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LUKÁCS: o “falso socialmente necessário”

Lukács: the “socially necessary false”

Resumo

Procuramos delinear, com base em uma investigação da Ontologia de Lukács, os fundamentos mais gerais do fenômeno que o filósofo húngaro denominou de o “falso socialmente necessário”. Nosso propósito é contribuir para as investigações acerca da força política atual de ideias e concepções fantasticamente inverídicas, tal como encontramos entre os terraplanistas ou entre o núcleo ideológico do governo Bolsonaro.

Palavras-chave:
Ideologia; Falso socialmente necessário

Abstract

We seek to outline, based on a research of Lukács’s Ontology, the most general foundations of the phenomenon that the Hungarian philosopher called the “socially necessary false”. Our purpose is to contribute to the investigations about the current political force of fantastically untrue ideas and conceptions, as we find among the terraplanists or among the ideological nucleus of the Bolsonaro government.

Keywords:
Ideology; False socially necessary

Introdução

Em nossos dias, os terraplanistas e as senhoras capazes de enxergar Jesus de um pé de goiaba nos colocam em um peculiar universo de delírios. Peculiar, porque estes e outros delírios não possuem sequer, para uma comparação introdutória, a capacidade que tinha o, seguramente absurdo, racismo hitlerista de ser a expressão ideológica da necessidade de expansão do imperialismo alemão no pós I Grande Guerra. Os que defendem o criacionismo, por exemplo, estão em franca oposição com a necessidade atual de desenvolvimento da manipulação genética, um grande negócio e com a potencialidade de alavancar as forças produtivas em setores importantes da economia (agricultura, complexo médico-hospitalar etc.). Desenvolvimento dos sistemas de orientação baseados em GPS ou mesmo a expansão espacial, outro exemplo, são importantes atividades para a reprodução do capital em franco antagonismo com os terraplanistas.

A ciência, verdade que em sua versão neopositivista, se tornou ferramenta fundamental para a reprodução do capital - e a oposição à ciência contribui para esta vertente do pensamento conservador tenha profundas contradições com as necessidades ideológicas atuais do sistema do capital. Não é por acaso que o Ministério da Educação tem sido uma área tão complicada para o governo Bolsonaro. Contudo, e ainda assim, tais delírios se expandem e ganham uma expressão que não possuíam há alguns poucos anos. Isto é algo que precisa ser mais bem compreendido para que possamos confrontá-los com alguma possibilidade de sucesso.

O conhecimento e o falso

Na crítica às ideias e à concepção de mundo dos bolsonaristas, o movimento espontâneo é colocar-se no polo oposto: apoiar-se na ciência, na filosofia e na arte enquanto verdades estabelecidas para arguir a falsidade das teses terraplanistas ou das inverdades bolsonaristas. Aqui há um primeiro problema, pois não há conhecimento, por mais científico, estético ou filosófico, que não contenha de algum modo um quantum de falsidade. Não é esgrimindo a verdade científica, filosófica ou artística contra a falsidade das concepções bolsonaristas que poderemos enfrentá-los.

Todo conhecimento, por mais correto, verdadeiro, possui um quê de falso. Isto decorre, imediata e diretamente, do fato de que não há, na relação da subjetividade com a objetividade, uma identidade sujeito-objeto (como queria Hegel) ou uma objetividade gerada pela subjetividade (Kant) (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.; 2018a). Esta insuperável distinção ontológica entre objetividade e subjetividade tem várias consequências, se Lukács estiver correto.

Em primeiro lugar, faz com que o reflexo da objetividade na subjetividade seja o resultado de uma atividade da consciência. O momento fundante dessa atividade é a necessidade, já presente no trabalho, de um conhecimento do setor da realidade a ser transformado que torne possível a objetivação almejada. Para se fazer um machado é preciso um conhecimento da natureza muito inferior ao do imprescindível para se construir uma central nuclear - contudo, em ambos os casos, as determinações ontológicos do setor da realidade a ser transformado impõem a necessidade de a subjetividade ter alcançado um nível adequado de conhecimento do mundo. O critério da adequação é dado pelas qualidades daquilo que se quer transformar e pela finalidade (pela teleologia). Para um machado, o conhecimento da estrutura do átomo é desnecessário, mas é imprescindível no caso de uma central nuclear e assim por diante.

O reflexo é a atividade da consciência que converte as determinações do real em conhecimento. Nele, aponta Lukács, estão presentes duas tendências, uma “permanente revisão e aperfeiçoamento do ato do reflexo” (2018a, p. 49), com o posterior desenvolvimento da ciência e da filosofia e, em segundo lugar, uma generalização do conhecimento.

À medida que as experiências de um trabalho concreto são utilizadas em outro, emerge gradualmente sua - relativa - independentização, i.e., a fixação generalizadora de determinadas observações, as quais, de agora em diante, não mais se referem exclusiva e diretamente a uma execução singular, ao contrário, recebem em geral uma dada generalização como observação de eventos da natureza. Em tais generalizações emergem os germes das futuras ciências, cujos inícios, como da geometria e da aritmética, se perderam em um distante passado. (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 49).

Resumidamente (Lukács tratou disso com mais vagar em outras passagens da Ontologia), nessas generalizações muito iniciais já encontramos

princípios decisivos das ciências posteriores, realmente tornadas independentes. Assim, o princípio da desantropomorfização, o considerar abstrativante de determinações que são inseparavelmente ligadas às reações humanas ao mundo ambiente (e também aos próprios seres humanos). Esses princípios já estão contidos implicitamente nas concepções as mais primitivas da aritmética e da geometria. (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 50).

