Acessibilidade / Reportar erro

Narrativas de familiares sobre as dificuldades no processo de escolarização

Narraciones de familiares sobre las dificultades en el proceso de escolarización

Resumo

O objetivo deste estudo consistiu em compreender as narrativas dos familiares dos estudantes acerca das dificuldades no processo de escolarização. Foram utilizados os conceitos de significado, de self educacional e de narrativa. Trata-se de um estudo qualitativo, orientado teoricamente pela Psicologia Histórico-Cultural e metodologicamente pela análise narrativa. Os participantes foram 10 familiares de estudantes do Ensino Fundamental, numa escola pública de um município do estado da Bahia. Foram realizados grupo focal e entrevistas individuais semiestruturadas. O procedimento básico de análise consistiu em configurar narrativas coletivas a partir de aportes individuais que se complementam, tendo como suporte os significados apresentados pelos participantes. Entendimentos e posições sobre o processo de aprendizagem das crianças foram identificados. Os achados permitem distinguir as versões construídas pelos familiares dos estudantes daquelas que compõem a queixa escolar. Essas construções simbólicas indicam modulações do self educacional e a ocorrência de comunicação problemática entre a escola e a família.

Palavras-chave:
Narrativas; família; escola

Resumen

El objetivo de este estudio consistió en comprender las narraciones de los familiares de los estudiantes acerca de las dificultades en el proceso de escolarización. Se utilizó los conceptos de significado, de self educacional y de narrativa. Se trata de un estudio cualitativo, orientado teóricamente por la Psicología Histórico-Cultural y metodológicamente por el análisis narrativo. Los participantes fueron 10 familiares de estudiantes de la Enseñanza Primaria, en una escuela pública de un municipio del estado de Bahía. Se realizó grupo focal y entrevistas individuales semiestructuradas. El procedimiento básico de análisis consistió en configurar narrativas colectivas a partir de aportes individuales que se complementan, teniendo como soporte los significados presentados por los participantes. Se ha identificado entendimientos y posiciones sobre el proceso de aprendizaje de los niños. Los resultados permitieron diferenciar las versiones construidas por los familiares de los estudiantes de aquellas que componen la queja escolar. Esas construcciones simbólicas indican modulaciones del self educacional y la incidencia de comunicación problemática entre la escuela y la familia.

Palabras clave:
Narrativas; familia; escolarización

Abstract

The objective of this study was to understand the narratives of the students' relatives about the difficulties in the schooling process. The concepts of meaning, educational self and narrative were used. This is a qualitative study theoretically based on Historical-Cultural Psychology, whose method was narrative analysis. The participants were 10 family members of Elementary School students, in a public school in the State of Bahia. Focus group and individual semi-structured interviews were carried out. The basic analysis procedure consisted of setting up collective narratives from individual contributions that complement each other, supported on the meanings presented by the participants. Understandings and positions about the children’s learning process were identified. The findings allow to distinguish the versions constructed by the student families from those that make up the school complaint. These symbolic constructs indicate modulations of the educational self and the occurrence of problematic communication between the school and the family.

Keywords:
Narratives; family; school

Introdução

O fracasso escolar tem ensejado muitos empreendimentos investigativos nos domínios da ciência. Nas últimas décadas, tem sido, sem dúvida, um dos temas mais salientes no âmbito da Psicologia Escolar e Educacional e de ciências afins que visam compreender os processos implicados na escolarização (Bray & Leonardo, 2011Bray, C. T.; Leonardo, N. S. T. (2011). As queixas escolares na compreensão de educadoras de escolas públicas e privadas. Psicologia Escolar e Educacional, 15(2), 251-261.; Cabral & Sawaya, 2001Cabral, E.; Sawaya, S. M. (2001). Concepções e atuação profissional diante das queixas escolares: os psicólogos nos serviços públicos de saúde. Estudos de Psicologia, 6(2), 143-155.; Dias, 2008Dias, R. (2008). O atendimento psicológico a crianças com problemas escolares: a queixa escolar nos prontuários de psicologia (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.; Marinho-Araujo & Neves, 2006Marinho-Araujo, C. M.; Neves, M. M. B. J. (2006). A questão das dificuldades de aprendizagem e o atendimento psicológico às queixas escolares. Aletheia, 24, 161-170.; Moysés, 1998Moysés, M. A. A. (1998). A institucionalização invisível: crianças que não-aprendem-na-escola (Tese de Livre-Docência). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo. ; Nakamura, Lima, Tada, & Junqueira, 2008Nakamura, M. S.; Lima, V. A. A.; Tada, I. N. C.; Junqueira, M. H. R. (2008). Desvendando a queixa escolar: um estudo no Serviço de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. Psicologia Escolar e Educacional, 12(2), 423-429.; Patto, 1990Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T.A. Queiroz.; Scortegagna & Levandowski, 2004Scortegagna, P.; Levandowski, D. C. (2004). Análise dos encaminhamentos de crianças com queixa escolar da rede municipal de ensino de Caxias do Sul. Interações, 9(18), 127-152.; Zibetti, Souza, & Queiróz, 2010Zibetti, M. L. T.; Souza, F. L. F.; Queiróz, K. J. M. (2010). Quando a escola recorre à Psicologia: mecanismos de produção, encaminhamento e atendimento à queixa na alfabetização. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 490-506.).

O fracasso escolar tem sua expressão mais insidiosa nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Aparece na forma de reprovação e evasão. Em 2015, o índice oficial de reprovação e evasão nas redes pública e privada do ensino brasileiro foi de 6,8% (equivalente a um milhão e cinquenta e seis mil crianças). Porém, o que parece ser a melhor expressão da cronificação desse fracasso é a distorção entre idade e série. Cerca de 15% dos alunos estavam com atraso escolar de dois anos ou mais.

O que muito tem chamado a atenção, quando se volta o olhar para o problema do fracasso escolar e, mais especificamente, para o índice elevado de estudantes com dificuldades na aprendizagem, é a constatação de como igualmente se evidencia a iniciativa da escola em promover o encaminhamento desses estudantes para avaliação e tratamento na área de saúde. Nesses casos, psicólogos e médicos são os especialistas mais procurados. Segundo Souza (1994, citado por Dias, 2008Dias, R. (2008). O atendimento psicológico a crianças com problemas escolares: a queixa escolar nos prontuários de psicologia (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.), no Brasil, 50% dos encaminhamentos para atendimento psicológico são feitos pela escola, enquanto 26% são feitos pela família e 23% pelos médicos.

