Acessibilidade / Reportar erro

A escrita terapêutica no autismo

Therapeutic writing in autism

L’écriture thérapeutique dans l’autisme

Escritura terapéutica en el autismo

Die therapeutische Schreiben im Autismus

自闭症的写作治疗法

Resumos

O presente texto analisa as duas autobiografias de Birger Sellin, autista-escritor, que são retratos da sua luta para se liberar do isolamento autístico glacial, através das suas diversas estratégias inventadas que lhe viabilizam um tratamento do gozo invasivo, com uma eficácia relativa, mas que lhe permitem manter seus pseudópodes estendidos em direção aos outros. A invenção da literatura birgeriana retrata os efeitos terapêuticos da escrita, evidenciando a sua importância enquanto valiosa ferramenta de (auto)tratamento no autismo.

Psicanálise; autismo; autobiografia; gozo


This paper analyzes the two autobiographies written by Birger Sellin, an autistic author, which are portraits of his struggle to break the glacial autistic isolation by means of various strategies he developed and that allowed – to a certain extent – a treatment of invasive jouissance, but which also allowed him to keep his pseudopods extended towards others. The invention of Birgerian literature portrays the therapeutic effects of writing, highlighting its importance as a major tool for (self-) treatment in autism.

Psychoanalysis; autism; autobiography; jouissance


Cet article analyse les deux autobiographies de Birger Sellin, autiste-écrivain, qui illustrent sa lutte contre l’isolement autiste glacial, menée à travers de différentes stratégies élaborées par lui-même et qui lui ont permis de suivre un traitement de jouissance invasive. Bien que l’efficacité de ce traitement reste relative, il lui a néanmoins permis de maintenir les pseudopodes étendus vers les autres. L’invention de la littérature birgerienne met en lumière les effets thérapeutiques de l’écriture, tout en soulignant son importance comme outil majeur dans l’(auto )traitement de l’autisme.

Psychanalyse; autisme; autobiographie; jouissance


En el presente trabajo se analizan las dos autobiografías de Birger Sellin, escritor autista, que son obras que reflejan la lucha por liberarse del aislamiento autístico glacial mediante diferentes estrategias inventadas, las cuales hacen posible un tratamiento del goce invasivo que, con una relativa eficacia, le permiten mantener sus pseudópodos extendidos hacia los otros. La invención de la literatura birgeriana deja en evidencia los efectos terapéuticos de la escritura y destaca la importancia de la misma como una potente herramienta para el (auto)tratamiento del autismo.

Psicoanálisis; autismo; autobiografía; goce


Der vorliegende Text analysiert zwei Autobiographien von Birger Sellin, einem Autisten und Schriftsteller, welche seinen Kampf gegen die eisige autistische Isolation beschreiben. Sie erzählen, wie er verschiedene Strategien entwickelte, die ihm zwar mit relativem Erfolg einerseits eine Behandlung des invasiven Genießens ermöglichten, andererseits aber auch, seine Pseudopodien in Richtung der Anderen ausgestreckt zu halten. Die Erfindung der birgerianischen Literatur illustriert die therapeutischen Effekte des Schreibens, sowie ihre Wichtigkeit als ausgezeichnetes Werkzeug der (Selbst)Behandlung des Autismus.

Psychoanalyse; Autismus; Autobiographie; Genießen


本文分析自闭症作家比尔格·塞林(Birger Sellin)的两个自传体作品,作品描述了他们为了脱离冰川般的自闭隔离而做的努力和斗争。作者通过各种自我释放的愉悦疗法,取得了一些相对疗效,使得自己能够保持对他人开放的姿态。比尔格风格(birgeriana)文学的发明描写了写作治疗法的效果,表明写作是自闭症治疗的一个重要的自我治疗工具。