Como sempre na história, também esse avanço do conhecimento em direção às ciências e à filosofia é um processo contraditório, heterogêneo, cheio de avanços e recuos. O conhecimento, para ser capaz de cumprir sua função na reprodução social, deve se aproximar da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, ao se generalizar, dela também se afastar, pois não raramente o conhecimento cotidiano não é suficiente para a objetivação das teleologias necessárias. Por isso “o ser humano tem de [...] ir para além dos limites do pensamento cotidiano” (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 221).

Mesmo em épocas muito anteriores, o pensamento cotidiano foi deslocado completa ou parcialmente para o segundo plano por formas de práxis muito mais amplas, pelo emprego dos tratamentos intelectuais desantropomorfizadores da realidade (matemática, geometria). O desenvolvimento das forças produtivas, a sempre crescente divisão do trabalho, a socialização em expansão da vida social, etc. operam no sentido de sempre mais recuar a esfera da mera experiência cotidiana. (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 221).

A humanidade, portanto, desenvolve modos de conhecimento que possibilitam um conhecimento mais preciso do ser-precisamente-assim existente; que, antes de tudo, o fazem mais controlável na prática. E, por outro lado, tais modos de conhecimento podem contribuir para o distanciamento deste mesmo serprecisamente-assim cujo conhecimento auxiliou a aprofundar (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.). Até mesmo “métodos teoricamente em si corretos, fecundos e indispensáveis podem, ao mesmo tempo, afastar os seres humanos da correta visão do ser” (LUKÁCS, 2018, p. 18). Lukács toma como exemplo a matemática. Seu papel “subvertedor, progressista, para o desenvolvimento da produção social, para a correta imagem de ser do ser humano, não necessita ser detalhadamente discutida” (2018, p. 18). Contudo,

não se pode esquecer o quanto já a teoria pitagórica da matemática, como existência autêntica e própria do ser, conduziu à incompreensão deste. Exatamente esse tipo de falsificação do ser pelos excessos da “razão matemática” é hoje tão pouco operante quanto a centenária, matematicamente pura, por vezes de elevada qualidade, matematização de conexões astrológicas. Vale a pena recordar-se delas ao menos para tornar de todo nítido como o tratamento matemático mais perfeito, sem falhas internas, de alta qualidade imanente, mas de uma conexão não existente ontologicamente, em nenhuma circunstância pode converter-se em uma conexão realmente existente. (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 18).

Lukács (2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 19) prossegue:

no meio homogêneo da pura ciência matemática, podem ser executadas extrapolações quase sem limites, que, todavia, quando é falado do ser, para cada extrapolação deve ser levantada sempre a questão de se o processo foi tratado em sua concreta processualidade de tal modo que a extrapolação seja justamente capaz de expressar adequadamente suas tendências reais.

Assim, na história da humanidade, o desenvolvimento daqueles princípios decisivos das ciências posteriores que já atuavam nas sociabilidades mais iniciais, conduziram a modos de conhecimento que são fundamentais ao conhecimento do mundo mas que, contudo, trazem no seu interior também a possibilidade de se generalizarem indevidamente em uma falsa concepção de mundo. Lukács menciona os pitagóricos do passado e também os neopositivistas do presente que reduzem, por exemplo, a causalidade à sua forma mais simples e primordial encontrada integralmente apenas no ser inorgânico e terminam renunciando a tratar cientificamente o ser social1 1 Lembremos, por exemplo, que Wittgenstein encerra seu Tractatus logico-philosophicus com estas palavras: “What we cannot speak about wemust pass over in silence“ (Sobre aquilo que não podemos falar, devemos permanecer em silêncio”) (WITTGENSTEIN, 2001, p. 129). .

Além disso, devemos lembrar que, desde o início, os princípios decisivos das ciências posteriores se apresentaram em uma “persistente ligação” (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 49) com representações (Vorstellungen) mágicas e míticas. Por muitos milênios os seres humanos não foram capazes de fazer de sua própria práxis e da consciência que dela surge a base de sua própria imagem de mundo (LUKÁCS, 2018a), com isso surgindo

a primeira forma importante da alienação humana: os seres humanos transferiam a gênese, a essência, o funcionar do seu próprio ser a poderes transcendentes, cuja qualidade, no início muito simples, depois construídas intelectualmente cada vez mais refinadas a partir de analogismos de sua própria existência. Do trabalho teleológico do ser humano surge o modo de alienação de um mundo criado por poderes transcendentes e, nele, do próprio ser humano por eles criado. [Na nota de rodapé aqui localizada, lemos: Na história da criação do Velho Testamento, p. ex., esse analogizar chega, até mesmo, a premiar, analogamente, ao Deus onipotente com um dia descanso após a criação do mundo]. (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 249).

