Resumos
Este artigo tem como objetivo apresentar a distinção entre ética e diagnóstico na psicanálise e na psiquiatria, a partir do estudo de caso de Jacinta Passos (1914-1973), militante política e escritora baiana, diagnosticada como esquizofrênica, sendo que em decorrência de tal diagnóstico foi posteriormente excluída do corpo social. Concluiu-se que há diferenças relevantes entre ambas as disciplinas e que a psicanálise tem contribuições éticas importante a dar ao campo da saúde mental.
Ética; diagnóstico; política; psiquiatria; psicanálise
This article aims to outline the distinction between ethics and diagnosis in psychoanalysis and in psychiatry, based on the case study of Jacinta Passos (1914-1073), a political militant and writer from Bahia (Brazil) diagnosed as schizophrenic. As a result of that evaluation, she was afterwards excluded from society. We concluded that there are relevant differences between the two disciplines, and that psychoanalysis has important ethical contributions to offer to the field of mental health.
Ethics; diagnosis; politics; psychiatry and psychoanalysis
Le but de cet article est de présenter la distinction entre l’éthique et le diagnostique dans la psychanalyse et la psychiatrie à partir de l’étude de cas de Jacinta Passos (1914-1973), militante politique et écrivaine de Bahia, diagnostiquée de schizophrénie et par conséquent exclue de la société. Cette étude nous permet d’affirmer qu’il existe des différences considérables entre les deux domaines et que la psychanalyse peut fournir des contributions éthiques importantes au domaine de la santé mentale.
Éthique; diagnostic; politique; psychiatrie et psychanalyse
Este artículo tiene como objetivo presentar la diferencia entre ética y diagnóstico, en el psicoanálisis y en la psiquiatría, desde el estudio del caso de Jacinta Passos (1914-1973), militante política y escritora bahiana, diagnosticada como esquizofrénica y que, debido a dicho diagnóstico, fue posteriormente excluida del cuerpo social. Se ha concluido que hay diferencias relevantes entre ambas disciplinas y que el psicoanálisis posee contribuciones éticas importantes para el campo de la salud mental.
Ética; diagnóstico; política; psiquiatría y psicoanálisis
Dieser Artikel erläutert die Unterscheidung zwischen Ethik und Diagnose in der Psychoanalyse und Psychiatrie aufgrund einer Fallstudie von Jacinta Passos (1914-1973), politische Aktivistin und Schriftstellerin aus Bahia, die mit Schizophrenie diagnostiziert wurde und demzufolge aus der Gesellschaft ausgeschlossen wurde. Es wurde festgestellt, dass erhebliche Unterschiede zwischen den beiden Disziplinen bestehen und dass die Psychoanalyse wichtige ethische Beiträge zur psychischen Gesundheit liefern kann.
Ethik; Diagnose; Politik; Psychiatrie und Psychoanalyse
本文旨在通过研究因被诊断为精神分裂,而后被社会机体排除的政治积极分子、巴西巴伊亚州作家Jacinta Passos (1914-1973)的案例,来呈现道德与诊断在精神分析学及精神病学中的区别。结论表明两门学科之间存在着显著差异,且精神分析学具有对心理健康领域重要的道德贡献。
道德; 诊断; 政治; 精神病学和精神分析学
Introdução à problemática da pesquisa
A questão do diagnóstico psiquiátrico no campo da saúde mental apresenta-se como um problema ético desde o seu surgimento. Isso decorre da exclusão do sujeito da sua prática, que, como diz Freud (1916/2014)Freud, S. (2014) Psicanálise e Psiquiatria. In Obras completas, volume 13: Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916)., refere-se não à ciência em si, que o autor defende como complementar à psicanálise, mas à postura dos psiquiatras. A disciplina freudiana, por outro lado, por ter uma ética distinta, pode estabelecer uma crítica relevante no campo epistemológico e político, ao revelar os efeitos nocivos e excludentes do diagnóstico psiquiátrico e do tratamento orientados por aspectos morais.
O caso escolhido, por sua vez, permite relacionar as ações psiquiátricas ao contexto político, histórico e cultural brasileiro. Nele, como será apresentado a seguir, é possível observar como o diagnóstico associa-se às mudanças políticas, sendo sensível às quedas e alterações do regime, como no caso da escritora que, a partir da sua militância comunista, foi sendo progressivamente excluída do contexto social.