精神分析; 自闭症; 自传; 愉悦


Introdução

A importância da escrita no campo do autismo é particularmente enfática no caso de autistas não verbais, incapazes de utilizar a voz para se comunicar oralmente. Na literatura autobiográfica de autistas constatamos a presença de vários autistas extremamente inteligentes e sensíveis que são erroneamente considerados débeis mentais, seja pela família, seja pelos profissionais responsáveis pelos seus tratamentos. Presos no mutismo autístico, além da impossibilidade de se apropriarem da voz para se comunicarem, eles manifestam comportamentos muitas vezes bizarros, cuja lógica escapa das outras pessoas. É somente após o uso da escrita para se expressar que vários autistas não verbais podem, finalmente, manifestar quem são e o que estava escondido atrás dos muros autísticos. Todos os autistas não verbais das autobiografias consultadas manifestavam os sintomas típicos de um quadro kanneriano de autismo — mutismo autístico, comportamentos estereotipados, busca de mesmice (sameness), ausência de contato visual, intensa agitação motora e movimentos de autoestimulação, comportamentos inadequados a diversas situações, sendo que a grande maioria dos autistas-escritores analisados foram, inicialmente, enquadrados em diagnósticos de debilidade mental ou inteligência abaixo da média e autismo de baixo funcionamento ou autismo severo.

Quando os autistas kannerianos podem escrever seus textos, eles podem finalmente mostrar que são inteligentes, pensantes, sensíveis, desejosos de se expressar e de estender cada vez mais seus pseudópodes em direção aos outros, o que podemos apontar nas autobiografias escritas nos autistas não verbais, como Tito Mukhopadhay, Ido Kedar, Birger Sellin, Elizabeth Bonker e Carly Fleischmann, nos autistas capazes de oralizar, mas com dificuldades significativas para conseguir expressar o que está na sua mente, como Naoki Higashida, e nos autistas verbais como Donna Williams e Temple Grandin. No presente artigo, enfocaremos os efeitos terapêuticos da escrita no autismo, a partir dos livros autobiográficos de Birger Sellin, autista alemão que foi um dos inauguradores da tradição literária de escritos autobiográficos de autistas, por meio de duas vertentes: a escrita enquanto porta de acesso ao autista que viabiliza a mudança do lugar do autista no laço social e a vertente do trabalho organizador do pensamento viabilizado pela escrita.

O surgimento da escrita em Birger

Tendo sido diagnosticado débil mental e, em seguida, autista, Birger Sellin permaneceu em um quadro de autismo kanneriano dos dois até os 17 anos, tendo expressado uma única frase durante esse período. Durante todos os anos encapsulado, em mutismo quase absoluto, havia apreendido uma quantidade inimaginável de informações, tendo mantido uma intensa vida psíquica, plena de sentimentos e pensamentos, e aprendido a ler e a escrever sozinho, mas era ainda incapaz de expressar, para os outros humanos, seus pensamentos, sentimentos e ideias. Aos 17-18 anos, ele começou a escrever seus textos literário-autobiográficos e literário-poéticos, os quais constam de seus dois livros publicados e pôde compartilhar toda a sua intensa vida psíquica através da escrita. Os primeiros escritos de Birger têm como temática principal a designação dos seus pais, do irmão e de seu próprio nome, além da nomeação de vários objetos, de alguns números e de um cálculo matemático de adição. Em seguida, Birger escreve longos textos sobre o autismo, sobre seus medos, sobre a falta de paz e o sofrimento no isolamento autístico, sobre a sua busca de estratégias para sair da sua solidão, e sobre quão exaustivo é para ele a luta para se expressar e a importância da escrita. Do primeiro texto, podemos extrair o trecho: “Eu não sou uma pessoa real sem a escrita porque isto é meu único meio de expressão que eu tenho e este é o único meio de mostrar como eu penso” (Sellin, 1995Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind. (A. Bell, trad.). New York: Basic books., p. 57).

Com a evolução da sua escrita, esta se torna uma maneira de falar de si que se desdobra em uma possibilidade de, ao se falar, poder organizar pensamentos e sentimentos que até então ficavam perdidos no caos, pois, nas palavras de Birger, “(...) o fato é que eu já podia escrever e até fazer aritmética quando eu tinha quase cinco, mas ninguém podia notar porque eu era tão caótico, mas eu somente era daquele jeito porque eu tinha medo das pessoas” (p. 58). Escrever se torna, então, para Birger, a oportunidade de se liberar parcialmente, de se comunicar, de contar seu sofrimento e alguns porquês de seus comportamentos incontroláveis.