A humanidade que ainda não se reconhece como demiurgo de si própria (e que por isso projeta nos deuses seus próprios poderes de fazer a história) é parte do longo processo histórico, ainda não encerrado para a maior parte dos seres humanos, no qual a humanidade sabe que existe mas não tem consciência do que ela de fato é. Esta é uma etapa do processo no qual a humanidade desenvolve a consciência que tem de si própria, mas não consegue ainda abandonar os mitos e deuses como o fundamento do ser social. Nesta etapa, humanidade existe, mas não possui a consciência do fundamento desta sua existência. Por isso concebe a si própria de modo limitado e parcial e, mesmo em um patamar bem mais desenvolvido como na Grécia clássica, o gênero humano era ainda concebido como composto apenas pelos indivíduos livres. Os escravos não passavam de instrumentos de produção, não eram humanos (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.). Enquanto a humanidade não foi capaz de compreender a si própria como resultado da ação e do pensamento dos seres humanos, conectando a sua história à história de toda a natureza, também não pôde se elevar à consciência a concepção do gênero humano como socialmente fundado e que, correspondentemente, abarca a totalidade da humanidade.

Este estado de fato se expressa intensamente na luta da burguesia contra a ordem feudal. Então, as tendências desantroporfizadoras se desenvolveram como nunca antes e a ciência moderna pôde se desenvolver. No seu início fulgurante, no Renascimento, este impulso em direção a uma concepção cosmológica infinita, que nega à Terra o lugar privilegiado que lhe destinava a ideologia medieval, este impulso em direção a uma imagem dessacralizada da vida que teve consequências tão frutíferas para o desenvolvimento da humanidade, mesmo um impulso assim prolongado e poderoso terminou por acolher limites que não eram a ele imanentes, mas que vinham das necessidades ideológicas da sociedade burguesa em ascensão2 2 Cf. Lukács (2018, p. 221-2; 2018b, p. 51). (item Método, com várias indicações). Nos séculos seguintes estes limites predominaram completamente e, na

medida em que, no século 18, amplamente se desenvolveu a luta ideológica da nova classe dirigente, ela afastou intelectualmente de sua autojustificação ideológica todo o processual e toda a gênesis histórica. Ela aparece, para si mesma e para seus adversários, não como resultado histórico, mas como base fixa e polo oposto da história. (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 96).

Terminou assim predominando a tese da dupla verdade, uma científico- desantropormofizadora e outra religiosa-antropormorfizadora, ambas baseadas em concepções a-históricas da essência. A concepção de mundo burguesa não foi capaz de ir além da representação da coisa (Dingvorstellung) como fundamento de ser da imagem do mundo (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.), deixando intocada a imagem de mundo como criação de uma força transcendente. Tal como no passado, teleologia e causalidade continuaram como categorias opostas e apartadas, a segunda sendo reduzida à mediação para a realização da teleologia transcendental. A descoberta de que a teleologia apenas existe em conexão com a causalidade e tão somente no interior dos atos humanos singulares, a descoberta que o decurso histórico, tanto da natureza quanto do ser social, é puramente causal, ficaria para o século 19. (LUKÁCS, 2018a).

Até chegarmos ao século 19, as tendências presentes na atividade do reflexo acima mencionadas (o aperfeiçoamento do reflexo e a generalização do conhecimento, sua conexão e afastamento da vida cotidiana, a constituição de meios homogêneos que são instrumentos poderosos para o conhecimento do real e, ao mesmo tempo, trazem neles a tendência à generalizações que fundam concepções de mundo falsas, a antropomorfizarão e a desantropomorfização etc.) se desenvolveram em persistente ligação, no passado mais distante, com os mitos e seitas e, mais recentemente e no presente, com a concepção religiosa. As tendências ao desenvolvimento de um reflexo cada vez mais aproximado do real não raramente se apresentaram, por vezes pelas mesmas mediações, também como desenvolvimento das concepções místicas ou religiosas. Em poucas palavras, com uma frequência que tende a aumentar conforme recuamos no passado, uma concepção mítica de mundo serviu de base para um frutífero desenvolvimento do conhecimento da realidade. (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.).

Isto pode parecer, mas nada tem de paradoxal: o baixo desenvolvimento das forças produtivas determina um patamar mítico/religioso de conhecimento da totalidade do real por ser, este patamar, o único então capaz de cumprir a função de orientar as objetivações cotidianamente imprescindíveis (acima de tudo as do trabalho). O que significa, claro está, que a consciência mesmo quando mítica ou religiosa é, “em um modo inexorável, mesmo se amplamente mediada, por último um instrumento dessa reprodução do próprio ser humano”. (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 50).

O “problema [...] da falsa consciência e acerca da possibilidade de sua, ocasionalmente tão frutífera, relativa corretude”, pode, diz Lukács, ser colocado nestas palavras: “a independência do reflexo do mundo exterior e interior na consciência humana é um pressuposto indispensável do surgimento e do desenvolvimento ascendente do trabalho” (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 50). Entre o reflexo do mundo exterior e interior e estes mesmos mundos, não há identidade, repetimos. O reflexo mantém uma independência para com o mundo e, por isso, o reflexo pode ser verdadeiro ou falso, com muitas variantes entre estes extremos. Já neste patamar mais básico da análise, pode-se perceber a impossibilidade de um conhecimento que não mantenha alguma relação com o desconhecido e, que, por isso, todo conhecimento é sempre um momento de aproximação com a realidade e, nessa medida e sentido, é também portador de um quantum de falsidade - jamais se conheceu na história uma verdade absoluta, a-histórica, acabada de uma vez para sempre.

