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Trabalho, Valor e Preço: o planejamento econômico sob a crítica marxista do valor

Work, Value and Price: economic planning under the Marxist critique of value

Resumos

Resumo

A partir de exegeses e análises econômicas de Marx e de importantes economistas marxistas, buscou-se apresentar pressupostos teóricos sobre a relação entre teoria do valor e organização econômica da sociedade. Apreendendo determinações do mercado capitalista, com destaque para a vigência da forma mercadoria e da concorrência entre os capitais, indicou-se como a manifestação do valor das mercadorias pelo seu preço tanto impossibilita o planejamento econômico pelo tempo de trabalho socialmente necessário, como incide em processos de redistribuição de valor na esfera da circulação. Estas determinações capitalistas atuam como uma força cega que impedem o controle consciente da organização econômica.

Palavras-chave:
economia política; teoria do valor; planejamento econômico; trabalho; mercadoria


Abstract

Based on exegeses and economic analyses by Marx and important Marxist economists, it sought to present theoretical assumptions about the relationship between theory of value and the economic organization of society. Apprehending determinations of the capitalist market, with emphasis on the validity of the commodity form and competition between capitals, it was indicated how the manifestation of the value of commodities by their price both makes economic planning impossible for the socially necessary labour time, as well how it affects the redistribution processes of value in the sphere of circulation. These capitalist determinations act as a blind force that prevents conscious control of economic organization.

Keywords:
political economy; value theory; economic planning; work; merchandise


Introdução

Em uma famosa passagem do livro III de O Capital, Marx (1986a)MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro III, Tomo I: O processo global da produção capitalista (editado por Friedrich Engels). 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986a. esboça algumas características fundamentais sobre uma sociedade regulada por um novo modo de produção, que surgiria depois do capitalismo, em direção ao comunismo. Nesse sentido, o autor alemão apontou para a complexa relação entre o reino da necessidade e o reino da liberdade, que não poderia ser analisada como um dualismo a ser superado, mas como um processo em que o desenvolvimento produtivo daquele possibilitaria o alargamento das condições deste. Para tanto, a organização do trabalho se constituiria como um fator central para a inserção no reino da liberdade. De um lado, em todos os modos de produção, as atividades humanas precisariam responder a necessidades de reprodução da vida. De outro lado, um elevado grau de desenvolvimento produtivo fomentaria espaços de liberdade elevados, que transcenderiam a “esfera da produção material propriamente dita” (MARX, 1986a, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro III, Tomo I: O processo global da produção capitalista (editado por Friedrich Engels). 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986a.. 273).

Se o desenvolvimento do trabalho operaria como fundamento desta dinâmica, o seu diapasão estaria localizado na forma organizativa deste processo. No lugar de estarem subsumidos a forças cegas derivadas de causalidades do modo de produção capitalista, a organização do trabalho e a produção econômica requeriam um controle comunitário e racionalizado, operado pelos produtores associados:

Neste terreno, a liberdade só pode consistir em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a Natureza, trazendo-o para seu controle comunitário, em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. Mas este sempre continua a ser um reino da necessidade. Além dele é que começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental. (MARX, 1986a, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro III, Tomo I: O processo global da produção capitalista (editado por Friedrich Engels). 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986a.. 273).

A mediação proposta entre o desenvolvimento das forças produtivas e o controle social comunitário anuncia várias questões a serem elucidadas. Nesse meio, destacam-se quais procedimentos e instrumentos poderiam ser empregados para a construção de uma organização econômica capaz de superar a subsunção destas causalidades e forças cegas do mercado. Analogamente, surge o questionamento se a superação da forma mercadoria e, consequentemente, da produção capitalista, seria realmente capaz de fomentar o controle comunitário sobre a organização econômica.

O objetivo deste artigo foi apresentar algumas indicações analíticas sobre esse processo, tendo por base a crítica da economia política, inaugurada por Karl Marx e que tem o seu ponto basilar na sua obra O Capital. A análise aqui empreendida teve por foco as conexões existentes entre o planejamento econômico e a teoria do valor, lastreando-se, assim, por exegeses e análises econômicas de Marx e de importantes economistas marxistas.

Valor, trabalho abstrato e planejamento econômico

Uma das principais contribuições de Marx para o desenvolvimento crítico da economia política se referiu à distinção entre as categorias valor e valor de troca. Estas duas categorias que, em geral, apareciam como análogas em textos clássicos de economistas políticos, receberam, no tratamento crítico realizado pelo autor alemão, uma diferenciação significativa (MARX, 2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.). E, se, por um lado, é fato que, em momentos anteriores à construção do seu principal livro econômico, Marx chegou a reproduzir a perspectiva até então vigente na economia política, a partir dos anos de 1860 essa distinção recebeu, gradativamente, mais destaque e precisão1.

Já no início de O Capital, Marx (2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 115) indica duas características importantes do valor de troca: “em primeiro lugar, que os valores de troca vigentes da mesma mercadoria expressam algo igual” e, em segundo lugar, que o valor de troca “não pode ser mais do que o modo de expressão, a ‘forma de manifestação’ [Erscheinungsform] de um conteúdo que dele pode ser distinguido”2. Sendo assim, constata-se que, tanto a vigência desta igualdade entre as mercadorias, como a determinação desse conteúdo pelo qual se expressa o valor de troca, não poderia conduzir, de antemão, ao próprio valor de troca. Por ser manifestação, a análise do fundamento do valor de troca não aporta limitação na imanência.

