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Impactos da Covid-19 sobre catadores de materiais recicláveis organizados no Estado de São Paulo

Resumo

Este estudo, realizado com organizações de catadores em 32 municípios do Estado de São Paulo, busca analisar os impactos da Pandemia de Covid-19 sobre as atividades dessas organizações e seus integrantes, incluindo as medidas tomadas pelo governo e outros atores visando aliviar os impactos decorrentes da crise.O referencial teórico discute a relação entre movimentos sociais e políticas públicas, uma vez que catadores organizados interagem com diversos níveis de governo em situações de colaboração e conflito, prestam serviços de gerenciamento de resíduos municipais, sendo frequentes ações coletivas buscando melhorias nessa relação. Pesquisa documental e aplicação de questionários informam sobre as interações dos catadores, evidenciando problemas estruturais e sistêmicos que ganharam relevo com a crise, destacando suas dificuldades, conquistas e reivindicações como movimento social.

Palavras-chave:
Catadores; movimentos sociais; gestão de resíduos sólidos; políticas públicas; Covid-19

Abstract

This study, carried out with waste picker organizations in 32 municipalities in the State of São Paulo, seeks to analyze the impacts of the pandemic (Covid-19) on their activities, including measures taken by the government and other actors, in order to alleviate the impacts resulting from the crisis. Our theoretical framework discusses the relationships between social movements and public policies. Organized waste pickers provide selective collection services, interacting with different levels of government in situations of collaboration and conflict, with frequent collective actions seeking improvements. Bibliographic research and application of questionnaires inform about the interactions of waste pickers, showing structural and systemic problems, highlighting their demands as a social movement.

Keywords:
Waste pickers, social movements; solid waste management; public policy; Covid-19

Resumen

Este estudio, realizado con organizaciones de recicladores en 32 municipios del Estado de São Paulo, busca analizarlos impactos de la pandemia de la Covid-19 en las actividades de estas organizaciones y sus miembros, incluyendo las medidas tomadas por el gobierno y otros actores para paliar los impactos resultantes de la crisis. El marco teórico discute la relación entre movimientos sociales y políticas públicas, ya que los recicladores organizados interactúan con diversos niveles de gobierno en situaciones de colaboración y conflicto, brindan servicios de gestión de residuos municipales, con frecuentes acciones colectivas que buscan mejoras. La investigación documental y la aplicación de cuestionarios informan sobre las interacciones de los recicladores, destacando los problemas estructurales y sistémicos, mostrando sus dificultades, logros y demandas como movimiento social.

Palabras-clave:
Recicladores, movimentos sociales; manejo de resíduos sólidos; política pública; COVID-19

1. Introdução

A pandemia de Covid-19 no Brasil gerou fortes impactos econômicos, resultantes da restrição de atividades para conter o contágio. O impacto, expressivo na economia formal, inegavelmente afetou agudamente os setores informais, geralmente compostos por empreendimentos sem reservas e acesso a crédito.

O artigo trata de como organizações de catadores de recicláveis em municípios selecionados no Estado de São Paulo reagiram à crise, adaptando-se para manter suas operações. Foram identificadas ações que incluíram estratégias internas dos grupos e interações com diversos atores. O referencial teórico explorado trata das relações entre movimentos sociais e políticas públicas, considerando as organizações pesquisadas como integrantes de um movimento social cuja organização mais abrangente é o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), que expressam sua identidade em símbolos como bandeiras e bordões, compromissos formais e informais, práticas de formação, estórias de vida e de trabalho, entre outros. Consideramos assim os movimentos sociais, grupos organizados que compartilham identidades e valores em ações coletivas (ABERS; SILVA; TATAGIBA, 2018ABERS, R.N.; SILVA, M.K.; TATAGIBA, L. Movimentos Sociais e Políticas Públicas: Repensando Atores e Oportunidades Políticas. Lua Nova, p. 15-46, 2018.; CARLOS, 2020CARLOS, E. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos do engajamento institucional no contexto pós-transição. 2ª ed. Belo Horizonte: Fino Traço, v. 1. 468p, 2020.). A melhoria de condições de trabalho é um objetivo que acompanha as trajetórias dessas organizações, e inclui a proposição de políticas públicas. No contexto estudado, as ações visaram minimizar os impactos da restrição das atividades, inseridas no contexto de disputa por políticas alternativas de gestão de resíduos urbanos.

A principal metodologia utilizada no trabalho foi a pesquisa-ação participativa (KIDD & KRAL, 2005KIDD, S.A.; KRAL, M.J. Practicing participatory action research. J. Couns. Psychol, v. 52, p. 187-195, 2005.), adaptada às restrições ao trabalho de campo na pandemia. A interação dos pesquisadores com os catadores ocorreu pela internet, incluindo redes sociais (WhatsApp, Facebook), reuniões virtuais e contatos telefônicos. Também, realizou-se levantamento bibliográfico e documental para complementar os dados com informações secundárias. O trabalho recebeu aprovação do comitê ético da Universidade de Victoria (protocolo # 17-135).

A seguir apresenta-se a abordagem teórica, metodologia de pesquisa, resultados e sua discussão, e as conclusões do trabalho.

2. Referencial teórico

A questão em estudo foi interpretada a partir de teorias sobre a relação entre movimentos sociais e políticas públicas, focando a ação das organizações de catadores frente à pandemia, que incluiu propostas e ações visando mudar políticas públicas nos territórios em que as organizações atuam.

A consideração dos movimentos sociais como agentes políticos e o mapeamento de suas reações a constrangimentos e oportunidades estruturais trazidos por choques externos é fundamental para compreender fenômenos como os aqui analisados (RADCLIFFE, 2004RADCLIFFE, S.A. Civil society, grassroots politics and livelihoods, in Gwynne, R.N. & Kay, C. (eds.) Latin America transformed, Hodder Arnold. p.193-209, 2004.).

Para Carlos (2020CARLOS, E. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos do engajamento institucional no contexto pós-transição. 2ª ed. Belo Horizonte: Fino Traço, v. 1. 468p, 2020.) as teorias mais disseminadas sobre movimentos sociais tendem a separar movimentos sociais e o Estado, pouco tratando da constituição mútua entre esses atores. Porém, é notável a inserção dos movimentos no sistema político através de instituições participativas e repertórios de interação com o Estado (diálogo e conflito). Para Abers, Silva e Tatagiba (2018ABERS, R.N.; SILVA, M.K.; TATAGIBA, L. Movimentos Sociais e Políticas Públicas: Repensando Atores e Oportunidades Políticas. Lua Nova, p. 15-46, 2018.) a relação entre políticas públicas e movimentos sociais no Brasil tem gerado uma série de estudos, tanto sobre o efeito das políticas públicas sobre os movimentos sociais, como sobre a influência dos movimentos sobre as políticas públicas.