Quem foi Jacinta Passos? O resgate do personagem histórico
Jacinta Passos nasceu em 1914, em Cruz das Almas, cidade do interior da Bahia. Oriunda de uma família de classe média, dona de terras, participante da elite política da República Velha. Como de costume, seus familiares homens estiveram envolvidos com atividade política, enquanto às mulheres eram destinados os papéis de mãe e dona de casa. Ela passou parte da sua infância na cidade, mas logo sua família migrou para Salvador em busca de melhores oportunidades de trabalho, em decorrência da ebulição política da época, que pôs em declínio o grupo político do qual seus familiares faziam parte.
Ela escreveu poemas, ensaios, contos e textos jornalísticos desde cedo. Isso foi o que permitiu que a sua biografia não fosse completamente apagada, em decorrência da sua internação psiquiátrica e do isolamento social a que foi submetida. Ainda que seus textos tenham bastante qualidade, e ela tenha sido uma participante ativa de um círculo de escritores que revelou ao mundo Jorge Amado, por exemplo, ela é amplamente desconhecida nesse meio. Seu resgate histórico só foi possível graças à publicação de Amado (2010)Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010., que sucede a monografia de Machado (2000)Machado, D. (2000). A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador: EGBA..
Um outro ponto que é importante situar é o questionamento de Jacinta aos padrões da época, sobretudo em relação ao papel da mulher que, podemos observar, começa de um modo tímido nos seus escritos e culmina com um enfrentamento a partir da sua entrada na militância comunista. Sua história divide-se, claramente, em duas partes: o período pré-diagnóstico (1914-1951) e o período pós-diagnóstico (1951-1973).
Período pré-diagnóstico (1914-1951)
O período pré-diagnóstico, caracteriza-se, primeiramente, pela busca de Jacinta Passos por um lugar na sociedade a partir do papel de professora, título que obteve exercendo o magistério na escola normal. Também, aqui, a escritora já militava politicamente, mas de um modo que era “socialmente aceito”, já que o fazia a partir das ações sociais da Igreja Católica.
Ainda assim, há relatos de conflitos com os poderes vigentes. Machado (2000)Machado, D. (2000). A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador: EGBA. relata dois episódios. Em um deles, Jacinta, na escola em que ministrava aulas, se recusou a apertar as mãos de Isaías Alves, conhecido integralista da época, em solidariedade a um outro professor que teve um discurso interrompido por ter desagradado o educador. Em outro, teve um auto de uma missa, que foi encenado no Mosteiro de São Bento, em Salvador, posteriormente censurado pelo cardeal D. Álvaro Augusto. Segundo os relatos, ele teria ficado bastante irritado, mas não há informações detalhadas acerca do acontecido.
O ponto de virada na militância de Jacinta Passos é a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939. Em 1940, ela começou a abandonar, progressivamente, a religião e a militância social da Igreja Católica, e passou a militar contra o fascismo, tendo posteriormente se filiado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro). Também nessa época envolveu-se de uma forma mais direta com a contestação do regime social vigente a partir da colaboração com a Revista Seiva (de orientação comunista), em 1942, e com o O Jornal Imparcial, no mesmo ano, que não tinha orientação política definida. Muitos desses textos foram recuperados por Amado (2010)Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010. e publicados na organização destinada ao resgate da vida e da obra da escritora.
O incômodo, dentro do seio familiar, começa com a filiação ao PCB, o que sinalizou uma oposição à família, já que seu pai era filiado à UDN. No entanto, nesse momento, a escritora detinha prestígio entre os intelectuais comunistas da época e a rejeição era apaziguada por certa tolerância. Esta se dissipou a partir do seu casamento com James Amado, oito anos mais novo, que não teve a anuência da família, e se fez a partir de uma viagem forjada para São Paulo, uma transgressão grave diante dos padrões morais da época.
Seguiu-se a isso sua candidatura a deputada federal pelo PCB, em 1945, na qual não obteve êxito eleitoral. Em 1947 há uma virada importante na sua vida, já que nesse ano iniciou-se a guerra fria, ano que igualmente demarca o começo de uma repressão política mais acentuada aos militantes dessa ideologia. É nesse contexto que irá se forjar o diagnóstico psiquiátrico-político de Jacinta.