Esses encaminhamentos traduzem demandas relativas às dificuldades e problemas dos alunos no processo de escolarização. Dificuldades na aprendizagem e problemas na convivência com colegas e professores são identificados, ganham explicações diagnósticas e seguem para a área de saúde. Essas formulações são creditadas aos professores, aos coordenadores pedagógicos e aos pais dos estudantes, ainda que esses últimos raramente sejam escutados. São produções discursivas que objetivam aquilo que se convencionou chamar de “queixa escolar” (Dazzani, Cunha, Luttigards, Zucoloto, & Santos, 2014Dazzani, M. V. M.; Cunha, E. O.; Luttigards, P. M.; Zucoloto, P. C. S. V.; Santos, G. L. (2014). Queixa escolar: uma revisão crítica da produção científica nacional. Psicologia Escolar e Educacional, 18(3), 421-428. ). Tomando como referência os autores citados no primeiro parágrafo, a queixa escolar é entendida como uma versão hegemônica, criada historicamente no âmbito da escola, que explica as dificuldades no processo de aprendizagem e os problemas de comportamento com base em supostas características desfavoráveis do próprio aluno (déficit cognitivo, indisciplina, desinteresse etc.) e de sua família (desestruturação, desinteresse etc.). A queixa escolar também pode revelar o que se entende por patologização da educação (Patto, 1990Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T.A. Queiroz.; Moysés, 1998Moysés, M. A. A. (1998). A institucionalização invisível: crianças que não-aprendem-na-escola (Tese de Livre-Docência). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo. ; Zucoloto, 2003 Zucoloto , P. C. S. V. (2003). A escola no discurso higienista: as teses inaugurais da Faculdade de Medicina da Bahia (1869 a 1898) (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.), que é pressupor a existência de doenças que impedem ou dificultam que os alunos aprendam ou se comportem de acordo com o esperado pela instituição escolar.

Ao realizar uma revisão crítica da literatura acerca do tema, Dazzani et al. (2014Dazzani, M. V. M.; Cunha, E. O.; Luttigards, P. M.; Zucoloto, P. C. S. V.; Santos, G. L. (2014). Queixa escolar: uma revisão crítica da produção científica nacional. Psicologia Escolar e Educacional, 18(3), 421-428. ) verificaram que os estudiosos convergem no sentido de considerar que a queixa escolar patologiza ora a criança ora a pobreza da sua família. Para a não aprendizagem da criança, levantam-se causas internas, fatores disposicionais. Quanto à família, são ressaltadas suas precárias condições de existência, sua pressuposta desestruturação sócio-afetiva e seu baixo nível de escolaridade, aspectos que dificultariam a adesão da criança aos processos escolares. Entretanto, curiosamente, a escola não se implica no processo de aprendizagem quando este falha. Ou seja, a queixa escolar não inclui as práticas escolares e suas peculiaridades pedagógicas.

Embora haja pesquisadores que percebem e apontem a necessidade de que sejam escutados todos os atores envolvidos na produção da queixa escolar, para que esta seja adequadamente dimensionada - por exemplo, Collares e Moysés (1996Collares, C. A. L.; Moysés, M. A. A. (1996). Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez.), Machado (2000Machado, A. M. (2000). Avaliação psicológica na educação: mudanças necessárias. In Tanamachi, E.; Proença, M.; Rocha, M. (Eds.), Psicologia e educação: desafios teórico-práticos (pp. 143-169). São Paulo: Casa do Psicólogo.) -, estudos que contemplem as versões dos estudantes e dos seus familiares ainda são muito exíguos. No campo da Psicologia, os interesses dos estudiosos parecem estar mais centrados na perspectiva dos professores e dos psicólogos, conforme podemos depreender da revisão da literatura efetuada por Dazzani et al. (2014Dazzani, M. V. M.; Cunha, E. O.; Luttigards, P. M.; Zucoloto, P. C. S. V.; Santos, G. L. (2014). Queixa escolar: uma revisão crítica da produção científica nacional. Psicologia Escolar e Educacional, 18(3), 421-428. ).

Nos termos explicitados até aqui, a queixa escolar se apresenta como uma narrativa. Para Bruner (2002Bruner, J. (2002). Atos de significação (Costa, S., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.), a narrativa é uma forma de discurso cuja estrutura é “inerente à práxis da interação social” (p.72). Narrar consiste em contar histórias, acontecimentos e, principalmente, explicar como os desvios do comum ocorrem. Por isto, a narrativa é normativa. Sua composição sequencial envolve eventos, personagens humanos e estados mentais. Suas histórias remetem ao que é moralmente valorizado ou apropriado. Em função dessa compreensão, colocamo-nos as seguintes questões: (1) Como os familiares compreendem as dificuldades noprocesso de escolarização de suas crianças?; (2) Suas narrativas são sempre convergentes com a queixa escolar?

Tanto as narrativas quanto as questões colocadas remetem, no âmbito da Psicologia Histórico-Cultural, aos conceitos de significado e de self. Segundo Vigotski (1934/2000Vigotski, L. S. (2000). Pensamento e linguagem (2a ed., Camargo, J. L., Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1934).), o significado é um conhecimento comum, compartilhado em determinada cultura ou grupo social. É produzido e intercambiado na convivência social, ao mesmo tempo em que viabiliza a comunicação. O significado expressa, simultaneamente, o pensamento individual e o conhecimento coletivo.

O conceito de si mesmo (self) é construído pela pessoa através das interações com os outros significativos, como meio de estruturar sua consciência, configurar sua identidade, situar sua posição e firmar seu comprometimento com os outros. Com base em Bruner (2002Bruner, J. (2002). Atos de significação (Costa, S., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.), entendemos que o self é dependente do diálogo e, sendo assim, é necessariamente múltiplo. O self se faz na convergência entre dois movimentos, um que vai da cultura à mente e outro que vai da mente à cultura. O si mesmo é um produto das situações nas quais o sujeito atua. Concordamos com Bruner quando conclui que: "O si mesmo, então, não é algo estático ou uma substância, mas uma configuração de eventos pessoais em uma unidade histórica que inclui não apenas o que fomos, mas também antecipações do que seremos” (Bruner, 2002Bruner, J. (2002). Atos de significação (Costa, S., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas., p. 100).