Mesmo quando se trata do conhecimento da natureza, mas mais intensamente quando consideramos o ser humano, o fato de que a reprodução social requer a presença de complexos como os costumes, a tradição, a moral, a ética e, mais tardiamente, o Direito, faz com que, por vezes, a concepção de mundo empregue o conhecimento da natureza para justificar a si própria. Pensemos em como Aristóteles excluiu os escravos da humanidade apoiando-se na ordem cosmológica fundada pelo Logos, ou como o mito da criação cristão se apoiou na cosmologia ptolomaica e, ainda, como as concepções atomísticas da natureza humana de um Hobbes ou Leibniz se articularam com a concepção cosmológica newtoniana3 3 Lembremos, ainda, que o próprio Newton era também um alquimista. (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.). Por meio desta articulação, se inserem na elaboração da concepção ontológica de cada momento histórico as influências das disputas ideológicas, dos valores, das lutas de classes etc. Uma vez mais, é a independência do reflexo para com o refletido que abre esse campo de possibilidades para a interferência da moral, dos valores, das lutas de classe, dos conflitos sociais etc. no reflexo da objetividade e, com isso, “podem causar com frequência profundas distorções nas visões do ser” (LUKÁCS, 2018, p. 223).

Lukács cita como exemplo deste fenômeno a análise da mercadoria realizada por Aristóteles. O pensador grego percebeu que a troca pressupõe a igualdade entre as mercadorias e que esta igualdade deve ser comensurável. Contudo, não pôde passar deste ponto porque o que as mercadorias têm em comum, força-detrabalho, não poderia ser percebido por Aristóteles em uma época em que o trabalho era o do escravo.

Que na forma dos valores de mercadorias todos os trabalhos são expressos como trabalho humano igual, e portanto como equivalentes, não podia Aristóteles deduzir da própria forma de valor, porque a sociedade grega baseava-se no trabalho escravo e tinha, portanto, por base natural a desigualdade entre os homens e suas forças de trabalho (MARX, 1996MARX, K. (1996) O Capital: Livro I. São Paulo: Nova Cultural, 1996., p. 54).

Em momentos como esse, comenta Lukács (2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 227), se evidencia post festum “um não-podersaber inteiramente justificado porque fundado no ser então presente”. A determinação histórica do conhecimento é também a determinação do seu campo possível de desenvolvimento: tal como o baixo desenvolvimento das forças produtivas nas sociedades mais primitivas tornava possível à consciência o reflexo da totalidade objetiva apenas através de concepções míticas e religiosas, o trabalho escravo impossibilitava a Aristóteles enxergar nas mercadorias a força-de-trabalho nelas cristalizado. Hoje, a regência do capital impossibilita que a ideologia dominante vá para além do reino da mercadoria na ciência econômica e, nas ciências humanas, que vá para além do reino da cidadania. A existência, também aqui, determina a consciência.

Em suma,

concepções que se provaram falsas para o desenvolvimento ascendente da práxis social e das ciências podem, por longos períodos da práxis, oferecer uma base aparentemente segura que, supostamente, funciona bem. Pense-se, por exemplo, na astronomia ptolomaica na Antiguidade e na Idade Média. Navegação, determinação do calendário, cálculo de eclipses solares e lunares, etc. podem ser, com sua ajuda, satisfatoriamente alcançados segundo as demandas da práxis social de então. (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 12).4 4 Ainda: “A história nos mostra uma enorme quantidade de exemplos de como, em estreita conexão com uma falsa teoria, resultados corretos e importantes são alcançados na práxis imediata. Para citar, apenas marginalmente, a conexão ideológica entre o trabalho inicial e as ‘teorias’ mágicas, ainda que suas consequências sobressaíssem profundamente na práxis da Idade Média, seja apenas apontado o sistema ptolomaico, cuja falsidade científica foi evidenciada tão só depois de muito tempo, mas que, para os propósitos práticos (navegação, calendário etc.) funcionou quase perfeitamente.” (LUKÁCS, 2018, p. 354).

Que o caráter geocêntrico do universo ptolomaico foi um reforço importante para a resistência ideológica da concepção de mundo medieval ante a nova concepção heliocêntrica que surgia com o desenvolvimento do capitalismo comercial em nada diminuiu o fato de que, até chegado o Renascimento, o geocentrismo se manteve predominante. Isto demonstra tanto quão grandes obstáculos sociais frequentemente devem ser ultrapassados para poder se aproximar no pensamento do ser autêntico, quanto como a experiência prática cotidiana e a “conquista científica” “podem receber funções que impedem o progresso, para não se falar dos momentos puramente ideológicos que, segundo os interesses das classes sociais por tal colaboração, podem se tornar estímulo ou obstáculo” (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 12) ao desenvolvimento da humanidade.

Lukács menciona, ainda, outros exemplos de como uma falsa consciência pode operar na produção social como base para o surgimento e desenvolvimento de uma concepção de mundo mais avançada. Menciona, por exemplo, as características inovadoras da ideologia burguesa no período moderno, a primeira que pretende tirar do mundo greco-romano, portanto do passado, um modelo para o futuro da humanidade, não com a finalidade de um real retorno ao passado, a um paraíso perdido, mas para cobrir com a nobreza e a beleza da arte greco- romana a sociedade futura que construiria. O retorno ao mundo greco-romano pelos ideólogos burgueses é apenas a forma ideológica de afirmação do futuro almejado (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.). Cremos, contudo, ser desnecessário para este texto prosseguir com tais exemplos, o exposto já traz com clareza suficiente, esperamos, o que necessitamos. Isto é, que os desenvolvimentos das forças produtivas, do conhecimento do mundo que os acompanha etc. terminam por ter efeitos muito diversos sobre a concepção de mundo de cada momento histórico. A tendência geral, universal, é que do afastamento das barreiras naturais se desenvolvam a ciência, a filosofia e a arte no sentido de um reflexo na consciência cada vez mais aproximado do serprecisamente-assim existente. Esta tendência geral, claramente identificável na evolução que conduziu das sociedades primitivas aos nossos dias, nem é retilínea, nem é homogênea: pelo contrário, apresenta-se mediada pelas contradições as mais variadas.

