Acessibilidade / Reportar erro

Lucro contábil: crepúsculo ou ressurgimento?

Lucro contábil - crepúsculo ou ressurgimento?

Prof.Dr. Sergio de Iudícibus

Professor titular do Departamento de Contabilidade e Atuaria da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP)

Vários autores, pertencentes a mais de uma profissão, têm-se preocupado com a relevância (ou falta de, segundo eles) do conceito e da mensuração contábil do lucro para tomada de decisões econômicas. Tradicionalmente, os economistas têm criticado a natureza da mensuração contábil. Para eles é relativamente fácil tal mister, pois, enunciando conceitos gerais e teóricos sobre renda e capital, em nível puramente conceitual, e deixando aos contadores a tarefa de mensurar, na prática empresarial, tais conceitos, obviamente sempre surgem problemas, não porque os contadores sejam intrinsecamente incapazes, mas porque sempre haverá imperfeições de mensuração, dada a complexidade dos conceitos mensurados é evidente que muitas das críticas referiam-se ao conteúdo da magnitude monetária envolvida na mensuração, quando os contadores insistiam nos custos puramente históricos em cenários, inflacionários ou em que de qualquer forma, sempre se verificam flutuações específicas nos preços dos bens e serviços. Outras eram de natureza conceitual, como a não inclusão, no lucro contábil, de custos de oportunidade, etc.

Mas recentemente, baseados principalmente nos trabalhos de Kaplan e outros (Veja, por exemplo, "Relevance Lost" de H Thomas Johnson e R. S. Kaplan, Harvard Business School Press, 1.987) contadores e homens de finanças têm repensado no assunto, é o caso. De um artigo recente, de João Carlos Hopp e Hélio de Paula Leite ambos professores da FGV, em artigo publicado na revista de administração de Empresas, intitulado "O Crepúsculo do Lucro Contábil", Out/dez 1.988.

Consideramos a leitura de tal artigo interessante e ata certo ponto útil, entretanto, talvez exageradamente impressionados pelos trabalhos de Johnson e Kaplan ou interpretando de forma errônea alguns conceitos por aqueles autores expendidos, fazem afirmações sobre as quais nos reservamos o direito de desfilar algumas considerações adicionais (Alguma perfeitamente correta).

Nós preferimos, ao citar Kaplan, faze-lo utilizando um de seus trabalhos, individuais como o Advence Management Accounting, P. Hall, 1982, no seu capítulo de introdutório, no qual traça uma evolução na Contabilidade Gerencial, fica clara, pela análise das conceituações de Kaplan, nesse e em outros trabalhos, a seguinte problemática sobre o lucro contábil.

O lucro contábil anual não é o único e nem mesmo o melhor indicador do sucesso da empresa no médio e no longo prazo (e mesmo do lucro em longo prazo).

É preciso introduzir, no sistema de mensuração e informação contábil e financeiro, outras variáveis, tais como inovação tecnológica (índices?), qualidade de produtos, satisfação da clientela, treinamento de empregados etc.

Os gerentes modernos têm-se utilizado em demasia de manobras financeiras e de hábil manuseio de princípios contábeis para auferir, para seus conglomerados, grandes lucros financeiros sem, na opinião de Kaplan, adicionar "verdadeiro valor econômico aos empreendimentos" o que seria obtido apenas dando mais ênfase aos fatores qualitativos, acima apontados, do que as manobras contábeis e financeiras.

Com tais conceitos e críticas concordamos perfeitamente, embora não seja muito fácil excogitar formas práticas de introduzir mensuração daqueles conceitos qualitativos no sistema de informação gerencial. Entretanto, o citado artigo de Hopp e Paula Leite vai muito além, tentando invalidar totalmente o próprio conceito de lucro e até o regime de competência, em favor de um prosaico fluxo de caixa. Até concordamos com a utilidade do fluxo de caixa, mas sem desmerecer certos aspectos da competência, e lembrando que, tradicionalmente inclusive, os contadores têm experiência em chegar ao fluxo de caixa a partir do regime de competência, mas não o caminho inverso.

