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ENTREVISTA COM A PROFA. DRA. ROSELI FERNANDES LINS CALDAS - PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA ESCOLAR E EDUCACIONAL

Entrevista con la Profa. Dra. Roseli Fernandes Lins Caldas - Presidente de la Asociación Brasileña de Psicología Escolar y Educacional

RESUMO

A Professora Dra. Roseli Fernandes Lins Caldas atua na área de Psicologia Escolar e Educacional, no campo da educação e processos de ensino aprendizagem, com foco nos estudos sobre os estudantes que estão em situação de dificuldades de aprendizagens. Rompendo com perspectiva da medicalização deste fenômeno, os seus trabalhos se inspiram na perspectiva histórico-cultural, avançando nas reflexões sobre atividades que visam contribuir para a aprendizagem deste grupo de alunos(as). As suas pesquisas recentes estão direcionadas para o contexto migratório e de refúgio, colocando em relevo a necessidade de construir propostas pedagógicas que possibilitem o desenvolvimento do processo de escolarização daqueles que se encontram nesta situação. É autora de publicações e orientadora estágios e pesquisas e coordenadora do Programa da Pró-reitoria de Extensão · Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente, ela é Presidente da ABRAPEE - Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, no biênio 2020 - 2022. A síntese de sua contribuição está registrada nesta entrevista realizada por Alexandra Ayach Anache.

Palavras-chave:
psicologia escolar; inclusão; fracasso escolar; medicalização

RESUMEN

La Profesora Dra. Roseli Fernandes Lins Caldas actúa en el área de Psicología Escolar y Educacional, en el campo de la educación y procesos de enseñanza aprendizaje, con enfoque en los estudios sobre los/as estudiantes que se encuentran en situación de dificultades de aprendizajes. Rompiendo com la perspectiva de la medicalización de este fenómeno, sus estudios se inspiran en la perspectiva histórico-cultural, avanzando en las reflexiones sobre actividades que visan contribuir para el aprendizaje de este grupo de alumnos/. Sus investigaciones recientes están direccionadas al contexto migratorio y de refugio, poniendo en relieve la necesidad de construir propuestas pedagógicas que posibiliten el desarrollo del proceso de escolarización de aquellos/as que se encuentran en esta situación. Es autora de publicaciones y orientadora de pasantías e investigaciones y coordinadora del Programa de la Protectoría de Extensión de la Universidad Presbiteriana Mackenzie. Actualmente, es la Presidente de la Asociación Brasileña de Psicología Escolar y Educacional (ABRAPEE), en el bienio 2020 - 2022. La síntesis de su contribución está registrada en esta entrevista realizada por Alexandra Ayach Anache, Presidente Anterior de la ABRAPEE (bienio 2018 - 2020).

Palabras clave:
psicología escolar; inclusión; fracaso escolar; medicalización

ABSTRACT

Professor Roseli Fernandes Lins Caldas, PhD. works in the area of School and Educational Psychology, in the field of education and processes of teaching learning, focusing on studies about students who they are in a situation of learning difficulties. Breaking up with perspective of the medicalization of this phenomenon, her works are inspired in the historical-cultural perspective, advancing in the reflections about activities that aim to contribute to the learning of this students’ group. Her recent searches are directed to the migration and refugee context, highlighting the need for build pedagogical proposals that enable the development of schooling process for those who find themselves in this situation. She is the author of publications and advisor for internships and research and Coordinator of the University Extension Dean’s Program in the Presbyterian University Mackenzie. She is currently President of the Association Brazilian School of School and Educational Psychology (ABRAPEE), in the 2020-2022 biennium. Her contribution synthesis is recorded in this interview performed by Alexandra Ayach Anache, Previous President of ABRAPEE (2018-2020 biennium).

Keywords:
school psychology; inclusion; school failure; medicalizacion

Alexandra - Roseli, é um prazer entrevistá-la. Nós sabemos da sua trajetória no campo da Psicologia e da Psicologia Escolar e Educacional. Você poderia contar a história deste percurso acadêmico?