Jacinta se isolou com o marido numa fazenda entre 1947 e 1951, onde se afastou momentaneamente da vida política, em decorrência do nascimento da sua filha. No entanto, voltou à militância, após a mudança do casal para o Rio de Janeiro. “Em 51, seus militantes eram severamente perseguidos pelo governo. Foi em clima adverso, de forte condenação social e repressão policial, portanto, que Jacinta desenvolveu seu trabalho político no Rio” (Amado, 2010Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010., p. 387).
Logo em 1951, a escritora tentou vender seu livro recém-lançado, intitulado Poemas políticos, nas ruas do Rio de Janeiro e foi presa. Não há, infelizmente, detalhes acerca dessa prisão, nem de sua duração, tampouco dos procedimentos policiais utilizados durante o interrogatório e a detenção. Nesse mesmo ano, a escritora sofreu repressão policial no “Congresso de Mulheres do PCB”, realizado na cidade de São Paulo, no qual ela foi delegada pelo Rio de Janeiro. Também não há detalhes acerca desse episódio. No entanto, é possível notar os efeitos exercidos a posteriori na subjetividade de Jacinta por esses dois acontecimentos.
Machado (2000)Machado, D. (2000). A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador: EGBA. expõe que logo após esses eventos, a escritora teve uma crise nervosa, ficou agressiva e disse que estava sendo perseguida pela polícia. Posteriormente, foi internada em uma clínica em Botafogo e diagnosticada como “Portadora de Esquizofrenia Paranoide”. O relato biográfico fala que o seu entorno, e os médicos, julgaram que a sua crise nervosa era proveniente de delírios e alucinações. Nesse primeiro momento da sua internação, o parecer médico indicou que ela deveria permanecer junto ao seu marido, que dormia com ela no mesmo quarto, como favorável a uma possível melhora. No entanto, posteriormente, os mesmos médicos julgaram que a presença do marido era negativa e ela foi transferida para um outro sanatório — na Ilha do Governador — onde passou a ficar sozinha, recebendo apenas visitas eventuais de familiares.
Período pós-diagnóstico (1951-1973)
Diante das tentativas de fuga de Jacinta, que não aceitava a internação, ela terminou sendo transferida novamente, agora para a cidade de São Paulo, onde foi internada no sanatório Charcot. A justificativa para isso proveio de que ela ficaria perto de um irmão e de um cunhando, que eram médicos. O tratamento anteriormente destinado a ela foi “à base de eletrochoques, injeções de insulina e barbitúricos” (Amado, 2010Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010., p. 389).
Na clínica paulistana a escritora recebeu novamente o diagnóstico de “esquizofrenia paranoide”, tendo recebido posteriormente alta. No entanto, não voltou a viver com o marido, tampouco com a filha, e foi novamente internada em 1953, após receber a notícia de que o mesmo estava com outra mulher. Lá permaneceu por mais dois anos. Os dados contidos na sua biografia indicam que ela resistiu à internação e terminou sendo imobilizada e sedada pelo irmão.
Permaneceu internada por cerca de um ano e meio, até que em 1955 recebeu autorização para voltar a morar em Salvador. A partir desse retorno fica evidente a exclusão à qual Jacinta passou a ser submetida, efeito do descrédito proveniente do diagnóstico psiquiátrico-político. Mesmo entre os comunistas passou a ser vista com desconfiança, estranheza e classificada como “louca”.
Conforme isto acontecia, a escritora reagia com agressividade e mais contestações, o que era interpretado como efeito da sua loucura. Jacinta, assim, em busca de um espaço, passou a discursar em público na praça, fato que era visto com vergonha pela sua família.
Manoel Caetano ficava muito constrangido quando lhe davam notícia do comportamento público da filha. Nessas ocasiões apressava-se em responder, voz seca e semblante sério a desestimular perguntas, que ela agia assim por sofrer de faculdade mentais. (Amado, 2010Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010., p. 413)
Depois disso, destaca-se que, em 1958, Jacinta foi passar férias na cidade do Rio de Janeiro, participou de uma comemoração na rua do aniversário de Luís Carlos Prestes e terminou sendo novamente presa. A sua libertação se deu sob a alegação do seu ex-marido de que ela sofria de insanidade mental. No entanto, tendo posteriormente retornado a Salvador, passou a sofrer novas ameaças de internação e foi novamente levada ao sanatório sob a justificativa de que sofria constantemente de crises nervosas, onde permaneceu por meses.
