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O bem viver no Brasil: uma análise da produção acadêmica nacional

Good living in Brazil: an analysis of national academic production

Resumos

Resumo

Nos últimos anos, o conceito de bem viver tem atraído interesse em diversos espaços, inclusive no meio acadêmico brasileiro. Assim, assumimos aqui o objetivo de sistematizar sentidos atribuídos à expressão bem viver, tomando como base de dados a publicação acadêmica em revistas científicas brasileiras, tendo-se em vista a concepção original equatoriana. Trata-se de revisão integrativa da literatura realizada mediante busca em bases de indexação de periódicos brasileiros (Periódicos Capes, Scielo e Spell). Como resultado, constatamos o avanço nas publicações sobre o tema no Brasil nos últimos quatro anos, com predominância de adesão à concepção original do sumak kawsay equatoriano. O tema segue por dois caminhos complementares: uso de bem viver a partir de estudos com povos indígenas brasileiros, validando a concepção original; e uso de bem viver sob perspectiva crítica da modernidade, estabelecendo diálogo conceitual com diversos temas que se alinham, de alguma forma, ao debate descolonial.

Palavras-chave:
Bem Viver; Sumak Kawsay; Descolonialidade; Povos Indígenas


Abstract

In recent years, the concept of good living has attracted interest in various spaces, including the Brazilian academic environment. Thus, we assume here the objective of systematizing the meanings attributed to the expression good living, using academic publications in Brazilian scientific journals as a database, bearing in mind the original Ecuadorian conception. This is an integrative literature review carried out by searching indexing databases of Brazilian journals (Periódicos Capes, Scielo and Spell). As a result, we noticed the progress in publications on the subject in Brazil in the last four years, with a predominance of adherence to the original conception of the Ecuadorian sumak kawsay. The theme follows two complementary paths: the use of good living based on studies with Brazilian indigenous peoples, validating the original conception; and the use of good living from a critical perspective of modernity, establishing a conceptual dialogue with various themes that are somehow aligned with the decolonial debate.

Keywords:
Good Living; Sumak Kawsay; Decoloniality; Indigenous Peoples


Introdução

Nos últimos anos, o tema Bem Viver (BV) tem atraído a atenção em diversos meios, incluindo o acadêmico latino-americano e, recentemente, o brasileiro. O destaque concedido a esse constructo, da origem indígena, tem gerado diversos ecos na América Latina notadamente a partir da repercussão das constituições do Equador, em 2008 e da Bolívia, em 2009.

Há uma polissemia nas referências a BV, que aparece associado às noções de vida saudável, viver melhor, bem-estar, qualidade de vida, desenvolvimento humano, além de ter um destaque em projetos dos governos boliviano e equatoriano (ALCÂNTARA; SAMPAIO; 2017aALCÂNTARA, L. C. S; SAMPAIO, C. A. C. Bem viver: uma perspectiva (des)colonial das comunidades indígenas. Revista Rupturas, v. 7, n. 2, p. 1-31, 2017a. Doi: 10.22458/rr.v7i2.1831.
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). Constatamos que alguns usos não guardam relação direta com a noção original ou não apresentam claramente conexão com Sumak Kawsay. Ao mesmo tempo, o vemos empregado em movimentos sociais indígenas, em espaços de luta por igualdade e como bandeira identitária, evocando uma forma de agir e pensar no mundo.

A sistematização de usos do constructo BV, cuja origem remonta a povos indígenas da América Latina, representa um pensamento descolonial que suscita, conforme pontuam Oliveira e Lucini (2021)OLIVEIRA, E. de S.; LUCINI, M. O Pensamento decolonial: conceitos para pensar uma prática de pesquisa de resistência. Revista Boletim Historiar, v. 8, n. 01, 2021. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/15456. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, conceitos para pensarmos uma prática de pesquisa de resistência, de uma produção local autônoma frente à europeia e norte-americana. O construto do BV, entendemos, pode trazer importante contribuição ao pensamento local, já que se fundamenta justamente numa matriz própria, fora do eixo eurocêntrico. Mais do que uma argumentação própria e contextualizada (brasileira) sobre problemas do desenvolvimento contemporâneo, o exercício de sistematização que aqui apresentamos pode ajudar perceber, a partir de bases históricas e da evolução do conceito de BV, elementos para a construção de outros modos de vida. Assim, nos debruçamos a entender BV e suas potencialidades no contexto brasileiro.

Essas variações no uso conduzem ao questionamento de como o emprego do bem viver em textos acadêmicos no Brasil expressam convergências e divergências com a concepção original equatoriana? Nosso objetivo é sistematizar sentidos atribuídos à expressão bem viver tomando como base de dados a publicação acadêmica em revistas científicas brasileiras. A resposta à questão formulada dá-se em dupla direção: no entendimento e aplicações do contexto brasileiro e na correlação com a noção equatoriana original.

Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa se define como uma revisão integrativa da literatura a partir de três bases de dados — Periódicos Capes, Scielo e Spell — centrada em artigos científicos revisados por pares.