O MNCR é um caso de movimento que utiliza diversos repertórios de interação em ações com foco nas políticas públicas de gestão de resíduos (ROSSI, 2019ROSSI, F.C.R. O Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e os governos do PT: Trama pelo sentido da política pública. Revista Brasileira de Políticas Públicas e Internacionais, v. 4, n. 3, p. 105-134, 2019.; BRANDÃO, 2018). As ações dos movimentos sociais como do MNCR levam demandas de grupos sociais a arenas decisórias, podendo gerar contribuições importantes para as políticas públicas, com novas perspectivas sobre os problemas tratados.

“O que distingue a atuação dos movimentos sociais nos subsistemas de políticas públicas é o fato de eles oferecerem às pessoas comuns uma possibilidade de se organizarem coletivamente para fazer sua voz ouvida nos circuitos de tomada de decisão. Ao levarem para o interior dos subsistemas atores e interesses previamente não considerados pelos tomadores de decisão, os movimentos sociais acionam um conjunto de interações confrontacionais.” (ABERS; SILVA; TATAGIBA, 2018ABERS, R.N.; SILVA, M.K.; TATAGIBA, L. Movimentos Sociais e Políticas Públicas: Repensando Atores e Oportunidades Políticas. Lua Nova, p. 15-46, 2018., p. 106).

Radcliffe (2004RADCLIFFE, S.A. Civil society, grassroots politics and livelihoods, in Gwynne, R.N. & Kay, C. (eds.) Latin America transformed, Hodder Arnold. p.193-209, 2004.) reitera a importância de entender processos sociais estruturais para além das preocupações econômicas de atores locais, que fomentam os movimentos sociais, especialmente as relações entre sociedade e o Estado. Respostas criativas a situações de crise podem provocar mudanças não só em relações econômicas, mas também nos sistemas políticos, com efeitos mais duradouros sobre as relações Estado e sociedade civil, expresso por Radcliffe na seguinte citação:

“...olhar para as transformações da sociedade civil entre os atores de base fornece um ponto de entrada distinto para a compreensão das mudanças sociais e políticas na região [América Latina]. As informações sobre as experiências diferenciadas dos atores e as respostas às mudanças políticas e de subsistência nos fornecem uma compreensão do que os atores civis organizados podem alcançar (ou não) nas condições do neoliberalismo e da globalização.” (RADCLIFFE, 2004RADCLIFFE, S.A. Civil society, grassroots politics and livelihoods, in Gwynne, R.N. & Kay, C. (eds.) Latin America transformed, Hodder Arnold. p.193-209, 2004., p. 193) [Tradução dos autores].

Considera-se nesse artigo as organizações de catadores como movimentos políticos de base (grassroots) (RADCLIFFE, 2004RADCLIFFE, S.A. Civil society, grassroots politics and livelihoods, in Gwynne, R.N. & Kay, C. (eds.) Latin America transformed, Hodder Arnold. p.193-209, 2004.), concebidos ‘de baixo para cima’, que prestam serviços de limpeza urbana, geram benefícios ambientais e sociais (aumentam as taxas de reciclagem e geram empregos), e compartilham uma identidade materializada em simbologias e repertórios de ação (GUTBERLET, 2015aGUTBERLET, J. Cooperative urban mining in Brazil: Collective practices in selective household waste collection and recycling. Waste Management, v. 45, p. 22-31, 2015a.; 2015b; 2020). Mesmo as organizações formalmente integradas a municípios mantêm a identidade de movimento social de base, com variados graus de antagonismo aos sistemas vigentes, e buscam participação nas decisões políticas por uma integração mais vantajosa, interagindo com o Estado em seus diversos níveis (CARLOS, 2020CARLOS, E. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos do engajamento institucional no contexto pós-transição. 2ª ed. Belo Horizonte: Fino Traço, v. 1. 468p, 2020.). Assim, confrontam sistemas em que predominam grandes empresas cuja operação se caracteriza por baixas taxas de reciclagem, renda concentrada e baixa participação social nas decisões.

“Existem, entretanto, barreiras associadas com os interesses econômicos privados envolvidos, que, por sua vez, fazem parte de um círculo vicioso que dificulta romper com a lógica baseada em contratos que priorizam coleta, transbordo e aterramento em detrimento de uma coleta seletiva mais ampla e abrangente.” (JACOBI; BESEN, 2011JACOBI, P.R.; BESEN, G.R. Gestão de Resíduos Sólidos em São Paulo: desafios da sustentabilidade. Estudos Avançados, v.25, n. 71, 2011., p. 154)

Nesse contexto, as organizações de catadores propõem mudanças nos “regimes de resíduos” (GILLE, 2007GILLE, Z. From the Cult of Waste to the Trash Heap of History: The Politics of Waste in Socialist and Postsocialist Hungary. Bloomington: Indiana University Press, 2007.; GUTBERLET; BRAMRYDE; JOHANSSON, 2020GUTBERLET, J.; BRAMRYD, T.; JOHANSSON, M. Expansion of the Waste-Based Commodity Frontier: Insights from Sweden and Brazil. Sustainability, v. 12, n.7,p. 1-15, 2020.), transformando dimensões tecnológicas (coleta e destinação de resíduos com uso intensivo de mão de obra), organizacionais (trabalhadores em associações e cooperativas) e políticas (descentralização dos serviços e maior transparência). A atuação do MNCR na formulação de políticas federais é um exemplo importante dessa ação voltada à mudança:

“[...] a alteração da Lei de Saneamento (2007) e a aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010) incluíram os catadores em marcos normativos federais. Políticas de alocação de bens e serviços também foram concebidas, com destaque para dois programas específicos para estes trabalhadores: o Cataforte (originado em 2007), e o Pró-Catador (iniciado em 2011). Neste conjunto inédito de medidas para o segmento, chama a atenção o fato de que todas as ações foram concebidas sob a influência direta de um movimento social da categoria, o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis” (ROSSI, 2019ROSSI, F.C.R. O Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e os governos do PT: Trama pelo sentido da política pública. Revista Brasileira de Políticas Públicas e Internacionais, v. 4, n. 3, p. 105-134, 2019., p. 106)

3. Metodologia

Para apreender o relacionamento dinâmico entre as organizações de catadores e atores presentes nas arenas de produção de políticas públicas, o estudo de caso utilizou abordagem qualitativa, fundamentada em pesquisa participativa desenvolvida por uma equipe interdisciplinar que vem trabalhando com catadores há muitos anos.

Os grupos pesquisados mostram a diversidade dos catadores organizados no estado de São Paulo, em termos de tamanho dos grupos (10 ou menos e acima de 128 membros), infraestrutura (com ou sem acesso a equipamento e caminhão), tamanho dos municípios (entre 17 mil e 12,2 milhões de habitantes), nível de apoio recebido e participação em redes de catadores.