Roseli - Sempre desejei ser professora, fiz magistério, dei aula na Educação Infantil e durante um curso de especialização em Educação Infantil, com foco na metodologia de Maria Montessori, me encantei com a disciplina de Psicologia da educação e do desenvolvimento. Decidi, então cursar Psicologia. Em minha formação, destaco alguns autores como Dewey e, posteriormente, Paulo Freire, a quem tive o privilégio de conhecer pessoalmente, depois de ter lido seus livros, na década de 1970, em plena ditadura militar. Tive uma professora na universidade que levava livros de Freire sem a capa para que estudássemos clandestinamente.

Desde o início da graduação tinha interesse na interlocução entre Psicologia e educação. A escolha do estágio nessa área, supervisionada pelo professor Sergio Leite, foi a confirmação de que a Psicologia Escolar seria meu percurso. Ainda que não fosse na escola, minhas atividades profissionais sempre foram voltadas à área de educação. Trabalhei em uma agência de adoção, ligada à vara de menores, ne creche de uma ONG, realizando atividades com as cuidadoras das crianças e depois numa clínica-escola para crianças com necessidades educacionais específicas. Na década de 1990 atuei como psicóloga escolar numa grande escola privada por quase dez anos, uma rica experiência bastante desafiadora e gratificante. Obtive o título de especialista em Psicologia Escolar, atribuído pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e decidi fazer mestrado em Educação e História da Arte e Cultura, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2000) cuja dissertação teve como tema “O desencantamento com o aprender na escola” (Caldas, 2000Caldas, R. F. L. (2000). O desencantamento com o aprender na escola: o que dizem professores e alunos da educação infantil e ensino fundamental. (Dissertação de Mestrado). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil.) sob orientação da Profª. Dra. Maria Martha Hübner. Tinha como objetivo investigar junto a estudantes e professores (as) de diversas séries do Ensino Fundamental para tentar compreender o que encantava e o que levava ao desencantamento com o aprender na escola. Relacionamento professor-aluno, o sentido da aprendizagem, temas realmente significativos, motivação e interesses foram alguns dos elementos encontrados na pesquisa.

A atividade docente na universidade me levou a buscar mais conhecimento e aprimoramento profissional. Veio então o processo de doutoramento em Psicologia pelo Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo (2010) com a tese intitulada “Recuperação escolar: discurso oficial e cotidiano educacional, um estudo a partir da psicologia escolar” (Caldas, 2010Caldas, R. F. L. (2010). Recuperação Escolar: discurso oficial e cotidiano escolar - Um estudo a partir da Psicologia Escola. (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) orientado pela professora Dra. Marilene Proença Rebello de Souza. Desenvolvi minha pesquisa etnográfica abordando as implicações tanto para as professoras, como para as crianças destinadas às classes de recuperação, sob a fundamentação da Psicologia Histórico-Cultural, em especial buscando nas concepções de Vigotski (2016)Vigotskii, L. S.; Luria, A. R.; Leontiev, A. N. (Org.). (2016). Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 14ª ed., elementos para compreensão e análise dos fenômenos observados nessas classes, chamadas de recuperação, mas que se punham muito mais como espaços excludentes e estigmatizantes. De grande valor também para minha formação continuada tem sido o aporte das produções desenvolvidas no Departamento de Psicologia Escolar da USP, especialmente pelo Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar (LIEPPE).

Minha história com a ABRAPE teve início em 1994, quando participei do 2º CONPE, seguiram-se os outros treze, que têm agregado muito conhecimento e experiências afetivas à minha profissão e à minha vida.

Lecionando disciplinas na área, supervisionando estágios e há quase 30 anos buscando contribuir com a formação de inúmeras psicólogas e psicólogos, tenho plena certeza das grandes contribuições da ABRAPEE e é imensa a honra de exercer a presidência nessa gestão.

Alexandra - Você tem abordado o tema Inclusão de Migrantes em suas pesquisas mais recentes. Como você se aproximou desta temática?