Para elucidar esse problema, o autor alemão apresenta “o valor de troca como o modo necessário de expressão ou forma de manifestação do valor” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 116). Assim, faz-se necessário, para a análise da forma mercadoria, pressupor-se a sua relação social dentro do mercado, como um objeto operando na troca e, portanto, tendo as suas qualidades comparadas com outras mercadorias.

A mercadoria é valor de uso — ou objeto de uso — e “valor”. Ela se apresenta em seu ser duplo na medida em que seu valor possui uma forma de manifestação própria, distinta de sua forma natural, a saber, a forma do valor de troca, e ela jamais possui essa forma quando considerada de modo isolado, mas sempre apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria de outro tipo. Uma vez que se sabe isso, no entanto, aquele modo de expressão não causa dano, mas serve como abreviação. (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 136).

Inseridas nas relações econômicas de trocas do mercado, as mercadorias passam a se confrontar de diversas maneiras. A manifestação mais usual destas relações entre as mercadorias, que lhes expressa uma forma comparativa quantitativa, ocorre por meio do valor de troca, que é a capacidade que cada uma destas mercadorias tem para ser trocadas por outras. Entretanto, conforme analisa Marx, essa forma de manifestação não ocorre de maneira arbitrária, mas possui determinações importantes. Ainda que varie de acordo com relações conjunturais entre oferta e demanda, o preço da mercadoria, por exemplo, possui, conforme ele demonstra, fundamentos determinantes que distinguiriam o valor de troca do valor.

Na análise de Marx, ao lado da sua forma, o valor também possui outra maneira de ser analisado: por meio da sua magnitude ou grandeza3. Para ele, “a forma de valor tem, portanto, de expressar não só valor em geral, mas valor quantitativamente determinado, ou grandeza de valor” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 130). Uma importante mediação existente entre estas duas características do valor ocorre por meio da conjugação de uma análise qualitativa com um tratamento quantitativo.

A comparação quantitativa entre duas mercadorias, assim como entre quaisquer outros objetos ou seres, pressupõe a especificação de uma mesma qualidade nelas presente. Na comparação, o movimento de abstração opera não como uma destruição de todas as qualidades presentes nos objetos ou seres, mas na identificação de uma mesma qualidade, que servirá de variável única de mediação. Na comparação quantitativa de mercadorias, anuncia-se as suas magnitudes de valor e, nesse sentido, as suas relações a partir de gradações de uma mesma qualidade.

Esse processo apresenta, então, a relação de equivalência entre as mercadorias, que passam a ser comparadas como níveis diferentes de uma mesma qualidade. Ao confrontar mercadorias das mais diferentes características e abstraindo-se todas as diferenças que elas possam ter, observa-se pelo menos uma mesma qualidade, que se encontra presente em todas elas: a de serem produtos do trabalho humano. Assim, a equivalência entre as mercadorias evidencia o fato delas serem portadoras dessa mesma qualidade:

Somente a expressão de equivalência de diferentes tipos de mercadoria evidencia o caráter específico do trabalho criador de valor, ao reduzir os diversos trabalhos contidos nas diversas mercadorias àquilo que lhes é comum: o trabalho humano em geral (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 128).

A análise quantitativa das mercadorias, referente à magnitude do valor, pressupôs a identificação da equivalência por meio do trabalho humano. O avanço desta análise requer, por sua vez, a quantificação da própria categoria que determina a magnitude de valor das mercadorias: o tempo de trabalho dispendido na produção de cada mercadoria. A equivalência entre os diferentes tipos de trabalhos que produziram as respectivas mercadorias também passa, consequentemente, por um processo de abstração. Na mercadoria encontram-se representados duas formas de trabalho (concreto e abstrato) e a diferenciação entre estas categorias configura-se por uma relação antitética. Mas, nessa dinâmica dialética, para a vigência da equivalência entre os trabalhos, antes de uma forma anular a outra forma, o que ocorre é um processo de subsunção, proveniente da forma mercadoria. “O corpo da mercadoria que serve de equivalente vale sempre como incorporação de trabalho humano abstrato e é sempre o produto de um determinado trabalho útil, concreto” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 134).

Todos os tipos de trabalho, independentemente da sua forma histórica, apresentam determinações concretas. Seguindo os exemplos empregados por Marx (2013), oMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. trabalho de um alfaiate e o de um tecelão possuem várias características que os distinguem. Contudo, na dominação social da forma mercadoria, não apenas se expressam essas distintas características que refletem o trabalho concreto, mas também uma abstração destas especificidades em torno de uma equivalência. Para tanto, se pressupõe o movimento de quantificação, em que as faces concretas dos trabalhos se subsomem à forma abstrata, que indica a unidade entre eles.

A determinação desse equivalente ocorre de diversas maneiras e nele várias quantificações se processam, desde os diferentes níveis de qualificação laboral, até os distintos estágios de desenvolvimento produtivo. Ressalta-se que tanto a forma mercadoria como o trabalho abstrato só existem como relações sociais. Da mesma forma que não se pode indicar a existência de uma mercadoria ausente da relação de troca, não se determina o trabalho abstrato sem equivalência entre diferentes trabalhos concretos.

Na equivalência entre os distintos tipos de trabalhos, destacam-se as conexões entre os trabalhos individuais e que, fazendo analogia com a forma mercadoria, esses aparecem como exemplares individuais de uma enorme coleção4. Para apreender a determinação de valor das mercadorias por meio do trabalho, Marx empregou a categoria tempo de trabalho socialmente necessário (doravante TTSN), que “é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer sob as condições normais para uma dada sociedade e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 99).