A liberação viabilizada pelo uso da escrita, pois “a vida seria um inferno sem a escrita” (p. 65), permite a Birger se libertar parcialmente do “mundo-sem-eu” (p. 71), no qual está dolorosamente preso, para “ser livre” (1998, p. 71). Além disto, escrever lhe permite deixar fluir “o fluxo de pensamentos”, ao “encontrar as palavras” (p. 92) que lhe permitem se expressar. Ao contrário, o encapsulamento autístico é o lugar de um “caos íntimo de um horror inigualável” (p. 60), mas romper este encapsulamento envolve um “combate contra si mesmo” (p. 60) para sair “da eterna solidão” (p. 60) e da sua prisão interior. Uma vez que a fala lhe é inacessível, Birger precisa enfrentar permanentemente “forças defensivas e de recusa” (p. 63) para poder sair deste “país-de-ninguém” (p. 97) por meio de sua escrita.

A volição para a abertura é concomitante ao reencontro de Birger com um sentimento vital dentro de si, que é retratado como sua pertença à pátria humana e a desistência das suas “ideias separatistas” (p. 154). A escrita surge como a via de construção de um lugar social e de pertencimento à pátria humana. Pela escrita, Birger inventa uma maneira de não cair no abismo da solidão sem fim e encontra uma forma de se comunicar e dar vida aos seus pensamentos e sentimentos. É escrevendo que Birger tem esperança de que a luz entre na escuridão e que ele possa compartilhar com os outros humanos os seus sofrimentos e sair da solidão esmagadora.

Em inúmeros trechos dos textos de Birger é evidente a vivência de total desamparo e o imenso sofrimento na solidão autística, pois a “vida em total isolamento é pior que uma prisão ou o que eles chamam confinamento na solitária eu estou afogando na solidão” (Sellin, 1995Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind. (A. Bell, trad.). New York: Basic books., p. 71), é como ser “enterrado vivo na solidão de um autista” (p. 84).

Birger se dirige ao leitor como alguém que pode escutá-lo e que pode ajudá-lo a ser tocado pelo amor e a encontrar forças dentro de si para enfrentar as suas defesas autísticas e conseguir se abrir para o laço. É essencial para Birger sua intensa vontade de se comunicar com as pessoas que lhe são queridas, inclusive alguns de seus leitores. Deste modo, a escrita, ao viabilizar o laço com o outro e favorecer o amor, é um apoio indispensável para que Birger desenvolva suas estratégias (auto)terapêuticas. Sentir-se compreendido pelos outros humanos é extremamente importante para que Birger possa sentir ter um lugar no mundo, pois o amor dos outros e a interação com pessoas gentis, calmas e respeitosas da sua humanidade são descritos como a possibilidade de respirar para fora do seu isolamento e prisão autísticos e germinar amor dentro de seu coração, pois “a gentileza e o amor são uma arma eficaz contra o autismo enervante” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 16), tendo poderes terapêuticos de um eficaz “remédio íntimo” (p. 16). O seu leitor é convocado como alguém que pode ajudar ao lê-lo, alicerçando uma nova ética que respeite a diferença e que acolha suas maneiras de viver singularmente a vida.