O texto está estruturado em cinco seções. Além desta introdução, seguem a apresentação dos procedimentos metodológicos adotados, com indicação das ferramentas e dos recursos utilizados na análise. Na sequência, aparece a seção denominada “Bem viver: visão geral”, quando fazemos um apanhado de autores relevantes no campo para mapear a compreensão predominante no Brasil. Na quarta seção, denominada “Levantamento bibliográfico nos periódicos brasileiros”, sistematizamos dados da pesquisa, apontando convergências e divergências de bem viver com a concepção original. Na última sessão, apresentamos as considerações finais, reforçando a polissemia em torno de bem viver na literatura brasileira, pontuando limites da pesquisa e indicando possibilidades para estudos futuros.

Procedimentos Metodológicos

A pesquisa realizada seguiu as seis etapas da revisão integrativa, conforme Botelho, Cunha e Macedo (2011)BOTELHO, L. L. R.; CUNHA, C. C. A.; MACEDO, M. (2011). O Método da Revisão Integrativa nos Estudos Organizacionais. Gestão e Sociedade, v. 5, n. 11, p. 121-136, 2011. DOI 10.21171/ges.v5i11.1220.
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, apresentadas na Figura 1. A revisão integrativa, de acordo com os autores, permite ao pesquisador traçar um panorama sobre a produção científica para conhecer a evolução de determinado tema ao longo do tempo e vislumbrar oportunidades de pesquisa.

Figura 1
- etapas e roteiro para a realização de uma revisão integrativa

Na primeira etapa, norteados pelo problema apresentado na introdução, definimos como descritor “bem viver”, dentro das bases selecionadas (Periódico Capes, Scielo e Spell) até o ano de 2021. A inclusão da base Spell se dá pela relevância na área de Administração, origem desta pesquisa, embora a entendamos como interdisciplinar. A escolha das bases Scielo e Periódico Capes se deu por serem consideradas duas das bases acadêmicas mais relevantes no Brasil.

Na segunda etapa, realizamos uma busca preliminar com o descritor citado, tendo retornado o total de 536 textos nas três bases somadas. Nesse total, constou-se material sem qualquer relação com a temática. A busca foi, então, refinada, a partir da verificação do termo no título e/ou resumo. Passamos à depuração dos dados, com a exclusão de artigos não encontrados, de sobreposições entre as bases, de um resíduo da busca que escapou ao filtro (preprints e textos que não eram artigos científicos) e de textos publicados em periódicos não brasileiros. O resultado foram 63 artigos — 48 no Periódicos Capes, 12 no Scielo e três no Spell, sendo dois exclusivamente em inglês, três exclusivamente em espanhol e 58 em português ou com versões também em português. Ressalta-se que como o propósito da pesquisa foi verificar a produção nacional, e não a especificamente publicada em língua portuguesa, o critério para inclusão foi “periódicos brasileiros, com artigos publicados em quaisquer idiomas”.

A terceira etapa envolveu a leitura dos resumos e de partes dos artigos (especialmente introdução, metodologia e conclusão), como medida para pré-classificação do material. Assim, foi possível montar um panorama geral do uso de bem viver em formato de mapa conceitual, que aparece na Figura 2 e será mais bem detalhado na seção pertinente.

Figura 2
- Mapa conceitual da classificação dos artigos sobre o bem viver publicados em revistas brasileiras

Esta pré-classificação gerou uma categoria especialmente relevante para a análise integrativa, vinculada ao debate indígena, direta ou indiretamente. Esta categoria apontou 52 artigos (frente aos 63 originalmente acolhidos), com 42 provenientes do Periódicos Capes, oito do Scielo e dois do Spell. A partir desta categorização, foram identificados os principais autores e revistas dos artigos, a distribuição das publicações por ano e as principais referências utilizadas. Passamos, então, à 4ª etapa, com a síntese desta categoria.

Organizamos tabelas e gráficos com o auxílio do Microsoft Excel. A síntese, na 4ª etapa, envolveu a identificação do tipo de pesquisa, da abordagem metodológica de pesquisa, dos instrumentos de coleta de dados utilizados e dos instrumentos de tratamento/análise dos dados. Realizamos, então, uma leitura flutuante do conteúdo dos artigos de forma a construir compreensão substantiva dos usos de bem viver.

Seguimos, então, para a interpretação dos dados sintetizados, no cumprimento da 5ª e 6ª etapas da revisão integrativa proposta. O material foi analisado a partir de dados bibliométricos, de parâmetros metodológicos e em termos de conteúdo com vistas à concepção de um quadro teórico sobre a utilização do bem viver na publicação científica brasileira.