Aqui nos deparamos com algumas questões importantes, que derivam da análise do TTSN: como é possível identificar o TTSN como determinante do valor das mercadorias? Como é possível calcular essa categoria na produção capitalista e, especificamente em cada exemplar de mercadoria produzida?

Primeiro, é importante salientar que, no modo de produção capitalista, o processo de abstração que redunda no TTSN ocorre envolvido pela forma mercadoria. Na verdade, conforme elucida Rubin (1980), esse processo só ocorre pela mediação das mercadorias:

É precisamente este estado de coisas que encontramos numa economia mercantil. A igualdade de duas quantidades de trabalho abstrato significa sua igualdade enquanto partes do trabalho social total - uma igualdade que só se estabelece, no processo de igualação social do trabalho, através da igualação dos produtos do trabalho (RUBIN, 1980, p. 172).

É nesse sentido que, conforme indicado anteriormente, ressaltamos que Marx (2013, [sumário]), ao abordar as duas formas de trabalho (concreto e abstrato), se refere ao “duplo caráter do trabalho representado nas mercadorias”. Ou seja, em O Capital, Marx não centrou a sua análise dos trabalhos de forma imanente ou de per se, mas na sua mediação com as mercadorias. A mediação entre os distintos trabalhos concretos, que lastreia a constituição do trabalho abstrato, não ocorre por eles mesmos, mas através da conexão entre as mercadorias no processo de troca. Na sociedade dominada pelo modo de produção capitalista, é pela troca das mercadorias que se expressa a equivalência dos trabalhos nelas representados.

É também por meio dessa dinâmica que os distintos tipos de trabalhos concretos se manifestam como trabalhos sociais. Em uma sociedade estruturada pela elevada divisão social do trabalho e por variadas produções privadas (como a capitalista), a conexão entre os resultados dos diversos produtores ocorre por meio do mercado, que expressa os laços entre as mercadorias, espelhando-as. Mas também se deriva desse fenômeno uma determinação unitária entre as mercadorias, que se manifesta pelo valor de troca. O valor é essa relação social entre as mercadorias que tanto comporta o seu movimento de troca, como abstrai os tipos de trabalho que nelas foram dispendidos.

É sob essa condição de troca que os variados trabalhos individuais se transformam em trabalhos sociais. A partir de citações de Marx, é assim que Rubin (1980, p. 167), um dos mais importantes analistas da teoria do valor, elucida esse processo:

Podemos citar duas passagens da Crítica: ‘Mas, de fato, os trabalhos individuais que se apresentam nestes valores de uso particulares somente se tornam trabalho geral, e desta forma trabalho social, trocando-se efetivamente entre si proporcionalmente ao tempo de duração do trabalho contido neles. O tempo de trabalho social existe, por assim dizer, apenas de forma latente nestas mercadorias e se manifesta somente em seu processo de troca’ (Crítica, p. 149). Em outra parte, Marx escreve: ‘As mercadorias se defrontam agora com uma dupla existência, efetivamente, como valores de uso, e, idealmente, como valores de troca. Agora apresentam mutuamente a dupla forma do trabalho contido nelas: aí o trabalho real e particular se encontra efetivamente no seu valor de uso, enquanto o trabalho abstrato e geral assume um modo de ser representado em seu preço (RUBIN, 1980, p. 166-167).

Segundo as análises apresentadas por Marx no livro I de O Capital, as mercadorias têm no trabalho a sua fonte de valor. A quantidade abstrata, ou socialmente necessária de trabalho para produzir um exemplar médio de cada tipo de mercadoria determina a magnitude ou grandeza de valor das mercadorias. Entretanto, as trocas e as equivalências entre as mercadorias não ocorrem porque os seus portadores as vêm como conteúdos específicos de quantidades de TTSN. O sentido é o inverso, em que, por causa das trocas de mercadorias, os trabalhos que foram dispendidos nas suas produções também passam por equivalência e comparação.

É também nesse sentido que Rubin (1980, p. 164) reproduz outra importante citação do livro I de O Capital:

Podemos analisar a passagem bastante conhecida que citamos anteriormente: ‘os homens não relacionam os produtos de seu trabalho entre si como valores porque estes objetos lhe pareçam envoltórios simplesmente materiais de um trabalho humano igual. Pelo contrário. Ao equiparar seus diversos produtos uns aos outros na troca, como valores, o que fazem é equiparar entre si seus diversos trabalhos, como modalidades de trabalho humano’ (C., I, p. 39).

O valor se consubstancia por essas relações entre aparência e essência, em que a sua manifestação nem sempre remete à determinação da sua magnitude ou grandeza. Não obstante, dois movimentos são complementares nesse processo. De um lado, na sociedade dominada pelo modo de produção capitalista, é a troca entre mercadorias que estabelece a mediação para a manifestação do trabalho abstrato e do TTSN. Nesse sentido, o confronto entre mercadorias expressa também o confronto entre quantidades específicas de trabalho. Por isso que, na mercadoria, se encontram representados tanto o trabalho concreto, como o trabalho abstrato.

De outro lado, faz-se importante ressaltar que, ainda que o movimento de troca seja a mediação necessária para a constituição desse fenômeno, não é a troca que comanda a determinação da magnitude ou grandeza de valor das mercadorias. Da mesma forma que não é o movimento de circulação econômica que produz os valores que estão presentes nas trocas, as trocas não são as fontes da constituição destes valores. Se o valor foi criado na esfera produtiva e passou a transitar na circulação, “torna-se evidente que não é a troca que regula a grandeza de valor da mercadoria, mas, inversamente, é a grandeza de valor da mercadoria que regula suas relações de troca” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 139).