Após a alta, reagiu com uma ruptura parcial em relação a família, em decorrência da sua não aceitação da internação. Mudou-se, então, para Petrolina, Pernambuco, onde morou até 1962. Não há detalhes sobre a sua vida em território pernambucano, nem sobre o motivo da mudança que se deu para Barra dos Coqueiros, Sergipe.
É interessante notar que, em território sergipano, em um primeiro momento os efeitos políticos do diagnóstico desaparecem. De acordo com Amado (2010)Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010. o diagnóstico foi visto, pelos intelectuais sergipanos, como uma tentativa de desmoralizá-la, e ela reconquistou um lugar de respeito, que há muito havia sido perdido. No entanto, isso dura apenas até 1965, quando a repressão aos comunistas aumenta e o exército veicula uma informação de que a escritora teria delatado um militante, que terminou preso, da “Associação de Pescadores de Barra dos Coqueiros”, na qual a escritora havia encontrado espaço para propagar a sua ideologia.
Diante disso, Jacinta foi novamente excluída da sociedade e terminou se isolando completamente. Ainda nesse ano, foi presa duas vezes por causa da sua militância. Na última, foi encaminhada ao tenente Rabelo, que era responsável, de acordo com Machado (2000)Machado, D. (2000). A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador: EGBA., pelas prisões relacionadas a desordem política. Amado (2010)Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010. relata esse episódio destacando a violência empregada contra ela, já que o barraco no qual ela morava foi invadido e seus pertences foram destruídos.
Machado (2000)Machado, D. (2000). A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador: EGBA. entrevistou o tenente Rabelo na ocasião da elaboração da sua biografia. Esste relatou para a biógrafa que fez três interrogatórios com Jacinta, antes da prisão definitiva. No primeiro, questionou o envolvimento dela, enquanto mulher, com ideias “subversivas”; no segundo, a relação dela com a atividade comunista em Sergipe; e, no terceiro, questionou, de forma provocativa, a relação dela com os militantes partidários. Diante do fato de que Jacinta reagira cada vez de uma forma mais agressiva, e tinha a militância como um “ideal fixo”, de acordo com a leitura do tenente, esse julgou que tudo era fruto de loucura e a enviou para avaliação médica.
O médico que a atendeu diagnosticou-a como “portadora de desequilíbrio nervoso” e a enviou ao sanatório público do Estado de Sergipe. A família, de acordo com Machado (2000)Machado, D. (2000). A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador: EGBA., logo foi informada e a transferiu para um sanatório particular, a “Casa de Saúde Santa Maria”. Lá, ela foi atendida pelo dr. Hercílio da Cruz, que forneceu o seguinte prontuário para a sua biografia.
nº 389
Jacinta Passos
Branca
50 anos
casada – desquitada, escritora, natural de Cruz das Almas, Bahia
Pai falecido de icterícia
Mãe viva sadia
Nascida a termo de gestação e trabalho de partos normais
Linguagem, dentição e marcha não sabe informar
Tem uma filha de 17 anos
Não usa tóxico
Foi criada pelos pais em ambiente familiar. Sempre foi considerada como criança bem comportada, é a terceira na ordem dos filhos.
Estudou o curso primário em São Félix, Bahia, e ao concluir seguiu para Salvador, onde fez o curso normal na Escola Normal, obtendo o diploma em dezembro de 1932. Em 1944 casou-se com o sr. James Amado e viveu mais ou menos dez anos.
Desde, 1944 é comunista.
Em 1950 foi presa no Rio de Janeiro por causa da literatura política, livros de poesia que publicou – Poemas políticos. Por essa prisão e pela perseguição política ficou “nervosa” e foi internada em estabelecimento cujo nome não se recorda, seguindo para o Sanatório Charcot, em São Paulo, onde se submeteu ao último tratamento em 1955, e obtendo alta como curada, regressou à Bahia. De 1958 a 1961 residiu em Petrolina. Em julho de 1962 veio para Barra dos Coqueiros, porque achou Aracaju mais perto de Salvador. (Machado, 2000Machado, D. (2000). A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador: EGBA., pp. 30-31, 2000)1 1 Esse prontuário foi fornecido a Dalila Machado pelo diretor da Casa de Saúde Mental de Santa Maria, dr. Herlício Cruz Filho, por ocasião da sua pesquisa acerca da biografia de Jacinta Passos. Ele também foi publicado por Amado (2010) na página 425.