Roseli - Supervisionando estágios em Psicologia Escolar, começamos a nos deparar com escolas localizadas em alguns bairros da cidade de São Paulo com grande contingente de estudantes migrantes. As questões relativas aos processos de ensino e aprendizagem têm sido profundamente afetadas pelos desafios encontrados por gestores (as), professores(as) e estudantes tanto brasileiros, como os migrantes. Algumas escolas realizam bons projetos de acolhimento e apoio às pessoas migrantes, outras ainda buscam caminhos para que a inclusão educacional desses(as) alunos e alunas se efetive. Assim, além da atuação dos(as) estagiários(as) nesse sentido, em algumas escolas específicas, resolvemos realizar pesquisas que possibilitassem o levantamento de informações sobre como tem se dado a inclusão dos alunos e alunas migrantes, com o objetivo de analisar as relações de ensino-aprendizagem e como as escolas têm valorizado e se apropriado da riqueza cultural para estabelecer a troca de experiências entre nativos e imigrantes. Fruto de uma pesquisa inicial, algumas outras têm sido realizadas sob minha orientação, voltadas a essa temática.

Alexandra - Você poderia fazer uma análise sobre as políticas de inclusão, considerando os estudantes migrantes e refugiados

Roseli - Tanto migrantes como refugiados e refugiadas têm seus direitos assegurados pelas leis internacionais dos direitos humanos, que pressupõem o direito à vida digna para toda e cada pessoa. Existem alguns órgãos que asseguram o direito a ter um refúgio e a liberdade resguardada. São englobados direito à saúde, educação, emprego, alimentação, segurança e cultura, assim como os têm os indivíduos do país acolhedor, uma vez que a pessoa estrangeira e sua família passam a ser pertencentes à comunidade.

No território brasileiro, são adotadas as leis promovidas pelo Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - ACNUR (2016) e pelo Comitê Nacional de Refugiados - CONARE, órgão nacional presidido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e composto por representantes dos Ministérios do Trabalho, Saúde, Educação, Polícia Federal.

Uma análise feita pela ACNUR, levando em consideração a rotina diária na inclusão dos expatriados, relata que a maioria dos grupos de migrantes é composta de famílias com muitos filhos e filhas. Essas crianças são as mais prejudicadas porque, muitas vezes são obrigadas a trabalhar junto com seus pais para sobreviverem, perdem seus direitos de acesso à escola, esporte, lazer, atividades fundamentais para seu desenvolvimento e socialização com outras crianças.

O Brasil é visto como um país receptivo, no qual pessoas em situação de risco criam expectativas para a reconstrução de suas vidas. De acordo com os dados do CONARE, tem havido aumento significativo do número total de refugiados reconhecidos no país. Fomos o primeiro país da América Latina a elaborar uma lei nacional voltada aos refugiados: a Lei Federal 9.474, (Brasil, 1997Brasil. (1997). Ministério do Trabalho e Emprego. Dispõe sobre a Lei Federal 9.474. Brasília. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), que reconhece como refugiado todo indivíduo que:

devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

Com base nessa lei o Ministério do Trabalho e Emprego eliminou o uso do termo “refugiado” e passou a adotar simplesmente “estrangeiros”, iniciativa importante no combate à discriminação e exploração.

Cabe aqui apontar uma diferenciação entre pessoas imigrantes e refugiadas, levando-se em conta as causas da migração. Imigrantes, em geral, optam e escolhem outro lugar para se estabelecerem, muitas vezes em busca de melhores condições de vida, ou de novas possibilidades econômicas sociais ou culturais. Os refugiados(as), por sua vez, têm como única opção a fuga de seus países de origem para salvar suas vidas e de suas famílias. Entretanto, essa diferença não tem sido considerada em minhas pesquisas, pois nem sempre as escolas têm as informações sobre esses processos legais, considerando que no Brasil todas as crianças têm direito à educação, independentemente de seus familiares estarem ou não regularizados no país.

Em 1997 o Brasil se tornou membro da Organização Internacional para as Migrações, conselho com sede central localizada em Genebra, desde 1951 e que coloca em prática legislações baseadas na promoção e garantias dos Direitos Humanos básicos a qualquer cidadão e cidadã dentro de território nacional, que não promova ações prejudiciais ao bem-estar na nação.

De acordo com a ACNUR, o CNIg (Conselho Nacional de Imigração) aprovou em março de 2017, a Resolução Normativa nº. 126 (Brasil, 2017Brasil, Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. (2017). Institui a Lei de Migração. Brasília. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.
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) que dispõe sobre a concessão de residência temporária a imigrantes de país fronteiriço, tendo como objetivo estabelecer políticas migratórias capazes de garantir respeito integral aos direitos humanos das pessoas migrantes e seu pleno acesso à justiça, à educação e à saúde. Em maio de 2017 foi sancionada a Lei de Migração - Lei no. 13.445, que garante ao migrante a mesma condição de igualdade dos nativos, ou seja, inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (Brasil, 2017Brasil. (1997). Ministério do Trabalho e Emprego. Dispõe sobre a Lei Federal 9.474. Brasília. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm
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).

