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O preventivismo e os homossexuais no contexto da ditadura militar brasileira: uma análise a partir das contribuições de Sérgio Arouca

Preventivism and homosexuals in the context of the Brazilian military dictatorship: An analysis based on Sérgio Arouca’s contributions

El preventivismo y los homosexuales en el contexto de la dictadura militar brasileña: un análisis a partir de las contribuciones de Sérgio Arouca

Resumos

No Brasil, a reforma da escola médica ancorada na medicina preventiva difundiu-se, em grande medida, durante a ditadura militar (1964-1985). O projeto preventivista é investigado aqui para além de uma reorganização curricular, estando imbuído de um papel social e político evidenciado, especificamente, pelo modo como caracterizou os homossexuais na ditadura militar. Foram analisadas publicações do “Jornal do Brasil” sobre congressos científicos que tematizaram o preventivismo no combate aos comportamentos desviantes na juventude, com destaque ao homossexualismo. A tese de Sérgio Arouca estruturou as principais discussões presentes e embasou a análise das publicações coletadas. Como resultado, os homossexuais, tidos como degenerados desde o século XIX, foram descritos como ameaças patológicas à família, à moral e à segurança nacional, sendo necessária a sua profilaxia a partir de recomendações médico-preventivas no ambiente escolar e familiar e da repressão política direta do Estado.

Medicina preventiva; Psiquiatria preventiva; Minorias sexuais


In Brazil, the medical school reform grounded on preventive medicine was disseminated, to a large extent, during the military dictatorship (1964-1985). The preventivist project is investigated here beyond a curricular reorganization, as it had a social and political role. This role was clearly visible, specifically, in the way in which it characterized homosexuals in the military dictatorship. We analyzed publications of the newspaper “Jornal do Brasil” about scientific conferences that focused on preventivism in the fight against youth’s deviant behaviors, emphasizing homosexuality. Sérgio Arouca’s doctoral dissertation structured the main discussions and grounded the analysis of the collected publications. As a result, homosexuals, seen as degenerate since the 19th century, were described as pathological threats to the family, morals and national security; thus, prophylaxis was necessary through medical-preventive recommendations in the school and family environments and through the State’s direct political repression.

Preventive medicine; Preventive psychiatry.; Sexual minorities


En Brasil, la reforma de la escuela médica anclada en la medicina preventiva se difundió, en gran medida, durante la dictadura militar (1964-1985). El proyecto preventivista se investiga aquí más allá de una reorganización curricular, incorporando un papel social y político. Este evidenciado, específicamente, por el modo en que caracterizó a los homosexuales en la dictadura militar. Se analizaron publicaciones del “Jornal do Brasil” sobre congresos científicos que tuvieron como tema el preventivismo en el combate a los comportamientos desviantes en la juventud con destaque para la homosexualidad. La tesis de Sérgio Arouca estructuró las principales discusiones presentes y sirvió de base al análisis de las publicaciones colectadas. Como resultado, los homosexuales, considerados como degenerados desde el siglo XIX se describieron como amenazas patológicas a la familia, a la moral y a la seguridad nacional, siendo necesaria su profilaxis por medio de recomendaciones médico-preventivas en el ambiente escolar y familiar y de la represión política directa del Estado.

Medicina preventiva; Psiquiatría preventiva; Minorías sexuales


Introdução

Em seu doutorado, Sérgio Arouca11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003. realizou uma análise crítica do movimento proferido pela medicina preventiva na América Latina, que se desenvolveu, a partir de 1950, enquanto um projeto transformador da prática médica vigente, pautada, até então, pelos postulados da medicina curativa.

A clássica obra de Arouca constituiu-se em uma teoria social da medicina ao apresentar o preventivismo como uma prática social dotada de historicidade própria e articulada com instâncias da sociedade latino-americana e com o modo de produção capitalista aqui desenvolvido11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003.,22. Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde: origens e desenvolvimento. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2007.. O cerne da tese esteve em analisar o dilema preventivista: ao apresentar-se enquanto um projeto promissor de mudança da prática médica, o preventivismo não realizou modificações concretas nas relações sociais e, consequentemente, teve um impacto restrito sobre as condições de saúde da população latino-americana22. Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde: origens e desenvolvimento. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2007..

Resgatamos as contribuições do autor para desenvolver o argumento de que a consolidação do movimento preventivista no Brasil durante o período ditatorial (1964-1985) correspondeu não só a uma reorganização do conhecimento e da prática médica, mas também informou representações e ações mais amplas sobre a sociedade brasileira. Dessas, serão aqui analisados o papel social e político do preventivismo na caracterização dos homossexuais como sujeitos cujos comportamentos ameaçavam a ordem social vigente e que, portanto, deveriam ser objeto de recomendações médico-preventivas33. Green JN, Quinalha R. Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EdUFSCAR; 2014..

Para além da obra de Arouca, o artigo toma como base matérias jornalísticas publicadas no “Jornal do Brasil”, no início da década de 1970, tido como um dos principais periódicos de circulação nacional durante a ditadura militar44. Luz MT. As instituições médicas do Brasil. 2a ed. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2013.. A consulta foi feita no acervo on-line na Biblioteca Nacional Digital do Brasil e foram encontradas 15 publicações sobre a medicina preventiva e sua interface com a psiquiatria. Destas, cinco foram analisadas, por retratarem congressos científicos da área que tematizaram o preventivismo como estratégia política para evitar o desenvolvimento de doenças mentais e de comportamentos considerados desviantes nos jovens brasileiros, aqui com destaque ao homossexualismo.

Optamos pelos termos “doença mental” e “homossexualismo”, em vez de “sofrimento mental” e “homossexualidade”, hoje em voga, para manter as terminologias utilizadas na época, na intenção de atermo-nos ao período histórico estudado.

A escolha do jornal foi baseada em Luz44. Luz MT. As instituições médicas do Brasil. 2a ed. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2013., que aponta o “Jornal do Brasil” como um periódico destinado a um público leitor das camadas sociais mais altas, tendo, no período ditatorial, uma forte influência política e social ao se configurar em um “jornal burguês destinado a um público burguês”44. Luz MT. As instituições médicas do Brasil. 2a ed. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2013. (p. 252), no qual escreviam membros das classes dominantes, artistas, intelectuais e estudantes universitários. A autora é enfática quanto ao conteúdo das publicações: ao mesmo tempo que denunciavam a pobreza, a miséria, o sofrimento humano e a injustiça, faziam-no por meio de um discurso crítico-moralista, representando-as como “situações estéticas”44. Luz MT. As instituições médicas do Brasil. 2a ed. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2013. (p. 257), que estariam distantes da realidade do seu leitor, sendo possíveis apenas em “outros povos e em outras culturas”44. Luz MT. As instituições médicas do Brasil. 2a ed. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2013. (p. 257).