Mas esses pressupostos não escondem um sério dilema presente na análise inaugurada por Marx: se as mercadorias têm os seus valores determinados pelas quantidades de TTSN, as suas relações de troca se estabelecem por meio dos seus valores de troca. Tanto os valores de troca das mercadorias não evidenciam as magnitudes ou grandezas de valores que estas possuem, como existem oscilações naquelas que podem repercutir em transferências e redistribuições destas. Em síntese, o problema se expressa na incongruência entre preço e valor.

O preço é uma das representações do valor de troca, em que a mercadoria tem o seu valor expresso através do dinheiro. Trata-se da quantidade de dinheiro que o comprador precisará desembolsar para adquirir a referida mercadoria. A imediaticidade dessa dinâmica se encerra nessa simples relação entre comprador e vendedor, em que a mercadoria é trocada por uma determinada quantidade de dinheiro. O dinheiro opera, nessa relação, pela sua capacidade de transfiguração universal das mercadorias. Todas as mercadorias passam a ser espelhadas por ele. Ocorre, assim, a manifestação do valor da mercadoria através do preço.

Essa operação monetária, ao se universalizar, pressupõe tanto que a mercadoria que está sendo trocada se manifesta a partir do seu preço, como que isso vale para todas as mercadorias. Através do dinheiro as diferentes qualidades das mercadorias são abstraídas em torno de uma mesma unidade comparativa, manifestando, uma relação de equivalência entre todas elas. Uma mercadoria conquista a sua “expressão universal de valor” quando, “ao mesmo tempo, todas as outras expressam seu valor no mesmo equivalente, e cada novo tipo de mercadoria que surge tem de fazer o mesmo” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 142).

A mediação do dinheiro na troca das mercadorias se desenvolve de forma tão avançada que se manifesta a subsunção das qualidades da mercadoria ao seu preço. Ao operar como elemento externo de regulação das trocas, o preço manifesta a naturalização de todas as características das mercadorias, quando, de fato, “o preço da mercadoria é apenas a denominação monetária da quantidade de trabalho social nela objetivado (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 181).

Sob esse processo, é impossível que a magnitude ou grandeza de valor das mercadorias se manifeste, e tem-se o preço como craveira econômica. Outrossim, a determinação desta dinâmica fetichista da mercadoria não é fundada por elementos analíticos ou cognitivos, visto que se trata de expressão necessária da relação econômica e social das trocas na sociedade dominada pelo modo de produção capitalista. Tal fato remete a uma relação incongruente entre preço e magnitude ou grandeza de valor:

A possibilidade de uma incongruência quantitativa entre preço e grandeza de valor, ou o desvio do preço em relação à grandeza de valor, reside, portanto, na própria forma preço. Isso não é nenhum defeito dessa forma, mas, ao contrário, aquilo que faz dela a forma adequada a um modo de produção em que a regra só se pode impor como a lei média do desregramento que se aplica cegamente. (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 177).

A magnitude ou grandeza de valor das mercadorias é determinada pela quantidade de TTSN que foi dispendido nos seus processos produtivos. O TTSN, por sua vez, é uma média social de todos os trabalhos individuais, nos seus respectivos tempos e níveis de qualificação. Essa categoria possui, portanto, uma relação dialética entre polos distintos: é derivada internamente do processo produtivo privado, mas também representa uma abstração post festum de todo o processo social de produção.

Não obstante, quando os produtos provenientes da realização destes trabalhos entram no mercado, a manifestação que guia as relações de trocas se dá pelas suas capacidades de trocas ou valores de trocas (no preço, por exemplo). Assim, não apenas impede-se que as magnitudes ou grandezas de valor se expressem, como, devido às oscilações entre a oferta e a demanda, ocorrem variações nos preços das mercadorias. Essas oscilações nos preços e nos valores de trocas das mercadorias tanto se manifestam como qualidades naturais da mercadoria, como isso implica na redistribuição das próprias magnitudes ou grandezas de valor.

Com isso, por meio das trocas de mercadorias, podem ocorrer redistribuições de valor, em que as oscilações dos valores de trocas incidem sobre a repartição do valor socialmente produzido. O TTSN, que é a fonte de determinação da magnitude ou grandeza de valor, pode, desta forma, por meio das oscilações dos preços, passar por dois processos complementares de distribuição, acompanhando tanto o valor como o preço das mercadorias. A partir de uma citação de Marx, é da seguinte forma que Rosdolsky (2001, pROSDOLSKY, R. Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: EDUER; Contraponto, 2001.. 101) elucida essa questão:

Pois a “diferença entre valor e preço, entre a mercadoria medida pelo tempo de trabalho que a produziu e o produto do tempo de trabalho pelo qual ela é trocada, é que cria a exigência de uma terceira mercadoria que sirva de padrão, na qual se expressa o valor de troca real da mercadoria. Considerando-se que o preço não é idêntico ao valor, o elemento que determina o valor - o tempo de trabalho - não pode ser o elemento no qual os preços se expressam [já que neste caso] o tempo de trabalho deveria expressar-se ao mesmo tempo como determinante e não-determinante, como igual e não-igual a si mesmo”.