A tendência universal predomina sob os fenômenos particulares, também nesse caso, com o decorrer do tempo. O desenvolvimento do comércio e das manufaturas, já no início da Acumulação Primitiva, trouxe novas necessidades à economia e, portanto, ao trabalho e, com as devidas mediações, conduziram às grandes crises ideológicas (o Renascimento, a Reforma etc.) que terminaram por fazer predominar na teoria o que já predominava na prática.

Isto mostra como a respectiva imagem humana do ser também é dependente de quais imagens do mundo parecem, a cada momento, o máximo possível apropriadas para fundar teoricamente uma práxis que, nas circunstâncias, correspondentemente funcione com correção. A práxis, acima de tudo o metabolismo da sociedade com a natureza, se demonstra, deste modo, como o marxismo sempre sublinhou, como o critério da teoria. Todavia, para sempre se poder aplicar corretamente esta visão, correta em sentido histórico, não se poderá jamais descuidar o momento da relatividade histórica. Justamente porque também o desenvolvimento social da humanidade é um processo irreversível, este critério pode apenas demandar uma processual validade geral, uma verdade sempre rebus sic stantibus. (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.).

Se Lukács estiver correto, portanto, há uma vasta gama de funções sociais que uma concepção falsa (seja ela científica, religiosa, mágica, mítica, filosófica ou artística) pode vir a cumprir na reprodução social. Pode não ter maior importância e ser superada pelo desenvolvimento das forças produtivas ou, no polo oposto, pode se converter em um gigantesco obstáculo ao avanço da humanidade, obstáculo esse que só pode ser superado por lutas sociais e, por vezes de classe, que envolvem, também por vezes, gerações. Em todos os casos, a qualidade desta função social a ser atendida pela falsa concepção é determinada pela relação entre o falso e a reprodução social como um todo e não apenas pelo conteúdo gnosiológico de tal concepção.

Portanto, diferente da religião e dos mitos, o conhecimento científico produz uma verdade que é sempre e necessariamente relativa. Relativa ao desenvolvimento do gênero humano, de suas forças produtivas e também relativa às objetivações cotidianas. Não deixa de ser verdade, por causa disto. Pelo contrário: exibe uma enorme vantagem frente a verdade dos mitos ou das religiões. A verdade científica traz em si mesma a possibilidade de se desenvolver e se aproximar cada vez mais do mundo; a verdade religiosa é um mito, um dogma, fixo e imutável, incapaz, portanto, de absorver os avanços da humanidade.

No confronto com os terraplanistas e bolsonaristas, por isso, devemos evitar o grave equívoco de adotar, ainda que inconscientemente, o modelo de verdade dos bolsonaristas, com o que o confronto teria entre duas verdades distintas, porém similares em seu caráter absoluto. O que temos é algo distinto: é o confronto entre um conhecimento capaz de se desenvolver permanentemente e outro incapaz desta evolução; um conhecimento que pode servir ao desenvolvimento humano porque pode evoluir e outro que, ao não poder se desenvolver, não pode em nossos dias auxiliar o desenvolvimento do gênero humano. O conhecimento científico está aberto ao futuro, as concepções bolsonaristas desejam fixar a essência do presente.

Por isso, ante as verdades absolutas da ideologia bolsonarista, inócuo cair no polo simétrico e esgrimir as verdades científicas, filosóficas ou estéticas como se elas fossem absolutas e não contivessem, em seu interior e em seus fundamentos, momentos que no futuro descobriremos falsos. Que ciência, filosofia, arte e ideologia são complexos sociais que se interpenetram (sem se identificarem de modo algum) é uma decorrência desta situação de fato. Não é se colocando o problema do conhecimento e da verdade de uma forma simplificada ou falsificada que seremos capazes de enfrentar esta onda conservadora-bolsonarista.

Uma imagem de mundo fantasticamente inverídica

É conhecida a tese de Lukács (2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.) de que o nazismo representou o irracionalismo mais extremado jamais produzido pela humanidade. Seu texto, A destruição da razão (o qual, quando da publicação deste artigo, deverá ter tido sua primeira publicação em português pelo Instituto Lukács), é a demonstração mais elaborada dessa sua tese. Na Ontologia o que encontramos são algumas passagens e referências, apenas o imprescindível para esclarecer o objeto que Lukács, em cada caso, analisa. Ao tratar dos efeitos alienantes das coisificações, aponta como estes se tornaram ainda mais intensamente operantes quando encontram, tal como no nazismo, movimentos ideológicos que “se esforçam por colocar os resultados das ciências modernas ao serviço de uma reação sociopolítica” (2018a, p. 599).

