidade de agir como crianças normais, brincando. É preciso considerar que um ambulatório pode apresentar-se tão ameaçador para a criança quanto a rotina de internação em um hospital. Segundo as autoras, vários fatores podem intervir nessa percepção de ameaça, provocando uma aversão: o tempo de espera pelas consultas, a ausência de atividades apropriadas a sua ocupação e envolvimento, o nível de debilidade provocado pela doença, a característica invasiva ou dolorosa de exames, tratamentos, a comunicação das informações sobre o adoecer e o tratamento8.

Considerações finais

A discussão acima tem como um de seus desdobramentos a constatação de que é preciso estruturar estudos com crianças portadoras de doenças crônicas e não somente sobre essas crianças. Com isso, queremos postular a necessidade de, considerando os diferentes níveis de doenças e deficiências, construir instrumentos que possibilitem a aproximação e apreensão de seus modos de viver, apropriação do espaço social e experiência com o adoecimento.

Acreditamos ser relevante refletir que o reconhecimento pela criança de sua doença, do mal-estar que possivelmente causa, das conseqüências, modificações ou marcas corporais que propicia, da alteração na sua rotina e na de seus pais, na percepção de que algo os preocupa e mobiliza, está em jogo no cenário de suas relações. E todo esse processo não merece ser negado, disfarçado ou escondido, mas pode ser adequadamente manejado pela família, recebendo suporte profissional caso necessário para isso, e pelo serviço de saúde.

Nessa perspectiva, o brincar pode funcionar como um mediador privilegiado, facilitando a incorporação pela criança da experiência da doença e de todas as suas ramificações, na sua experiência pessoal, podendo identificar em um ambiente novo como o hospital muitas coisas que domina, que pode manipular com segurança, que podem conduzir a um estado de relaxamento e liberdade. Isso vai gradativamente possibilitar a integração da criança de aspectos negativos (sofrimento, sensação de isolamento, angústia, etc.) e positivos da hospitalização (conforto, reconhecimento, autoridade sobre algo que domina, construção de parcerias, etc.) em um mesmo espaço vital: sua experiência.

Colaboradores

MCN Moreira e AD Macedo trabalharam na análise de dados, escrita e revisão do artigo final.

Artigo apresentado em 23/05/2007

Aprovado em 26/07/2007

Versão final apresentada em 17/09/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Abr 2009

Histórico

  • Aceito
    26 Jul 2007
  • Recebido
    23 Maio 2007
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