Essa incompatibilidade entre valores e preços das mercadorias aponta para uma importante contradição econômica, apreendida pela análise marxista do valor, que se refere à equivalência entre as trocas. Conforme indicado anteriormente, ao serem analisadas a partir das suas magnitudes ou grandezas de valor, as mercadorias contêm determinadas quantidades de TTSN. Esses valores transitam dos espaços produtivos para a esfera da circulação e são intercambiados a partir de relações de troca. Em tese, uma relação de troca representa uma troca entre equivalentes. Ao ser analisada por meio da totalidade, esse postulado é real na determinação de que o valor total que entrou na circulação representa o limite do valor total que saiu dela. Na circulação, trata-se, como afirma Marx (1980)MARX, K. Teorias da Mais-Valia: história crítica do pensamento econômico: Livro IV de O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. v. I., de um jogo de soma zero5.

Todavia, ao ser apreendida por meio das trocas individuais, como as relações dos preços se manifestam como guias das trocas das mercadorias, essas, por sua vez, podem implicar em redistribuições de valores. Os preços das mercadorias podem operar acima, abaixo ou na média de equivalência das magnitudes ou grandezas de valores. Quando aquelas duas primeiras condições ocorrem, a igualdade de valores de trocas das mercadorias pode incidir na não equivalência de suas magnitudes de valor. Isso resulta em redistribuição de valores e, portanto, de TTSN, entre os agentes privados da troca.

Na sociedade dominada pelo modo de produção capitalista, a distribuição do TTSN ocorre, consequentemente, mediada pela flutuação dos preços:

Não existe outro mecanismo, além da flutuação dos preços de mercado, que distribua trabalho na economia capitalista. [...] Na sociedade capitalista, esta relação causal [entre distintas produtividades de trabalhos] não pode ser direta, pois a distribuição de trabalho, expresso no valor-trabalho dos produtos, não pode influenciar a distribuição do trabalho de nenhuma outra maneira, a não ser através de sua influência sobre a distribuição de capital. (RUBIN, 1980, p. 270).

Aqui se expressa uma das “forças cegas” indicadas por Marx na introdução deste texto. Na ausência de um planejamento econômico, as causalidades presentes nas oscilações entre oferta e demanda terminam implicando, por meio das alterações nos preços das mercadorias, em impossibilidade de regulação econômica da sociedade através do TTSN. De forma geral, isso ocorre porque “uma sociedade baseada na economia mercantil não regula diretamente a atividade de trabalho das pessoas, mas através do valor dos produtos do trabalho, através das mercadorias” (RUBIN, 1980, p. 190).

O modo de produção capitalista tanto criou formas de exploração econômica e de organização da produção, como também novas relações de trocas. Não se pode afirmar que a forma mercadoria é uma criação capitalista. Mas, muito menos, se pode desconsiderar que a ascensão deste modo de produção alterou substancialmente as disputas dentro do mercado. Nos modos de produção pré-capitalistas, “o desenvolvimento das forças produtivas foi sempre um subproduto não intencional do processo repetido de trabalho”, uma vez que “o trabalho social não era organizado caoticamente pelo mercado, como no capitalismo, mas por um plano social, portanto excluía a concorrência entre os produtores” (GERMER, 2009, pGERMER, C. Marx e o papel determinante das forças produtivas na evolução social. Revista Crítica Marxista, v. 29, p. 75-95, 2009.. 84).

Destaca-se que o interesse da sociedade em relação à capacidade produtiva e, desta forma, à regulação do trabalho, é algo que remonta às formações históricas mais longínquas. Contudo, antes da vigência do modo de produção capitalista, questiona-se a existência da categoria TTSN. Essa categoria, para representar um movimento da realidade, pressupõe o trabalho abstrato que, por sua vez, necessita da igualação entre variados tipos concretos de trabalhos. Sociedades estruturadas por relações de escravidão ou de servilismo não aportavam essa condição, impossibilitando, por exemplo, a transformação da força de trabalho em mercadoria. Da mesma forma, a simples ausência de concorrência entre produtores não indica automaticamente a vigência de um plano social, ainda mais em modos de produção mais dispersos, como o feudalismo.

Mesmo assim, a afirmação anterior de Germer aponta para determinações importantes da economia capitalista. A concorrência capitalista produz dois movimentos complementares sobre a relação entre valor e preço das mercadorias. De um lado, é por meio das trocas de mercadorias e, portanto, da concorrência que a estabelece, que os diferentes tipos de trabalho são igualados, fornecendo o fundamento da determinação da magnitude ou grandeza de valor das mercadorias. Por outro lado, as disputas entre as diversas entidades econômicas incidem em oscilações na relação entre oferta e demanda e nos preços das mercadorias, a ponto de as desconectarem das equivalências dos seus respectivos valores.

Isaak Rubin, no capítulo 18 do seu livro A teoria marxista do valor, apresenta uma análise sobre o desenvolvimento do capitalismo, tendo por base os avanços das concorrências entre os capitais. O autor russo ilustra esse movimento a partir de três esquemas econômicos históricos e hipotéticos, com a economia mercantil simples, a inserção da concorrência capitalista, e o capitalismo desenvolvido. Ao fim, a sua análise destaca a importância da massa total de mais-valia sobre as taxas específicas de lucro (consequentemente, do valor sobre o preço) para a determinação da “magnitude da taxa média de lucro” (RUBIN, 1980, p. 264).

Para ao referido autor, a concorrência capitalista é o fator que opera a mediação entre os preços de produções e as magnitudes ou grandezas de valores das mercadorias:

Se a ausência de concorrência entre os capitalistas de diferentes esferas da economia explica porque as mercadorias não são vendidas segundo seus preços de produção, esta ausência de concorrência também torna impossível explicar por que os bens são vendidos segundo seus valores-trabalho. (RUBIN, 1980, p. 262).