Reconhecendo a multidimensionalidade do si mesmo, Marsico e Iannaccone (2012Marsico, G.; Iannaccone, A. (2012). The work of schooling. In Marsico, G.; Iannaccone, A.; Valsiner, J. (Eds.), Oxford handbook of culture and psychology (pp. 830-868). Oxford, UK: University Press.) formularam o conceito de self educacional. Como uma dimensão específica do si mesmo, para esses autores, o self educacional se constitui nas experiências individuais em contextos educacionais. A experiência educacional constitutiva do self é apropriada pelo indivíduo para dar sentido ao que ocorre na escola. Portanto, o self educacional pode ser entendido como um processo de elaboração de sentidos em movimento, referindo-se ao passado e, ao mesmo tempo, construindo o futuro. Nesse processo, os pais podem adotar (combinando, alternando) as posições Eu-professor (assumindo o ponto de vista de professor) e Eu-pai ou Eu-mãe (assumindo o ponto de vista de pai ou mãe), conforme o caso, ao avaliar a escola e seu filho na escola.

Para Marsico e Iannaccone (2012Marsico, G.; Iannaccone, A. (2012). The work of schooling. In Marsico, G.; Iannaccone, A.; Valsiner, J. (Eds.), Oxford handbook of culture and psychology (pp. 830-868). Oxford, UK: University Press.), o sucesso ou o fracasso escolar pode contribuir para uma visão positiva ou negativa do self não apenas em relação à criança. A avaliação que a escola faz da criança pode ser percebida por seus pais como avaliação de suas próprias habilidades ou capacidades educacionais. Em sua pesquisa, orientada pela Psicologia Cultural, em que analisam o self na relação entre família e escola, os autores notaram que, dependendo do sucesso ou fracasso de suas crianças, os pais podem estabelecer com a escola uma relação de aliança, de oposição ou de aquiescência. Aliança e oposição são mais frequentes em famílias de nível sociocultural mais elevado e aquiescência é mais comum em famílias de nível sociocultural baixo.

Collares e Moysés (1996Collares, C. A. L.; Moysés, M. A. A. (1996). Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez.) perceberam o poder persuasivo do diagnóstico concebido pela escola. Esse diagnóstico pode ser assumido pelos pais de modo tal que sua percepção acerca da criança se transforma. Eles podem passar a ver na criança aquilo que a escola assegura que determina o fracasso dela na aprendizagem. O suposto saber da escola, personificado pelos professores, impõe-se na avaliação patologizante que é dirigida à família.

Sendo assim, definimos como objetivo deste estudo compreender as narrativas de familiares de estudantes acerca das dificuldades destes no processo de escolarização. Para alcançá-lo, além de tomarmos como referência os estudos sobre a queixa escolar, encontrados na literatura, utilizamos os conceitos de narrativa (Bruner, 2002Bruner, J. (2002). Atos de significação (Costa, S., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.), de significado (Vigotski, 1934/2000Vigotski, L. S. (2000). Pensamento e linguagem (2a ed., Camargo, J. L., Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1934).) e de self educacional (Marsico & Iannaccone, 2012Marsico, G.; Iannaccone, A. (2012). The work of schooling. In Marsico, G.; Iannaccone, A.; Valsiner, J. (Eds.), Oxford handbook of culture and psychology (pp. 830-868). Oxford, UK: University Press.).

Método

A abordagem é qualitativa, na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural. Seu processo interpretativo é baseado na análise narrativa proposta por Bruner (1991Bruner, J. (1991). The narrative construction of reality. Critical Inquiry, 18(1), 1-21., 2002). Como afirma Bruner (2002), interpretamos as interpretações que as pessoas fazem acerca de suas vidas.

Participantes

Os participantes foram 10 familiares de estudantes das séries iniciais do Ensino Fundamental, sendo sete mães, um pai e duas tias. Seus filhos ou sobrinhos estudam numa escola pública de um município do estado da Bahia e foram apontados, por seus professores, como tendo histórico de dificuldades na aprendizagem e reprovação em diferentes matérias escolares. Em relação a algumas delas, a escola já havia aconselhado aos pais que procurassem a ajuda de especialistas da área de saúde. Isto é, essas crianças eram alvos de queixa escolar.

Instrumentos e procedimentos

As narrativas foram produzidas através de entrevistas individuais semiestruturadas e de grupo focal, desenvolvidos na própria escola. Os participantes atenderam ao convite formulado através da diretoria da escola. O grupo focal e as entrevistas foram gravados em áudio, com a devida anuência dos participantes. Foram observados todos os cuidados necessários à pesquisa com seres humanos, de acordo com a legislação vigente. Cada sessão de entrevista teve duração média de 30 minutos e o grupo focal teve duração de 60 minutos.

O desenvolvimento do grupo focal e das entrevistas foi centrado nas seguintes questões: como os participantes tomaram conhecimento das dificuldades na aprendizagem das crianças; e como eles têm lidado com isto. Além disso, foi utilizado um formulário com questões sociodemográficas, relativas à condição socioeconômica da família e ao nível de escolarização do participante. Devemos assinalar, ainda, que o presente relato de pesquisa é referente a apenas uma parte de uma pesquisa mais ampla, sobre a queixa escolar, realizada em dois municípios do estado da Bahia. Esse estudo envolveu psicólogos dos respectivos sistemas municipais de ensino, professores e estudantes de três escolas, bem como familiares das crianças. Alguma informação obtida através da observação participante será necessária para facilitar o trabalho de análise aqui apresentado.

Análise

As questões orientadoras do grupo focal e das entrevistas deflagraram a construção de histórias que foram delineadas em sua composição: eventos, personagens, concepções de ensino e de aprendizagem, identificação de dificuldades na aprendizagem, posicionamento dos membros da família (com o uso da noção de self educacional) etc. Os aportes individuais foram comparados e tiveram suas similaridades, convergências e divergências evidenciadas. Similaridades e convergências foram tomadas como indicadores de complementação narrativa. Bruner (1991Bruner, J. (1991). The narrative construction of reality. Critical Inquiry, 18(1), 1-21.) assinala que histórias se conectam, na vida cotidiana, e constituem totalidades narrativas. Na constituição dessas totalidades, que expressam entendimentos coletivos, os significados (conhecimentos compartilhados) foram salientados. Segundo Bruner (2002)Bruner, J. (2001). A cultura da educação (Domingues, M. A. G., Trad.). Porto Alegre: Artmed., é no âmbito da narrativa que os significados são produzidos. Essas narrativas foram nomeadas com base no seu enredo e nos seus significados.