Logo fica evidente, a partir do diagnóstico, o cruzamento entre o mesmo e a questão política. Diante disto, o que restou a Jacinta foi uma internação na qual permaneceu até o fim da sua vida, em 1973. Recebia poucas visitas dos familiares, e, de acordo com Amado (2010)Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010., algumas vezes disse não reconhecê-los quando isso ocorria, fato que também era associado a seu diagnóstico de loucura. Ainda assim, permaneceu ativa na escrita; parte desses cadernos, intitulados pela biógrafa como sendo os “Cadernos do Sanatório”, foi dado ao seu ex-marido, James Amado, pela direção da instituição por ocasião do seu falecimento.
A questão da ética da psicanálise e da sua implicação diagnóstica
O nascimento da psicanálise se dá a partir da fundação de uma ética de tratamento que era antagônica ao modo como a psiquiatria da época operava. Sendo assim, Freud funda uma nova nosologia e uma nova nosografia, para servir de base, primeiramente, ao tratamento das histéricas. Esses sintomas faziam enigma à medicina e punham à prova o seu status social de maestria, ao revelarem-se absolutamente incuráveis, impermeáveis a uma ação baseada no observável e à referência biológica que esse método dispunha ao seu alcance.
Freud, por sua vez, ao fundar a nova disciplina revela que a orientação ética da psiquiatria é dirigida, fundamentalmente, ao controle e ao corpo social, tendo em vista que a partir dos seus métodos e das suas fundamentações alicerçadas no saber científico, não há escuta, nem sujeito. Szasz (1967)Szasz, T. (1967). A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: Zahar. demonstra que, com o avanço do discurso da ciência e o declínio do poder político da religião, o diagnóstico político de controle dos considerados “doentes mentais”, que antes eram considerados “heréticos”, passou a ser realizado pelo movimento médico de massa a partir do saber psiquiátrico. Moreira (1983)Moreira, D. (1983). Psiquiatria, controle e repressão social. Petrópolis, RJ: Vozes. expõe que a psiquiatria surge como um meio de dar conta daqueles que as outras instituições da sociedade, a família, a igreja, e a justiça, não conseguiram normatizar.
Ainda nessa linha, Moreira (1983)Moreira, D. (1983). Psiquiatria, controle e repressão social. Petrópolis, RJ: Vozes. considera que o diagnóstico é feito por informações soltas, superficiais, que remetem, em última instância, à subjetividade do médico — e aqui podemos acrescentar que não remete a um saber científico construído com base na escuta do sujeito do inconsciente, como o da psicanálise. Para fundamentar essa ideia, a autora traz o relato de uma médica.
Uma médica relata como isso acontece: < tendo um diagnóstico que não justifique a internação do paciente, há de se lançar mão de outro capaz de permitir a hospitalização. Por exemplo, um quadro de neurose passa a denominar-se depressão neurótica com risco de suicídio; a oligofrenia se transforma em epilepsia. Essa jogada que se faz com o diagnóstico é um problema muito sério. (Moreira, 1983Moreira, D. (1983). Psiquiatria, controle e repressão social. Petrópolis, RJ: Vozes., pp. 159-160)
Dito isso, é possível retomar os princípios éticos da psicanálise, como meio de evidenciar a questão principal do caso “Jacinta Passos”, e efetuar uma leitura crítica a respeito. A proposta freudiana, a partir de uma nova concepção de nosologia, fundou uma nova ética de tratamento, na qual o diagnóstico passou a remeter àquilo que havia de estrutural — e é oriundo da inclusão da palavra do sujeito do inconsciente como parte constitutiva do processo de pesquisa e de construção nosográfica.
Um dos pontos fundamentais de demonstração da defesa de uma ética da psicanálise, é feita por Freud (1914/2012b)Freud, S. (2012b). Contribuição à História do Movimento Psicanalítico [1914]. In Obras completas, volume 11: Totem e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).. Neste, o autor expõe que nem Jung, ao se recusar a conceber a realidade sexual do inconsciente, nem Adler, ao tentar dar ênfase ao ego em detrimento da questão do inconsciente, estavam alicerçados pelos fundamentos psicanalíticos. Um outro ponto em relação a essa questão pode ser visto em Freud (1916/2014)Freud, S. (2014) Psicanálise e Psiquiatria. In Obras completas, volume 13: Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916). quando ele faz um contraponto à psiquiatria, a partir do sentido dos sintomas, que a mesma se recusava a aceitar, a partir da sua busca por critérios invariáveis e redutivos.