Assim, a crítica ao fato dos contadores alocarem os resultados (que somente poderiam ser conhecidos com exatidão no final da "aventura") em período de tempos menores, um ano, seis meses ou mesmo três meses, é absurda. Quer dizer que, na opinião dos ilustres autores, enormes corporações, com milhares de acionistas reais e/ou potenciais, com centenas de decisões sendo baseadas nos relatórios contábeis, teriam que esperar o encerramento das atividades do conglomerado ou da empresa a fim de ter o "resultado contábil perfeito". É isto que a leitura do artigo deixa entrever, como opinião dos autores, mas não podemos sinceramente, crer que eles realmente possam "Sustentar" isto tomar o pulso do empreendimento, comparar uma situação com outra anterior, previsões com realizações, é uma das "vocações"e das tarefas mais importantes da Contabilidade, diríamos que é um dos hábitos mais arraigados dos que tomam decisões econômicas e renunciar a tal função séria, isto sim, privar a Contabilidade de maior utilidade.

Mais adiante comentam que os contadores, influenciados por conceitos ainda inacabados em nível de Teoria Econômica, passaram a registrar hipóteses (como provisão Para devedores duvidosos) e ficções (como reavaliação de ativos) ,(Grifos são nossos). Em parágrafo anterior, deixam entrever críticas até ao fato dos contadores alocarem depreciações, pois o método de Veneza...."Foi conhecido apenas para o registro de transações reais ocorridas".

Da mesma forma pela qual são reconhecidas receitas de venda efetuadas num determinado período, embora parte delas ainda não recebidas em dinheiro dos clientes, também deve deduzir uma certa porcentagem de devedores duvidosos que sabemos, inclusive por experiência estatística, irá ocorrer (Deixarão, de fato, de pagar). Isto quanto à hipótese quanto à ficção (Como a reavaliação de ativos) perguntamos: Para quem precisa tomar decisões sobre se vale à pena investir no negócio representado e explorado por determinada empresa, o que vai achar mais ficcional, o curso histórico dos ativos, principalmente para os imobilizados tangíveis, ou o valor reavaliado, mesmo que sem alcançarmos o "verdadeiro" custo de reposição ou de mercado? .

A Contabilidade imaginada pelos autores, efetivamente, nem precisaria existir como campo de conhecimento especializado, pois, qualquer pessoa semialfabetizada ( ou microcomputador) poderia exerce-la, tão reduzida a sua especialização ou dificuldade (fluxo de caixa e mera descrição de eventos ou transações ocorridas) em seguida, os autores investem ferozmente contra a "inflation Acconting"e mesmo a correção integral, confundindo os méritos ( ou deméritos) da metodologia em si com a imprecisão de alguns índices utilizados para mensurar as variações da inflação.

As formas de corrigir dados históricos e que variam desde uma mera correção em termos de poder aquisitivo médio ("inflation Accounting", "Price-Level Accounting", Correção integral CVM) até as tentativas de corrigir primeiramente os dados pelas variações específicas de preços e em seguida pelas variações de algum índice geral de preços, constituem alguns dos progressos mais sensíveis conseguidos pela Contabilidade, desde a década de 20, para preservar a relevância das informações contábeis, tendo em vista certos cenários, principalmente os inflacionários. Um verdadeiro "ressurgimento do lucro Contábil". Isto nada tem a ver com manobras que os gerentes possam efetuar para criar demonstrativos de resultados mais "embonecados". Trata-se de avanços nos instrumentos de mensuração da Contabilidade, inclusive esposados por famosos economistas, como Edwards & Bell ("the theory and Measurement of Business Income", Um Califórnia Press, 1.961). De resto, os gerentes tanto podem efetuar manobras com demonstrativos corrigidos como com os históricos.

O Próprio fluxo de caixa é tão "manuseável" ou até mais que os resultados do regime de competência (por exemplo, atrasando pagamentos a fornecedor ou contratando compras a prazos maiores, consegue-se uma sensível melhora no fluxo de caixa, com a armadilha de que isso não se repetirá no ano seguinte. Isso também ocorre com a aceleração, mim certo ano, dos recebimentos de clientes. Veja-se como é às vezes mais fácil enganar no fluxo de caixa, legalmente, do que no regime de competência. Em outros casos fica claro que fugir a conceitos econômicos e contábeis é impossível, mesmo no fluxo de caixa. Por exemplo, como diferenciar pagamentos de gastos com certas reformas, despesa ou investimento? Vários outros exemplos podem ser levantados onde veremos que o fluxo de caixa longe está de ser tão objetivo e isento de julgamentos e manipulações)

Mais adiante, se insurgem contra os critérios de custeamento da produção, os quais teimariam em utilizar mão de obra direta como critério para ratear os custos indiretos de fabricação quando, com a cada vez mais crescente automação, os custos de mão de obra representariam pequena porcentagem do custo total. Em primeiro lugar, os contadores não se utilizam apenas de horas de mão de obra direta para ratear seus custos indiretos (se é que rateio da parte fixa é aconselhável, de todo). Em segundo, a realidade à qual os autores se referem é provavelmente a japonesa ou norte-americana, sendo que no Brasil o custo de mão de obra direta ainda é razoavelmente representativo, dentro do custo total, embora também tenha diminuído sua participação nos últimos anos.