Adotou-se aqui a perspectiva dos catadores, através do contato direto (telefone) ou online (media social), não tendo sido consultados governo, empresas ou organizações da sociedade civil. A ação desses atores foi revelada a partir de pesquisa bibliográfica, documental e entrevistas com representantes dos catadores.

Foi revisada bibliografia sobre os impactos da pandemia sobre os catadores, e coletados dados sobre a gestão de resíduos nos municípios estudados, caracterizando os contextos locais.

O universo total de cooperativas e associações na região de estudo compreende um total de 75 grupos (Mapa 1), dos quais participaram na nossa pesquisa 64 organizações.

Mapa 1:
Escopo dos municípios na região pesquisada e numero total de organizações presentes nesse recorte de municípios

A pesquisa empírica utilizou dois questionários, aplicados em entrevistas por contato telefônico e WhatsApp, em uma amostra selecionada por conveniência (grupos com quem os pesquisadores já tinham contato), abrangendo em todo, 32 municípios e um total de 64 organizações contatadas. O seguinte quadro explicita quais grupos participarem em qual parte da pesquisa (qualitativa, quantitativa ou nas duas partes) (Quadro 1).

Quadro 1:
Universo de organizações de catadores(as) que participaram na pesquisa

O primeiro questionário com questões fechadas (estruturado) foi aplicado de março a setembro de 2020 em 59 organizações de catadores, focando informações quantitativas sobre alterações geradas pela pandemia, incluindo o número de trabalhadores, impactos à saúde, volume de recicláveis comercializados e renda, condições de trabalho e políticas municipais.

Aplicou-se um segundo questionário, de natureza qualitativa e semiestruturado, de maio a setembro de 2020 em 22 organizações de catadores (ver Quadro 1). Além disso, esse questionário também foi aplicado ao Comitê de Catadores da Cidade de São Paulo (MNCR) e aos líderes de cinco redes de cooperativas que estão conectadas às organizações contatadas (Coopcent ABC, FEPACORE, Rede Verse Sustentável, Rede CataSampa e Rede Sul).

As transcrições das entrevistas passaram por análise de conteúdo (HAY, 2016HAY, I. Qualitative research methods in human geography. Oxford: Oxford University Press, 2016.), e padrões emergentes e percepções foram categorizados por temas gerais, ao lado de uma lista de eventos, contatos e atividades que ocorriam no dia-a-dia dos catadores. As categorias foram baseadas nos impactos da pandemia e nas ações dos atores. Os principais resultados foram apresentados aos entrevistados, para validação e complementação.

4. Resultados e discussão

Na discussão dos resultados serão conectadas descobertas sobre dinâmicas ‘macro’ com os resultados ‘micro’ da pesquisa de campo, visando compreender as reações das organizações de catadores à crise da pandemia, destacando-se a interação entre o movimento social e o Estado. A seguir apresentaremos os dados discutindo os seguintes itens: situação das organizações de catadores no Brasil (4.1) e nos municípios estudados antes e durante a pandemia; políticas públicas na pandemia (4.2) e ações das organizações e redes de apoio aos catadores e os impactos da pandemia (4.3).

4.1 Situação das organizações de catadores no Brasil na pandemia

Nesta subseção serão apresentados alguns dados de pesquisas recentes de instituições relacionadas à gestão de resíduos no Brasil, especialmente no que toca às políticas públicas e à relação entre os agentes que compõem os sistemas de gestão.

Nos municípios brasileiros, responsáveis pela gestão de resíduos, observa-se grande diversidade na interação entre catadores e governos municipais. Pesquisa do Compromisso Empresarial para a Reciclagem - Cempre (2020) em uma amostra de 205 municípios constatou que a coleta seletiva feita por catadores atende a 16,44% da população e serviços de limpeza pública realizados por empresas privadas contratadas por prefeituras no Brasil, atendendo 50,8% da população nesses municípios. Quanto ao vínculo entre catadores e prefeituras, de 549 organizações de catadores pesquisadas pelo Cempre (2020), 33,88% tinham contratos; 39,89% outro vínculo formal (termo de compromisso/convênio) e 25,5% não possuíam vínculo. Em outra amostra com 405 organizações respondentes, o Cempre (2020) constatou que 53,3% não recebiam nenhum apoio remunerado da Prefeitura, apenas suporte como espaço físico e equipamentos. Além disso, 56,47% das organizações eram apoiadas por programas privados de logística reversa.1 1 - Os programas de logística reversa são iniciativas de empresas em resposta a exigências recentes de responsabilização dos produtores de bens geradores de resíduos, incluindo resíduos perigosos e bens de consumo de massa (BRANDÂO, 2019). Em 86,71% das organizações os trabalhadores têm baixa renda mensal, entre 0,5 e dois salários mínimos (CEMPRE, 2020).2 2 - Pesquisa da ANCAT (2020) em uma amostra de 278 organizações indicou renda mensal média de R$ 932,19 por catador em 2019.

Já outra pesquisa da Associação Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis - ANCAT (2020), 30,7% do volume total da coleta seletiva no Brasil em 2018, foi feita por catadores. Em uma amostra de 336 organizações, 35% disseram receber materiais da coleta seletiva de responsabilidade das prefeituras, e 152 organizações tinham relação formal com as prefeituras; desse total, 59% tinham contrato e 40% tinham termo de parceria/convênio; 166 organizações tinham contratos com empresas e 112 organizações apresentaram contratos ou termos de parceria para coleta em órgãos públicos federais ou estaduais.

Pesquisa da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental - ABES (2020) indicou diminuição de 4% a 19% na geração de resíduos sólidos urbanos em 23 capitais devido à pandemia. Nove capitais interromperam a coleta seletiva devido à pandemia, e em 10 capitais houve redução de 12% a 50% do total coletado.

A pesquisa estimou a incidência da COVID-19 entre trabalhadores da limpeza urbana, 5,47 vezes maior do que a média brasileira, com óbitos 6,5 vezes maiores (ABES, 2020). As organizações de catadores, representaram 7% do total desses casos.

Frente a esses impactos, pesquisa realizada em 326 municípios pelo CEMPRE (2020) mostrou a seguinte situação sobre a relação entre organizações de catadores e prefeituras (Gráfico 1):

Gráfico 1:
Situação dos apoios das Prefeituras às organizações de catadores

Em uma amostra de 546 organizações de catadores (CEMPRE, 2020), a distribuição de apoios recebidos de diversas instituições durante a pandemia é representada no Gráfico 2.