A escrita como alicerce para o autoestudo psíquico

Birger (Selin, 1995Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind. (A. Bell, trad.). New York: Basic books.) realiza um intenso trabalho psíquico em busca de estratégias que lhe permitam tratar o gozo invasivo, a angústia, o medo, a agitação e o isolamento autísticos. Ele desenvolve um trabalho de reflexão e pensamento que lhe permite criar seu método pessoal para lidar com suas dificuldades e tentar superá-las, pelo desenvolvimento de suas “teorias pessoais” (p. 69) sobre si e sobre o mundo. Estas teorias lhe permitem expandir sua leitura de várias facetas do mundo, analisar profundamente a humanidade e expandir suas estratégias de autotratamento. É interessante enfatizar a presença, nas duas autobiografias de Birger, de um intenso trabalho psíquico para pensar a si mesmo, particularmente o ser-autista, concretizando uma descrição e explicação das suas singularidades, dos seus modos de defesa e das suas principais angústias. Neste âmbito, Birger aponta, com toda pertinência, haver “leis” (Sellin, 1995Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind. (A. Bell, trad.). New York: Basic books., p. 106) ou o que podemos caracterizar como uma lógica que alicerça a sua estrutura psíquica. Birger descreve as leis da lógica autística, mas em inúmeros trechos de suas autobiografias ele tenta transformar os seus conflitos e mudar do autismo para o que ele caracteriza como um funcionamento que substitua as “leis da loucura” (p. 106) por “leis que funcionam” (p. 106) na normalidade. Se por um lado, Birger em alguns momentos só consegue imaginar um estado de tranquilidade sendo normal, ele vai, nesse entretempo, desenvolver estratégias que lhe permitem rever suas defesas autísticas e conseguir obter um novo equilíbrio psíquico, com uma redução do sofrimento e a possibilidade de uma vida um pouco mais livre, permitindo-lhe se entregar a experiências que ele anseia: como poder realizar viagens ou passeios sozinho.

É interessante que, em um dos seus textos, Birger (Selin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont.) refere que vai tentar escrever ou uma “super birger-estória” (p. 224) para presentear quem está lhe dando o apoio para que ele escreva, ou um poema sobre “criaturas estrangeiras” (p. 224) e “fatos selvagens” (p. 224) e desregulados. Na estória, trata-se de um evento natalino, uma data de paz, com um clima ameno e “meridional” (p. 224), marcado por um “riso louco” (p. 224) e uma “festa cordial” (p. 224). Esta estória, escrita no final da sua segunda autobiografia, dá-nos indícios de um interessante percurso realizado por Birger, que não está mais brigando tão violentamente com a estrangeirice ou com as manifestações bizarras do seu comportamento, mas aceitando cordialmente uma solução de acolhimento da sintomatologia, o que nos indica seu caminho curativo pela escrita que trata “a alma sozinha” (p. 224) e lhe permite obter uma relação mais conciliatória com as suas manifestações autísticas.

Outro importante alicerce para o desenvolvimento das suas autoestratégias de tratamento é o estudo, pois o saber se torna para Birger “uma verdadeira paixão” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 101): ele quer aprender tudo, tem uma imensa avidez, relatando que este trabalho intelectual é uma “fonte da vida supervivível” (p. 138). Ele desenvolve um trabalho de reflexão e pensamento que lhe permite criar seu método pessoal para lidar com suas dificuldades e tentar superá-las. Os livros se tornam tanto uma fonte do tesouro da linguagem da humanidade quanto os alicerces para que Birger possa criar modalidades de organização de si mesmo e da sua apreensão do mundo, tornando-o “um silencioso” que “pode começar uma linguagem” (p. 24).

Das áreas de conhecimento, Birger demonstra um interesse especial pelas línguas, pela matemática, pelas ciências biológicas e pela psicologia, ressaltando uma relação especial com a natureza e seu poder vital curativo e revigorante, com os números e seu mundo misterioso, com as línguas e a possibilidade de abrir o coração humano e comunicar o sofrimento, com a psicologia e a possibilidade de se compreender e contribuir para o conhecimento dos outros sobre o autismo.

A leitura de nomes clássicos da filosofia se torna a fonte de conhecimento para Birger construir seu percurso subjetivo e as suas explicações para a vida, a morte, o autismo, suas decisões e escolhas, enfim, para pensar a vida. Por exemplo, após a leitura de Nietzsche, Birger comenta a importância desta leitura para a formação da personalidade, desembocando na sua reflexão sobre o fato de que ele próprio luta na sua vida contra forças muito fortes, e que é contra si mesmo que é preciso decidir o seu destino, o que será reafirmado em outros momentos do seu texto sobre a sua necessidade constante de batalhar contra suas próprias resistências e seu medo para conseguir se comunicar.