Origem e Tendências Teóricas do Bem Viver

Alcântara e Sampaio (2017a, pALCÂNTARA, L. C. S; SAMPAIO, C. A. C. Bem viver: uma perspectiva (des)colonial das comunidades indígenas. Revista Rupturas, v. 7, n. 2, p. 1-31, 2017a. Doi: 10.22458/rr.v7i2.1831.
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. 3) identificam, na literatura, uma série de vieses para bem viver. Segundo os autores, a expressão é “filosofia de vida (Acosta, 2010), cosmologia (Walsh, 2010), atitude de vida (Cortez, 2011), ontologia (Thomson, 2011), modelo de desenvolvimento (Radcliffe, 2012), e alternativa ao desenvolvimento (Gudynas, 2011)”. Hidalgo-Capitán e Cubillo-Guevara (2014)HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; CUBILLO-GUEVARA, A. P. Seis Debates Abiertos Sobre el Sumak Kawsay. Íconos: Revista de Ciencias Sociales, v. 48, p. 25-40, 2014. DOI 10.17141/iconos.48.2014.1204.
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, por sua vez, apontam que existe uma polêmica na própria tradução do termo indígena sumak kawsay para bien vivir (bem viver). Esta tradução geraria uma redução de sentido, que faz com que o termo seja empregado para se referir ao bem-estar material, alijando a dimensão espiritual do conceito, tida como central para os povos indígenas e para o próprio entendimento do que seria sumak kawsay (HIDALGO-CAPITÁN; CUBILLO-GUEVARA, 2014HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; CUBILLO-GUEVARA, A. P. Seis Debates Abiertos Sobre el Sumak Kawsay. Íconos: Revista de Ciencias Sociales, v. 48, p. 25-40, 2014. DOI 10.17141/iconos.48.2014.1204.
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).

Hidalgo-Capitán e Cubillo-Guevara (2014)HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; CUBILLO-GUEVARA, A. P. Seis Debates Abiertos Sobre el Sumak Kawsay. Íconos: Revista de Ciencias Sociales, v. 48, p. 25-40, 2014. DOI 10.17141/iconos.48.2014.1204.
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apontam, ainda, três correntes do bem viver no debate equatoriano: a) socialista e estadista, se refere à gestão política/estatal, na perspectiva da criação de um “novo socialismo”; b) pós-desenvolvimentista e ecologista, critica o desenvolvimento, e busca o aporte dos mais diversos movimentos sociais, constituindo-se numa perspectiva “construtivista e pós-moderna”; e c) indigenista e pachamamista que busca o pensamento indígena tradicional, criticando o afastamento da dimensão espiritual dos debates.

Pode-se evidenciar certa dualidade na definição do termo bem viver. Ao mesmo tempo em que é percebido como concepção indígena-americana de mundo, o conceito é também identificado como movimento social e político, com discurso propositivo e aglutinador para diversos propósitos. É possível defender, entretanto, que nestas duas formas não há contradição efetiva. Assim, BV seria a tradução da filosofia indígena que representa, também, uma ideia que carrega uma força motriz capaz de mobilizar pessoas e grupos em busca de transformações sociais. Hidalgo-Capitán, Arias e Ávila (2014, pHIDALGO-CAPITÁN, A. L.; ARIAS, A.; ÁVILA, J. El Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre el Sumak Kawsay. In: HIDALGO-CAPITÁN, A. L. et al. (org.), Sumak Kawsay Yuyay: Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay, Espanha, Universidad de Huelva, 2014.. 18) apontam que “la reivindicación del Sumak Kawsay ancestral como proyecto político de futuro tiene también algo de idealización de las formas de vidas tradicionales de los indígenas ecuatorianos”. Mecca e Brito (2021)MECCA, A. C.; BRITO, M. M. Resistência e Coexistência: Da Produção de Mercadorias à Valorização da Vida. Motricidades, v. 5, n. 1, p. 55-64, 2021. DOI 10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-p55-64.
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entendem, também, que BV se relaciona, na literatura, a tradições indígenas e a críticas aos socialismos antropocêntricos e toda forma de autoritarismo, direcionando-se à transformação a favor de visões sociobiocêntricas, nas quais bem viver e direitos da natureza estão presentes.

Do ponto de vista semântico, o termo que dá origem ao conceito de bem viver é o sumaq kawsay, do povo Kíchwa. Nesse caso, sumaq significa beleza, ternura, de forma que sumak kawsay traduz uma forma bela de viver (SALGADO, 2010SALGADO, F. Sumaq Kawsay: the birth of a notion? Cadernos Ebape.Br, v. 8, n. 2, p. 198-208, 2010. DOI 10.1590/S1679-39512010000200002.
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). Isto significa, a partir da perspectiva da agricultura camponesa andina, que “sabedoria é amor, cuidado, simbiose, conversação, reciprocidade e dança” (SALGADO, 2010, pSALGADO, F. Sumaq Kawsay: the birth of a notion? Cadernos Ebape.Br, v. 8, n. 2, p. 198-208, 2010. DOI 10.1590/S1679-39512010000200002.
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. 200).

Segundo Hidalgo-Capitán, Arias e Ávila (2014), oHIDALGO-CAPITÁN, A. L.; ARIAS, A.; ÁVILA, J. El Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre el Sumak Kawsay. In: HIDALGO-CAPITÁN, A. L. et al. (org.), Sumak Kawsay Yuyay: Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay, Espanha, Universidad de Huelva, 2014.sumaq kawsay andino assume duas dimensões fundamentais: uma territorial e outra ética. Na primeira, sumaq kawsay só pode ocorrer em um território onde se expressam elementos materiais e espirituais. O bom relacionamento com o território e com estes elementos é fundamental à expressão do sumak kawsay. Para a existência desta boa relação, são necessárias fortaleza interior (sámai), conduta equilibrada (sasi), sabedoria (yachai), capacidade de compreensão (ricsima), percepção de futuro (muskui), perseverança (ushai) e compaixão (llakina). Tais elementos são enlaçados por meio de um processo de ensino/aprendizagem comunitário, baseado nos mitos e na experiência (yachichina) (VITERI apudHIDALGO-CAPITÁN; ARIAS; ÁVILA, 2014HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; ARIAS, A.; ÁVILA, J. El Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre el Sumak Kawsay. In: HIDALGO-CAPITÁN, A. L. et al. (org.), Sumak Kawsay Yuyay: Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay, Espanha, Universidad de Huelva, 2014.).