Consideradas essas premissas, organizamos o artigo em três sessões. Na primeira, discutimos o movimento higienista como uma das origens da medicina preventiva, evidenciando as formas com que a questão homossexual aparece no saber e na prática médica brasileira no contexto do século XX. Na segunda, caracterizamos a medicina preventiva enquanto movimento de reforma da escola médica, resgatando as considerações de Arouca sobre os conceitos básicos e estratégicos que estruturam esse marco conceitual. Na terceira e última, discutimos os impactos do preventivismo na sua relação com a psiquiatria e com o homossexualismo no período da ditadura militar, com base em matérias jornalísticas publicadas no “Jornal do Brasil”.

Higiene e homossexualismo: relações entre o normal e o patológico

Dentre as origens da medicina preventiva, Arouca11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003. destaca o movimento higienista que, até a primeira metade do século XX, concebeu a medicina de ação preventiva como uma disciplina, parte ou setor da higiene.

Embora o conceito de higiene seja heterogêneo, variando tanto teórica quanto política e socialmente, é possível encontrar certa homogeneidade na sua definição a partir do século XIX, quando se instaura no contexto dos países europeus como uma política de Estado55. Góis Junior E. Movimento higienista e o processo civilizador: apontamentos metodológicos. In: Anais do 10o Simpósio Internacional Processo Civilizador; 2007; Campinas. Campinas; 2007.. Nessa perspectiva, a ideia subjacente à higiene era a de estabelecer normas e hábitos para conservar e aprimorar a saúde individual e coletiva, entendendo a desorganização social como fruto dos processos de adoecimento. Caberia às ações higiênicas atuar sobre os componentes naturais, urbanísticos e institucionais da sociedade, com a disciplina dos corpos e dos comportamentos55. Góis Junior E. Movimento higienista e o processo civilizador: apontamentos metodológicos. In: Anais do 10o Simpósio Internacional Processo Civilizador; 2007; Campinas. Campinas; 2007.,66. Mansanera AR, Silva LC. A influência das ideias higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil. Psicol Estud. 2000; 5(1):115-37..

No caso brasileiro, as raízes da higiene estão associadas ao primeiro período republicano (1889-1930), com destaque às décadas de ١٩١٠ e ١٩٢٠, quando se desenvolveu uma consciência pública sobre as condições sanitárias do país. Segundo Lima e Hochman77. Lima NT, Hochman G. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país. Cienc Saude Colet. 2000;5(2):313-32., as teses dos médicos higienistas ultrapassaram as discussões sobre a saúde e constituíram-se em uma análise mais ampla sobre os dilemas do país e os rumos para a modernização brasileira, de forma que as doenças, dotadas de uma dimensão cultural e política, foram apontadas como obstáculo a ser superado em direção ao progresso e à civilização.

Em um cenário em que prosperava a ideia da “salvação nacional”77. Lima NT, Hochman G. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país. Cienc Saude Colet. 2000;5(2):313-32. (p. 315), o movimento higienista alinhava-se às tendências gerais das correntes nacionalistas, instituindo-se enquanto elemento fundamental para a conformação do Estado moderno brasileiro. O diagnóstico de um povo doente representava um impedimento à consolidação da nação, cabendo recuperar a saúde do povo por meio de ações de higiene e saneamento77. Lima NT, Hochman G. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país. Cienc Saude Colet. 2000;5(2):313-32..

Lima e Hochman77. Lima NT, Hochman G. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país. Cienc Saude Colet. 2000;5(2):313-32. destacam que é difícil falar do movimento higienista brasileiro sem se remeter à eugenia, cujos preceitos fundamentavam grandes aspirações sanitárias do Estado: a robustez do indivíduo e a virtude da raça66. Mansanera AR, Silva LC. A influência das ideias higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil. Psicol Estud. 2000; 5(1):115-37.,77. Lima NT, Hochman G. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país. Cienc Saude Colet. 2000;5(2):313-32.. A relação entre higiene e eugenia esteve pautada na construção de um ideário de nação, na qual os preceitos eugênicos apontavam para a utilização da ciência no aprimoramento físico, mental e racial das futuras gerações brasileiras. É nesse cruzamento entre higiene, eugenismo e identidade nacional que os homossexuais se tornaram objeto de investigação cientifica66. Mansanera AR, Silva LC. A influência das ideias higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil. Psicol Estud. 2000; 5(1):115-37.,77. Lima NT, Hochman G. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país. Cienc Saude Colet. 2000;5(2):313-32..

Os preceitos higienistas e eugênicos reafirmaram os papéis sexuais de homens e mulheres, buscando aprimorar os padrões reprodutivos como garantia de prover melhores gerações à pátria88. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.. Nesse contexto, os homossexuais assumiram a posição social de doentes, tidos como sujeitos sexualmente invertidos que colocavam em risco a organização social e o progresso da civilização88. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.. Isso porque eram caracterizados pela incapacidade de gerar a prole, otimizar a reprodução física da raça e maximizar o patriotismo brasileiro da sociedade88. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000..

Assim, no fim do século XIX e início do século XX, a higiene enquadra o homossexualismo na legitimação da ciência, constituindo a figura clínica dos homossexuais88. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.,99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.. A psiquiatria, tutelada pela jurisprudência e pela medicina legal, enquadrou o homossexualismo no universo das psicopatologias, considerando-o uma prática social que negava a vocação natural da reprodução88. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.,99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.. Era necessário estudá-lo enquanto manifestação patológica, bem como preveni-lo e propor sua cura, vinculado ao objetivo maior de promover uma nação saudável e vigorosa66. Mansanera AR, Silva LC. A influência das ideias higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil. Psicol Estud. 2000; 5(1):115-37.

7. Lima NT, Hochman G. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país. Cienc Saude Colet. 2000;5(2):313-32.

8. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.
-99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018..

Nas três primeiras décadas do século XX, emergiu uma combinação entre medicina, psiquiatria e criminologia, que analisou as origens, expressões e possíveis tratamentos para a conduta homoerótica88. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.,99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.. Uma das maiores influências brasileiras sobre as teorias da inversão sexual foi Leonídio Ribeiro (1893-1976), médico legista e professor de Criminologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que publicou, em 1935, a obra celebre “Homossexualismo e endocrinologia”.