Para o que nos interessa aqui, a análise do economista russo serve para indicar que, com a inserção da concorrência entre capitais “a venda de bens segundo seus valores-trabalho dá lugar à venda de bens segundo os preços de produção” (RUBIN, 1980, p. 263). Para elucidar essa análise é importante ter em conta que, segundo Marx (1986b, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro III, Tomo II: O processo global da produção capitalista [editado por Friedrich Engels]. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986b.. 123), o preço de produção da mercadoria é “igual a seu preço de custo plus o lucro que, de acordo com a taxa geral de lucro, lhe é percentualmente adicionado, ou igual a seu preço de custo plus o lucro médio”. Já o preço de custo de uma mercadoria se constitui pelos custos em capital constante (meios de produção) mais os custos em capital variável (força de trabalho).

A relação entre estes dois determinantes do preço de custo da mercadoria (capital constante x capital variável) é intitulado por Marx (2013)MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. de composição orgânica do capital (doravante indicado por COC). Cada empresa tem uma COC específica e isso, dentre outras implicações, indica o seu grau de produtividade que, por sua vez, aponta para a capacidade de produzir mercadorias em níveis acima, médio ou abaixo do TTSN.

Como o modo de produção capitalista não opera por planejamento econômico centralizado6, essas diversas produções privadas só se conectam por meio das suas mercadorias, nas relações de troca. Cada espécie de mercadoria é resultado de uma determinada COC que, dessa forma, refere-se à capacidade produtiva da empresa que a produziu. A relação entre essas mercadorias, que derivam das suas respectivas produções privadas, apresenta um confronto entre valores individuais que oscilam em torno da média social produtiva, que pode ser expressa a partir do valor de mercado:

O valor individual de algumas dessas mercadorias estará abaixo do valor de mercado (isto é, sua produção exige menos tempo de trabalho do que o expresso pelo valor de mercado), o de outras estará acima dele. O valor de mercado deverá ser considerado, por um lado, como o valor médio das mercadorias produzidas numa esfera, e, por outro, como valor individual das mercadorias produzidas nas condições médias da esfera e que constituem a grande massa dos produtos da mesma (MARX, 1986b, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro III, Tomo II: O processo global da produção capitalista [editado por Friedrich Engels]. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986b.. 138-139).

Na sociedade dominada pelo modo de produção capitalista, a conexão das diferentes produções privadas ocorre por meio do mercado e do processo de concorrência. Conforme vimos, é no processo de troca de mercadorias que os diferentes tipos de trabalhos relativos a cada uma destas produções passam por um processo de igualação. Da mesma forma, é também pela mediação do mercado e da concorrência que se estabelece a ligação entre as diferentes capacidades produtivas das empresas, que se constituem por distintas COC.

É sob essa condição de confrontos entre produções privadas, em que cada uma destas empresas oferta uma mercadoria com valor individual específico, que se apresenta o valor de mercado. Essa categoria, como elucida Rubin (1980, p. 191), representa uma “magnitude” que se estabelece “como resultado do conflito de mercado entre um grande número de vendedores — produtores de mercadorias que produzem sob diferentes condições técnicas e que fornecem ao mercado mercadorias com valores individuais diferentes”. Paradoxalmente, esta dinâmica apresenta uma relação antitética que consubstancia a concorrência capitalista: somente com a ausência da concorrência ocorreria, e não ocorreria, a venda de mercadorias pelas suas magnitudes ou grandezas de valores. No capitalismo, é a concorrência que cria essa possibilidade — pela igualação dos trabalhos — mas que, ao mesmo tempo, a torna impossível, pelos aspectos individuais e privados da COC e da incongruência entre valor e preço.

A intensificação da concorrência pressupõe a ausência de um planejamento econômico social e, nesse sentido, as disputas entre os capitais privados se configuram, ao mesmo tempo, como réus e vítimas da força incontrolável do mercado. Em tendência, o desenvolvimento da concorrência implica em avanço privado das capacidades produtivas que, por sua vez, ampliam as assimetrias na relação entre oferta e demanda. Com isso, por trás das mercadorias que não são absorvidas pelo mercado, se encontra um montante de TTSN que terminou sendo desperdiçado:

Se o estômago do mercado não consegue absorver a quantidade total de linho pelo preço normal de 2 xelins por braça, isso prova que foi despendida uma parte maior de tempo de trabalho socialmente necessário na forma da tecelagem de linho. O efeito é o mesmo que se obteria se cada tecelão individual tivesse aplicado em seu produto individual mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário. (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 181).

Ausente de planejamento econômico social, essa força cega do mercado termina subsumido o próprio desenvolvimento das forças produtivas. Não se trata apenas de desperdício de mercadorias, mas de magnitudes ou grandezas de valores produzidos que, não somente poderiam ser absorvidas pela sociedade, como poderiam lastrear novos desenvolvimentos produtivos. A diferença entre as distintas alternativas para esse fenômeno se encontra na sua intencionalidade: “As FP [forças produtivas] desenvolvem-se espontaneamente quando a sociedade desconhece as leis de seu desenvolvimento, mas, quando as conhece, o desenvolvimento pode ser intencional, segundo um plano”. (GERMER, 2009, pGERMER, C. Marx e o papel determinante das forças produtivas na evolução social. Revista Crítica Marxista, v. 29, p. 75-95, 2009.. 93).