A dimensão ética inclui valores como harmonia doméstica (mikuna, upina e huarmita yukuna), solidariedade ou compaixão (llakina), ajuda (yanapana), generosidade (kuna), a obrigação de receber (japina), a reciprocidade (kunakuna), o conselho (kamachi) e a escuta (uyana) (HIDALGO-CAPITÁN; ARIAS; ÁVILA, 2014, pHIDALGO-CAPITÁN, A. L.; ARIAS, A.; ÁVILA, J. El Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre el Sumak Kawsay. In: HIDALGO-CAPITÁN, A. L. et al. (org.), Sumak Kawsay Yuyay: Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay, Espanha, Universidad de Huelva, 2014.. 36). Outros pontos que ajudam a compreender o bem viver são a trilogia andina (não seja preguiçoso, não seja mentiroso, não seja ladrão) e os quatro princípios da chakana (reciprocidade, integralidade, complementariedade e relacionalidade). Por fim, Hidalgo-Capitán, Arias e Ávila (2014)HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; ARIAS, A.; ÁVILA, J. El Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre el Sumak Kawsay. In: HIDALGO-CAPITÁN, A. L. et al. (org.), Sumak Kawsay Yuyay: Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay, Espanha, Universidad de Huelva, 2014. apontam que:

Teniendo todo esto en cuenta, el Sumak Kawsay se configura como la filosofía de vida del indígena basada en la búsqueda y el mantenimiento de la armonía con la comunidad y con los demás seres de la naturaleza y que tiene tanto un plano de aspiración vital como otro de cotidianeidad vital. (HIDALGO-CAPITÁN; ARIAS; ÁVILA, 2014, pHIDALGO-CAPITÁN, A. L.; ARIAS, A.; ÁVILA, J. El Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre el Sumak Kawsay. In: HIDALGO-CAPITÁN, A. L. et al. (org.), Sumak Kawsay Yuyay: Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay, Espanha, Universidad de Huelva, 2014.. 37-38).

Zambrano e Páucar (2014)ZAMBRANO, G. A. M.; PÁUCAR, R. P. S. Visão Altermundialista do Paradigma do Bom Viver e Pensamento Ecosociocentrico em um Povoado Indígena no México. Revista Hospitalidade, v. 11; n. 2, p. 134-157, 2014. Disponível em: https://www.revhosp.org/hospitalidade/article/view/546. Acesso em 05/2021. Acesso em: 22 nov. 2021.
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, por sua vez, apontam cinco traços como mais significativos para o BV: a) sentido de reciprocidade, b) dimensão biosocioeconômica, c) sentido da intersubjetividade, d) a Terra em seu atributo de Mãe; e, e) espiritualidade indígena, todos intimamente entrelaçados.

Já Bock (apudALCÂNTARA et al., 2017ALCÂNTARA, L. C. S. et al. Bem viver: discussões teórico conceituais. Revista Pensamiento Actual, v. 17, n. 28, p. 66-77, 2017. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6053600. Acesso em: 10 dez. 2021.
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) aponta quatro traços para o bem viver: a) relação do senso de territorialidade e natureza, ou seja, a terra possui significado essencial para tal modo de viver; b) há uma relação fundamental com a cultura e os antepassados, bem como com a sua transmissão entre gerações; c) a economia do BV é de partilha e do presente, ou seja, não há acumulação; d) há forte senso de comunidade e o respeito com o outro está no centro do BV.

Sintetizando, bem viver é um conceito que se fundamenta em práticas tradicionais de povos nativos das Américas, apresentando princípios, cosmovisões e formas de vida a partir de elementos comuns entre si. Por outro lado, a fortaleza das práticas e conceitos pré-hispânicos ancoram-se justamente na constituição de uma cultura mestiça, ou seja, permeável a mudanças e incorporações (ZAMBRANO; PÁUCAR; 2014ZAMBRANO, G. A. M.; PÁUCAR, R. P. S. Visão Altermundialista do Paradigma do Bom Viver e Pensamento Ecosociocentrico em um Povoado Indígena no México. Revista Hospitalidade, v. 11; n. 2, p. 134-157, 2014. Disponível em: https://www.revhosp.org/hospitalidade/article/view/546. Acesso em 05/2021. Acesso em: 22 nov. 2021.
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). Assim, há conhecimentos, códigos de conduta ética e espiritual, valores, narrativas de mundo, contos e visão de futuro especificamente desenvolvidos no contexto de cada povo (ACOSTA, 2016, pACOSTA, A. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda, São Paulo: Editora Elefante, 2016.. 71). Para Mundukuru (2017), uma característica dos povos tradicionais é que a cultura se mantém viva porque se atualiza; e esse caráter dinâmico é parte fundamental do bem viver.