Com a Revolução de 1930, Ribeiro assumiu a diretoria do Gabinete de Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal, no qual criou o Laboratório de Antropologia Criminal. Nele, desenvolveu uma série de pesquisas médicas sobre os biótipos de negros criminosos e de homens homossexuais, consagrando-se por seus estudos que analisavam o homossexualismo por meio de alterações físicas do corpo, principalmente por disfunções das glândulas hormonais. Tais análises renderam-lhe o reconhecimento internacional com o Prêmio Lombroso, oferecido pela Real Academia de Medicina da Itália, em 193388. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.

9. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.
-1010. Bezerra G, Ribeiro J. O discurso médico “homossexualismo e endocrinologia” representações de “sujeito anormal” de Leonídio Ribeiro. Rev Bras Iniciac Cient. 2020; 7(2):128-47..

Como tal premiação indica, houve nas pesquisas de Ribeiro uma influência clara do positivismo criminológico desenvolvido por Cesare Lombroso (1835-1909), antropólogo e médico psiquiatra italiano do fim do século XIX. Suas teorias, fundantes para o campo da Antropologia Criminal, debruçaram-se sobre o “delinquente nato”, que compreendia o sujeito criminoso como um indivíduo inferior aos demais na escala evolutiva, devido às suas características anatômicas e psicológicas. Nessa abordagem, as características biotipológicas fomentariam diagnósticos sobre personalidades, temperamentos e aspectos constitucionais do indivíduo, informando seus possíveis graus de periculosidade. As características físicas denunciariam as inclinações dos sujeitos às práticas subversivas do delito, perturbando o organismo social1010. Bezerra G, Ribeiro J. O discurso médico “homossexualismo e endocrinologia” representações de “sujeito anormal” de Leonídio Ribeiro. Rev Bras Iniciac Cient. 2020; 7(2):128-47..

As influências de Lombroso foram decisivas na formação do pensamento jurídico e médico sobre o povo brasileiro no fim do século XIX e início do século XX, embasando análises de importantes autores brasileiros, como Afrânio Peixoto (1876-1947), Oscar Freire (1882-1923), Arthur Ramos (1903-1949) e, com grande destaque, Nina Rodrigues (1862-1906)1010. Bezerra G, Ribeiro J. O discurso médico “homossexualismo e endocrinologia” representações de “sujeito anormal” de Leonídio Ribeiro. Rev Bras Iniciac Cient. 2020; 7(2):128-47..

No caso de Leonídio Ribeiro, a influência da escola lombrosiana ganha notoriedade em seu estudo de 1932, em que, ancorado nos preceitos da antropologia criminal, analisou a constituição morfológica de 195 homossexuais detidos pela polícia em casas de prostituição no Rio de Janeiro. Ribeiro acreditava que o homossexual teria uma morfologia diferenciada, tais como pelos pubianos, bacia e cintura predominantemente femininos, além de um desenvolvimento excessivo das nádegas e ausência de pelos no tórax99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.

10. Bezerra G, Ribeiro J. O discurso médico “homossexualismo e endocrinologia” representações de “sujeito anormal” de Leonídio Ribeiro. Rev Bras Iniciac Cient. 2020; 7(2):128-47.
-1111. Ribeiro L. Homossexualismo e endocrinologia. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2010; 13(3):498-511.. Essa tipologia seria resultado de um mal funcionamento endocrinológico do corpo, caracterizando o homossexualismo como “mais um problema social a ser resolvido pela medicina”1111. Ribeiro L. Homossexualismo e endocrinologia. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2010; 13(3):498-511. (p. 507).

Assim, nos estudos de Ribeiro, o homossexual básico seria um homem cuja química hormonal ditaria seus desejos sexuais. Os fatores externos poderiam fortalecer ou atenuar suas tendências homossexuais, mas o organismo desarranjado era a causa última de sua degeneração e inversão sexual. O homossexual não seria, a princípio, um criminoso ou um delinquente em si, mas sim um doente, que deveria ser objeto de intervenções médicas. Entretanto, seria no terreno da vida homoerótica que a delinquência surgiria, dado que a inadaptação ao meio social era muito mais forte em homossexuais, haja vista suas perturbações fisiológicas e psicológicas99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.,1010. Bezerra G, Ribeiro J. O discurso médico “homossexualismo e endocrinologia” representações de “sujeito anormal” de Leonídio Ribeiro. Rev Bras Iniciac Cient. 2020; 7(2):128-47..

Por mais que houvesse inúmeras dissidências quanto às teorias de Ribeiro, o avanço dos estudos endocrinológicos sobre as inversões sexuais baseou diversos tratamentos para o homossexualismo no início do século XX. Uma vez constatada a doença, devia-se recorrer a uma correção do mau funcionamento das glândulas hormonais, que deveria ser feito logo após a puberdade, antes que a perversão estivesse estabelecida e fosse pouco curável99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.

10. Bezerra G, Ribeiro J. O discurso médico “homossexualismo e endocrinologia” representações de “sujeito anormal” de Leonídio Ribeiro. Rev Bras Iniciac Cient. 2020; 7(2):128-47.
-1111. Ribeiro L. Homossexualismo e endocrinologia. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2010; 13(3):498-511.. Para os casos mais complexos, foram desenvolvidos métodos de intervenção cirúrgica. Desde 1910, constatou-se que era possível, em laboratório, masculinizar fêmeas e feminilizar machos, com transplantes ovarianos ou testiculares99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.

10. Bezerra G, Ribeiro J. O discurso médico “homossexualismo e endocrinologia” representações de “sujeito anormal” de Leonídio Ribeiro. Rev Bras Iniciac Cient. 2020; 7(2):128-47.
-1111. Ribeiro L. Homossexualismo e endocrinologia. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2010; 13(3):498-511.. Julgava-se, portanto, que com esse tipo de manipulação hormonal poderia reforçar a natureza contra o homossexualismo, o que, para Leonídio Ribeiro, representava “o verdadeiro caminho para o tratamento científico dos casos de inversão sexual do homem”1111. Ribeiro L. Homossexualismo e endocrinologia. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2010; 13(3):498-511. (p. 508).

Somado a isso, em um contexto em que efervescia o nazifascismo na Europa, atrelado ao clima de autoritarismo do Estado Novo brasileiro, houve inúmeras tentativas de endurecimento legal contra os homossexuais vinculado à prática médica-psiquiatra, sendo uma delas constatada na Primeira Semana Paulista de Medicina Legal, em 193799. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.. Naquele momento, propugnava-se uma ampla reformulação do Código Penal brasileiro, na qual uma gama de juristas e médicos, durante o evento, sugeriram que fosse criado dispositivos legais que punissem toda a prática de homossexualismo. Embora essas medidas não tenham se concretizado no Código Penal de 1940, a atuação de juristas, baseada na autoridade dos laudos psiquiátricos, encontrou, como tratamento, a reclusão dos homossexuais nos manicômios judiciários e outras instituições psiquiátricas existentes99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018..