Pensamos, em primeiro lugar, nas teorias das raças do século 19, cujas relações com um tipo de darwinismo social são conhecidas em geral. É igualmente conhecido que por tal via, de Gobineau, passando por Chamberlain até Rosenberg-Hitler, toda a história do desenvolvimento da humanidade foi transformada em uma permanência das características raciais supostamente originárias e em essência imutáveis. Na implementação consistente desaparece da história e da essência do ser humano todo processo, todo desenvolvimento. O ser humano é nada mais que uma - segundo a descendência - corporificação pura e impura de sua essência racial, uma coisificação cuja gênese, todavia, permanece tão inexplicável quanto a criação divina do ser humano nas religiões. (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 599).

Esta visão de mundo, com o nazismo

se tornou força política de choque, em ideologia no sentido literal da palavra: meio para dirimir um conflito socioeconômico vital dessa formação; ao ter sucesso, conferiu às manifestamente reacionárias estruturas de pensamento uma aparência de uma revolução. Com isso unifica a tendência conservadora de todos os momentos retrógrados da sociedade - antes de tudo, a alemã - com aquela do novo imperialismo, que se preparou economicamente, de certo modo subterraneamente, no período de transição da crise. (LUKÁCS, 2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 693).

São as necessidades imperialistas do capitalismo alemão que se expressaram na concepção de mundo do nazismo. Foi apenas quando tais necessidades adquiriram uma forma ideológica com capacidade de dirimir as contradições sociais no sentido que mais interessava ao imperialismo alemão, foi apenas então que uma concepção de mundo tão fantasticamente inverídica pôde se tornar a verdade e enviar milhões de alemães à morte nos campos de batalha. Além disso, por mais extremado que seja, o nazismo é uma ideologia burguesa e compartilha com suas congêneres a tendência a fixar o indivíduo em sua particularidade alienada (Partikularität) e em fazer de tal particularidade a essência universal da existência humana. O que ele possui de peculiar é que o faz de um modo extremado. Nele se aguçam, aponta Lukács (2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 695):

todos os maus instintos da particularidade (Partikularität), mesmo aqueles, sobretudo aqueles que costumam ser reprimidos no cotidiano normal do ser humano particular médio. A sua realização social consiste, meramente, em que essa “libertação” é canalizada em correspondência às direções indicadas pelo hitlerismo como unidade de pisar e ser-pisado, de brutalizar os outros e o receio de ele mesmo ser brutalizado. Que com isso teve de surgir, como dominante, uma mistura de crueldade desinibida e irresponsabilidade covarde que, portanto, foi o mais baixo patamar da particularidade (Partikularität) obtido e alcançado, sabe hoje todo aquele que não tem razões sociais ou egoísta-pessoais para extinguir esses fatos da memória dos seres humanos.5 5 E ainda: “O apegar-se dos seres humanos envolvidos à sua deformada particularidade (Partikularität) sistematicamente degradada até a amoralidade obtém, portanto um suporte ideológico em concepções sobre o decurso do mundo justamente em decorrência de sua drástica inverdade; (...) as deformações moral-humanas da sua [do indivíduo] particularidade (Partikularität), posta como invencível, presumia obter um ‘sólido’ suporte naquela imagem de mundo fantasticamente inverídica.” (LUKÁCS, 2018a, p. 695).

Que tal concepção de mundo era absurda, fantasticamente inverídica, revela não apenas o fato de que seu projeto de um imperialismo alemão “não correspondeu em nenhum momento às reais relações de poder” (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 695), como também o fato de que, enquanto ideologia e em especial a sua teoria oficial das raças representou “a mais abrupta ruptura com os métodos científicos de apreensão da realidade que até então alcançou a humanidade”(LUKÁCS, 2018a, p. 695). Ela se propunha a resolver problemas que eram insolucionáveis com base nos seus pressupostos. Era de fato o mito que se propunha ser.

Quando se trata da força das ideias conservadoras típicas dos bolsonaristas ou dos terraplanistas, alguns elementos teóricos se assemelham ao nazismo: a defesa da propriedade privada, a defesa dos valores mais tradicionais de uma pretensa tradição autenticamente brasileira como a família, o patriarcalismo, o patriotismo etc. Também o apelo à violência, o desrespeito aos preceitos democráticos, o apelo ao cidadão comum são outros elementos ideológicos que se assemelham à ideologia nazista.

Contudo, as situações históricas são muito distintas e também o são as necessidades ideológicas. Sendo mais do que breve, na conjuntura dos anos de 1930, ainda era possível o desenvolvimento das forças produtivas em uma escala limitadamente nacional e, por isso, o nacional do Nacional Socialismo era uma real possibilidade histórica. Hoje, o patriotismo de Bolsonaro não pode ir além de um servilismo grotesco aos Estados Unidos e de uma fidelidade canina a Trump. O projeto nacional do Nacional Socialismo postulava um confronto com a ordem imperialista mundial para desalojar os países lá estabelecidos como dominantes e abrir espaço para o imperialismo alemão. Hoje, o projeto dos bolsonaristas apenas propõe sermos o que sempre fomos: produtores de mais-valia para ser acumulada pelo grande capital internacional. O nazismo representava os anseios do imperialismo alemão, o bolsonarismo expressa de modo extremado a disposição servil de nossas classes dominantes para com o imperialismo.