Birger precisa inventar modos de compensação para a falta do encadeamento significante, através da leitura de uma quantidade imensa de textos que ele apreendia no seu “cérebro doloroso” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 115) através de um olhar extremamente breve no qual ele registrava o conteúdo escrito, que lhe era necessário retrabalhar mentalmente através de um intenso processo psíquico “hiperdifícil” (p. 148). Birger registrava rapidamente uma quantidade enorme de informação, mas tinha dificuldade principalmente para registrar nomes e denominações, caracterizando sua impossibilidade em ter certeza sobre os nomes das coisas e as suas designações. Ele distinguia a sua dificuldade em relação aos outros humanos, não autistas, que podem ser seres pensantes “certos-dos-nomes” (p. 220), enquanto ele precisa autoinventar uma habilidade de “aprender-a-conhecer-os--nomes” (p. 220).

Ao se apropriar da linguagem, desenvolvendo nomeações e designações que ele etiqueta à realidade, surge uma nova modalidade de organização através da apreensão da realidade através das possibilidades criadas por esta linguagem, outro importante fator terapêutico evidenciado na escrita de Birger. Esta etiquetagem e consequente organização psíquica operacionalizam uma modalização do gozo em uma modalidade de tratamento da energia em excesso (gozo) que lhe invade.

A escrita como tentativa de modalização do gozo

A função catártica-curativa que tem para Birger se expressar pela escrita permite que uma dimensão energética — que pode ser remetida ao gozo em excesso — encontre uma saída para seu corpo. Em vários trechos das autobiografias, ele tenta elaborar maneiras de se ligar a uma fonte (energética) da qual nasce uma vida oriunda das profundezas em um movimento curativo que lhe permitiria se reapropriar desta dimensão energética e que seria concomitante à possibilidade de ser livre e poder se expressar.

A busca desta vitalidade das profundezas do ser, que age como uma força terapêutica, também é marcante nas descrições de Birger da sua relação com a natureza. Fascinado pela visão do mar, vento e rochas, Birger pode deixar de escanteio seus medos, manias e “triste realidade” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 76). Nestes momentos de distanciamento do próprio sofrimento e de vivência de momentos de uma alegria tranquila, a natureza é vivenciada como sua “família pacífica” (p. 77) da qual recebe “uma força benéfica e espiritual” (p. 81) com poderes terapêuticos vitalizadores e revigorantes, dado que a silenciosa natureza “trabalha a alma em você como um supermédico” (p. 77).

Neste contato com os seres da natureza, Birger busca o “vigor psíquico” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 91) que lhe permite adquirir um movimento constante e uma dinâmica energética vital. A natureza é personificada como a mãe-natureza que surge para auxiliá-lo a sair do que ele vivencia como uma terra de mortos e ausentes, aprisionados em uma solidão total à espera de poderem ser novamente conectados a uma fonte de energia e vitalidade que permita uma “ressurreição” (p. 97). Birger se descreve como uma planta invernal cheia “de desejo de rever o sol” (p. 98), sonhando com a presença da mãe-natureza que acalme a sua dor, retire seu medo e lhe dê acesso à vitalidade, através do amor e da sabedoria. Em um dos seus poemas, Birger ressalta que assim como “(...) a água busca um caminho em direção do mar” (...), “Birger busca um caminho em direção da vida” (p. 209), sendo que sua relação com a natureza espelha precisamente este seu esforço de apropriação da força energética vital na tentativa de modalizá-la.

Vale a pena ressaltarmos o intenso trabalho psíquico que envolve, para Birger, escrever sobre este esforço de ser capaz de adquirir uma dinâmica, de se apropriar de uma energia vinda das profundezas, o que podemos evidenciar, por exemplo, pelo fato de que, ao escrever, Birger tem, eventualmente, crises de gritos: “o medo e a confusão aumentam”), pois “eu não posso me impedir de grritarx” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 157). Na emergência das crises, é marcante a invasão de uma agitação (gozo) que Birger caracteriza ser profundamente enraizada dentro de si e que o devora acarretando “no colapso das primeiras palavras agonizantes” (Sellin, 1995Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind. (A. Bell, trad.). New York: Basic books., p. 80).