O desenvolvimento da higiene mental, ao mesmo tempo em que reafirmou o manicômio como enclausuramento disciplinar aos homossexuais, valorizou as ações preventivas que se expandiram, entre outras formas, por meio de práticas educativas no ambiente escolar que reiteravam as condutas morais da sociedade66. Mansanera AR, Silva LC. A influência das ideias higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil. Psicol Estud. 2000; 5(1):115-37.,99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.. Os processos pedagógicos assumiriam, assim, o propósito de formar cidadãos sadios para o país e teriam maior foco higiênico na fase pré-escolar, momento em que o aluno estaria formando sua personalidade e qualquer desvio o tornaria um adulto inabilitado socialmente66. Mansanera AR, Silva LC. A influência das ideias higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil. Psicol Estud. 2000; 5(1):115-37.,99. Trevisan JS. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2018..

Dessa forma, a higiene alocou o seu discurso tanto no indivíduo homossexual e em seus caracteres psíquicos e biológicos quanto no conjunto das suas atividades e comportamentos, que colocavam em risco a ordem social e o progresso da civilização brasileira11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003..

Formado por uma totalidade interdisciplinar, o movimento higienista criou o que Arouca11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003. definiu como uma alusão-ilusão às condições reais de existência. Alusão, na medida em que fez referência à conduta higiênica como necessária e estruturante para todas as esferas da vida; e essencial para superar a doença e os males sociais para o progresso brasileiro. Ilusão, na medida em que propôs solucionar os problemas sociais abstraindo as suas causas e apresentando alternativas de mudanças que se realizariam dentro da mesma estrutura social subjacente a esses problemas.

Segundo Arouca11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003., a divisão técnica e social do trabalho e a compartimentalização do conhecimento em saberes científicos específicos fizeram com que a higiene, ao longo do século XX, fosse dissolvida em suas partes, sendo absorvida na multiplicidade de suas disciplinas. Em uma sociedade dividida em classes e com o conhecimento monopolizado no interior das profissões, o movimento higienista foi substituído no ensino e na prática médica brasileira, a partir de 1950, pela medicina preventiva.

A medicina preventiva como uma nova atitude médica: breve síntese

A estratégia fundamental da medicina preventiva, enquanto projeto de reforma da escola médica, foi a criação de uma nova atitude a ser desenvolvida no processo de formação acadêmica, tendo por base os alcances e as possibilidades da prevenção. Essa atitude preventiva mudaria o panorama da assistência médica, até então ancorada na medicina curativa e previdenciária, pois proporcionaria ao futuro profissional as noções, as normativas e as técnicas necessárias para proteger e fomentar a saúde dos indivíduos e comunidades, assumindo que tais recomendações fossem incorporadas ao cotidiano da vida11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003..

No Brasil, a implantação dos Departamentos de Medicina Preventiva data de 1950, sendo pioneiros na Escola Paulista de Medicina e na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto1212. Escorel S. História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990: do golpe militar à reforma sanitária. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 385-434.. Entretanto, é no governo ditatorial de Arthur da Costa e Silva (1964-1969) que a Reforma Universitária de 1968, influenciada pela atuação de consultores norte-americanos na política educacional brasileira, incorpora a medicina preventiva no currículo mínimo e torna obrigatória a existência desses departamentos nas escolas médicas1212. Escorel S. História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990: do golpe militar à reforma sanitária. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 385-434..

Como novo campo de conhecimento, a medicina preventiva se estrutura a partir do conceito ecológico de saúde e doença, formulado por Leavell e Clarck1313. Leavel H, Clarck EG. Preventive medicine for the doctor in his community. 3a ed. New York: McGraw-Hill; 1965.por meio do paradigma da História Natural das Doenças11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003.,22. Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde: origens e desenvolvimento. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2007.,1313. Leavel H, Clarck EG. Preventive medicine for the doctor in his community. 3a ed. New York: McGraw-Hill; 1965.. Nele, o processo saúde-doença é caracterizado pela interação estabelecida entre os agentes patogênicos, o hospedeiro e o ambiente, de modo que o indivíduo se mantém saudável quando há equilíbrio nessa relação e doente quando há um desequilíbrio entre esses três elementos.

De acordo com esse modelo, o desenvolvimento da doença ocorre em dois períodos subsequentes: o período pré-patogênico, no qual se dão as pré-condições para o adoecimento, e o período patogênico, momento em que a doença se instaura e ocorrem modificações no organismo vivo11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003.,22. Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde: origens e desenvolvimento. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2007.,1313. Leavel H, Clarck EG. Preventive medicine for the doctor in his community. 3a ed. New York: McGraw-Hill; 1965.. Baseada no conceito ecológico, a medicina preventiva concebe o processo saúde-doença de forma paradoxal: ao mesmo tempo que apresenta os agentes patogênicos como externos ao indivíduo, compreende a interação entre eles como um equilíbrio de forças que segue uma história natural e não social11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003..

Essa abordagem conceitual é, segundo Arouca, duplamente otimista, pois possibilita ao profissional médico, por meio da nova atitude preventivista, evitar o desenvolvimento da doença e eliminar o agente patogênico, reestabelecendo o equilíbrio de forças que envolvem o indivíduo.

Ainda ancorada no conceito ecológico, a medicina preventiva reorganiza o conhecimento sobre a doença em duas dimensões de causalidade: o critério epidemiológico, que estabelece os fatores associados estatisticamente ao desenvolvimento das doenças no espaço social, e o critério fisiopatológico, que estabelece a evolução destas no organismo11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003.. O primeiro assume como causa a associação estatística entre determinadas variáveis relacionadas ao adoecer, discriminando entre aqueles fatores associados e os não associados estatisticamente, de forma que aqueles associados passam a compor uma rede de causalidade que orienta as práticas de prevenção. Entretanto, Arouca11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003. ressalta que os modelos de causalidade epidemiológicos distribuem os fatores associados ao adoecimento em um espaço plano de identidades e essências, igualando as características sociais, políticas e econômicas com as químicas, físicas e biológicas. Como consequência, as redes de causalidade são compreendidas em uma monótona linearidade, por meio da homogeneização das categorias explicativas.