Gráfico 2:
Tipos de apoio recebidos por organizações de catadores

Em 58,72% das organizações houve diminuição de renda; para 20% não houve alteração, 12,48% informaram aumento e 8,81% não tinham a informação. Considerando 431 organizações, o CEMPRE (2020) informa que para 61,25% das organizações os valores pagos pelos recicláveis diminuíram; 20,19% declararam aumento, para 15,55% não houve alteração e 3,02% não tinham a informação.

No contexto da Pandemia, os movimentos políticos dos catadores reivindicavam junto a governos e empresas o reconhecimento de seus serviços como essenciais. O MNCR (2020) publicou a “Carta aberta dos catadores da Cidade de São Paulo no contexto da pandemia Covid-19”, subscrita por mais de 36 instituições, declarando ser “[...] impossível não reconhecer a essencialidade dessa atividade, bem como o agravamento da situação social e econômica desses profissionais.”

4.2 Políticas públicas para catadores no contexto da pandemia nos municípios estudados

Os sistemas municipais de gestão de resíduos influenciam diretamente o trabalho dos catadores e os resultados das políticas. De acordo com dados do Diagnóstico Municipal de Resíduos Sólidos (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL, 2020), nos 32 municípios estudados, em 11 a coleta seletiva atendia em 2019 menos de 50% da população; em oito, de 50 a 100%, e em dez 100% (dados de três municípios não estavam disponíveis). A porcentagem reciclada sobre o total coletado foi inferior a 0,5% em cinco municípios; de 0,5% a 1% em cinco municípios; de 1% a 1,5% em quatro municípios; de 1,5% a 2% em seis municípios e de 2 a 2,5% em três municípios. Apenas seis municípios superavam a média nacional de 3% de reciclagem de resíduos coletados estimada pela ABRELPE (2020): Barueri (4,43%), Orlândia (8,62%), Salesópolis (33,32%), Santana de Parnaíba (6,5%), São Bernardo do Campo (3,23%) e Socorro (8,89%). Do universo total de municípios estudados, os dados de três municípios não estavam disponíveis no MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL (2020).

Nesse contexto desfavorável, agravado pela pandemia, a Política mais abrangente para os catadores foi o auxílio emergencial federal (Lei 13.982/2020), proposta pelo poder legislativo, um auxílio de R$ 600 mensais a desempregados, trabalhadores informais e microempreendedores.

Nos municípios pesquisados, os Governos Estadual e Municipais3 3 - Esses apoios são resultado de décadas de ação de organizações de catadores, incluindo o MNCR e redes locais de cooperativas, que promovem o diálogo com os governos. implementaram algumas ações direcionadas às organizações de catadores. A Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental (CETESB), órgão de controle ambiental do Estado, suspendeu as obrigações de reciclagem das organizações de catadores nos contratos de logística reversa com associações de fabricantes, mantendo-se a assistência financeira ou social.

Em resposta, grandes fabricantes apoiaram organizações de catadores integrantes de programas de logística reversa, como o “Dê a Mão para o Futuro”, da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal e Cosméticos (ABIHPEC), e o “Reciclar pelo Brasil”, financiado por grandes fabricantes nos setores de bebidas e alimentos, incluindo aportes financeiros no início da quarentena e cestas básicas para os grupos que mantem parceria com a ABIHPEC.

Tais apoios auxiliaram a manutenção dos catadores, porém a curta duração e o caráter assistencialista não garantiram uma adaptação duradoura das organizações à crise.

A Defensoria Pública do Estado recomendou que o Estado e municípios mantivessem pagamentos ou renda mínima aos catadores na quarentena, com base em orientações nacionais para Ministérios Públicos garantirem os direitos dos catadores (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2020).

O município de São Paulo publicou a Resolução 146/2020, da Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (AMLURB), que autorizou o uso do Fundo Paulistano de Reciclagem para 1.400 catadores cadastrados em programas de capacitação, com R$ 600 mensais para catadores independentes e R$ 1.200 mensais para catadores de organizações cadastradas. O auxílio seria mantido durante a quarentena, enquanto houvessem recursos. O fundo é composto pelas vendas das Centrais Mecanizadas de Triagem, e seria destinado aos catadores mesmo sem a pandemia. Outros municípios anunciaram auxílios de curta duração, como São Bernardo do Campo, que pagou um auxílio de R$ 1.000 a cooperados por um mês; em Sorocaba, um auxílio de R$ 1.000, que porem foi interrompido após um mês; em Arujá, R$ 600 mensais foram pagos apenas no começo da pandemia.

4.3 Impactos e ações nas organizações de catadores

4.3.1 Renda e situação financeira

As entrevistas semiestruturadas em 22 organizações de catadores e com representantes de cinco redes de catadores e do Comitê da Cidade revelou que a maior parte dos grupos teve sua renda e a situação financeira de suas organizações comprometidas na pandemia (18 dos 22 grupos pesquisados), devido à necessidade de interromper serviços de coleta seletiva, fechamento das unidades de triagem de materiais e outras restrições necessária à contenção da pandemia. Três grupos declararam não ter havido variação na renda, e um dos grupos até declarou aumento na renda devido ao aumento no volume de material que chegava à cooperativa.

Muitos grupos obrigados a fechar perderam pontos de coleta, incluindo grupos de São Paulo (Cooperpac, Cooperparelheiros e Coopamare). Iracy da cooperativa Mãos Dadas de Ribeirão Preto relatou que “perdeu o contrato de 150 pontos de coleta” e segundo a Dedé da Cidade Limpa de Santo André “os clientes fecharam as portas”. Apenas para a Cooptresc de São Caetano do Sul “a entrada de material aumentou, praticamente o dobro ou até mais”; para o João da Cooperlol, de Orlândia, “nada mudou, a coleta continua a mesma, o grupo continua trabalhando com os devidos cuidados, usando máscara e higienização”. Segundo Maria da Penha, da Coopercata de Mauá “o grupo ficou afetado porque os materiais estavam vindo com mais rejeito” diminuindo o rendimento da produção, “e os compradores começaram a parar de comprar, então… tinham só dois materiais para vender, o papel branco e o papelão”. Muitos participantes mencionaram que o valor dos materiais baixou, chegando à metade dos valores anteriores à pandemia.

Um problema para a maioria das organizações é a falta de fluxo de caixa. Para o Sr. José, da Cooperparelheiros de São Paulo, “Em tudo o que você pensar que uma empresa financeira pode sofrer de problemas a gente está sofrendo aqui, com aluguel, com dívidas, com problema de luz e água, de tudo por que estamos há mais de 40 dias sem comércio”. Cleiton, da Nova Glicério de São Paulo, reitera: “As coletas sim caíram, reduziram, nós tivemos que entrar em quarentena devido ao decreto municipal, a gente não tinha fluxo de caixa, a Associação não tem”. Iracy, da Mãos Dadas relata: “a prefeitura suspendeu o contrato, e não estamos recebendo nada da prefeitura. Até o dia 31 de maio não sabemos como vai ficar... A preocupação é que existe uma dívida do INSS.4 4 - Instituto Nacional do Seguro Social Não sabemos como pagar”.