Em seguida os autores se queixam de que..."Tempo precioso é consumido na análise da complexa legislação societária e tributária..."(Será culpa da Contabilidade?). .Alegam que, em quinze anos, tivemos nada mais nada menos que três sistemas totalmente diferentes da correção monetária e que a companhia aberta esta obrigada a uma série de demonstrativos...O que aumentaria o custo do sistema é por isso que o numero de companhias abertas seria pequeno. Com relação a esse tipo de crítica, concordamos de que é por demais complexa a evidenciação contábil das companhias abertas, no Brasil. Seria necessário simplificar e resumir a apresentação, evitando o que se lê hoje, nos principais jornais, ou seja, páginas e mais páginas destinadas aos balanços e demais demonstrações das companhias. Sem dúvida, muito precisa ser feito ainda para simplificar e reduzir custos, mas isto não tira os méritos teóricos e práticos de mecanismos como o da correção integral, a partir da qual, pelo menos, os analistas financeiros podem efetuar seus cálculos de quocientes expressando os números, no numerador e denominador, magnitudes monetárias comparáveis.

Para toda esta problemática os autores do artigo, de forma cândida, afirmam..."A resposta para estes desafios parece estar no demonstrativo no fluxo de caixa. Nunca negamos a importância de tal demonstrativo, mas tentar resolver todos os problemas enfrentados pelo sistema gerencial moderno de informação através de um fluxo de caixa equivaleria a comparar as necessidades de gigantescas empresas às do botequim da esquina....!".

Nas conclusões, os autores reforçam os temas debatidos e afirmam..."A correção monetária das demonstrações financeiras é algo a ser reexaminado pela profissão contábil e pelo mundo acadêmico. Em primeiro lugar, porque ela representa uma resignação em relação ao processo inflacionário! .... "Já que não se pode vencer o inimigo aliêmo-nos a ele"...". Nem comentaremos as outras considerações. Basta avaliar o grosseiro erro cometido pelos autores. Confundiram as tentativas para depurar os efeitos da inflação, nas demonstrações contábeis, para que os usuários possam comparar números efetivamente comparáveis, com a resignação com o processo inflacionário e, pior ainda, com uma aliança !.Para que o artigo fosse sensacional (e talvez sensacionalista) não hesitaram os autores em utilizar frases que podem parecer "de efeito" para o leitor menos informado, mas que representam distorções e simplificações grosseiras que mestres do calibre dos autores nunca poderiam ter cometido. A conclusão é interessante..."Professores e Contadores devem reciclar urgentemente seus conhecimentos e voltar suas atenções para a fábrica, pois é lá que o lucro e o fluxo de caixa são gerados. Antes que ocorra o crepúsculo da própria contabilidade".

Ironicamente, concordamos que o centro da atenção dos contadores deva residir na mensuração do resultado derivante da atividade principal de cada entidade, no caso de empresa industrial, da fábrica. O fluxo de caixa é extremamente importante, pois é dele que nos utilizamos para adquirir bens e serviços na economia. Entretanto, não reciclaremos nossos conhecimentos reduzindo a Contabilidade a um mero fluxo de fundos, embora seja muito interessante esse demonstrativo, nem tentando diminuir, com palavreados e argumentos tão fantasiosos quão fúteis, os progressos que a profissão e o mundo acadêmico alcançaram, principalmente na busca de um modelo que seja um estgimador dos valores de mercado. Edwards & Bell já demonstraram, de forma científica, que o custo corrente corrigido é esse modelo e os atuais modelos de correção integral, "price-level accounting", etc., são etapas preparatórias para se chegar ao modelo mais avançado.

Discordamos completamente da afirmação dos autores de que..."O retorno ao fluxo de caixa e ao principio do custo histórico precisa ser seriamente considerado pela profissão contábil e pelo mundo acadêmico...". Principalmente o retorno ao custo histórico, em cenários como o Brasileiro, esse sim seria, não o crepúsculo, mas a própria falência da Contabilidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2011
  • Data do Fascículo
    Out 1989
Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras Av. Prof. Luciano Gualberto, 908 - prédio 3, 05508 - 900 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (55 11) 3091-5820 (ramal 115), Fax: (55 11) 3813-0120 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ReCont@usp.br