O que se observa é uma mitificação do social11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003. no modelo preventivista da História Natural das Doenças, uma vez que se despolitizam e neutralizam os significados reais das características que estruturam e organizam o social, ao não explicar os mecanismos pelos quais o processo saúde-doença é produzido e ao não colocá-los em um contexto histórico de determinações. Ao tornar as categorias sociais um mito, o que desaparece é a “articulação histórica da medicina com a sociedade da qual emergem os diferentes saberes, as taxonomias, as legitimações e as geometrizações desse espaço contraditório da saúde e da doença”11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003. (p. 174).

O conceito ecológico de saúde-doença, alinhado à rede de causalidades, constitui o modelo de adoecimento preventivista e é tido por Arouca11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003. como um conceito básico e estruturante da medicina preventiva. Em decorrência, o movimento preventivista é instituído como uma prática social pro meio de três conceitos estratégicos: integração, inculcação e mudança.

Dado que o objetivo do preventivismo é o da criação de uma nova atitude incorporada à prática médica, ele não deve ser exclusivo de uma especialidade única. É a integração da medicina preventiva com a totalidade da escola médica que a torna uma proposta de trabalho que só existe em conjunto com as outras áreas da medicina. Trata-se da construção de uma consciência difusa a todas as disciplinas do ensino médico que, por meio do consenso quanto ao saber preventivista, promove a transformação da própria escola médica11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003..

A inculcação representa o processo pelo qual as atitudes preventivistas são impregnadas nos futuros profissionais médicos, projetando a medicina preventiva como uma prática para além do ambiente acadêmico. A inculcação se realiza por meio do contato entre a clínica e a sociedade, pois permite o encontro do profissional com uma realidade que lhe é externa, possibilitando ao futuro médico o contato com os seus pacientes em seu ambiente familiar e com uma série de fatores do meio que interferem no seu estado de saúde11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003..

Como consequência, os médicos se transformariam em agentes da mudança daquela realidade, operando uma leitura e intervenção clínica do espaço social. O social passa a ser submetido às regras de percepção e de normatividade médica: “como um exame clínico leva a um diagnóstico e a uma terapêutica, a leitura do espaço social deveria levar a um conhecimento e a uma ação”11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003. (p. 190).

O discurso preventivista visa, assim, a uma mudança social por meio da prática médica, pressupondo os indivíduos enquanto sujeitos independentes e livres que, ao incorporarem as atitudes provenientes do cuidado médico, melhorariam as suas condições de vida, bem como a das suas coletividades, em uma neutralização das relações e da estrutura social. A medicina preventiva pretende, dessa forma, melhorar as condições de vida das populações, mantendo a estrutura social na qual estão inseridas. É nesse sentido que, para Arouca11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003., o movimento preventivista apresenta uma baixa densidade política, ao não realizar mudanças nas relações sociais, e uma alta densidade ideológica, que se expressa apenas na materialidade do discurso. Ao propor-se como um movimento de mudança, a medicina preventiva, contrariamente, apresenta-se como um sistema de conservação das estruturas sociais e da prática médica vigente11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003..

A nova atitude psiquiátrica: o discurso preventivista na psiquiatria

Caplan1414. Caplan G. Princípios da psiquiatria preventiva. Rio de Janeiro: ZAHAR; 1980. define a psiquiatria preventiva como o corpo de conhecimentos teóricos e práticos utilizados para planejar e executar ações destinadas a prevenir a incidência de doenças mentais em uma dada comunidade, bem como reduzir a duração daquelas que efetivamente ocorrem e as consequências que o adoecimento mental pode resultar sobre o indivíduo, a família e a comunidade. A incorporação do discurso preventivista na psiquiatria a partir da década de 1960 permite analisar, para além da doença em si, o processo de adoecimento mental, compreendendo as possíveis condições para o seu desenvolvimento e, então, propor intervenções sobre elas1414. Caplan G. Princípios da psiquiatria preventiva. Rio de Janeiro: ZAHAR; 1980.,1515. Birman J, Costa JF. Organização de instituições para uma psiquiatria comunitária. In: Amarante PDC, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994..

A psiquiatria preventiva incorpora o conceito ecológico do processo saúde-doença, de forma que, por meio do modelo da história natural das doenças, o desenvolvimento das doenças mentais passa a ser compreendido em dois momentos distintos e consecutivos: o período pré-patogênico e o patogênico11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003.,1515. Birman J, Costa JF. Organização de instituições para uma psiquiatria comunitária. In: Amarante PDC, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994.. Com base em Arouca, pode-se dizer que o discurso psiquiátrico passa, assim, a ter um caráter duplamente otimista: ao mesmo tempo que possibilita o diagnóstico e o tratamento da doença mental, é também capaz de intervir no tecido social, evitando o aparecimento da doença. A grande novidade proferida pela psiquiatria preventiva está na necessidade de prevenir o adoecimento, traçando como objetivo “promover a saúde mental entre os membros da comunidade que não sofram de quaisquer distúrbios, na esperança de reduzir o risco de que eles venham a ser amanhã mentalmente perturbados”1414. Caplan G. Princípios da psiquiatria preventiva. Rio de Janeiro: ZAHAR; 1980.(p. 31).

Birman e Costa1515. Birman J, Costa JF. Organização de instituições para uma psiquiatria comunitária. In: Amarante PDC, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. destacam que, ao adentrar a psiquiatria, o discurso preventivista deveria se sustentar em um sistema de causalidades consistente para que as ações preventivas se constituíssem em um obstáculo real que impedisse os estímulos patogênicos de desenvolverem a doença. Entretanto, para a maioria das doenças mentais, não há um diagnóstico etiológico específico e, portanto, não há um fator de causalidade que sustente as práticas de prevenção primária proferidas pela psiquiatria preventiva. Disso decorre que, ao dirigir-se ao espaço social, na tentativa de prevenir o aparecimento das doenças mentais, a psiquiatria preventiva acaba por promover, de forma abusiva, uma psiquiatrização da vida social baseada no discurso de promoção da saúde mental1515. Birman J, Costa JF. Organização de instituições para uma psiquiatria comunitária. In: Amarante PDC, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994..