Resultados e Discussão

Durante a análise, notamos que os participantes expressavam, às vezes, a determinação de efetuar suas próprias verificações e de chegar às suas próprias conclusões acerca da aprendizagem de suas crianças. Outras vezes, eles apenas reproduziam as versões que lhes foram apresentadas pelos professores, assumindo-as. Em outros momentos, ainda, eles contestavam as explicações e ações dos professores. A partir disso, as narrativas foram diferenciadas em três categorias: queixa familiar, aceitação da queixa escolar e contraqueixa familiar. Essa categorização foi inspirada naquela utilizada por Marsico e Iannaccone (2012Marsico, G.; Iannaccone, A. (2012). The work of schooling. In Marsico, G.; Iannaccone, A.; Valsiner, J. (Eds.), Oxford handbook of culture and psychology (pp. 830-868). Oxford, UK: University Press.): relação de aliança, oposição ou aquiescência. Esclarecemos que os nomes dos participantes foram substituídos, para garantir a confidencialidade, e que mantivemos as transcrições das falas o mais próximo possível do registro original, isto é, abstivemo-nos de efetuar correções gramaticais.

Queixa familiar

A queixa familiar se apresenta como relato provido de constatações e explicações dos familiares acerca da não aprendizagem de suas crianças, bem como de busca de soluções. Como exemplo de constatação, temos a seguinte: “É, eu ensino as coisas pra ele, e ele bota o nome e não bota do modo certo” (Palmira, mãe). Podemos ver que a constatação tem um sentido avaliativo e que a mãe toma para si a autoria do ensino. Mas, a avaliação pode resultar da comparação entre o desempenho na escola e o desempenho em casa, como neste exemplo: “Eu já olho a provinha dela pra corrigir, já vejo que ela não responde daquele jeito que foi em casa” (Quirina, mãe). Para que assim seja, a mãe deve necessariamente perceber-se com conhecimentos suficientes para ensinar ao filho em casa e avaliar o que foi realizado na escola, ou o que vem de lá. Isto deixa abertura, evidentemente, para que emerjam possíveis discrepâncias entre o que ocorre em casa e o que ocorre na escola, em termos de ensino e de aprendizagem.

É possível até mesmo que essas discrepâncias signifiquem a negação de alegadas aprendizagens escolares: “Uma diz, diz que tá melhorzinho em matemática, às vez ele num tá, que às vez fica lá em casa e diz: mainha, não entendo isso”(Selena, mãe). A participante salienta um desencontro entre a avaliação da professora - tal como a recebeu - e a avaliação que ela própria efetua acerca do desempenho da criança.

Às vezes, a constatação evidencia, simultaneamente, competências e incompetências cognitivas da criança: “aí ela fica me perguntando e eu fico explicando pra ela. E ela sabe mexer lá no computador, mas ela só sabe jogar, mas não sabe as letras” (Poliana, tia). Sendo assim, implicitamente questiona o trabalho escolar, pois, se a criança está apta a aprender (a manipular o computador) e não aprende a conhecer as letras, a falha só pode estar, presumivelmente, no ensino. O que viabiliza essa interpretação é o fato de sabermos (através da observação participante) que não há computadores na escola em questão. Logo, a criança aprende a lidar com o computador independentemente da escola. Entretanto, na perspectiva da tia, a criança ainda não conhece as letras do alfabeto, aquilo que já deveria ter aprendido na escola.

A constatação não é realizada, necessariamente, pela mãe ou pelo pai da criança. Outra pessoa mais experiente da família pode fazê-la (um primo, por exemplo): “Vejo, assim, eu sempre sabia que Maria [sua sobrinha] sabia. Mas eu ficava [com] o menino ensinando, porque eu tenho um menino de 13 anos e ele sempre ficava ensinando os dever dela, quem ensina é ele os dever dela. Aí um dia ele: Mãe, Maria não sabe as letras, não! Aí eu expliquei pra ela direito, que ela não sabe” (Poliana, tia).

Podemos notar que se configura um padrão de ensino entre os familiares dos estudantes. Quirina (mãe) se refere à prática da correção de teste. Essa prática suscita duas questões. A primeira remete a um ensino que valoriza a reprodução de conteúdo e descarta o erro como desvio inútil. A segunda questão diz respeito à centralidade do professor, que surge como portador de um suposto saber a ser imposto aos alunos. Selena (mãe) ressalta a explanação do professor, que deve ser seguida pela memorização e pela reprodução do aluno: “Meu fio, por que não pergunta à diretora, à professora, manda explicar de novo?! Aí explica, depois, às vez ele esquece, aí fica, não pega: mainha, não sei, mainha. Aí fica assim na memória, não sei”. Novamente a centralidade do professor, que é reafirmada por Poliana (tia), também com a ideia da explanação como estratégia de ensino. Essa explanação deve ser repetida para que se garanta a memorização e a consequente reprodução por parte do aluno.

Os relatos das constatações permitem entrever que o ensino intentado no âmbito familiar é orientado, aparentemente, por uma abordagem tradicional, assim como na escola. Mizukami (2015Mizukami, M. G. N. (2015). Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: E.P.U.) caracteriza o ensino tradicional como prática em que são centrais a transmissão de informação, baseada na autoridade intelectual e moral do professor, e sua reprodução pelo aluno. O aluno deve, passivamente, escutar e observar o professor para, em seguida, imitá-lo. O professor repete a explanação e a demonstração. O aluno reproduz o modelo através de exercícios, testes e provas. Busca-se, assim, o ideal da reprodução exata de conteúdos e habilidades.

Em momentos diferentes, obtivemos de alguns professores da escola em que estudam as crianças dos participantes desse estudo a afirmação de que a prática deles é baseada na pedagogia tradicional, a despeito de sua formação acadêmica. Bray e Leonardo (2011Bray, C. T.; Leonardo, N. S. T. (2011). As queixas escolares na compreensão de educadoras de escolas públicas e privadas. Psicologia Escolar e Educacional, 15(2), 251-261.), por exemplo, apontam o ensino tradicional como modelo predominante a orientar a prática dos professores. Neste modelo, a passividade e a capacidade mnemônica do aluno são consideradas fatores fundamentais para o sucesso. Mizukami (2015Mizukami, M. G. N. (2015). Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: E.P.U.) esclarece que o ensino tradicional remete a uma prática que é passada de geração a geração, sem o suporte de teorias empiricamente validadas. Argumentamos, então, que os alunos são aqueles que mais são expostos a essa prática e que, logicamente, são aqueles mais susceptíveis e aptos a apreendê-la e reproduzi-la. Neste sentido, a declaração de Quirina (mãe) é primorosa: “… eu tento ensinar a ela a matemática do jeito que eu aprendi, mas só que ela não consegue, tipo a subtração ela não sabe, que eu explico a ela” (grifo nosso). Portanto, é possível que esta apropriação do ensino tradicional, calcada na vivência individual como estudante, seja constitutiva de uma espécie de pedagogia popular, uma construção cultural análoga à psicologia popular, ambas preconizadas por Bruner (2001Bruner, J. (2001). A cultura da educação (Domingues, M. A. G., Trad.). Porto Alegre: Artmed., 2002).