De acordo com dados fornecidos pela ACNUR no que tange à esfera de país receptor de refugiados e imigrantes, o Brasil tem caráter peculiar, pois recebe um contingente significativo de pessoas com nacionalidades variadas. Estima-se que haja cerca de 80 nacionalidades distintas em solo brasileiro. Este dado demonstra a necessidade de uma atenção especial à diversidade cultural para o planejamento e aplicação de medidas interventivas e Políticas Públicas de integração dessas pessoas ao país, e em especial, das crianças e jovens na educação brasileira (Martin, D., Goldberg, A. e Silveira, C., 2018Martin, D.; Goldberg, A.; Silveira, C. (2018). Imigração, refúgio e saúde: perspectivas de análise sociocultural. Saúde e Sociedade, 27, n. 1, pp. 26-36 https://doi.org/10.1590/S0104-1290201817).

Em vista da multiplicidade de referenciais culturais no país, a reflexão sobre a importância das escolas, como ambientes comprometidos com o ensino e a socialização de todos os sujeitos, é imprescindível. Dados do Relatório de Monitoramento Global da Educação (UNESCO, 2019UNESCO. (2019). Relatório de Monitoramento Global da Educação 2018: migração, deslocamento e educação; construir pontes, não muros - Versão resumida. Brasília.), apontam que o ensino de línguas e a alfabetização são os maiores pilares na inclusão de pessoas refugiadas e imigrantes, de todas as idades.

Inclusão e acessibilidade são temas de extrema importância, já tão discutidos e defendidos por Vigotski desde o início do século XX. As relações estabelecidas na escola podem potencializar a aprendizagem e como consequência gerar desenvolvimento das funções mentais superiores, bem como construir novas ferramentas, signos e instrumentos a serem dominados como ações transformadoras (Asbahr, 2014Asbahr, F. S. F. (2014). Sentido pessoal, significado social e atividade de estudo: uma revisão teórica. Psicologia Escolar e Educacional, 18, n. 02, pp. 265-272.).

Alexandra - Quais seriam as contribuições que a Psicologia Escolar e Educacional poderá trazer para o fenômeno da migração?

Roseli - O trânsito de pessoas de sua região de origem a outros países em busca de refúgio diante das situações conflituosas às quais estavam sendo expostas é um dos maiores desafios dentre os paradigmas sociais da atualidade, tendo em vista a complexidade e os múltiplos efeitos do processo de instalação e integração dos migrantes. Sem dúvida, a transformação de sua subjetividade, identidade e constituição enquanto pessoas convoca a Psicologia ao envolvimento.

Vale ressaltar que a criança migrante, diante a sua situação desfavorável conseguinte do deslocamento, se encontra com um menor repertório; sendo assim, necessita de assistência e mediação para o efetivo desenvolvimento. Dessa forma, o educador e a educadora enquanto mediadores se constituem como elementos significativos quando se dispõe a encontrar meios de se relacionar com a criança migrante, criando zonas de desenvolvimento proximal, isto é, disponibilizando oportunidades para o aprimoramento de suas capacidades de desempenho e potencialização.

Em se tratando da Psicologia Escolar e da Educação, a presença e o reconhecimento do multiculturalismo nas sociedades acarretam a necessidade de que o tema seja trabalhado efetivamente no ambiente educacional. A escola é uma instituição de valorização do respeito à diversidade e à pluralidade cultural, e lhe cabe ensinar as crianças e jovens a encarar as diferenças como elemento que agrega à formação do cidadão e aproxima as pessoas migrantes ao seu novo país de pertença, gerando benefícios a imigrantes e brasileiros. Assim, a inclusão, tão propagada na educação, deve ser meta também no que diz respeito às crianças e jovens refugiados(as) e/ou migrantes, uma vez que os Parâmetros Curriculares Nacionais-PCNs (Brasil, 1998Brasil. (1998). Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
) contemplam a pluralidade cultural como tema transversal a ser trabalhado na escola, considerando que “a educação fornece as primeiras bases para a ambientação ao novo local, além de toda uma carga de cultura e costumes, transmitida por meio do ensino” (Azevedo & Amaral, 2018Azevedo, R. S. de; Amaral, C. T. (2018). A crescente imigração no Brasil e seus reflexos na escola pública. Anais do VEncontro Nacional e VIII Simpósio Infância e Educação, Catalão, GO. Recuperado de https://f340e895-0574-4b5f-b7f7-0517ed1ac25a.filesusr.com/ugd/362f54_4f5191764ecf46ba9d8249a3c98a3c74.pdf
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).