É por este motivo que Luz1616. Luz MT. A história de uma marginalização: a política oficial de saúde mental – ontem, hoje, alternativas e possibilidades. In: Amarante PDC, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. considera o papel educativo e normatizador do discurso preventivista tão vinculado ao Estado quanto a prática psiquiátrica asilar. Para ela, se o exercício assistencial da psiquiatria encontrava no espaço asilar a sua atuação predominante, o discurso preventivista apresenta a potencialidade de organizar o espaço psíquico da sociedade tendo um papel muito mais estratégico de dominação do que a repressão excludente do hospital. Dessa forma, o preventivismo na psiquiatria desloca o controle psíquico e social das instituições asilares para a totalidade da vida social, de forma que cada comportamento e conduta individual ou coletiva estariam inseridos em uma história natural e, assim, poderiam ser organizados de acordo com os saberes psiquiátricos.

No caso brasileiro, a assistência médica psiquiátrica esteve centrada, desde os seus primórdios no século XIX, em hospitais com características asilares. Esse modelo atravessou o século XX, de modo que, durante o período ditatorial brasileiro (1964-1985), a sua expansão se deu por meio de uma rede hospitalar psiquiátrica privada1717. Amarante P. Loucos pela vida: trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998.. Isso ocorreu como resultado da organização da assistência médica naquele período, reorientada em torno da prática médica curativo-individual e que estimulou a mercantilização e o empresariamento da medicina por meio da alocação dos recursos previdenciários para a compra de serviços de saúde de prestadores privados1717. Amarante P. Loucos pela vida: trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998..

Amarante1717. Amarante P. Loucos pela vida: trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. afirma que, com a expansão da prática médico-psiquiátrica privada, a Associação Brasileira de Psiquiatria, em relatório datado de 1971, apontava uma mudança necessária na atuação dos psiquiatras e de outros profissionais/trabalhadores da saúde mental, que deveria estar orientada para uma ação global preventiva, vinculada à comunidade. Em 1973, foi aprovado, pela Previdência Social, o Manual de Assistência Psiquiátrica, de referencial preventivo-comunitário, que teve como objetivo reorientar a assistência psiquiátrica do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), dando maior ênfase à assistência extra-hospitalar, à readaptação do doente mental e à atuação das equipes multidisciplinares. Entretanto, a prática assistencial da psiquiatria preventiva ocupou um lugar marginal no cenário brasileiro em função da forte oposição e força política exercida pelo setor privado, que priorizava o modelo asilar1717. Amarante P. Loucos pela vida: trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998..

Se a psiquiatria preventiva não encontrou na prática assistencial o seu pleno desenvolvimento, foi em outras práticas e em outros espaços institucionais que ela floresceu. A psicologia, a partir dos anos de 1950, e a psicanálise, a partir de 1960, consistiram em saberes e práticas alternativas fundamentais para o desenvolvimento do discurso preventivista no Brasil1616. Luz MT. A história de uma marginalização: a política oficial de saúde mental – ontem, hoje, alternativas e possibilidades. In: Amarante PDC, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994.. Além da sua incorporação em outras áreas, Caplan1414. Caplan G. Princípios da psiquiatria preventiva. Rio de Janeiro: ZAHAR; 1980. destaca o papel educativo proferido pela psiquiatria preventiva por meio do desenvolvimento de condutas educativas para reconhecer sinais precoces de crises e evitar comportamentos nocivos que pudessem resultar em adoecimento mental. Essa atitude educativa da psiquiatria preventiva encontrou nos meios de comunicação de massa uma das suas principais formas de expansão e divulgação, penetrando, assim, nas relações interpessoais e expandindo o conjunto de sujeitos potencialmente capazes de prevenir o adoecimento mental.

No que se refere ao modo como o discurso preventivista atingiu os homossexuais durante o período ditatorial, a Comissão Nacional da Verdade1818. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Ditadura e homossexualidades [Internet]. Brasília: CNV; 2014 [citado 5 Fev 2020]. v. 2. (textos temáticos 7). Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%207.pdf
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destaca que nos últimos anos da década de 1960 os homossexuais apareceram em publicações militares como maquinação do inimigo comunista, que colocariam em risco a segurança nacional. A Escola Superior de Guerra (ESG), em seu processo de formação de civis e militares para a defesa nacional e desenvolvimento do país, incorporou de forma marcante a caracterização do homossexualismo como prática subversiva ao regime militar33. Green JN, Quinalha R. Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EdUFSCAR; 2014.,1818. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Ditadura e homossexualidades [Internet]. Brasília: CNV; 2014 [citado 5 Fev 2020]. v. 2. (textos temáticos 7). Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%207.pdf
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No início da década de 1970, estudantes e conferencistas da ESG analisaram o homossexualismo como uma ameaça patológica à segurança nacional, o que requeria ações preventivas urgentes, uma vez que colocava em declínio o estado moral da nação33. Green JN, Quinalha R. Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EdUFSCAR; 2014.,88. Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.,1818. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Ditadura e homossexualidades [Internet]. Brasília: CNV; 2014 [citado 5 Fev 2020]. v. 2. (textos temáticos 7). Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%207.pdf
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/imag...
. Esse conhecimento propugnado pela ESG conformou a linha política das agências de repressão, como o Sistema Nacional de Informação (SNI), as Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) e o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), e foram responsáveis pelas divisões de censura às televisões, à produção cultural teatral e cinematográfica e à imprensa. Os agentes de informação e segurança viam com extrema preocupação qualquer exposição da juventude ao homossexualismo, principalmente, por ser considerada o futuro do país.

É nesse contexto que o homossexualismo apareceu nas publicações do “Jornal do Brasil”, no início dos anos de 1970, como uma das principais formas de degenerações sexuais, que seriam passíveis de prevenção por meio da adoção de normas preventivas no interior da família e do ambiente escolar. A juventude é retratada como o principal alvo do discurso da psiquiatria preventiva, como pode ser verificado em matéria publicada em 20 de abril de 1972 intitulada “Psiquiatras afirmam que o homossexualismo é doença”1919. Psiquiatras afirmam que homossexualismo é doença. Jornal do Brasil. 20 Abr 1972. 1º caderno, p. 15..

Na matéria, há alusão aos discursos dos médicos psiquiatras Jurandir Manfredini e Faro Samuel, no I Congresso Brasileiro de Higiene Mental do Adolescente, realizado pela Academia Brasileira de Medicina Militar (ABMM) em abril de 1972 e que teve como objetivo apreciar os principais problemas mentais que afligiam os adolescentes. Dentre as temáticas abordadas, destacaram-se: aspectos preventivos para as dependências tóxicas na adolescência; higiene mental na ambiência familiar do adolescente; relações entre pais e filhos; homossexualismo masculino e feminino; e delinquência juvenil.