No que se refere ao segundo aspecto da dualidade do BV, a noção que predomina é que este seria um movimento que advoga por mudança global e que apresenta pautas em diversos contextos políticos, inclusive no âmbito do Estado (ACOSTA, 2016ACOSTA, A. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda, São Paulo: Editora Elefante, 2016.), o que seria equivalente às já referidas correntes socialista/estadista e pós-desenvolvimentista/ecologista do BV (HIDALGO-CAPITÁN, CUBILLO-GUEVARA; 2014HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; CUBILLO-GUEVARA, A. P. Seis Debates Abiertos Sobre el Sumak Kawsay. Íconos: Revista de Ciencias Sociales, v. 48, p. 25-40, 2014. DOI 10.17141/iconos.48.2014.1204.
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). Tais correntes referem-se, por um lado, a alternativas ao desenvolvimento associadas a um projeto utopista de sociedade e, por outro, a uma construção política que implicaria na criação de novas normas, leis e políticas públicas no contexto de Estados nacionais. Assim, a busca do bem viver, da vida boa, do viver bem, não seria propriedade exclusiva de qualquer cultura ou movimento.

Esta perspectiva do BV toma corpo, segundo Hidalgo-Capitán, Arias e Ávila (2014)HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; ARIAS, A.; ÁVILA, J. El Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre el Sumak Kawsay. In: HIDALGO-CAPITÁN, A. L. et al. (org.), Sumak Kawsay Yuyay: Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay, Espanha, Universidad de Huelva, 2014., no contexto equatoriano, a partir de sete fatores: a) descrédito do Estado-nação como representação da crise da modernidade; b) forte surgimento do movimento indígena equatoriano como movimento de resistência, associado à organização política e ao alcance nacional das suas ações; c) emergência dos movimentos sociais alternativos e sua sintonia com os movimentos indigenistas; d) redação da constituição de 2008, que incorporou o conceito de bem viver; e) coincidência temporal com o processo constituinte boliviano, que fortaleceu o equatoriano com inclusão similar; f) desgaste do conceito de desenvolvimento no meio acadêmico como crise da modernidade; g) acesso de pensadores indígenas e indigenistas em espaços acadêmicos.

Há um entendimento que a corrente indigenista do BV caminha para a noção de alternativas ao desenvolvimento, ao contrário de alternativas do desenvolvimento, num sentido já apontado por Santos e Rodríguez (2002)SANTOS, B. S.; RODRÍGUEZ, C. Para ampliar o cânone da produção. In: SANTOS, B. S. (org.). Produzir para viver: os caminhos da produção capitalista. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.. Esta afirmação se funda no fato de que a maioria das visões nativo-americanas de mundo nem mesmo comporta este conceito de desenvolvimento (ACOSTA, 2016ACOSTA, A. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda, São Paulo: Editora Elefante, 2016.). Ou seja, as bases do pensamento indígena repousam em um lugar diferente do marco da modernidade:

No se trata de integrarnos al progreso científico […] para equipararnos y continuar con el proceso civilizatorio […], sino […] de salir de esos presupuestos y de establecer otra “visión y misión” de los seres humanos sobre la vida. El problema no es solamente el pos-desarrollo, el pos-capitalismo[,] sino la pos-civilización (pos-patriarcalismo, pos-materialismo, poseconomicismo, pos-historicismo, pos-antropocentrismo, pos-racionalismo, pos-politicismo, pos-cientificismo, pos-cosificación, pos-secularización, y todos los reduccionismos y separatismos creados y sub-creados por el paradigma civilizatorio). (OVIEDO, 2011, p. 240, apudHIDALGO-CAPITÁN; ARIAS; ÁVILA, 2014, pHIDALGO-CAPITÁN, A. L.; ARIAS, A.; ÁVILA, J. El Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre el Sumak Kawsay. In: HIDALGO-CAPITÁN, A. L. et al. (org.), Sumak Kawsay Yuyay: Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay, Espanha, Universidad de Huelva, 2014.. 50).

Na visão de Acosta (2016)ACOSTA, A. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda, São Paulo: Editora Elefante, 2016., está em curso um arcabouço para a criação de utopias pós-capitalistas, ou seja, não apenas pós-neoliberais, de forma que o BV se torna plataforma para discutir problemas globais e locais. Alcântara e Sampaio (2017a)ALCÂNTARA, L. C. S; SAMPAIO, C. A. C. Bem viver: uma perspectiva (des)colonial das comunidades indígenas. Revista Rupturas, v. 7, n. 2, p. 1-31, 2017a. Doi: 10.22458/rr.v7i2.1831.
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, por exemplo, citam os temas slow cities, slow food, ecovilas, permacultura, ecogastronomia, bem-estar e turismo de base comunitária, como correlatos.

Outro exemplo concreto deste desdobramento é o chamado “Novo Constitucionalismo Latino-Americano”, a partir dos anos 90 e início dos 2000. No Equador, houve o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos, quando da aprovação da constituição em 2008. Movimento similar fez a Bolívia, em 2009 e, embora esta tenha avançado menos do que a primeira no texto final, incorporou Pachamama à sua redação, outorgando-lhe também direitos constitucionais (ACOSTA, 2016, pACOSTA, A. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda, São Paulo: Editora Elefante, 2016.. 28).