Em um dos seus escritos, Birger descreve diferentes etapas da sua crise: na primeira etapa há o surgimento de um medo imenso oriundo de uma “obscuridade mental” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 114), em seguida tudo se tornaria opaco e preto e então ele teria uma vivência somática de “isolamento glacial” (p. 115), cujo único remédio seria o encontro com outro humano capaz de o acolher com tranquilidade, oferecendo-lhe um “discurso sensível” (p. 115) e que não fosse nem tomado por demasiada tensão em face da sua crise, nem que ficasse hesitante ou em silêncio.

A escrita de Birger sobre como o outro humano pode ser terapêutico para ele, de qual maneira alguém pode estar ao seu lado de modo a favorecer a sua extensão dos pseudópodes e amparar as suas invenções subjetivas para tratar o gozo invasivo, é também uma temática constante nos seus textos. O autoestudo das suas sintomatologias e funcionamento psíquico desembocam em orientações para as outras pessoas a partir do seu saber construído sobre o seu autismo e as singularidades da sua lógica psíquica. Birger afirma a importância destes laços com pessoas capazes de se adaptar ao funcionamento psíquico autístico e, assim, funcionarem como antídoto para a solidão e o isolamento, em uma abertura para o amor e para a vida.

É através das cartas que recebe de leitores que Birger encontra força para lutar contra seu medo e suas defesas e continuar a se comunicar, enfrentando um “risco atroz” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 146), mas decidido a batalhar e a ousar confiar, entregando-se ao mundo dos outros humanos pela aposta no encontro confortante da compreensão. As trocas de cartas com os leitores são uma fonte de reconhecimento e afeição essenciais para Birger, sendo que ele salienta ter aprendido na interlocução com seus leitores “a ternura íntima” (p. 147) e a empatia, o que lhe dá uma intensa alegria e o sentimento de que vale a pena viver a vida e sair do mundo tenebroso onde ele vive solitariamente.

A escrita como organizadora do pensamento

Nos momentos em que Birger não consegue escrever, apesar da intensa vontade de encontrar os caminhos para se expressar, ele é tomado por uma solidão que o impede de se levantar de seu “caixão” como se houvesse dentro dele um muro “rude e confuso” ou “alguma coisa que obstrui com veemência o caminho em direção ao exterior” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 96). Estas resistências interiores são descritas como fontes de energia negativa-negadora de vida, oriundas em si mesmas, o que lhe exige o apoio de um outro humano, sem o qual lhe é impossível superar estas poderosas forças que lhe tornam um caótico “eterno gritador” (p. 170).

O ritmo dos pensamentos na sua mente era tão intensamente rápido, e ao mesmo tempo caótico, que seus elos se perdiam e ele era invadido por ataques de agitação. Birger ficava perdido, sem organização, quando deparado com sua voz silenciosa ou a fala “na mente solitária” (Sellin, 1995Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind. (A. Bell, trad.). New York: Basic books., p. 102), constituída por pensamentos loucos, rápidos, sem fim, os quais podiam ser autotratados pelo escrever. Se, por um lado, o pensamento se perdia no caminho até ele ser expresso oralmente, quando Birger recorria à escrita, ele conseguia manter a conexão entre o pensamento e a sua expressão. Neste sentido, a escrita lhe permitia organizar seus pensamentos, deixando de serem perdidos ao longo do caminho: os pensamentos que ficavam soltos por não estarem crochetados pelo significante-mestre podiam, deste modo, ser encadeados através do processo de escrever. Ao colocar em palavras, Birger aponta poder sistematizar este fluxo de ideais e se sentir aliviado do “caos de pensamentos” (p. 103).