Isto se relaciona, com as devidas mediações, ao fato de que, com a crise estrutural iniciada em meados de 1970, não é mais possível um desenvolvimento nacional das forças produtivas. Um projeto nacionalista, neste sentido, é um anacronismo histórico. O patriotismo dos bolsonaristas não passa da superfície e esconde a concordância com a manutenção da nossa subordinação ao grande capital na ordem mundial. Seu conservadorismo, tal como seu patriotismo, também é limitado. Não pode ir para além da pauta dos costumes e da questão da segurança pública. É uma tendência conservadora que tem que se apresentar como democrática, que não pode abertamente postular uma ditadura e (uma vez mais, diferentemente do nazismo) que assume o neoliberalismo na economia!

Diferente do que tínhamos na Alemanha nos anos de 1930, a força das ideias bolsonaristas não se funda em um projeto de reerguimento da nação nem expressa os interesses do conjunto do grande capital. A força que demonstraram nas eleições de 2018 tem sua origem mais imediata na decepção com o petismo para amplíssimos setores do país. Mais profundamente, sua força advém do desespero gerado pela crise estrutural que, a esta altura, aparece para o grosso da população como o que de fato é: uma crise sem solução.

Nada faz um operário mais religioso de que a promessa (ou a crença) de que a Virgem Maria será capaz de manter o seu emprego em meio à crise estrutural. Com a atual integração das centrais sindicais e dos sindicatos ao Estado, sem a possibilidade de uma luta coletiva, sem a solidariedade de classe, o que sobra ao indivíduo que é trabalhador ou operário senão buscar em forças transcendentes a solução para problemas insolúveis aqui na Terra? O conservadorismo que se expressa pela vaga bolsonaristas não é outra coisa senão o desespero com a situação presente na busca de uma solução simples e mágica: a reforma moral do país seria a panaceia universal. Deve-se levar em conta, ainda, que sendo as teorias fascistas fantasticamente inverídicas, não chegaram ao ponto de postular ser a Terra plana e nem tentaram negar o evolucionismo. Muito menos adotaram uma postura pró-religião e anticientífica: pelo contrário, à Alemanha era fundamental desenvolver o complexo industrial- militar e por esta razão buscou potencializar o que de melhor havia nas ciências da natureza alemãs (muito diferente do que ocorreu, claro está, com as ciências humanas e a filosofia). Se as teorias fascistas eram fantasticamente inverídicas, as teorias bolsonaristas teriam que ser, em uma comparação, hiperfantasticamente inverídicas.

Não se pode, nem se deve, confundir o bolsonarismo com o nazismo (nem Bolsonaro com fascismo). Há profundas diferenças entre o passado e nossos dias. Contudo, há algo na análise de Lukács (2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.; 2018a) acerca do fascismo que talvez seja importante para nossos dias: o que está em confronto são concepções de mundo.

Na Alemanha hitlerista, tal como hoje entre os bolsonarismo e seus intelectuais, não se trata de provar que Darwin estava correto (e não a Bíblia) ou que a Terra é redonda e orbita o Sol. Não há argumento científico capaz de demover um teórico bolsonarista ou um terraplanista de suas crenças, pois se tratam de crenças e não de conhecimento racional, científico. Esta é uma ideologia que corresponde ao desespero da população, tem um fundamento afetivo antes do que racional. Não há contra-argumento à crença dos terraplanistas, tal como não há argumento que convença da falsidade de suas posições aqueles que vêm Jesus do alto de uma goiabeira. Nesse terreno, parcial, no varejo, os antibolsonaristas serão sempre vitoriosos. Pois uma das características do irracionalismo reside justamente em tornar as pessoas incapazes incorporar em suas visões de mundo informações científicas, filosóficas ou artísticas. O efetivo conhecimento do real tem pouca importância quando se trata dessas concepções de mundo.

Pretender convencer quem quer que seja da utilidade da universidade colocando em praça pública o que ela pesquisa e produz é tão ingênuo quanto imaginar que seria possível convencer um filiado ao Partido Nazista que os judeus não eram os responsáveis pela tragédia alemã após a I Grande Guerra (1914-1918) demonstrando que não eram os judeus que comandavam os exércitos da Alemanha.

Isto não quer dizer, claro está, que a divulgação científica, filosófica e artística não seja uma tarefa da maior importância - mas esta tarefa é importante em qualquer situação. O que isto significa é que o confronto ideológico com o bolsonarismo precisa ser travado contrapondo uma concepção de totalidade, uma concepção de mundo, contra a concepção de mundo bolsonarista. Não adianta ser travado no varejo, o combate tem que se dar enfrentando a sua concepção de mundo pela contraposição de outra, radicalmente distinta, concepção de mundo. É um embate entre ideologias, não é um embate científico ou filosófico entre duas proposições distintas, porém racionais e que têm no real a sua referência fundamental. O que irá decidir esta luta de ideias é uma questão prática antes que teórica: a óbvia incapacidade do bolsonarismo ser uma solução à crise, sua incapacidade para ser algo mais do que uma variação tardia e degradada de um ciclo neoliberal que se aproxima de seu ocaso.

Quando se trata do confronto com a concepção de mundo bolsonarista, contudo, a situação presente é por demais delicada. O liberalismo apenas pode se contrapor ao bolsonarismo em questões pontuais e na pauta dos costumes. O liberalismo mais radical (no sentido do liberalismo de H. D. Thoureau ou Luther King) ou o liberalismo mais belicoso, como o de alguns articulistas de O Estado de São Paulo ou da Folha de São Paulo (Eugenio Bucci, Eliane Cantanhêde ou Bernardo Carvalho, por exemplo), podem criticar o viés autoritário e antidemocrático, mas se limitam a isso pois não podem deixar de apoiar a maior parte da pauta econômica do governo.