Considerações finais

Em termos gerais, os valores socialmente produzidos se referem a determinadas quantidades de trabalho que, como vimos, podem ser medidos a partir da sua magnitude ou grandeza. Essa determinação ocorre tanto por unidade qualitativa como por classificação quantitativa e o seu cômputo pode ocorrer em diferentes tipos de ordenamentos societários:

O trabalho abstrato e o valor possuem uma natureza social, e não técnico-material ou fisiológica. O valor é uma propriedade social (ou forma social) de um produto do trabalho, assim como o trabalho abstrato é uma ‘substância social’ que está na base desse valor. A despeito disso, o trabalho abstrato, assim como o valor que ele cria, possui não só um aspecto qualitativo, mas também quantitativo. Ele tem uma magnitude determinada, da mesma maneira que a tem o trabalho social contabilizado pelos órgãos de uma comunidade socialista. (RUBIN, 1980, p. 170).

A determinação quantitativa do trabalho implica, no modo de produção capitalista, a sua expressão em trabalho abstrato. Inclusive, para ilustrar essa análise, o autor citado, propõe uma comparação entre essa determinação quantitativa do trabalho dentro do capitalismo e do socialismo, ou seja, “do trabalho abstrato com o trabalho socialmente igualado que é encontrado na comunidade socialista” (RUBIN, 1980, p. 168). Para ele, na sociedade socialista, essa igualação dos diferentes tipos de trabalhos poderia ocorrer no seguinte exemplo: tomando-se um dia de trabalho simples “como uma unidade, e um dia de trabalho qualificado como três unidades; um dia de trabalho do operário com experiência A é tomado como igual a dois de trabalho do operário inexperiente B, e assim por diante (RUBIN, 1980, p. 168).

Entretanto, essa comparação apresenta diferenças importantes. No capitalismo, o processo de igualação dos trabalhos se encontra subordinado à forma mercadoria e, com isso, às diferentes determinações que envolvem o mercado. Desta forma, torna-se impossível ocorrer um planejamento econômico que determine a organização e a distribuição social do trabalho social. A vigência do valor no capitalismo se estabelece na base do trabalho abstrato, e a igualação dos diferentes tipos de trabalho não ocorre de forma planejada, mas através da mediação das mercadorias.

Por isso que, segundo o autor, uma das grandes diferenças entre os processos econômicos capitalista e socialista se encontraria na forma de sua organização e distribuição. Ainda que, em ambas as sociedades, a análise econômica do valor indicasse que “as diferentes quantidades de trabalho aparecem como diferentes quantidades de tempo de trabalho”, ao se considerar “a distribuição do trabalho social entre indivíduos e ramos de produção”, elucida-se que a distribuição “se realiza conscientemente numa sociedade socialista, e espontaneamente numa economia mercantil” (RUBIN, 1980, p. 172).

A luta pela superação do capitalismo se conjuga com a construção de alternativas capazes de organizar conscientemente a economia da nova sociedade. Estas, por sua vez, baseiam-se em determinações históricas e sociais que estruturam as possibilidades econômicas e políticas concretas de cada sociedade. Em variados momentos históricos, problemas teóricos e práticos desse tipo foram analisados, demarcando tanto a profundidade do desafio apresentado, como a especificidade conjuntural e histórica dos seus encaminhamentos.

Em cada experiência histórica, as análises teóricas serviram de lastros para encaminhamentos políticos, da mesma forma que estes se subordinaram às determinações de cada conjuntura. Importantes análises sobre as experiências soviética (LENIN, 1973LENIN, V. I. New times and old mistakes in a new guise. In: LENIN, V. I. Collected Works. Moscow: Progress Publishers, 1973. v. 33.), cubana (GUEVARA et al., 2004GUEVARA, E. C. et al. El gran debate sobre la economía en Cuba, 1963-1964. 2. ed. La Habana: Ed. de Ciencias Sociales, 2004.) ou da Alemanha Oriental (RAUHALA, 2021RAUHALA, P. M. The Neue Marx-Lektüre and the ‘Monetary Theory of Value’ in the East German Labour-Value Measurement Debate. Historical Materialism, v. 29, n. 2, p. 29-60, 2021.), explicitam, por exemplo, a complexidade dos desafios que acompanham essa empreitada7.

O escopo desses desafios só é ultrapassado pela importância das transformações econômicas e sociais a serem objetivadas, pois “a figura do processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob seu controle consciente e planejado” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 154). Esse processo, para ser efetivado, requer “uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência que, por sua vez, são elas próprias o produto natural-espontâneo de uma longa e excruciante história de desenvolvimento” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 154).