No empreendimento dos familiares dos estudantes, esse ensino expressa o desenvolvimento e o posicionamento do self educacional de quem o executa. Nesses exemplos, mães e tias assumem a posição Eu-Professora, assim como indicam Marsico e Iannaccone (2012Marsico, G.; Iannaccone, A. (2012). The work of schooling. In Marsico, G.; Iannaccone, A.; Valsiner, J. (Eds.), Oxford handbook of culture and psychology (pp. 830-868). Oxford, UK: University Press.). Portanto, a família importa da escola e com ela compartilha as explicações para a não aprendizagem. Os familiares dos estudantes se apropriam de modelos explicativos significados historicamente. Sendo assim, vão além daquilo que Collares e Moysés (1996Collares, C. A. L.; Moysés, M. A. A. (1996). Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez.) encontraram em seu estudo. Ou seja, não se apropriam do discurso dos professores apenas no que concerne à não aprendizagem dos seus filhos. Tomam para si modelos explicativos e práticas pedagógicas.

A narrativa constituída pela queixa familiar, ao efetuar a passagem da constatação à explicação da não aprendizagem, às vezes, situa a escola como lugar em que a aprendizagem desenvolvida em casa pode ser confirmada ou legitimada, mas que, também, pode se apresentar como ambiente pouco propício para isto: “É, em casa ela aprende, ela demonstra tudo, mas quando chega na escola, eu não sei se é porque ela é muito amiga de todo mundo e conversa com todo mundo e no fim acaba se distraindo com todo mundo e num sabe o que faz no caderno” (Quirina, mãe). Desta forma, ocorre uma certa inversão de papéis entre a escola e a família. Ainda assim, as características individuais da criança continuam no centro do problema.

De modo geral, essas explicações tendem a priorizar aspectos cognitivos ou mentais da criança, mesmo quando o ensino escolar suscita dúvidas: “Aí eu não sei como é, se é o modo de ensino dos professores, o que é, eu já pedi até por psicólogo, alguma coisa assim!” (Quirina, mãe). Palmira (mãe) diz, de modo bem sugestivo também: “... só tem umas coisas assim meio doidinhas, em casa com as meninas, eu já percebi isso. Ele bate nas meninas”.Scortegagna e Levandowski (2004Scortegagna, P.; Levandowski, D. C. (2004). Análise dos encaminhamentos de crianças com queixa escolar da rede municipal de ensino de Caxias do Sul. Interações, 9(18), 127-152.), dentre outros autores, assinalam a tendência, também entre os professores, de encaminhar crianças que não aprendem ao serviço psicológico ou médico. A queixa familiar é patologizante, portanto, no sentido de que tende a associar idiossincrasias identificadas na criança a disfuncionalidades cognitivas ou a desconsertos em sua saúde mental. Sendo assim, a família recorre ao modelo médico para vislumbrar possíveis soluções ao impasse produzido pela não aprendizagem. Às vezes, ainda, a opção adotada é a intensificação do ensino extraescolar: “Aí, para o ano eu vou ver se coloco ela numa banca porque ela num sabe de nada na terceira série” (Poliana, tia).

A patologização da não aprendizagem é evidenciada recorrentemente na literatura, em estudos que focalizam a queixa escolar a partir da escuta dos professores ou dos psicólogos. Podemos citar como exemplos os seguintes autores: Machado (1997Machado, A. M. (1997). A queixa escolar no alvo dos diagnósticos. Idéias, 28, 141-158.), Moysés (1998Moysés, M. A. A. (1998). A institucionalização invisível: crianças que não-aprendem-na-escola (Tese de Livre-Docência). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo. ), Cabral e Sawaya (2001Cabral, E.; Sawaya, S. M. (2001). Concepções e atuação profissional diante das queixas escolares: os psicólogos nos serviços públicos de saúde. Estudos de Psicologia, 6(2), 143-155.), Marinho-Araújo e Neves (2006)Marinho-Araujo, C. M.; Neves, M. M. B. J. (2006). A questão das dificuldades de aprendizagem e o atendimento psicológico às queixas escolares. Aletheia, 24, 161-170. e Souza (2007Souza, B. (Ed.) (2007). Orientação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo.), que assinalam a prevalência do atendimento à queixa com base no modelo médico, atendimento centrado na busca de fatores intrapsíquicos; Scortegagna e Levandowski (2004Scortegagna, P.; Levandowski, D. C. (2004). Análise dos encaminhamentos de crianças com queixa escolar da rede municipal de ensino de Caxias do Sul. Interações, 9(18), 127-152.), Nakamura, Lima, Tada e Junqueira (2008Nakamura, M. S.; Lima, V. A. A.; Tada, I. N. C.; Junqueira, M. H. R. (2008). Desvendando a queixa escolar: um estudo no Serviço de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. Psicologia Escolar e Educacional, 12(2), 423-429.), Zibetti, Souza e Queiróz (2010Zibetti, M. L. T.; Souza, F. L. F.; Queiróz, K. J. M. (2010). Quando a escola recorre à Psicologia: mecanismos de produção, encaminhamento e atendimento à queixa na alfabetização. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 490-506.) e Bray e Leonardo (2011Bray, C. T.; Leonardo, N. S. T. (2011). As queixas escolares na compreensão de educadoras de escolas públicas e privadas. Psicologia Escolar e Educacional, 15(2), 251-261.), que, a partir dos seus achados, caracterizam a produção, o encaminhamento e o atendimento à queixa escolar como sendo individualizantes e estigmatizantes.

O que distingue a queixa familiar da queixa escolar é, principalmente, a peculiaridade de a primeira ser uma versão das constatações da não aprendizagem do estudante efetuadas por seus familiares (e não pelos professores). Além disso, as constatações que fundamentam a queixa familiar, bem como seus subsequentes encaminhamentos, são relativamente independentes daquelas da queixa escolar, como podemos notar na seguinte afirmação: “Porque eu, como mãe, eu acho que ela necessita [de psicólogo], mas só que uma professora me disse que era o tempo dela, disse: Não, mulher, é o tempo dela aprender!” (Quirina, mãe). Evidencia-se também, neste exemplo, em se tratando do self educacional, a posição Eu-Mãe. Contudo, o fato de construir uma narrativa particular acerca da não aprendizagem de suas crianças não impede que a família acolha e firme sua adesão à queixa advinda da escola, como veremos a seguir.