Das 59 organizações de catadores, 35 tiveram suas atividades interrompidas pelos municípios, e 24 alteraram atividades por segurança, afastando pessoas do grupo de risco e reduzindo pontos de coleta, apontando diminuição da demanda por recicláveis.

18 de 59 organizações receberam auxílios financeiro municipais, com aumento de 30% na renda média mensal (aumento de uma média de R$ 877 para R$1.144), mesmo com a interrupção das atividades. Além disso, não houve saída de trabalhadores nesses grupos.

10 das 59 organizações têm contratos de prestação de serviços com as prefeituras, ativos durante a pesquisa. Contudo, nesses grupos houve diminuição média de 5% no número de cooperados e redução de 11% no volume médio de recicláveis comercializados mensalmente, de 97 para 86 toneladas. Todavia, não foi indicado grande impacto na renda.

Os grupos sem apoio de municípios, 31 das 59 organizações, tiveram queda de 5% no número de cooperados, de 47% na comercialização de recicláveis (de uma média de 92 para 49 toneladas mensais), e diminuição média na renda mensal de 40%, de R$ 980 para R$ 589.

4.3.2 Medidas de precaução tomadas durante a pandemia

As 22 organizações respondentes da pesquisa qualitativa declararam a ocorrência de 17 casos de infecção por Covid entre seus integrantes, em cinco organizações. Inicialmente (Maio, 2020) houve dois casos com Covid-19 relatados entre cerca de 2.153 catadores (o número total dos 22 grupos envolvidos na pesquisa qualitativa) das organizações que participaram da pesquisa; no mês seguinte o número já subiu para 10, e em agosto para mais cinco. É importante destacar aqui que essa é uma estimativa aproximada, já que é provável que alguns respondentes ocultem essa informação ou não sejam notificados pelos integrantes das organizações, por temor de paralisar as operações ou, individualmente, ser excluído do trabalho. Também se deve destacar a falta de testagem entre a população brasileira em geral, e as dificuldades que organizações e indivíduos de baixa renda têm em conseguir testes de Covid cujo custo é bastante alto.

Em termos de medidas preventivas à infecção dos membros das organizações, os grupos tomaram algumas medidas diferentes. A medida mais frequente foi a higienização de mãos e superfícies com desinfetantes combinada ao uso de máscaras (10 grupos). Quatro grupos relataram essa estratégia combinada a ações de distanciamento social entre os integrantes das organizações (divisão de turnos de trabalho e refeições). Dois grupos estavam realizando a quarentena dos materiais recebidos, isto é, o isolamento em uma área do material recebido antes da triagem, por períodos de até dois dias, e apenas um grupo fez como única medida o uso de máscaras. Por fim, cinco grupos paralisaram as atividades de forma compulsória, por determinações das Prefeituras com as quais trabalham (São Bernardo do Campo e São Paulo).

Os 22 grupos entrevistados classificaram as situações de trabalho na crise: trabalho normal (sem mudanças), parcial (parte das atividades suspensas) e parado. Em maio 2020, 11 dos grupos trabalharam de forma parcial, nove grupos pararam, e dois grupos trabalharam normalmente. Em julho o número de grupos trabalhando normalmente aumentou para 12, e os parados caíram para seis. Em agosto 12 grupos seguiam trabalhando normalmente e cinco parados. A maioria dos grupos tem afastado trabalhadores de grupos de risco.

Vários grupos citaram problemas de saúde mental. Segundo Tereza, da CooperVivaBem de São Paulo, “a pandemia afetou a gente tanto financeiramente como psicologicamente, pois... ficamos em casa, todo mundo com medo, e todo mundo sem retirada, sem pagamento... as pessoas acostumadas a trabalhar ficaram muito reclamando em casa, sem dinheiro, sem meios de sobreviver... algumas pessoas ficaram com a cabeça meio atrapalhada, sem dinheiro e com contas chegando”. Murilo da CooperNova (Cotia) relata a pressão sobre as lideranças em função da necessidade de maior controle sobre uso de EPIs e higienização: “sempre a mesma conversa, isso está gerando um desgaste… é o estresse de você cuidar de pessoas mesmo”. Oito grupos detectaram ao menos um indivíduo com problemas de saúde mental, e quatro grupos realizaram ações para solucionar o problema (Avemare, Coopere, Cooperpires, CooperVivabem).

As precauções mais frequentes foram afastar grupos de risco e utilizar Equipamentos de Proteção Individual, além da higienização frequente. Os meios de comunicação (e-mail, WhatsApp e telefone) foram importantes para aprender medidas preventivas e para reuniões, assembleias e comunicados dos grupos. Patrícia, da Cooperlimpa de Diadema, informa que “desde o início a gente faz cuidados, começamos a fazer uma higienização diferenciada, compramos álcool em gel, a higienização das mãos está sendo feita com mais frequência... compramos luva cirúrgica para colocar por debaixo da luva convencional, e estamos trabalhando dessa forma. O pessoal está trabalhando com máscara... no início compramos máscaras descartáveis só que está muito caro... o consumo dela é muito grande, então nós aderimos a comprar máscaras de pano... no final da tarde levamos para casa e higienizamos”. Para Murilo da CooperNova de Cotia “Nós estamos trabalhando na cooperativa da mesma forma, o que mudou foi somente a organização aqui. O horário de almoço está intercalando, ninguém junto para fazer as refeições, para conversar, nada de aglomeração. A gente está tomando o máximo de cuidado possível para que ninguém possa ser prejudicado. Agora todo mundo está usando a máscara o tempo todo”. Outra medida foi a introdução de vários turnos com número reduzido de cooperados; um grupo ainda cita o uso de óculos como medida adicional. Um único grupo (CooperNova) adquiriu testes de Covid-19 para os cooperados.

4.3.3 Vulnerabilidades identificadas durante a pandemia

Em termos gerais, as principais vulnerabilidades identificadas durante a pandemia foram, além da perda de renda discutido na seção 4.3.1., a falta de apoio para as organizações manterem o pagamento de suas contas (manutenção, água, luz, serviços, etc.) em dia (Quadro 2) e a impossibilidade de grupos de risco ao contágio por Covid trabalharem. Dez grupos relataram a necessidade de afastar pessoas idosas, grupo que muito frequentemente encontra nas organizações de catadores a única opção de trabalho e renda.