Torna-se, portanto, indiscutível a importância da garantia de direitos a todos os alunos e alunas, incluindo os e as imigrantes, o que justifica a necessidade premente de estudos da Psicologia Escolar sobre essa temática. Não se pode atribuir unicamente à escola a solução de desafios tão complexos como os que a mobilidade global tem trazido. A escola não é uma instituição à parte, isolada da sociedade, mas sim parte de uma lógica social bastante excludente. Entretanto, não há como negar o valor da escola como espaço de ensino sobre inclusão, como lugar de convívio com a diversidade e multiplicidade humana. Nossas pesquisas têm revelado mazelas do sistema educacional, em políticas públicas de educação que não pressupõem os migrantes e/ou refugiados, mas possibilitam também esperança, diante de gestores(as), professores(as) e alunos e alunas dispostas a contribuir para que, de fato, as crianças e jovens estrangeiros(as) sejam valorizados em suas especificidades trazendo riqueza sem par aos processos educacionais a partir da troca de experiências vivenciadas por estudantes.

Nesse sentido nos reportamos a Freire: “Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico” (Freire, 2011Freire, P. (2011). Pedagogia da Esperança. São Paulo: Paz e Terra.). A Psicologia Escolar tem muito a contribuir para que tenhamos um país mais justo e uma educação de qualidade para todas e todos, brasileiros e estrangeiros. É preciso buscar caminhos para que a inclusão seja mais real em todos os níveis. É tempo esperançar e de trabalhar para alcançar esse ideal na educação.

Alexandra - Você poderia falar sobre as perspectivas da Psicologia Escolar e Educacional, após a aprovação da Lei 13.935/2019 que prevê a presença de profissionais da Psicologia e do Serviço Social nas redes públicas de educação básica?