Os movimentos sociais minoritários não podem, pela sua própria essência, ir para além de suas pautas particulares. Também os partidos eleitoreiros que se querem de esquerda, como o PT e o PSOL, estão presos na mesma arapuca: não podem fazer uma crítica radical ao bolsonarismo porque também possuem estratégias neoliberais para a economia. Há, entre estes liberais ou esta dita esquerda, uma confluência com o bolsonarismo em algo fundamental: a ampliação da exploração dos trabalhadores, que é a essência do programa econômico de Guedes.

Por isso, tanto no aspecto ideológico, quando no espectro político, uma frente ideológica ou política contra os bolsonaristas é possível apenas ao preço de se abandonar os trabalhadores à sanha do capital. Tal frente terá uma plataforma que não pode ir além da plataforma máxima do setor liberal mais conservador que queira integrar. Por isso compartilhará do horizonte neoliberal e apenas será capaz de confrontos parciais, setoriais, com o bolsonarismo. Justamente o terreno em que o bolsonarismo tem maior facilidade em preponderar. Contudo, para a crítica deste falso que o desespero coletivo tornou socialmente necessário é imprescindível não se limitar à esfera da particularidade.

Falando da tentativa nazista de alterar biologicamente o ser humano para adequá-lo às necessidades fascistas, comenta Lukács (2018LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018., p. 217):

Citamos como exemplo negativo tal caso singular - muitas vezes grotesco - porque, não apenas as debilidades de seu ponto de partida, de seu método, indicam claramente em que medida tais problemas apenas a partir da totalidade do ser social podem ser corretamente colocados, como também porque a maior parte dos seus críticos caem em um erro semelhante ao levar em consideração momentos parciais-isolados do ser social, e não a sua operante conexão ontológica como um todo.

Isto nos parece, também para os nossos dias e em relação ao bolsonarismo, correto. Contra a resposta bolsonarista ao desespero dos milhões, devemos postular com clareza que sem a superação do capital, não há alternativa à crise. Com uma enorme vantagem não apenas ideológica, mas também política, a nosso favor: é factível, ainda que difícil, a superação do capital que superará a crise, enquanto a estratégia bolsonarista apenas a aprofundará. É neste terreno da totalidade que está o único campo de combate em que os antibolsonaristas podem ser vitoriosos. Apenas uma teorização que seja capaz de delinear para a sociedade uma alternativa à totalidade da ordem do capital será capaz de derrotar o conservadorismo. Fora disso, não resta possibilidade de uma oposição real à onda conservadora dos nossos dias. Aos marxistas, claro está, cabe nesta quadra histórica uma gigantesca responsabilidade, pois nenhuma outra corrente de pensamento tem maior familiaridade com a totalidade que o marxismo.

Mãos à obra, pois!

Agradecimentos

Não se aplica.

Bibliografia

  • LUKÁCS, G. Aparato crítico aos prolegômenos e ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018b.
  • LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018a .
  • LUKÁCS, G. (2018) Prolegômenos a uma ontologia do ser social e Para a ontologia do ser social. Maceió, Alagoas: Coletivo Veredas, 2018.
  • MARX, K. (1996) O Capital: Livro I. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
  • WITTGENSTEIN, L. Tractatus Lógico-philoso-phicus. São Paulo: EDUSP, 2001.

Notas

  • 1
    Lembremos, por exemplo, que Wittgenstein encerra seu Tractatus logico-philosophicus com estas palavras: “What we cannot speak about wemust pass over in silence“ (Sobre aquilo que não podemos falar, devemos permanecer em silêncio”) (WITTGENSTEIN, 2001, p. 129).
  • 2
    Cf. Lukács (2018, p. 221-2; 2018b, p. 51). (item Método, com várias indicações).
  • 3
    Lembremos, ainda, que o próprio Newton era também um alquimista.
  • 4
    Ainda: “A história nos mostra uma enorme quantidade de exemplos de como, em estreita conexão com uma falsa teoria, resultados corretos e importantes são alcançados na práxis imediata. Para citar, apenas marginalmente, a conexão ideológica entre o trabalho inicial e as ‘teorias’ mágicas, ainda que suas consequências sobressaíssem profundamente na práxis da Idade Média, seja apenas apontado o sistema ptolomaico, cuja falsidade científica foi evidenciada tão só depois de muito tempo, mas que, para os propósitos práticos (navegação, calendário etc.) funcionou quase perfeitamente.” (LUKÁCS, 2018, p. 354).
  • 5
    E ainda: “O apegar-se dos seres humanos envolvidos à sua deformada particularidade (Partikularität) sistematicamente degradada até a amoralidade obtém, portanto um suporte ideológico em concepções sobre o decurso do mundo justamente em decorrência de sua drástica inverdade; (...) as deformações moral-humanas da sua [do indivíduo] particularidade (Partikularität), posta como invencível, presumia obter um ‘sólido’ suporte naquela imagem de mundo fantasticamente inverídica.” (LUKÁCS, 2018a, p. 695).
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Consentimento do autor.
  • Consentimento para publicação

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2020
  • Aceito
    05 Maio 2020
  • Revisado
    12 Jun 2020
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