Quadro 2:
Situação dos apoios para a manutenção das organizações de catadores durante a pandemia

Como em outros setores sociais, a pandemia desvendou muitas vulnerabilidades que antes estavam encobertas. As cooperativas geram renda para um grande número de indivíduos vulneráveis, com idade avançada e/ou com problemas de saúde ou problemas sociais. Como a maioria depende da cooperativa para sobreviver, aqueles não elegíveis ao auxílio financeiro federal, tem passado por grandes dificuldades, como por exemplo, os aposentados. Segundo Ionara, da Avemare (Santana de Parnaíba), “a situação é muito difícil pois a nossa renda vem exclusivamente da cooperativa”. Sr. José da Cooperparelheiros (São Paulo) confirma: “Já estamos no fundo do poço e vamos mais pro fundo do poço. Não dá nem pra pensar em uma alternativa de momento em nada porque é uma dependência total do resíduo da cidade e se parar tudo nós somos os primeiros a serem afetados”. Alguns grupos mencionam até 15 dias sem renda, após o que podem passar fome. A maioria não tem reserva financeira: Cleiton, da Associação Nova Glicério (São Paulo), relata: “a gente sabe que muitas famílias não aguentam [ficar sem renda] por muito tempo, porque é complicado e você vive em grandes centros urbanos precisando do capital para sobreviver e não tem como plantar e colher, não tem nascente, não tem água, e você depende da Sabesp5 5 - Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo ”.

O problema são contas (luz, água, aluguel) em casa e na cooperativa. Alguns catadores correm o risco de despejo: segundo Maria Mônica da Cooperfênix (Diadema): “...pagar as contas, luz, água, aluguel, eu particularmente não tô conseguindo pois não tenho de onde tirar. Só mantendo mesmo as fraldas do meu tio e remédio, essas coisas são caras… não sei se aguento isso mais uns dois meses não. De verdade, pois se eu não pagar aluguel vou acabar sendo despejada”. A realidade na CooperNova (Cotia) é semelhante, confirma Murilo: “a maioria aqui se ficar uma semana sem trabalhar já dá um impacto muito grande em relação ao que elas têm de compromissos de dívida de contas”. Iracy da Mãos Dadas (Ribeirão Preto) confirma a vulnerabilidade: “Eu tenho uma filha que mora comigo e um rapaz de 17 anos, e tem que pagar água, luz, telefone, e comprar comida. Você acha que eu com R$ 500 e minha filha com R$ 600 que ela pega nós vamos conseguir passar com isso aí? Nós não vamos passar. Nós vamos passar fome”. A dependência da renda da reciclagem obrigou alguns grupos a continuar a trabalhar, como conta João da Cooperlol (Orlândia): “Na verdade eu e minha família, a gente não tem outra renda, a não ser a renda do nosso trabalho, então eu não sei o que a gente faria caso a gente precise parar de trabalhar”. Segundo Dedé, da Cooperativa Cidade Limpa (Santo André), “nós vamos tentar sobreviver, mas na dificuldade, porque nós não temos fundo de reserva. Hoje mesmo estou com meu apartamento atrasado (prestação) que eu tive da prefeitura (CDHU), condomínio atrasado, luz atrasada, tudo por causa da má situação que nós passamos aqui”.

Os catadores também estão preocupados com a falta de recursos para despesas das organizações, como contas de luz, água, impostos, etc., além de não poderem fazer a manutenção necessária para as operações e o investimento em benfeitorias para os seus membros (formação, EPIs, melhoria em espaç0s comuns na cooperativa como refeitório, banheiros, etc.).

4.3.4 Papel do governo na situação atual

Com relação à atuação governamental durante a pandemia, os participantes da pesquisa qualitativa ressaltaram o papel dos governos locais (municípios), que são as esferas com gestão direta sobre as atividades de gestão de resíduos, incluindo-se aí o trabalho das cooperativas, na maioria das vezes regidos por termos de contratos, convênios ou outro instrumento de parceria. A grande maioria dos respondentes considerou a atuação do governo negativa (12 grupos), sete grupos classificara a atuação governamental como positiva, dois grupos mantiveram-se neutros, com respostas em que não expressavam opinião, e um grupo não respondeu à questão.

Vários participantes, como Marcelo da Cooperem de Guarujá, mencionaram que a pandemia evidenciou a situação precária dos catadores: “O que está vindo à tona é o total desconhecimento do poder público sobre a questão do que é a coleta seletiva, o que são os catadores... A suspensão da coleta seletiva por conta do decreto municipal sem sequer dialogar com os catadores, sem sequer saber o que nós fazemos, sem sequer nos orientar... é o total desconhecimento do que a nossa categoria, que os nossos trabalhadores fazem, produzem e representam nesta questão da cadeia produtiva da reciclagem”. Em muitos municípios no Brasil, os catadores não são considerados parceiros de fato na gestão de resíduos sólidos. A frustração com a invisibilidade é constante nas entrevistas. Para Teresa, da Coopervivabem (São Paulo) “...político não se importa com a realidade da nossa população”. Marcelo da Cooperbem (Guarujá) demanda “reconhecer o trabalho dos catadores na coleta seletiva como um serviço essencial, semelhante aos coletores de lixo, que recebem um aparelhamento melhor, tem instruções melhores… aparecem na mídia local educando as pessoas a separar o resíduo e não colocar as máscaras, luvas, algo que pudesse vir a contaminar os coletores de lixo... e a gente se pergunta: e nós, quem somos nós dentro deste processo?” Maria Aparecida da Cooperglicério (São Paulo) reitera: “o nosso trabalho também deveria ser um trabalho essencial”.

Apenas alguns participantes cogitaram uma mudança, com o governo dando mais atenção aos catadores, como Cleiton da Associação Nova Glicério (São Paulo): “a pandemia fez com que o governo começasse a olhar para a população e a escutar a população”. Alguns grupos em São Paulo também elogiaram o município pelo pagamento de auxílios do Fundo Paulistano de Reciclagem. Para Valquíria da Cooperpac (São Paulo) “o governo está fazendo uma parte do que cabe a ele”.

A diferença entre grupos cadastrados pela prefeitura de São Paulo, frente a grupos sem vínculo fica evidente na fala de Carioca, da Coopercaps (São Paulo): “a única fonte de tristeza é que agora que os grupos organizados que não fazem parte do programa socioambiental da cidade tão vendo a importância de ter uma parceria com o poder público. Eu vi e sou testemunha de vários grupos que falaram: eu não quero prefeitura intervindo no meu trabalho, eu não quero prestar conta… Isso antes da pandemia, agora tá todo mundo procurando... um apoio, daí a importância de ter sim parceria com o poder público”.