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Notas

    1 Sobre isso, discordamos da afirmação de Rosdolsky (2001, pROSDOLSKY, R. Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: EDUER; Contraponto, 2001.. 21-22), de que antes de 1850 Marx já teria desenvolvido os fundamentos da sua análise sobre a mais-valia, e que isso estaria manifesto no seu livro intitulado Trabalho assalariado e capital.
    2 Ressalta-se que, na primeira publicação desta obra (MARX, 1867, pMARX, K. Das Kapital: Kritik der politischen Oekonomie. Buch I: Der Produktionsprocess des Kapitals. Erstausgabe. Hamburg: Verlag von Otto Meissner, 1867.. 3), não consta essa passagem em que o autor se refere ao valor de troca como uma “forma de manifestação” [Erscheinungsform - Marx, 1962, pMARX, K. Das kapital: kritik der politischen oekonomie. erstes buch: der produktionsprocess des kapitals. In: MARX, K.; ENGELS, F. Werke. Band. 23. Berlin: Dietz Verlag, 1962.. 51]. Tal fato indica que, mesmo em 1867, com a publicação da primeira edição de O Capital, Marx ainda não tinha apresentado de forma precisa a distinção entre valor e valor de troca.
    3 Em geral, as edições brasileiras do livro I de O Capital, utilizam três traduções similares para isso: magnitude, grandeza ou quantidade de valor. A edição das Werke (MARX, 1962MARX, K. Das kapital: kritik der politischen oekonomie. erstes buch: der produktionsprocess des kapitals. In: MARX, K.; ENGELS, F. Werke. Band. 23. Berlin: Dietz Verlag, 1962.), que apresenta a quarta edição alemã dessa obra, utiliza-se o termo Wertgröße (que, literalmente, poderia ser traduzido por tamanho do valor). De forma análoga à nota de rodapé anteriormente apresentada, se ressalta que, na primeira edição alemã (MARX, 1867MARX, K. Das Kapital: Kritik der politischen Oekonomie. Buch I: Der Produktionsprocess des Kapitals. Erstausgabe. Hamburg: Verlag von Otto Meissner, 1867.), não se observa essa precisão categorial.
    4 Referência à frase de abertura do Livro I de O Capital: “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar” (MARX, 2013, pMARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 113).
    5 Além disso, conforme afirmam Hunt e Lautzenheizer (2011)HUNT, E. K.; LAUTZENHEIZER, M. History of economic thought: a critical perspective. 3. ed. Armonk, London: M. E. Sharpe, 2011., no livro I de O Capital, Marx, para demonstrar a origem e natureza do capital e do lucro (mais-valia) pressupõe a relação de equivalência nas trocas de mercadorias.
    6 É importante ressaltar aqui que se trata da ausência de um planejamento econômico sistemático ou de amplo caráter social (centralizado), visto ser bastante comum em qualquer empresa capitalista, mesmo as de menor porte, o emprego de diversas formas de planejamento, especialmente no espaço interno. Grandes capitalistas, principalmente os monopolistas, apresentam grande capacidade de influenciar na determinação dos preços e, portanto, da demanda do mercado. Mas, mesmo com essa força, a ausência de um planejamento econômico centralizado implica em determinações e causalidades da “força cega” do mercado.
    7 Um importante elemento sobre os desafios para a construção de uma sociedade de economia planificada se refere ao cálculo econômico socialista, conforme atesta as análises presentes em Boettke (2000)BOETTKE, P. J. (org.). Socialism and the market: the socialist calculation debate revisited. Londres e Nova York: Routledge, 2000.. Por outro lado, existe um relevante debate acerca do emprego de formas de planejamento econômico dentro do capitalismo que apresenta, como maior destaque, a obra clássica de Keynes (2013)KEYNES, J. M. The general theory of employment, interest and money. In: KEYNES, J. M. The collected writings of John Maynard Keynes. 3. ed. New York: Cambridge University Press, 2013. v. VII.. Sobre o planejamento econômico na obra do economista britânico, ver: Almeida Filho e Lopes (2019).
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
    Consentimento para publicação Confirmo consentimento para publicação deste artigo, intitulado de “Trabalho, Valor e Preço: o planejamento econômico sob a crítica marxista do valor”.

Referências

  • ALMEIDA FILHO, N.; LOPES, C. T. A ideia de planejamento econômico que emerge da Teoria Geral de Keynes. Revista Brasileira de Administração Política, v. 10, p. 107-128, 2019.
  • BOETTKE, P. J. (org.). Socialism and the market: the socialist calculation debate revisited. Londres e Nova York: Routledge, 2000.
  • GERMER, C. Marx e o papel determinante das forças produtivas na evolução social. Revista Crítica Marxista, v. 29, p. 75-95, 2009.
  • GUEVARA, E. C. et al. El gran debate sobre la economía en Cuba, 1963-1964 2. ed. La Habana: Ed. de Ciencias Sociales, 2004.
  • HUNT, E. K.; LAUTZENHEIZER, M. History of economic thought: a critical perspective. 3. ed. Armonk, London: M. E. Sharpe, 2011.
  • KEYNES, J. M. The general theory of employment, interest and money. In: KEYNES, J. M. The collected writings of John Maynard Keynes 3. ed. New York: Cambridge University Press, 2013. v. VII.
  • LENIN, V. I. New times and old mistakes in a new guise. In: LENIN, V. I. Collected Works Moscow: Progress Publishers, 1973. v. 33.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro III, Tomo I: O processo global da produção capitalista (editado por Friedrich Engels). 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986a.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro III, Tomo II: O processo global da produção capitalista [editado por Friedrich Engels]. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986b.
  • MARX, K. Teorias da Mais-Valia: história crítica do pensamento econômico: Livro IV de O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. v. I.
  • MARX, K. Das kapital: kritik der politischen oekonomie. erstes buch: der produktionsprocess des kapitals. In: MARX, K.; ENGELS, F. Werke Band. 23. Berlin: Dietz Verlag, 1962.
  • MARX, K. Das Kapital: Kritik der politischen Oekonomie. Buch I: Der Produktionsprocess des Kapitals. Erstausgabe. Hamburg: Verlag von Otto Meissner, 1867.
  • RAUHALA, P. M. The Neue Marx-Lektüre and the ‘Monetary Theory of Value’ in the East German Labour-Value Measurement Debate. Historical Materialism, v. 29, n. 2, p. 29-60, 2021.
  • ROSDOLSKY, R. Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx Rio de Janeiro: EDUER; Contraponto, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2023
  • Aceito
    29 Maio 2023
  • Revisado
    04 Jul 2023
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