Os psiquiatras reiteram o aspecto clínico dos homossexuais. “Os professores Jurandir Manfredini e Faro Samuel lembraram que, considerando-se o homossexualismo como um problema médico, sua causa muitas vezes é originária da falta de orientação das mães no trato com os seus filhos”1919. Psiquiatras afirmam que homossexualismo é doença. Jornal do Brasil. 20 Abr 1972. 1º caderno, p. 15. (p. 15), sendo que é no âmbito familiar o espaço no qual se deva realizar uma profilaxia ao homossexualismo. Recomenda-se, na matéria, evitar a influência dominadora da mãe e o supermimo dos filhos e que, durante a infância, “as mães não devem insistir em trajar os filhos homens com roupas de meninas nem permitir que eles brinquem com objetos femininos”1919. Psiquiatras afirmam que homossexualismo é doença. Jornal do Brasil. 20 Abr 1972. 1º caderno, p. 15. (p. 15). No caso das meninas, registra-se que o homossexualismo feminino “reflete a ausência de carinho materno na infância, compensada, na idade adulta, nas relações com outra mulher”1919. Psiquiatras afirmam que homossexualismo é doença. Jornal do Brasil. 20 Abr 1972. 1º caderno, p. 15. (p. 15).

Publicações subsequentes abordam o caráter preventivo do homossexualismo discutido no congresso. Em uma delas, intitulada “Congresso de Higiene Mental sugere que criança receba orientação sexual na escola”2020. Congresso de Higiene Mental sugere que criança receba orientação sexual na escola. Jornal do Brasil. 25 Abr 1972; 1º caderno, p. 14., é mencionado uma das principais conclusões do evento: a necessidade de desenvolver no ambiente escolar uma formação integral da criança, oferecendo-lhe uma orientação sexual que não se limitaria às informações anatômicas sobre o aparelho genital, mas que também contribua para a formação afetiva do adolescente. Tal proposta se dirigiria aos pais e educadores, uma vez que eles seriam os primeiros a influir na formação da sexualidade dos adolescentes.

É registrado que o Brigadeiro Gerardo Bijos, então presidente da ABMM, destaca três recomendações diretamente relacionadas à prevenção das doenças mentais nos jovens: o tratamento psiquiátrico precoce, para impedir uma progressão sintomática das doenças mentais; a criação de cursos e palestras que orientem pais e educadores sobre a aplicação correta de estímulos educacionais; e a recreação orientada nas horas livres dos jovens2121. Personalidade do jovem terá curso em que educadores e pais serão os únicos alunos. Jornal do Brasil. 25 Maio 1972. 1º caderno, p. 23..

Em julho de 1972 encontra-se menção a outro evento institucional e científico, o I Congresso Brasileiro de Psicopatologia Infanto-Juvenil, intitulado “Jovem brasileiro não tem orientação psicológica”2222. Jovem brasileiro não tem orientação psicológica. Jornal do Brasil. 11 Jul 1972. 1º caderno, p. 14.. O congresso, realizado em Guanabara, sob o patrocínio da Associação de Psiquiatria e Psicologia da Infância e da Adolescência do Rio de Janeiro (APPIA), teve como tema principal a situação da psicoterapia infanto-juvenil no Brasil, tendo a participação de especialistas da Argentina, Uruguai, Venezuela, México e Estados Unidos.

Os dados divulgados sobre o relatório oficial da comissão organizadora do congresso mencionam uma grave deficiência no atendimento psicológico da população jovem brasileira, que acaba por repercutir em um aumento da crise familiar. A recomendação para evitar a crise no interior das famílias, conforme publicado, tem ênfase na psiquiatria preventiva, a fim de que “um maior número se beneficie antes que instale uma doença que exigirá alto custo no seu tratamento”2222. Jovem brasileiro não tem orientação psicológica. Jornal do Brasil. 11 Jul 1972. 1º caderno, p. 14. (p. 14).

O homossexualismo é apontado ali como uma doença mental da juventude resultante da crise familiar, sendo mencionado que as causas do homossexualismo masculino estariam relacionadas ao grau de rigorosidade dos pais na criação dos seus filhos homens.

Um pai exageradamente rigoroso, autoritário, ou, ao contrário, muito débil, com imagem de um homem fraco, poderá, sem saber, se constituir no principal fator da futura transformação do seu filho em homossexual. Para os psicoterapeutas que debateram ontem Identificação e Autoridade, no Congresso da APPIA a dificuldade ou um eventual distúrbio na relação de um filho homem com o pai é uma causa importante do homossexualismo, assim como os filhos criados sem pais e que sofrem por isso uma grave crise de identificação.2222. Jovem brasileiro não tem orientação psicológica. Jornal do Brasil. 11 Jul 1972. 1º caderno, p. 14. (p. 14)

Outra recomendação frente ao cenário da psicoterapia infantojuvenil é a “adoção de uma política de ensino que possibilite aos técnicos de diferentes níveis a informação ou formação adequada, no sentido de prepará-los para o exercício da prevenção ou terapia dos distúrbios emocionais”1818. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Ditadura e homossexualidades [Internet]. Brasília: CNV; 2014 [citado 5 Fev 2020]. v. 2. (textos temáticos 7). Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%207.pdf
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(p. 14), de forma que “o trabalho em Higiene e Saúde Mental só poderá dar frutos se exercido em termos interdisciplinares”2222. Jovem brasileiro não tem orientação psicológica. Jornal do Brasil. 11 Jul 1972. 1º caderno, p. 14. (p. 14).

Associado ao exercício interdisciplinar da prevenção, a matéria “Prevenção sustenta a base de uma política de saúde mental”2323. Prevenção sustenta a base de uma política de saúde mental. Jornal do Brasil. 12 Jul 1972. 1º caderno, p. 12. destaca a afirmação do psicanalista Hugo Rosários, durante o I Congresso de Psicopatologia Infantojuvenil, de que “o trabalho de prevenção e profilaxia é a forma mais recomendável para uma política de saúde mental”2323. Prevenção sustenta a base de uma política de saúde mental. Jornal do Brasil. 12 Jul 1972. 1º caderno, p. 12. (p. 12). Tendo em vista o aumento do número de distúrbios e doenças mentais que torna impossível o atendimento a todos que necessitam de assistência, o trabalho da psiquiatria preventiva seria realizado por meio da “atuação da equipe com várias especialidades reunidas, como a Sociologia, a Psicologia Clínica, a Assistência Social e a própria Psiquiatria”2323. Prevenção sustenta a base de uma política de saúde mental. Jornal do Brasil. 12 Jul 1972. 1º caderno, p. 12. (p. 12).