Aceitação da queixa escolar

Em termos de constatação, a aceitação da queixa escolar possibilita aos membros da família explicitar diferenças entre a criança que não aprende e suas colegas:

Não, a principal queixa dela é que ela não consegue acompanhar os coleguinhas, sabe? Na atividade, pra tirar do quadro, ela é lenta. Mas só que esse processo já é desde a alfabetização dela que já é assim, ela sempre foi a última a terminar as atividade na escola (Quirina, mãe).

Às vezes, o que é ressaltado, na aceitação da queixa escolar, é a divergência entre oralidade, leitura e escrita: “É… as notas delas até que não são ruins, sabe? Porque, assim, ela consegue… você perguntando a ela, dá um questionário, você pergunta, ela te consegue responder, agora na hora de passar prum papel, aí complica…” (Quirina, mãe). Ou o desencontro entre leitura e escrita: “… só que ele tá com dificuldade, assim, na hora de ler, fazer algum dever, ele tem um pouco de dificuldade, mas para escrever, escreve bem, mas na hora de ler, não tem muito desenvolvimento, não” (Paulo, pai). Zibetti et al. (2010Zibetti, M. L. T.; Souza, F. L. F.; Queiróz, K. J. M. (2010). Quando a escola recorre à Psicologia: mecanismos de produção, encaminhamento e atendimento à queixa na alfabetização. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 490-506.) encontraram alta incidência de queixa escolar nos primeiros anos do ensino fundamental e a relacionaram justamente ao aprendizado da leitura e da escrita.

Outras vezes, o que a aceitação da queixa escolar destaca é o desempenho do estudante numa matéria específica: “Matemática ele tem muita dificuldade. A nota dele tá até baixa. Graças a Deus, só é em matemática” (Selena, mãe). A indisciplina também pode aparecer como dificultadora da aprendizagem, como na seguinte assertiva: “Os meus, desde o ano passado, tinha dificuldade de aprender, a danação demais, não ficava dentro da sala, queriam mais ficar só brincando aqui, né?” (Nanã, mãe). Ou como na seguinte variante: “A professora disse que ele tá danado, disse que parece que briga, fica envolvido com fofoca” (Otávia, mãe). Scortegagna e Levandowski (2004Scortegagna, P.; Levandowski, D. C. (2004). Análise dos encaminhamentos de crianças com queixa escolar da rede municipal de ensino de Caxias do Sul. Interações, 9(18), 127-152.) e Nakamura et al. (2008Nakamura, M. S.; Lima, V. A. A.; Tada, I. N. C.; Junqueira, M. H. R. (2008). Desvendando a queixa escolar: um estudo no Serviço de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. Psicologia Escolar e Educacional, 12(2), 423-429.) incluem o cálculo, a indisciplina e o desinteresse no elenco de queixas que são geralmente encaminhadas aos serviços de atendimento.

Sobretudo, em se tratando das explicações acerca da não aprendizagem e dos encaminhamentos aventados para sua solução, a aceitação da queixa escolar conduz os membros da família a uma perspectiva individualizante, como nos exemplos anteriores, e, às vezes, a uma perspectiva patologizante. Esta última aparece no relato de Quirina (mãe), sugerindo a existência de déficit cognitivo na criança, e nos depoimentos de Nanã (mãe) e de Otávia (mãe), caracterizando a indisciplina. No seguinte exemplo, a perspectiva patologizante se apresenta como suspeita de distúrbio cerebral ou mental: “... ela [a professora] falou que vai procurar uma pessoa assim, um médico, pra botar ele, pra ver se é alguma coisa na cabeça, que tá assim sem saber... as provas que ele faz ele não sabe responder...” (Palmira, mãe).

O que é fundamental na caracterização da aceitação da queixa escolar é uma dupla ausência, da atitude investigativa e da criticidade. Os familiares adotam passivamente os modelos explicativos dos professores para as dificuldades das crianças.

Contraqueixa familiar

A contraqueixa familiar surge como expressão de oposição e resistência à queixa escolar, sendo formulada pelos familiares dos estudantes. Estas formulações constituem oposições críticas à atuação dos professores e aos resultados do ensino e, assim, denunciam o trabalho, vieses e desconsertos da escola. Simultaneamente, revelam e dimensionam o desenvolvimento do self educacional e os posicionamentos que este possibilita ao sujeito. Sendo assim, em termos comparativos, podemos supor que, para engendrar a contraqueixa familiar, a configuração do self educacional precisa ser mais complexa do que nos casos da produção da queixa familiar e da aceitação da queixa escolar. O movimento da contraqueixa requer conhecimentos mais elaborados e posicionamentos mais críticos sobre o processo de escolarização.

A contraqueixa pode significar uma recusa à devolução de problemas relativos ao ensino para a família, reafirmando a escola como lócus do suposto saber necessário à sua resolução:

E pronto, só que ela não te dá uma... uma solução, ela te dá problema, mas ela não te dá a solução... Eu sou um tipo de mãe que eu achava assim, a minha filha, particularmente, já que ela tem essa situação, eu acho que a escola deveria me ajudar a resolver, não dizer assim, como a menina me disse lá... que eu disse a ela assim: eu não sei mais o que é que eu faço pra ela entrar, aí ela, a professora dela lá disse assim: Se você num sabe, imagine a gente! (Quirina, mãe).

A contraqueixa surge aqui através de uma expressão marcada por intensa emocionalidade, principalmente a indignação. A contraqueixa pode situar o professor como especialista detentor do suposto saber da escola, com o dever de exercitá-lo de modo eficaz: “Eu acho assim, se ela é professora, ela tinha que saber mais do que eu, se eu tô lá procurando ajuda, é porque eu não consegui resolver. Aí ela disse isso, eu achei um absurdo!” (Quirina, mãe).

O questionamento referente ao descompasso entre a seriação do ensino e o aprendizado esperado pode estar presente na contraqueixa: “... aí eu digo: é para uma criança que está na terceira série e não saber nem as letras... do alfabeto direito?” (Poliana, tia). Pode manifestar-se como uma consideração conclusiva de que não se pode esperar que outra coisa aconteça na escola que não seja o avanço no processo de aprendizagem, principalmente quando em pauta estão os conteúdos e habilidades de importância prática no cotidiano: “Olhe, eu achava assim, que ela tinha que aprender mais, tipo assim, vou lhe dizer, a matemática que é uma coisa que a gente usa direto” (Quirina, mãe).