4.3.5 Importância das parcerias e ações de apoio

Catadores organizados têm uma ampla rede de parceiros (empresas e prefeituras), colaboradores (ONGs) e apoiadores, além de redes de catadores e do MNCR, que no período da pesquisa apoiaram os grupos principalmente com cestas básicas e produtos de higiene. No mix de apoios declarados pelos 22 representantes das organizações de catadores pesquisadas, percebemos a maior frequência de instituições privadas (mencionadas por 17 grupos), redes de organizações de catadores (citados por 10 grupos), públicas (nove grupos), movimento de catadores (sete grupos) e ONGs (cinco grupos).

O apoio privado mais citado foi da ABIHPEC (11 grupos) e da indústria petroquímica Braskem (8 grupos). Alguns grupos receberam cestas básicas das prefeituras locais (São Paulo, Mauá, Ribeirão Preto e Santo André). Grupos não conveniados de São Paulo (Coopervivabem, Associação Nova Glicério e Cooperglicério) não receberam auxílio municipal e estavam em pior situação. Alguns grupos mencionaram apoio da defensoria pública e universidades. Diversas redes (Catasampa, CoopcentABC, FEPACOORE, Rede Sul, Rede Verde Sustentável) forneceram apoio, bem como o Comitê da Cidade de São Paulo (organização com 32 grupos), ANCAT e o MNCR. Com apoio do MNCR e da ONG Instituto GEA Ética e Meio Ambiente alguns cooperados têm recebido atendimento psicológico de forma remota.

Os representantes das redes de catadores relatam que a pandemia afetou a produção, pois diversos municípios determinaram o fechamento das organizações. De acordo com Carlos Henrique da Rede CataSampa, “a Covid-19 afetou a rede principalmente na questão da paralisação da operação... muitos municípios não vêem a coleta seletiva e o trabalho dos catadores como um trabalho essencial. E a gente também está com medo do alto índice de contaminação e de expor os catadores pelo trabalho, a gente paralisou em 100% no primeiro momento...hoje 60% dos empreendimentos [grupos] estão completamente parados, paralisados, e 40% estão trabalhando de forma precária, de forma emergencial para não poder ficar totalmente sem a sua única fonte de sobrevivência...”. Para Viviane, a CoopcentABC foi afetada pois algumas cooperativas que contribuíam com pagamentos para a manutenção da rede deixaram de trabalhar, como por exemplo as cooperativas de São Bernardo do Campo.

Por outro lado, para Jair da FEPACOORE “foi um momento em que a gente se uniu mais, porque as cooperativas estavam meio soltas, e nesses momentos de dificuldades a rede é importante para conseguir apoio, viabilizar recurso, alimentos, enfim, a gente através da rede conseguiu bastante doações e atender bem os cooperados das cooperativas”.

O vínculo com a Prefeitura de São Paulo amenizou bastante a situação da Rede Sul, mas organizações da rede em outros municípios passam por dificuldades, segundo Carioca: “Como na nossa rede nós temos cooperativas da cidade de São Paulo onde todas são conveniadas com a Amlurb, tem uma tranquilidade, porque estamos recebendo um repasse para cada cooperado de R$ 1.200, mas das cooperativas do interior, somente Campinas e Nova Odessa eles não estão tendo apoio nenhum do poder público… A rede tem tentado entrar em contato com as prefeituras, sem sucesso. Os catadores de lá estão passando uma grande dificuldade que é justamente a falta de apoio do poder público”.

Quatro das cinco redes entrevistadas continuaram com suas atividades. Apenas a Rede Sul parou parcialmente, devido à paralisação das cooperativas da rede. O relato do Jair da FEPACOORE indica pouco apoio à manutenção das organizações: “neste momento estão buscando apoios principalmente para as cooperativas, porque os cooperados estão muito bem atendidos, com recursos provenientes da prefeitura, auxílio emergencial, cestas básicas, máscaras, kit de higiene, limpeza, mistura, leite, tudo isso a gente viabilizou pela rede para os cooperados. Agora as cooperativas continuam com as suas contas a chegar, e sem faturar não tem como pagar, então está tendo que recorrer a banco, juros, então neste exato momento a gente está buscando apoio financeiro para as nossas cooperativas”.

Luzia, do Comitê da Cidade informa que “passou a se preocupar com a sobrevivência das pessoas e o primeiro passo foi a vaquinha pensando na alimentação. O segundo passo foi a carta, dizendo para as autoridades e parceiros (que assinaram), ser injusto termos cooperativas desabilitadas, são quase mil trabalhadores, mais os avulsos, e os mesmos ficarem confinados, com determinação para ficarem em casa, até porque, não tem para quem venderem, o ferro velho também está fechado”. Em parceria com ONGs, o Comitê da Cidade adquiriu cestas básicas e promoveu reuniões virtuais com catadores do Brasil e participou de uma audiência pública com a Secretaria dos Direitos Humanos sobre apoios para os catadores.

Sobre o papel do governo durante a crise, Carlos Henrique da CataSampa avalia que “... a gente atua em três grandes regiões do estado de São Paulo: capital, litoral e Alto Tietê... Aqui no alto Tietê o Condemat6 6 - Consórcio de Desenvolvimento dos Municípios do Alto Tietê, responsável pela gestão de resíduos sólidos na região. tem dado todo respaldo, para que a gente possa ter o mínimo de segurança e apoio ... o Condemat, ele fez algumas videoconferências com a gente para poder alinhar e detalhar algumas coisas. Já em São Paulo capital é mais difícil por causa da política de São Paulo; e litoral por ser uma cidade litorânea de turismo, aí fica mais difícil ainda. Então o governo local num modo geral tem apoiado e tem ajudado as cooperativas... o papel [do governo] dentro dessa crise é meio conturbado...poderia ser melhor e ter um apoio mais efetivo, poderia ter um outro olhar, não de politicagem … mas uma outra perspectiva ... [N]a medida do possível alguns prefeitos...tem dado alguns respaldos para cooperativas, mas muito mínimo”.

Segundo Carioca (Rede Sul), “O governo local da cidade de São Paulo saiu na frente e desde o dia 18 [de março] em que baixou o decreto que era para as centrais de triagem pararem suas atividades, preservando assim a saúde e vida dos catadores e garantindo uma retirada mensal de R$ 1.200. Então os catadores estão tendo este apoio do poder público... 70 a 80% conseguiu o recurso oriundo do governo federal de R$ 600 (auxílio emergencial), então está dando para se manter”.

Alguns entrevistados mencionam ações para ampliar a cooperação entre as redes de catadores. A Rede Sul firmou termo de cooperação com a FEPACOORE, agregando contatos e parcerias, conseguindo arrecadar cerca de 43 toneladas de alimentos, além de produtos de higiene e limpeza, distribuídos para as cooperativas da rede e catadores não organizados. Para Jair da FEPACOORE: “A gente tem trabalhado em parceria com outras redes, ontem mesmo eu estive com o Eduardo do Movimento Nacional de Catadores e da Coopamare, fornecendo alguns itens para eles distribuírem para catadores avulsos, a gente tem feito um trabalho bacana entre FEPACOORE e Rede Sul, que já possuem desde o ano passado um termo de colaboração técnica, então o que a gente consegue de apoio aqui via FEPACOORE a gente compartilha com a Rede Sul, e o que a Rede Sul consegue de apoio em parceria, compartilha com a FEPACOORE”.