Percebe-se que tais matérias jornalísticas são referentes ao que podemos chamar de eventos institucionais de saúde, que corresponderiam àqueles relacionados à promulgação de leis e decretos, à criação de serviços e órgãos sanitários ou, como é o nosso caso, à divulgação de planos e projetos em saúde. O impacto social desempenhado pelo Jornal do Brasil ao retratar os congressos apresentados relaciona-se com a aceitação, ou, ao menos, com o acato às concepções e ideias sobre o homossexualismo e as formas de prevenção por parte do seu público leitor, que depende, em grau muito intenso, da maneira como são trabalhadas pelo canal de informação.

Como problema médico, o homossexualismo é concebido por meio do conceito ecológico de saúde e doença, no qual os comportamentos nocivos dos pais dentro do ambiente familiar poderiam corresponder a um estímulo ao adoecimento dos jovens. Haveria, portanto, um período pré-patogênico, no qual o jovem estaria exposto a um processo de educação inapropriado, e um período patogênico, momento em que o homossexualismo se instauraria como doença psíquica e comportamento degenerativo.

Resgatando os preceitos higienistas, a atitude preventivista adentraria no ambiente familiar e escolar e se caracterizaria, assim, por ser duplamente otimista: eliminaria os comportamentos nocivos dos pais na criação e desenvolvimento psíquico dos filhos ao mesmo tempo que garantiria, no ambiente escolar, um processo de formação moral e integral dos jovens, reestabelecendo, assim, o equilíbrio familiar e social. Em última instância, a psiquiatria preventiva “participa do sistema de segurança comunitária total, por meio das quais se mantêm sobre controle as respostas socialmente desviantes e a formação indevida de vítimas individualizadas”1414. Caplan G. Princípios da psiquiatria preventiva. Rio de Janeiro: ZAHAR; 1980. (p. 32).

Percebe-se que, para prevenir o adoecimento psíquico e os desvios morais e sociais, é registrada a necessidade de o preventivismo ser aplicado a uma totalidade interdisciplinar. Isto é, a profilaxia das doenças mentais – enquanto um projeto de mudança da prática psiquiátrica – só ocorreria a partir da incorporação do preventivismo a outras áreas de conhecimento que atuassem, em conjunto, na promoção da saúde mental, tendo o ambiente familiar e escolar como os seus grandes focos de atuação e realização.

Assim, ao adentrar nas instituições sociais, por meio de recomendações e normativas médicas, o discurso preventivista se expande para além da escola médica e encontra em outros atores sociais o potencial para a sua realização profilática, transformando-os em auxiliares na ação terapêutica e preventiva contra a loucura, o desvio e a degeneração social.

É possível inferir, portanto, que, ao atingir os corpos homossexuais, a concretização do discurso da psiquiatria preventiva representa um processo de medicalização do social, uma vez que as condições sociais de existência passam pela lente da ordem psiquiátrica e do preventivismo, que realiza sua tarefa política: ao dirigir-se ao social, por meio de normas morais de conduta e de comportamentos, impediria os doentes mentais “em potencial” de adoecer.

Conclusão

Procuramos demonstrar que o preventivismo, como recurso técnico-científico de intervenção maciça no espaço social, consistiu em um elemento fundamental para o Estado ditatorial brasileiro (1964-1985) na contenção e controle da “doença coletiva”, aqui registrada pela figura do homossexual.

Com base em Arouca22. Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde: origens e desenvolvimento. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2007., compreendemos que, embora a psiquiatria preventiva tenha sido projetada como atitude de mudança, não realizou modificações na estrutura da prática psiquiátrica vigente no período ditatorial brasileiro. Tendo em vista o predomínio de uma assistência psiquiátrica com característica asilar e de caráter privado, a psiquiatria preventiva foi dotada de uma alta densidade ideológica e floresceu, de maneira mais evidente, em seu nível discursivo, projetando um encontro da psiquiatria com a evolução da doença mental no espaço social.

Sem uma rede de causalidade pautada em um conhecimento etiológico específico, o discurso psiquiátrico-preventivo atingiu diferentes instituições do Estado, da escola à família. Como resultado, a loucura e os desvios de ordem moral e social reiteraram-se como alvos de ações preventivas, sem, entretanto, esclarecer suas causas, transformando qualquer indivíduo em um doente/desviante em potencial.

Nesse contexto, os homossexuais, tidos como degenerados e invertidos desde o século XIX, foram combatidos em todas as instâncias sociais no contexto da ditadura militar brasileira, fosse por meio da educação moral e sexual realizada no ambiente escolar e familiar, fosse por meio da repressão política direta do Estado.

Vinculado às políticas de repressão e silenciamento, o preventivismo reiterou a tríade medicina, psiquiatria e segurança nacional presente desde o fim do século XIX, baseada nos preceitos higienistas, tomando os corpos homossexuais como contrários à ordem, à moral e aos bons costumes. Dessa forma, a medicina preventiva, ao reiterar a figura patológica do homossexual, ultrapassou os efeitos identificáveis psíquicos e biológicos do corpo, vinculando-se à realização da estrutura política, econômica e social da ditadura militar brasileira.

Nesse cruzamento entre medicina preventiva, homossexualismo e ditadura, buscamos resgatar, por meio de Arouca11. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Fiocruz; 2003., as bases teóricas fundantes do pensamento social em saúde que se constituiu a partir da década de 1970 no âmbito da Reforma Sanitária brasileira22. Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde: origens e desenvolvimento. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2007.. As formulações teórico-conceituais basilares desse pensamento se caracterizaram pela radicalidade, na época, de abordar os fenômenos sanitários por meio de análises sobre a formação social brasileira e de abordagens de matrizes sociológica, da história social e da economia política22. Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde: origens e desenvolvimento. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2007..

Em um movimento de retorno às origens teóricas do campo, apoiamo-nos na necessidade de retomar as dimensões sociais e históricas das práticas médicas e sanitárias vinculadas a temas e questões atuais, como é o caso daquelas que versam sobre a sexualidade. Assim, sem perder de vista a perspectiva que destaca as violências dirigidas historicamente aos homossexuais – dado que o Brasil é hoje o maior país do mundo em crimes contra essa população2424. Grupo Gay da Bahia. Mortes violentas de LGBT+ no Brasil, 2019. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia; 2020. –, analisamos como o preventivismo, enquanto um movimento de mudança da prática médica, constituiu-se em um elemento subjacente às políticas de repressão do Estado, reiterando, ao longo do século XX, os homossexuais enquanto sujeitos patológicos e contrários à norma social e à natureza humana reprodutiva.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2020
  • Aceito
    29 Jun 2020
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