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As três viagens de Abrão Slavutzky

Humor é coisa séria. Slavutzky. Abrão. . Porto Alegre: Arquipélago, 2014. 295

"Em tempos nos quais não nascem sábios, aproveitemos os humoristas como os sábios do século XXI. Essa é a proposta deste livro, quem sabe seu objetivo secreto."

Assim termina a obra à qual Abrão Slavutzky se dedicou nestes últimos anos: uma investigação sobre o humor, suas condições, seu papel na vida humana, sua história. Mas, como logo descobrirá o leitor que se dispuser a acompanhá-lo, o escopo do trabalho é bem mais amplo: há quarenta anos Abrão exerce a psicanálise - e tem com ela contas a acertar.

Não se imagine, porém, que se trata de mais uma dessas aborrecidas e superficiais críticas à consistência teórica ou à eficácia terapêutica da disciplina inaugurada por Freud. Ao contrário, é por amar a psicanálise, por ter aprendido muito com ela, por ter empregado seu talento clínico para ajudar inúmeros pacientes, que nosso autor quer livrá-la de um traço a seu ver desnecessário, pernicioso mesmo: aquilo a que chama a "seriedade" dela. No que consiste esse aspecto? No formalismo excessivo, sustenta Abrão. Há, decerto, bons motivos para a atitude reservada do psicanalista, que traduz na prática os princípios éticos e técnicos da neutralidade e da abstinência: devemos nos guardar, como Freud adverte no final de "O ego e o id", da tentação de nos convertermos em gurus dos pacientes. Contudo, para isso não é preciso se comportar de modo pedante, nem eliminar do tratamento a possibilidade de rir.

Para fundamentar sua tese, Abrão nos convida a uma tripla viagem: pela história da cultura, pelas condições psicológicas que favorecem a eclosão do humor ou a ela se opõem, e pela intimidade do consultório de um analista. Um dos grandes méritos do livro é a habilidade com que mantém juntas essas três dimensões, detendo-se ora numa, ora em outra, porém sempre aproveitando o que nos mostra aqui para aprofundar a compreensão de algo que surge ali, e que à primeira vista não parecia ter relação com aquele determinado tópico.

Tripla viagem, disse. A primeira visita, o humor enquanto tal, isto é, sua natureza, aquilo no que ele consiste. Começando pelos aspectos mais evidentes - a sua "rebeldia", a função crítica que lhe é essencial e faz dele o adversário de todos os autoritarismos e todas as pompas, cujo lado ridículo expõe sem complacência

-, Slavutzky continua pelas condições psíquicas que o produzem. Aqui é Freud quem o guia, em "A piada e sua relação com o inconsciente" (1905), Herr Professor explorou a fundo o tema, mostrando suas raízes na agressividade constitucional do ser humano. Por isso a necessidade de disfarçá-la, de modo sutil, para que possa ser aceita na vida civilizada, os recursos de que se vale o humor para ao mesmo tempo atingir seu alvo e obedecer às conveniências sociais (alusão, concisão, surpresa, entre outros), os motivos do prazer que suscita tanto em quem a produz como naquele a quem se conta a piada, e muitas outras características do cômico.

Abrão se serve amplamente deste estudo para explicar como o humor revela o "outro lado" de uma realidade frequentemente hostil, e ilustra isso com análises detalhadas, entre as quais sobressaem as dedicadas a Carlitos e a Dom Quixote. Também nos conta inúmeras boas anedotas, que comprovam ser o humor um bálsamo para as feridas narcísicas: quem ri coloca-se por um momento à distância do que o aflige, e também "acima" da ameaça. "O humor alivia o desamparo", diz ele, e, nos casos mais extremos, "pode salvar do desespero". É este o tema de um dos capítulos mais impressionantes do livro, que trata do humor durante o Holocausto. Apoiando-se em trabalhos de sobreviventes dos campos de concentração, como Viktor Frankl e Chaya Ostrower, e sem esconder seu "espanto" diante do fato de que mesmo em condições tão terríveis os judeus tenham sido capazes de rir dos seus carrascos (e de si mesmos).

Com isso, estamos já na segunda viagem, a que explora a história da cultura em busca das origens e do desenvolvimento do humor. Da Bíblia a Aristóteles e Galeno, passando pela Idade Média - os Padres da Igreja, que em geral o condenaram por ímpio (como vemos em O nome da rosa), os autores cristãos que contestaram essa opinião, como São Tomás e São Francisco de Assis, e, numa vertente laica, Bocaccio e seu Decamerão -, chegamos ao Renascimento (Rabelais, Erasmo de Rotterdam, Montaigne) e ao pai do humor moderno, Dom Miguel de Cervantes. Em seguida, surgem escritores como Lawrence Sterne, Machado de Assis, André Breton, Kafka, Orwell e muitos outros, secundados por cineastas do quilate de Chaplin e de Woody Allen, e por humoristas contemporâneos.

Claramente, a investigação que empreendeu influenciou Slavutzky na sua prática clínica, liberando-o de vários desses entraves. Que para isso tenha sido necessário um tão longo percurso diz muito sobre o peso dos modelos que admirou e procurou seguir, sobre o trabalho de luto sem o qual não poderia ter se separado deles - porém conservando o que tinham de útil e inspirador - para trilhar o seu próprio caminho.

Retroativamente, certos momentos nos quais os analistas que teve se deixaram levar pelo riso lhe oferecem uma espécie de caução para o rumo que ousou tomar; tornaram-se assim encarnações do "superego benigno" do qual fala Freud em seu artigo "Der Humor" (1928).

De certo modo, as palavras do fundador o autorizaram a retomar um antigo interesse - já em seu primeiro livro, Psicanálise e cultura, havia um capítulo sobre o humor, e o de número 8 deste reproduz um trabalho de 1999, que acabou dando origem à coletânea que organizou depois, Seria trágico... se não fosse cômico. Mesclando elementos autobiográficos com uma pesquisa exemplar, e com uma tese ousada sobre a natureza da clínica psicanalítica, ele trabalhou, revisou, poliu e completou um livro que certamente dará o que falar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014
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