A contraqueixa pode ser uma conclusão sintética de significado abrangente, que questiona a eficácia do trabalho da escola: “O que tá faltando mais é ensino e aprendizagem mermo aqui...” (Selena, mãe). Supõe uma elaboração intelectual mais apurada, quando comparada à queixa familiar e à aceitação da queixa escolar, posto que exige uma reflexão sobre o papel da escola, sobre o ensino e a aprendizagem, sobre a atuação dos professores, sobre as especificidades das matérias ensinadas etc. Além disso, a contraqueixa é marcada por uma dimensão emocional que transparece intensamente, principalmente na forma de indignação e espanto. A contraqueixa familiar traz à tona, de modo crítico, o descontentamento da família do estudante com relação à atuação da escola, tendo em vista suas expectativas acerca da aprendizagem.

Ao construir a queixa familiar, as mães e tias de estudantes desse estudo assumem, na perspectiva do self educacional, a posição Eu-Professora, para avaliar a aprendizagem de suas crianças e desenvolver atividades de ensino e assumem a posição Eu-Mãe/Eu-Tia para providenciar serviços de ensino de terceiros (alternativos) ou buscar atendimento em serviços de saúde. Evidencia-se, aqui, o não compartilhamento do pai, lembrando-nos que os homens ainda participam menos da educação dos filhos do que as mulheres. Todavia, posições múltiplas do self ganham expressão na experiência dos familiares de estudantes:

  • No caso da queixa familiar: Eu/Professora, ativa, independente, convergente; e Eu-Mãe ou Eu-Tia ativa, independente, mas convergente com a escola;

  • No caso da aceitação da queixa escolar: Eu/Mãe ou Eu/Tia ou Eu/Pai passivo(a), dependente, convergente com a escola;

  • No caso da contraqueixa familiar: Eu-Mãe ou Eu-Tia ativa, independente e divergente da escola.

Embora esses resultados lembrem os achados de Marsico e Iannaccone (2012Marsico, G.; Iannaccone, A. (2012). The work of schooling. In Marsico, G.; Iannaccone, A.; Valsiner, J. (Eds.), Oxford handbook of culture and psychology (pp. 830-868). Oxford, UK: University Press.), quando se referem à aliança, oposição ou aquiescência dos pais em relação à avaliação que os professores fazem do desempenho dos seus filhos, as diferenças são muito acentuadas. Enquanto esses autores focalizam o sucesso e o fracasso escolares, o presente estudo investiga apenas aspectos do fracasso. Além disso, os referidos autores lidam com famílias de níveis socioculturais diversos, enquanto no presente estudo as famílias apresentam características socioculturais muito semelhantes e condições socioeconômicas similarmente desvantajosas (nenhuma tem renda mensal superior a dois salários mínimos). Julgamos que a contraqueixa familiar exige um self educacional mais complexo, mas não nos parece razoável relacionar isso à quantidade de anos de escolarização, seja porque não tivemos o intuito de tratar estatisticamente as informações obtidas, seja porque consideramos possível que o desenvolvimento do self educacional ocorra, também, através de experiências indiretas, tais como acompanhamento do processo de escolarização dos filhos.

Em síntese, os familiares das crianças creem e esperam, basicamente, que a escola ensine de modo eficiente e que os alunos aprendam bem, todos mais ou menos ao mesmo tempo; e que aprendam, ao menos, os rudimentos da escrita, da leitura e do cálculo. É a violação dessa crença que gera toda a produção de narrativas e significados que configuramos. Conforme Bruner (2002Bruner, J. (2002). Atos de significação (Costa, S., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.), narrativas são construídas somente quando crenças constitutivas da psicologia popular são violadas.

Considerações finais

As narrativas dos familiares dos estudantes sugerem a precariedade do diálogo entre escola e família. Nelas identificamos construções simbólicas concernentes à não aprendizagem e à queixa escolar, que seguem, porém, em relação a esta última, percursos diversos e apresentam características distintivas. Essas distinções são importantes porque viabilizam um olhar mais acurado aos processos interativos que têm lugar no cotidiano escolar, principalmente aqueles que envolvem professores, estudantes e familiares de estudantes. Nessa compreensão, a escola e a família estão em interação simbólica cotidianamente. Entre elas há um trânsito rotineiro e de mão dupla de significados diversos. Porém, isto não significa necessariamente a existência de um diálogo fluente entre os atores envolvidos nesse trânsito.

Esse cenário nos leva ao entendimento de que a comunicação entre escola e família nem sempre é eficaz e que isso contribui para que a relação entre as duas instâncias sociais comporte um considerável tensionamento. Ao tentarmos visualizar os diferentes enredos e dinâmicas sugeridas pela queixa escolar, pela queixa familiar e pela contraqueixa familiar, ficamos com a nítida impressão de que, às vezes, em lugar do diálogo, o que ocorre aí é uma espécie de monólogo coletivo. Ou seja, cada instância - escola ou família - está tão envolvida com seus próprios processos, que não consegue conceder uma escuta compreensiva ao que a outra está a dizer, embora ambas estejam empenhadas em dizer algo continuamente.

É possível apontar a existência de uma espécie de monólogo coletivo porque:

  • A queixa escolar é formulada sem uma escuta aos alunos e suas famílias, com base apenas na observação e denúncia do que não corresponde ao esperado pela instituição escolar;

  • Ao formular a sua queixa, a família parece ignorar a queixa dos professores, embora utilize o mesmo modelo orientador desta;

  • A contraqueixa construída pelos familiares dos estudantes não parece contar com a escuta dos professores (como é possível depreender dos estudos da área);

  • Somente a aceitação da queixa escolar efetiva claramente a fluidez da comunicação, embora seja assimetricamente estabelecida. Esta assimetria se configura, então, como vetor das relações de poder vigentes no âmbito da escola, bem como das relações entre esta e as famílias dos estudantes. Mas, ainda aqui, os estudantes não são escutados.

A queixa familiar revela que a família assume um ensino paralelo, quando percebe que a escola não vem obtendo êxito em sua tarefa. Por outro lado, às vezes, a família aceita que a não aprendizagem persista, por considerar, de forma acrítica, que as explicações e justificativas dos professores expressam o saber da autoridade.

Sendo assim, a queixa familiar se constitui como mecanismo de reafirmação da exclusão social representada pelo fracasso escolar. Isto ocorre à medida que a família utiliza os modelos explicativos fornecidos pela escola e empreende ou busca práticas de ensino alternativas às escolares que, ao fim e ao cabo, em nada diferem delas.