O “Bem Viver” na Publicação Científica Brasileira

A primeira parte da análise é da base com 52 textos, recortados da base geral de 63 artigos, seguindo procedimento da categorização anteriormente pontuado. Destacamos que, em 2021, a publicação anual dobrou em relação a 2020, conforme pode-se observar no Gráfico 1. A primeira publicação ocorreu 2010, coincidindo com o debate político no Equador e na Bolívia.

Gráfico 1
- Artigos publicados por ano

Com relação às revistas, o maior número de publicações está na revista Motricidades (seis artigos), seguida pela Research, Society and Development e pela Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação, ambas com três. A Revista Mana, da Universidade Federal do Rio de Janeiro tem duas publicações. Os demais textos estão dispersos em 38 diferentes periódicos, perfazendo 42 no total (Quadro 1).

Quadro 1
- Lista dos periódicos com um artigo publicado

Alcântara e Sampaio (2017b)ALCÂNTARA, L. C. S; SAMPAIO, C. A. C. Bem viver como paradigma de desenvolvimento: utopia ou alternativa possível? Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 40, p. 231-251, 2017b. DOI 10.5380/dma.v40i0.48566.
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, realizaram levantamento anterior sobre a produção em bem viver, sem recorte regional, pesquisando nas bases Periódicos Capes e Scielo. Realizaram um recorte mais amplo, com a aplicação dos descritores “bem viver”, “bien vivir”, “vivir bien” e “good living” no título, introdução, resumo e palavras-chave. Nesse estudo, foram encontrados 66 artigos publicados entre 2001 e 2015, sendo 61 em espanhol e três em português. Entretanto, nesse estudo preliminar não houve aprofundamento sobre conteúdo destes artigos.

Seguindo a classificação mais recente de periódicos científicos da Capes (Qualis), de 20191, analisamos a distribuição dos artigos por extratos. Constatamos maior concentração nos níveis A1-A4, perfazendo 23 artigos (54%), com 15 destes em revistas A1 e A2 (29%).

A autoria dos textos é igualmente dispersa, com apenas três nomes repetidos: Liliane Cristine Schlemer Alcântara (três artigos), Carlos Alberto Cioce Sampaio e Pedro José Santos Carneiro Cruz (dois artigos cada). Os dois primeiros autores possuem dois artigos em coautoria.

Dentre os autores mais citados nos textos, destaca-se Alberto Acosta, com 45 referências. O autor detém, também, a obra mais citada, que aparece 19 vezes: “O Bem Viver: uma Oportunidade para Imaginar Outros Mundos” (ACOSTA, 2016ACOSTA, A. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda, São Paulo: Editora Elefante, 2016.). O Quadro 2 complementa esses destaques, apresentando os autores com mais de 10 citações.

Quadro 2
- Lista de autores e obras mais citados

Se tomarmos os dez textos únicos mais referenciados, teríamos dois acréscimos a fazer no Quadro 2: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com oito citações, aparecendo como o terceiro texto mais citado no conjunto, e um segundo texto de Alberto Acosta, denominado “El Buen Vivir en el camino del pos-desarrolllo. Uma lectura desde la Constitución de Montecristi”, que aparece como a sétima referência mais citada.

Retomando a base integral, ou seja, o conjunto de 63 artigos, identificamos quatro usos principais para o termo bem viver: a) Como código de conduta e costumes, em cinco artigos com uma correlação praticamente inexistente com a discussão da temática do BV indígena; b) Como sinônimo de qualidade de vida, em dois textos, se referindo a estilo de vida e organização da cidade, ainda com correlação muita baixa com a discussão indígena; c) Como qualidade de vida associada ao bem comum, em três textos com estreita relação com o item anterior, entretanto, com ênfase em elementos que se referem ao bem comum e à perspectiva coletiva como caracterização de qualidade de vida; nestes casos, o BV aparece sem contextualização, sendo apenas citado e; por fim, d) Pelos princípios originários, em que aparecem os 52 textos com referências diretas ou indiretas ao conceito de sumaq kawsay. Esta classe concentra o maior número de textos e, por essa razão, é mais bem detalhada neste artigo, com a realização de uma estratificação em subclasses. A forte presença desta categoria indica que predominam, nos textos em análise, o bem viver construído a partir da base do debate indígena do sumaq kawsay. Esta divisão pode ser visualizada na Figura 2.

O mapa conceitual com as quatro perspectivas citadas anteriormente (Figura 2) revela que a última, conectada ao debate do Sumaq Kawsay, assume sentidos distintos. Assim, a subdividimos em dois grupos: referências diretas a povos indígenas (com 16 artigos); e referências ao conceito originário mediante abordagens de temas correlatos (com 36 artigos).