Além da dificuldade de organização dos pensamentos, havia a dificuldade deles poderem ser expressos. Em Birger há uma distância muitas vezes intransponível entre seus pensamentos e a expressão deles. Ele afirma saber “como agem as frases as palavras como nós as escutamos interiormente, mas no exterior é diferente sem controle dos mundos interiores” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 31). Os mundos, interior e exterior, são “mundos fabulosos imensamente separados” (p. 63), sendo que a única possibilidade dele juntá-los era pela escrita, como ponte para a passagem de um abismo.

Se o escrever não é uma solução definitiva, evidenciamos que ela envolve um árduo trabalho psíquico, contínuo, que permite a Birger desenvolver sua linguagem, apreender a realidade por meio da organização propiciada pelas estruturas linguísticas, organizar e sistematizar seus pensamentos e sentimentos, encontrar uma via de conexão à dimensão vital-energética e inventar modalidades de autotratamento singulares.

O estilo da escrita de Birger

É interessante notarmos a evolução dos escritos de Birger, das primeiras tentativas de nomeação de objetos e sentimentos, ele vai cada vez mais articulando pensamentos e sentimentos mais complexos, surgindo nestes textos, cada vez mais presente, o estilo birgeriano: um olhar singular, marcado por uma visão de si mesmo e do mundo extremamente lúcida, com pitadas de humor e ironia. Além disto, no seu estilo também emergem expressões criativas e seu modo de ver um mundo onde há coisas e pessoas fabulosas e extraordinárias nascidas do “coração birgeriano” (Sellin, 1998Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde. (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont., p. 76).

Ser um escritor-poeta é, para Birger, poder elaborar as suas experiências de vida, transformando-as ao expressá-las em uma forma estilística cristalina, simples e autêntica que retrata (e trata) as verdades do sofrimento humano e dos sofredores sem voz. Birger é o porta-voz das pessoas solitárias que tentam dizer “algo sem palavras” (...), “algo simples na sua linguagem isolada” na “linguagem de pessoas solitárias como uma pessoa totalmente louca com nome de birger” (Sellin, 1995Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind. (A. Bell, trad.). New York: Basic books., p. 97).

O escrito de Birger tem uma marca singular. Na sua poesia, nas estórias e nos textos autobiográficos propriamente ditos podemos afirmar que Birger “vive nos textos” (Barbosa, 2013Barbosa, R.K. (2013). O mundo, o núcleo e a mão: figuras da cura em Clarice Lispector? Um estudo psicológico de contos e do depoimento de leitores. Tese de Doutorado em Psicologia Social, não publicada. Universidade de São Paulo, USP, São Paulo., p. 7). Publicar as suas autobiografias surge da vontade de Birger de encontrar um lugar para si no mundo e de permitir que as pessoas tenham acesso ao seu mundo e compreendam a sua vontade de se ligar aos outros. Seus textos evidenciam o seu esforço de organização do pensamento para inventar percursos que lhe permitam se transformar de uma “não pessoa” (Sellin, 1995Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind. (A. Bell, trad.). New York: Basic books., p. 105) em uma pessoa com um lugar social na humanidade.

Sua escrita é um pseudópode estendido em direção aos outros humanos na esperança de ser escutado. O efeito da leitura no leitor depende, no entanto, da possibilidade deste permitir ser tocado pelas reverberações dos abismos de Birger. O estilo “sem enfeite” (...), “sem desperdício de palavras” e de “franqueza sem rodeios” (Barbosa, 2013Barbosa, R.K. (2013). O mundo, o núcleo e a mão: figuras da cura em Clarice Lispector? Um estudo psicológico de contos e do depoimento de leitores. Tese de Doutorado em Psicologia Social, não publicada. Universidade de São Paulo, USP, São Paulo., p. 6) envolve uma intensa experiência de contato com uma dimensão humana que remete diretamente ao Real desnudado. Através Birger, o leitor pode se deparar tanto com o estranho íntimo da sua própria existência e se abrir para uma nova experiência vicariante, quanto sentir horror do que lhe toca profundamente, ao se deparar com uma dimensão do Real, nos alicerces de todo ser humano.