A rede CataSampa, por fazer parte do MNCR e ter proximidade com a ANCAT e a organização nacional Unicatadores7 7 - Reúne cooperativas de catadores de recicláveis de todo o Brasil. , participou da campanha de solidariedade aos catadores. Segundo Rosa, da Rede Verde Sustentável, “hoje estamos com parceiros como a Unisol8 8 - Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários. São Paulo, com a Fundação Banco do Brasil para a entrega de cestas básicas, ... e apoio da ABIHPEC”.

A rede Coopcent ABC também recebeu apoio da ABIHPEC, Braskem, Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensorias Públicas e Unisol São Paulo, além de ONGs que doaram cestas básicas. A Coopcent ABC também lançou uma campanha para arrecadar fundos.

Diversos relatos apontam a dependência de apoios pontuais. Segundo Jair, “nas cooperativas as contas continuam chegando, eu por exemplo, tenho um caso de cooperativa que paga aluguel de galpão que já está sendo despejada, então essa questão de apoio para as cooperativas, pessoa jurídica, financeiro para pagar as contas, é o que a gente tem sentido mais falta”. A Rede Verde Sustentável está numa situação melhor pois “tem o capital de giro com a ABIHPEC que ajudou sanar” (por exemplo, o pagamento do INSS de um dos grupos).

5. Conclusões

A crise da Covid-19 coloca as organizações de catadores em uma conjuntura crítica, forçando-os solucionar problemas idealmente tratados pelo Estado em interação com organizações da Sociedade Civil, com mediação de políticas federais, estaduais e municipais envolvendo também atores privados.

As organizações pesquisadas vêm contornando alguns dos impactos negativos da pandemia, atendendo necessidades básicas. Ainda assim, estas instituições dependem de uma série de ações coletivas desse movimento social: estruturação interna dos grupos, articulação com instituições externas, ações do MNCR, articulações com governo (especialmente os municípios) e empresas parceiras.

Percebe-se a baixa prioridade dada aos catadores, tanto por parte de governos, cuja obrigação de tratar os resíduos municipais depende da atuação dos catadores na reciclagem, como por empresas interessadas em adequar-se à regulação ambiental e ganhos de imagem. Os recursos obtidos pelos catadores se devem à atuação como movimento social, amparada na legislação que determina que governos e empresas os apoiem.

As ações pesquisadas mostram grande diversidade, em larga medida devido ao contexto municipal, onde é decidida a gestão de resíduos, incluindo as políticas já existentes e as ações das organizações de catadores e redes de apoio. Nos 32 municípios estudados o apoio do MNCR e das redes de cooperativas foi importante.

Os 32 municípios variam muito em termos de políticas de coleta seletiva e reciclagem. Na pandemia, o auxílio para as organizações que perderam parte de sua renda foi também variado, com grupos sem auxílio específico, e outros com apoios e em melhor situação. Grupos mais conectados ao poder público (caso das organizações habilitadas de São Paulo) tiveram acesso a auxílio financeiro, mas mesmo esse tipo de auxílio em muitos municípios foi bastante precário e desigualmente distribuído. O auxílio mais utilizado, além do auxílio emergencial federal, foi oferecido por organizações privadas que administram programas de logística reversa, na forma de doações de alimentos básicos e itens de higiene, e em menor medida repasses financeiros.

A totalidade dos auxílios foi direcionada a pessoas físicas, integrantes ou não de organizações de catadores. Para as organizações (incluindo-se suas redes), itens essenciais para operações, como manutenção, impostos, fluxo de caixa e despesas cotidianas como água e luz estavam ausentes dos apoios. Isso revela a percepção, por parceiros públicos e privados dos catadores, de que o apoio se restringe à assistência social, desconsiderando a operação de organizações que atualmente garantem a reciclagem de grande parcela dos resíduos coletados. Ou seja, a política ainda é assistencialista e não setorial.

As reivindicações pelo reconhecimento do trabalho dos catadores como serviço essencial são mais um episódio da luta histórica por reconhecimento, desde que o movimento intensificou sua atuação. Mesmo com alta exposição à contaminação, pouco foi feito pelos parceiros públicos e privados em termos de prevenção (por exemplo, testes de Covid-19). A solução predominante, por decisão dos municípios, foi suspender o trabalho das organizações, que por sua conta organizaram medidas de mitigação de impactos e prevenção (uso de itens de higiene e proteção, afastamento de trabalhadores vulneráveis, cuidados com a saúde mental), contando com o apoio de diversos atores, com destaque para as organizações nacionais do movimento social e as redes locais.

Conclui-se que o trabalho dos catadores de coleta e separação de resíduos sólidos é um serviço público essencial que deve receber apoio formal (GUTBERLET, 2020GUTBERLET, J.; BRAMRYD, T.; JOHANSSON, M. Expansion of the Waste-Based Commodity Frontier: Insights from Sweden and Brazil. Sustainability, v. 12, n.7,p. 1-15, 2020.). Como tal é fundamental que políticas públicas garantam a inclusão dos catadores em programas de coleta seletiva formal. Pesquisas futuras podem investigar em maior detalhe as barreiras e oportunidades para as transformações estruturais nos sistemas de gestão de resíduos sólidos, com inclusão social e produtiva das organizações de catadores, destacando suas relações com atores públicos e privados e valorizando os serviços ambientais e sociais realizados pelos catadores.

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  • 1
    - Os programas de logística reversa são iniciativas de empresas em resposta a exigências recentes de responsabilização dos produtores de bens geradores de resíduos, incluindo resíduos perigosos e bens de consumo de massa (BRANDÂO, 2019).
  • 2
    - Pesquisa da ANCAT (2020) em uma amostra de 278 organizações indicou renda mensal média de R$ 932,19 por catador em 2019.
  • 3
    - Esses apoios são resultado de décadas de ação de organizações de catadores, incluindo o MNCR e redes locais de cooperativas, que promovem o diálogo com os governos.
  • 4
    - Instituto Nacional do Seguro Social
  • 5
    - Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo
  • 6
    - Consórcio de Desenvolvimento dos Municípios do Alto Tietê, responsável pela gestão de resíduos sólidos na região.
  • 7
    - Reúne cooperativas de catadores de recicláveis de todo o Brasil.
  • 8
    - Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2021
  • Aceito
    08 Dez 2021
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com