Roseli - Uma luta de quase 20 anos que resulta nessa conquista. Agora é Lei! Há muito a celebrar! Nova etapa se põe diante de nós com alguns desafios a serem enfrentados, aponto aqui dois deles. Em primeiro lugar a necessidade de regulamentação da lei federal nos diversos municípios. Conquistamos lugar no FUNDEB - de modo a garantir o custeio desses e dessas profissionais. Entretanto, ainda é preciso muito empenho para que parlamentares, profissionais da educação e sociedade civil compreendam claramente quais as contribuições que a Psicologia e Serviço Social podem trazer aos processos educacionais. Um trabalho multiprofissional que deve ser realizado a muitas mãos, fundamentado nas diversas expertises e alicerçado em teorias sólidas já construídas. A Psicologia, desde sua regulamentação como profissão em 1962, apresenta atribuições dos e das profissionais à área de Educação. O eixo Psicologia e Processos Educativos das Diretrizes Curriculares para os Cursos de Psicologia (2012), indica que a formação das(os) profissionais deve garantir “competências para diagnosticar necessidades, planejar condições e realizar procedimentos que envolvam o processo de educação e de ensino-aprendizagem” (p. 4 ). Assim, o primeiro desafio que aponto é a divulgação de modo a propiciar a efetiva compreensão do que deve ser a atuação da Psicologia na Educação. Vários documentos têm sido elaborados por entidades da psicologia, nesse sentido, dentre os quais, destacamos: (a) Orientações para regulamentação da Lei 13.935/2019 (Brasil, 2019Brasil, Lei 13.935/2019. (2019). Dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica. Brasília. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13935.htm
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); (b) Subsídio para a Regulamentação da Lei, (c) Minuta de Projeto para a Regulamentação, (d) Referências Técnicas para a atuação de psicólogas e psicólogos na Educação Básica (2019), dentre outros. A ampla divulgação destes materiais tem sido a tarefa das entidades de Psicologia e a ABRAPEE tem exercido relevante participação nesse processo. Como um segundo desafio aponto a necessidade de investimento na formação inicial e continuada das (os) profissionais da Psicologia. Historicamente, a Psicologia já se prestou a colaborar para a segregação e discriminação daqueles que não se adaptavam aos sistemas educacionais. A psicólogas(os) escolares eram encaminhados os alunos que não se ajustavam e deveriam ser “corrigidos”, como aponta Kupfer (2004Kupfer, M. C. (2004). O que toca a à Psicologia escolar. In A. M. Machado; M. P. R. Souza(Eds.), Psicologia Escolar: em busca de novos rumos (pp. 102- 112). São Paulo: Casa do Psicólogo4 ed ª>.). Os trabalhos de Patto, (1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e Ideologia: uma crítica à Psicologia Escolar. São Paulo: T. A Queiróz., 1999Patto, M. H. S. (1999). A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo.), iniciados na década de 1980, fizeram a crítica ao lugar até então ocupado pela Psicologia diante do fracasso de muitas crianças nos processos de escolarização. Novos rumos (Machado & Souza, 2004Machado, A. M.; Souza, M. P. R. de. (2004). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. 4ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo.) vêm sendo apontados e a Psicologia Escolar e Educacional brasileira tem construído um cabedal teórico de excelência ao longo dos anos, que nos propicia fundamentos para uma atuação que contemple a rede de atores e políticas que envolvem a educação e permita uma ampla gama de possibilidades de atribuições dos e das profissionais de Psicologia na educação. Citamos aqui algumas delas, descritas nos documentos para regulamentação a Lei 13.935: contribuir para assegurar o direito de acesso, permanência e sucesso da(o) estudante na escola; escutar as diferentes vozes (gestores(as), educadores (as), estudantes, familiares), em relação às queixas escolares; ampliar e fortalecer a participação familiar e comunitária em projetos oferecidos pelo sistema de ensino; trabalhar na promoção da inclusão educacional, viabilizando o direito à educação básica das pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades, jovens e adultos - EJA, pessoas em privação de liberdade, jovens em medidas sócio educativas e tantos outros muitas vezes alijados dos processos educacionais; promover a valorização do trabalho de professoras(es) e de profissionais da rede pública de educação básica; trabalho em parceria e respeito aos educadores; criar estratégias de intervenção relacionadas a situações de violência, uso abusivo de drogas, gravidez na adolescência, vulnerabilidade social; promover ações de combate ao racismo, sexismo, homofobia, discriminação social, cultural, religiosa; desenvolver ações e projetos de enfrentamento aos preconceitos e violência na escola; estimular o protagonismo estudantil; participar da elaboração e acompanhamento das políticas educacionais, dentre tantas outras incumbências.

Todavia, sabemos que ainda é preciso que tanto a formação universitária como o aprimoramento na formação continuada sejam metas cruciais para que não haja retrocessos diante dos que já foi conquistado pela área. Nesse sentido, várias inciativas vêm sendo tomadas como contribuição, em especial, algumas Representações Regionais da ABRAPEE têm proposto cursos e oficinas de formação visando aprimoramento da qualificação profissional.

Alexandra - Considerando os impactos da Pandemia decorrente da SARS-Covid 19, o campo da Educação foi afetado com a instituição do ensino remoto. Qual é a sua avaliação enquanto Presidente da ABRAPEE sobre as transformações ocorridas nas relações acadêmicas?

Roseli - A pandemia escancarou as desigualdades no nosso país, em diversos âmbitos, incluindo a Educação. Grande parte dos alunos das escolas da rede pública não tiveram acesso às aulas remotas. Nos estágios de Psicologia Escolar realizados nesse período muitos foram os relatos de gestoras e professoras sobre as angústias e impotência a respeito da falta de recursos de muitos(as) estudantes e educadores(as). Vivemos desafios e incertezas nesse tempo. Soubemos de um pai que atravessou a cidade a pé para buscar o material na escola, para que o filho pudesse fazer as tarefas. O ensino remoto foi mais efetivo para os alunos que já possuíam bom rendimento escolar. Além disso, as condições de vida de milhões de estudantes apresentaram barreiras às propostas que dependiam exclusivamente de suas famílias, espaços de moradia e acessos à Internet, pois mais de 50% dos domicílios não têm acesso a computador e mais de 30% não dispõem de Internet.