No primeiro grupo (16 artigos), são estudados os povos Guarani (seis artigos), Hupd'ah, Kayapó, Mundukuru, Tabajara, Puruborá, Kaukuana, Urireo, Mapuche, Warequena, Baníwa, Xukuru do Orurobá, Tariána, Terena, Arapaso, AtikumUmã, com os sete últimos reportados em um único artigo. Além desses, estão Pankararu e Pataxó reportados em um único texto, fechando um total de 18 povos estudados. Nesse conjunto de textos, BV é sinônimo e/ou representa cultura e cosmovisão dos povos indígenas citados. Dentro desses textos aparecem muitas outras designações que são típicas do povo estudado, e que são tidas como equivalentes ao BV, como: o guarani teko porã ou nhadereko (DALLA ROSA, 2009), o Mapuche Küme Mognem (ALCÂNTARA. ZUÑIGA, 2021ALCÂNTARA, L. C. S.; ZUÑIGA, C. H. Bem viver como forma de resistência no programa de turismo de base comunitária Los Ríos, Panguipulli (Sul Do Chile). Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, v. 17, n. 2, 2021. DOI 10.54399/rbgdr.v17i2.6337
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), o náw ibiy, do povo Hupd’ah (MONTEIRO; MCCALLUM, 2013MONTEIRO, L. R.; MCCALLUM, C. A. A nocão de “bem viver” Hupd’ah em seu território. Mundo Amazônico, v. 4, p. 31-36, 2013. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/imanimundo/article/view/34838. Acesso em: 22 nov. 2021.
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). Da mesma forma, na literatura internacional, são apontados o boliviano Suma Qamana (HIDALGO-CAPITÁN; ARIA; ÁVILA, 2014), o africano Ubuntu e o indiano svadeshi, swaraj e apargrama (ACOSTA, 2016ACOSTA, A. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda, São Paulo: Editora Elefante, 2016.).

Entre estes artigos com objeto focado em povos indígenas, oito tão somente evocam BV e o povo indígena pautado como exemplo. Nestes casos, a descrição em si do povo indígena e dos respectivos costumes não são centrais, e os usos de BV são para auxiliar em debates de perspectivas descoloniais. Identificamos, entre eles, pautas em comunicação, utilização de indicadores, tempo (cronológico), educação escolar indígena, políticas públicas, território e debate sobre modernidade/descolonialidade. Tais textos validam a ideia/conceito de BV como representação da forma de viver dos povos indígenas e respectivo potencial para uso em contextos não indígenas e revelam elementos transversais ao conceito de BV que, por meio de formas genéricas e abstratas, intentam traduzir a cosmovisão indígena.

O segundo grupo (36 artigos), por sua vez, reúne textos que estabelecem correlação com o BV sem referência direta ou específica a nenhum povo indígena. Neste conjunto, emergem 11 tópicos gerais. Os que podem ser considerados mais relevantes (pela repetição de menções em artigos diferentes) são sete:

a) Descolonialidade. Apresenta sete textos, que discutem colonialidade/descolonialidade/modernidade, epistemologias do sul e críticas ao capitalismo e ao mercado. São ensaios críticos à modernidade, e apresentam BV por um viés contra-hegemônio e como elemento para apontar outros caminhos e formas de ver o mundo;

b) Novo constitucionalismo latino-americano e outras perspectivas no Direito. De seis textos, quatro fazem referência direta ao novo constitucionalismo latino-americano, correlacionando-o ao direito à água, à saúde e saneamento básico, aos direitos humanos e à perspectiva ética de Ronald Dworkin (filósofo e jurista que discute a unidade de valor entre ética e moral). Compõem este conjunto, ainda, um texto sobre impacto jurídico do BV no direito ambiental e na sustentabilidade, e outro que aborda política pública de compras sustentáveis;

c) Ecossocioeconomia e agroecologia. Dentre os quatro textos com esse viés, dois correlacionam BV à agroecologia r outros dois à economia solidária e à socioeconomia;

d) Pós-desenvolvimento e decrescimento. Este grupo, com quatro texto, concentra críticas ao modelo contemporâneo de desenvolvimento, apontando como BV caminha por uma lógica pós-desenvolvimentista. Um dos textos faz relação direta ao decrescimento proposto pelo economista Serge Latouche.

e) Gênero e raça. Dentre quatro textos desse viés, dois tratam do debate descolonial explicitamente, evidenciando elementos de racismo e de discriminação de gênero dentro do contexto moderno/colonial. Dois outros abordam movimentos feministas que utilizam BV na denominação, sem, contudo, aprofundar o debate em torno da expressão;

f) Saúde popular e educação em saúde. Três dos quatro textos aqui catalogados usam como referência a educação popular na saúde, com dois deles pautando especificamente processos formativos e outro refletindo aprendizagens de BV para o cuidado em saúde coletiva, fundado na reciprocidade. O quarto texto aborda saúde mental e contribuições que o BV traz à construção de outro modo de viver coletivamente;

g) Educação. Os três textos desse grupo debatem sentidos e perspectivas da educação a partir do conceito de BV. Um texto estabelece relação de BV com a pedagogia Freinet, arte/educação e relações étnico-raciais. Outro questiona, num nível teórico, como se pode produzir educação emancipadora nas bases do BV. O terceiro pauta como o BV pode contribuir para a educação ambiental no ambiente escolar. Neste último caso, há uma questão prática, enquanto os dois primeiros trazem debate epistemológico.

Quatro outros temas aparecem com um artigo cada: instrumento de avaliação e criação de indicadores com base no BV; relação entre prática esportiva tradicional e BV; contribuição do BV para o cuidado de animais; e, religiosidade cristã à luz do BV.