Portanto, a família lida com o fracasso escolar do seu filho de três modos distintos, às vezes simultaneamente:

  • Aceita a queixa da escola de que a dificuldade de aprender ou a não aprendizagem se deve a características pessoais da criança. A família adere à tese das disfunções ou déficits motivacionais, comportamentais ou cognitivos;

  • Concebe o ensino escolar como sendo insuficiente e resolve complementá-lo, através dos seus próprios meios, promovendo um ensino extraescolar, alternativo. Neste caso, atende também ao apelo da escola, cujas narrativas atribuem corresponsabilidade pelo ensino à família;

  • Devolve a responsabilidade pelo ensino e pelo correspondente fracasso à escola. Neste caso, assume uma posição crítica, contestatória, diante da autoridade dos professores na instituição escolar. Porém, seu discurso não parece repercutir na escola, dada a assimetria entre os poderes implicados no embate.

Esses três tipos de expressão podem estar presentes na mesma narrativa. Isto faz transparecer não apenas a existência de diferentes níveis de complexidade do self educacional, mas, também, suas contradições e ambiguidades. Neste ponto, podemos assinalar que o presente estudo traz contribuições relevantes para a Psicologia Escolar e Educacional, no sentido de aprimorar a compreensão sobre os processos implicados na escolarização. Isto ocorre de duas formas: pelo redimensionamento da queixa escolar e consequente incremento analítico deste fenômeno e do fracasso escolar; e pela ampliação do alcance investigativo, ao incluir a escuta aos familiares e sugerir a inclusão dos próprios estudantes.

Podemos considerar que a expressão “queixa escolar” não faz jus à complexidade do fenômeno ao qual se refere. Para sermos mais precisos, deveremos referir-nos à pluralidade das queixas, que não se desenvolvem restritas ao ambiente escolar, embora todas sejam concernentes a não aprendizagem e ao fracasso escolar. Os achados desta pesquisa permitem distinguir as queixas construídas pelos professores daquelas construídas pelos familiares dos estudantes (bem como suas contraqueixas), mas deixam em aberto a possibilidade de que também os estudantes estejam a construir suas queixas. E isto, evidentemente, demanda novos empreendimentos investigativos. Talvez a expressão “queixa docente” seja mais apropriada, em se tratando da queixa formulada pelos professores, considerando-se sua capacidade descritiva e distintiva.

Por conseguinte, o fenômeno das construções simbólicas em torno da não aprendizagem não se esgota nas narrativas dos professores e dos familiares dos estudantes. Pouquíssima escuta tem sido dedicada àqueles que são (ou deveriam ser) o centro de convergência dos processos de ensino e de aprendizagem, isto é, os próprios estudantes. O drama (ou a tragédia) do fracasso escolar, para se dar a conhecer mais apropriadamente, requer, entretanto, mais do que isto, a explicitação dos diálogos possíveis (e seus impedimentos) entre seus protagonistas, bem como sua contextualização sociocultural, política e histórica.

Referências

  • Bray, C. T.; Leonardo, N. S. T. (2011). As queixas escolares na compreensão de educadoras de escolas públicas e privadas. Psicologia Escolar e Educacional, 15(2), 251-261.
  • Bruner, J. (1991). The narrative construction of reality. Critical Inquiry, 18(1), 1-21.
  • Bruner, J. (2001). A cultura da educação (Domingues, M. A. G., Trad.). Porto Alegre: Artmed.
  • Bruner, J. (2002). Atos de significação (Costa, S., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Cabral, E.; Sawaya, S. M. (2001). Concepções e atuação profissional diante das queixas escolares: os psicólogos nos serviços públicos de saúde. Estudos de Psicologia, 6(2), 143-155.
  • Collares, C. A. L.; Moysés, M. A. A. (1996). Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização São Paulo: Cortez.
  • Dazzani, M. V. M.; Cunha, E. O.; Luttigards, P. M.; Zucoloto, P. C. S. V.; Santos, G. L. (2014). Queixa escolar: uma revisão crítica da produção científica nacional. Psicologia Escolar e Educacional, 18(3), 421-428.
  • Dias, R. (2008). O atendimento psicológico a crianças com problemas escolares: a queixa escolar nos prontuários de psicologia (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
  • Machado, A. M. (1997). A queixa escolar no alvo dos diagnósticos. Idéias, 28, 141-158.
  • Machado, A. M. (2000). Avaliação psicológica na educação: mudanças necessárias. In Tanamachi, E.; Proença, M.; Rocha, M. (Eds.), Psicologia e educação: desafios teórico-práticos (pp. 143-169). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Marinho-Araujo, C. M.; Neves, M. M. B. J. (2006). A questão das dificuldades de aprendizagem e o atendimento psicológico às queixas escolares. Aletheia, 24, 161-170.
  • Marsico, G.; Iannaccone, A. (2012). The work of schooling. In Marsico, G.; Iannaccone, A.; Valsiner, J. (Eds.), Oxford handbook of culture and psychology (pp. 830-868). Oxford, UK: University Press.
  • Mizukami, M. G. N. (2015). Ensino: as abordagens do processo São Paulo: E.P.U.
  • Moysés, M. A. A. (1998). A institucionalização invisível: crianças que não-aprendem-na-escola (Tese de Livre-Docência). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo.
  • Nakamura, M. S.; Lima, V. A. A.; Tada, I. N. C.; Junqueira, M. H. R. (2008). Desvendando a queixa escolar: um estudo no Serviço de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. Psicologia Escolar e Educacional, 12(2), 423-429.
  • Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia São Paulo: T.A. Queiroz.
  • Scortegagna, P.; Levandowski, D. C. (2004). Análise dos encaminhamentos de crianças com queixa escolar da rede municipal de ensino de Caxias do Sul. Interações, 9(18), 127-152.
  • Souza, B. (Ed.) (2007). Orientação à queixa escolar São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Vigotski, L. S. (2000). Pensamento e linguagem (2a ed., Camargo, J. L., Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1934).
  • Zibetti, M. L. T.; Souza, F. L. F.; Queiróz, K. J. M. (2010). Quando a escola recorre à Psicologia: mecanismos de produção, encaminhamento e atendimento à queixa na alfabetização. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 490-506.
  • Zucoloto , P. C. S. V. (2003). A escola no discurso higienista: as teses inaugurais da Faculdade de Medicina da Bahia (1869 a 1898) (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
  • Apoio financeiro: CAPES e CNPq

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2018
  • Aceito
    08 Abr 2019
Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), Rua Mirassol, 46 - Vila Mariana , CEP 04044-010 São Paulo - SP - Brasil , Fone/Fax (11) 96900-6678 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@abrapee.psc.br