Em um país campeão em desigualdade como o Brasil, esses desafios ganham contornos dramáticos. Com quase 53 milhões vivendo com renda per capita inferior a R$ 500,00, o longo - e necessário - período de isolamento social com a consequente suspensão da atividade econômica e fragilidade da rede de proteção social, produziu efeitos gravíssimos para uma parcela significativa da população. E nesse contexto o direito à Educação foi diretamente afetado. Vigotski (2016)Vigotskii, L. S.; Luria, A. R.; Leontiev, A. N. (Org.). (2016). Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 14ª ed. nos alertou sobre o cuidado para não dar um ensino fraco para os fracos, mas envidar esforços para que o ensino possibilite, de fato, a aprendizagem e consequentemente gere desenvolvimento e produza emancipação humana.

Há que se considerar também as experiências familiares vividas por estudantes e educadores(as). Os adoecimentos, as perdas, o luto, as dores vivenciadas. Enquanto faço essa entrevista temos a notícia de que mais de 120 mil crianças brasileiras ficaram órfãs nessa pandemia. É provável que quando a entrevista for publicada já serão mais ainda. Não se poderá ignorar o sofrimento resultante da pandemia.

É preciso que a escola seja espaço de empatia, compaixão, solidariedade, alteridade, compromisso social, cooperação e apoio mútuo. Wallon (1968Wallon, H. (1968). A Evolução Psicológica da Criança. São Paulo: Edições 70.) aponta a importância da afetividade nos processos de aprendizagem. Talvez esse seja um dos momentos históricos já vividos em que isso será mais necessário do que nunca.

Professores(as) e estudantes precisarão ser cuidados. Os educadores e educadoras precisaram lidar com pressões, adaptar-se a ferramentas virtuais e buscar novos caminhos para ensinar virtualmente. Sem dúvida, isso trouxe grande desgaste físico e emocional.

Dentre as transformações nas relações, penso que uma das principais aprendizagens foi o fortalecimento do valor da escola, do(a) professor(a) e das relações sociais ali estabelecidas. Aprendizagem se dá na interação, mediada pelo outro, pela linguagem e pelo contexto social. Para Vigotski, segundo Davis (1989Davis, C. (1989). Papel e valor das interações sociais em sala de aula. Cadernos de Pesquisa 71, pp. 49-59.), “a experiência individual expande-se, alimenta-se e aprofunda-se graças à apropriação da experiência social.”

Atuar sobre as consequências da pandemia na Educação implicará em um longo processo de muita seriedade e paciência. Será preciso considerar os dois eixos de atuação: as perdas em termos de aprendizagem e as perdas afetivas.

Por fim, penso que será fundamental que haja cautela quanto à medicalização, já tão presente em nossa sociedade e na educação, mas com grande possibilidade de se ampliar no período pós pandemia. Crianças ficaram confinadas e ao movimentarem-se na escola poderão ser tidas como hiperativas, as que não se alfabetizaram por falta de acesso poderão ser diagnosticadas com dislexia, estudantes do Ensino Médio que evadiram da escola para trabalhar e auxiliar no sustento da família poderão ser identificados(as) como desinteressados ou desmotivados.

Expertises da Psicologia Escolar e Educacional serão de grande valia para que retomemos com afinco os processos educacionais e avancemos em direção a novas práticas educacionais que façam sentido, que gerem afetos e desejos tanto por aprender, pelos alunos, como por ensinar, por parte dos educadores.

A ABRAPEE certamente tem muito a contribuir, neste sentido!

REFERÊNCIAS

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  • Azevedo, R. S. de; Amaral, C. T. (2018). A crescente imigração no Brasil e seus reflexos na escola pública. Anais do VEncontro Nacional e VIII Simpósio Infância e Educação, Catalão, GO. Recuperado de https://f340e895-0574-4b5f-b7f7-0517ed1ac25a.filesusr.com/ugd/362f54_4f5191764ecf46ba9d8249a3c98a3c74.pdf
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2021
  • Aceito
    11 Nov 2021
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