Em síntese, no conjunto analisado predominam leituras descoloniais, sob viés crítico à modernidade. A perspectiva descolonial ancora, então, debates e conexões teóricas e empíricas entre o BV e os demais temas.

Do ponto de vista metodológico, as preferências do conjunto são pesquisa de natureza qualitativa, com apenas uma indicação de pesquisa quantitativa. De forma específica, constatamos que no grupo “Estudos de Povos Indígenas” predominam pesquisas de campo (11 dos 16 artigos), com preferência pela abordagem etnográfica (três artigos), e pelos instrumentos de coleta “observação” (seis artigos) e “entrevista” (cinco artigos). Já no grupo “Estudos Temáticos” prevalecem estudos teóricos (31 dos 36 textos). Essa diferença condiz com o perfil geral identificado em cada grupo: no primeiro emergem caracterizações de dado povo, que ocorre, principalmente, pela pesquisa de campo; no segundo, ao contrário, prevalecem ensaios, esforços argumentativos para estabelecer conexões conceituais entre o BV e outros temas.

Considerações Finais

Cabe destacar o fato de que, ao contrário do contexto equatoriano, no Brasil ainda não se tem densidade de publicações nem de debate público em torno do BV. Diferentemente de países como Equador e Bolívia, o Brasil não vivenciou discussão no âmbito legal para considerar pressupostos indigenistas na constituição. Aqui a discussão segue de modo marginal, em luta por leis e decretos que, de algum modo, reflitam demandas dos povos indígenas.

É importante destacar, ainda, que há, de forma geral, adesão da publicação científica brasileira que trata do bem viver à origem do termo, evidenciada por um conjunto de textos fundamentados diretamente ou indiretamente no conceito originário sumak kawsay equatoriano. Esse resgate predomina na caracterização da bibliografia por nós catalogada.

Assim, a academia brasileira escolheu um caminho particular em termos do uso do conceito bem viver: tanto o de explorar diversas possibilidades de aplicação no aspecto teórico, no que se refere a debates conceituais, quanto para orientar e compreender práticas diversas do contexto indígena. De qualquer forma, muitas destas aplicações são usos que se enquadram em correntes já citadas na literatura internacional, quais sejam, a “pós-desenvolvimentista e ecologista” e a “indigenista e pachamamista”, conforme a classificação de Hidalgo-Capitán e Cubillo-Guevara (2014)HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; CUBILLO-GUEVARA, A. P. Seis Debates Abiertos Sobre el Sumak Kawsay. Íconos: Revista de Ciencias Sociales, v. 48, p. 25-40, 2014. DOI 10.17141/iconos.48.2014.1204.
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.

Estes dois aspectos são os dois grupos identificados dentro da categoria de textos que seguem os princípios originários apontada neste texto e representam, assim, a contribuição brasileira ao debate do BV. Por um lado, pela validação e aplicação do conceito a partir de contextos diferentes do originário do Povo Kíchwa, ou seja, com povos indígenas do Brasil, situação em que se atribuem matizes e novas designações a BV, a exemplo de nhandereko. Por outro lado, pela ampliação do uso do termo, pela aproximação do conceito com debates em torno de modernidade/descolonialidade, direito ambiental/novo constitucionalismo, agroecologia, socioeconomia, pós-desenvolvimento, decrescimento, gênero, raça, saúde popular, educação popular, educação escolar, avaliação de indicadores, esportes, animais, religiosidade, comunicação popular, políticas públicas e território.

A contribuição brasileira apresenta potencial para inserir na agenda de pesquisa temas descoloniais e dimensões indígenas contextualizadas de BV. Pode, ainda, contribuir para o enfeixamento de ações e movimentos políticos em torno de uma força identitária, mobilizadora, que representa, em grande medida, o modo de pensar e agir de povos tradicionais locais.

A transposição do uso do termo para o contexto brasileiro, antes de representar descaracterização, desponta, assim, como reconhecimento à força mobilizadora do BV como elemento genuíno de um pensamento latino-americano com uma das maiores forças mobilizadoras dos últimos tempos (concordando com o que afirmam Acosta (2016)ACOSTA, A. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda, São Paulo: Editora Elefante, 2016., Alcântara et al. (2017)ALCÂNTARA, L. C. S. et al. Bem viver: discussões teórico conceituais. Revista Pensamiento Actual, v. 17, n. 28, p. 66-77, 2017. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6053600. Acesso em: 10 dez. 2021.
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e Hidalgo-Capitán, Ária e Ávila (2014)). Podemos, assim, tratar a pauta brasileira de BV como um passo em direção à construção de um pensar e agir autônomo que, ao contextualizar diversas dimensões culturais, consegue entender o valor de se pensar um mundo a partir de raízes e de tradições próprias.

Agradecimentos

À Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação da UFCA. Ao Programa de Pós-Graduação em Administração da UFRN.

  • Notas

    1 Ainda não lançado oficialmente, e popularmente conhecido como “Novo Qualis”.
  • Agência financiadora Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (PRPI/UFCA). Apoio ao Projeto “A Gestão Social em Povos Indígenas: diálogos com Povos do Nordeste do Brasil” (0041/2022-01).
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não aplicável.
    Consentimento para publicação Os autores consentem com os termos da publicação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
  • Revisado
    15 Maio 2023
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