Para ler Birger, é preciso se entregar ao desconhecido e às dores das profundezas do ser que suas palavras carregam, mas deste sofrimento, desamparo e angústia, surge uma abertura para o respeito da diferença do outro humano. Não à toa, a leitura da literatura de Birger me lembrou a tese de Rita Barbosa (2013)Barbosa, R.K. (2013). O mundo, o núcleo e a mão: figuras da cura em Clarice Lispector? Um estudo psicológico de contos e do depoimento de leitores. Tese de Doutorado em Psicologia Social, não publicada. Universidade de São Paulo, USP, São Paulo. quando afirma a existência de uma “ética de compaixão” (p. 108) que emerge da possibilidade de solidariedade com o outro, de oferecer a mão ao sofrimento, de compreensão do diferente e de se deixar tocar pela vulnerabilidade do outro, aspectos estes também tão marcantes no escrito birgeriano.

Considerações finais

Birger realizou um importante percurso que retrata um trabalho (auto)terapêutico do qual sua escrita é um aspecto de importância essencial. Birger se tornou capaz de se expressar com fluência, concretizando uma literatura autoral na qual podemos notar vários dos mecanismos psíquicos que ele operacionalizou e que lhe permitiram estender seus pseudópodes e se comunicar através da sua escrita. Pelos insights obtidos sobre o próprio funcionamento psíquico e da possibilidade de compartilhar suas ideias e sentimentos, estabelecendo sólidas e importantes pontes com outros humanos — amigos, leitores, conhecidos e familiares — a publicação dos livros permitiu a Birger tecer junto com outros autistas e seus leitores, um novo lugar: o lugar de escritor, porta-voz do sofrimento dos excluídos, e da sua esperança de ter sua solidão e sofrimento escutados.

Referências

  • Barbosa, R.K. (2013). O mundo, o núcleo e a mão: figuras da cura em Clarice Lispector? Um estudo psicológico de contos e do depoimento de leitores Tese de Doutorado em Psicologia Social, não publicada. Universidade de São Paulo, USP, São Paulo.
  • Bonker, E.M., & Breen, V.G. (2011). I am in here: the journey of a child with autism who cannot speaks but finds her voice Grand Rapids, MI: Revell.
  • Fleischmann, A. (2012). Carly’s voice: breaking through autism / Arthur Fleischmann with Carly Fleischmann New York: Touchstone/Simon & Schuster.
  • Grandin, T. (1994). Ma vie d’autiste Paris: Odile Jacob.
  • Higashida, N. (2013). The reason I jump: the inner voice of a thirteen-year-old boy with autism. (K.A. Yoshida, & D. Mitchell, trads). New York: Random House.
  • Kedar, I. (2013). I do in Autismland: climbing out of autism’s silent prison Lexington KY.
  • Mukhopadhyay, T.R. (2011). How can I talk if my lips don’t move?: inside my autistic mind New York: Arcade Publishing.
  • Maleval, J-C. (2012). Écoutez les autistes! Paris: Navarin Éditeur.
  • Sellin, B. (1995). I don’t want to be inside me anymore: messages from an autistic mind (A. Bell, trad.). New York: Basic books.
  • Sellin, B. (1998). La solitude du déserteur: un autiste raconte son combat pour rejoindre notre monde (M. Keyser, trad.). Paris: Robert Laffont.
  • Williams, D. (2012). Meu mundo misterioso: testemunho excepcional de uma jovem autista. Brasília: Thesaurus Editora.
  • Financiamento/Funding: A autora declara não ter sido financiada ou apoiada / The author has no support or funding to report.
  • Citação/Citation: Bialer, M. (2015, junho). A escrita terapêutica no autismo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 221-233.
Editores do artigo/Editors: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck e Profa. Dra. Sonia Leite
Conflito de interesses/Conflict of interest: A autora declara que não há conflito de interesses / The author has no conflict of interest to declare.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2014
  • Aceito
    15 Jun 2014
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com