A formalização de “Ética da psicanálise” é feita por Lacan (1959-1960/2008b)Lacan, J. (2008b). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960). no Seminário 7 – A ética da psicanálise. Ali ele expõe a concepção de que a ética da psicanálise é a ética do desejo. Longe de ser uma noção tão simples quanto pode aparentar em um primeiro momento, essa remete a uma série de outros conceitos e dá margem a um sem número de mal-entendidos, que se dão a partir da sua leitura reducionista e simplificada.
Um dos principais pontos dessa leitura errônea é o de indicar que a ética da psicanálise seria a ética da liberação do desejo. Ao contrário disso, o analista deve indicar ao analisando a resolução desse impasse, num sentido de responsabilização frente à sua singularidade. Segundo Miller (1996)Miller, J-A. (1996). Não há clínica sem ética. In Matemas I. Rio de Janeiro: Zahar. “O desejo, na psicanálise, é um problema de ética — não se trata de liberá-lo, mas de resolvê-lo” (p. 112). Sobre isto, o autor diz ainda que remete à questão de um discurso que é diferente de outras práticas, como a psicoterápica e a psiquiátrica, que é o discurso do analista — onde o mesmo faz semblante de objeto a como orientador da referida ética.
Um outro ponto importante a retomar, é a questão da estrutura do objeto em psicanálise. Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., ao diferenciar pulsão de necessidade, demonstra como a primeira, ao contrário de um possível determinismo biológico, é sem objeto e sempre parcial. Isso quer dizer que a satisfação da pulsão é da ordem do impossível — e ela, assim, se constrói a partir de uma montagem, retornando sempre ao mesmo lugar. Isso é utilizado pelo autor para definir a ética da psicanálise como sendo uma ética sem objeto — portanto,
como instada a defender o desejo como aquilo que cada um vai “inventar” para si para lidar com a problemática da existência humana. Daí também provém o famoso aforismo “não ceder do seu desejo” — que remete justamente à questão de não renunciar à própria singularidade em prol do Bem e do ordenamento moral. Rinaldi (1997)Rinaldi, D. (1997). Ética e desejo: da psicanálise em intensão à psicanálise em extensão. In Papéis – Revista do Corpo Freudiano, n. 7., por sua vez, retoma a questão da ética da psicanálise para demonstrar como a partir desta disciplina a única universalidade possível é a diferença.
A partir disso, é possível retomar os elementos presentes no caso Jacinta Passos, para demonstrar como os efeitos políticos de um diagnóstico direcionado ao corpo social são nocivos para o sujeito. Numa leitura progressiva do caso, fica bastante claro como a escritora foi, aos poucos, excluída da sociedade, vindo a falecer abandonada, sozinha e isolada em um manicômio. Dentre outros, cinco pontos fundamentais da sua biografia são indispensáveis para a compreensão da questão: 1) A utilização do diagnóstico como meio de manipulação, já que a sua família ameaçava interná-la quando ela a desagradava. 2) Sua exclusão entre os próprios comunistas. 3) O desaparecimento do efeito político do diagnóstico diante da mudança de cidade. 4) A justificativa de que os comportamentos dela, depois do diagnóstico, eram provenientes da sua suposta loucura. 5) A presença de aspectos da sua militância política no prontuário da sua última internação.
Os efeitos políticos do diagnóstico remetem diretamente à noção de “estigma” desenvolvida por Goffman (1978/2012)Goffman, E. (2012). Estigma. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1978).. Segundo o autor, esta deriva de uma noção grega que buscava dar um sentido àquilo que era fora do comum, ao estranho — aqui tanto para o bem, quanto para o mal. Do ponto de vista daquilo que é tido como “ruim” para o corpo social, o autor demonstra que o portador do estigma se torna um pária, que é visto como um indivíduo inferior, perigoso e que, portanto, representa um risco à sociedade.
Do ponto de vista psicanalítico, trata-se de entender o estigma como um significante veiculado a partir de um discurso que faz laço social. Dito de outra forma, de um efeito de linguagem. No caso específico deste estudo, o estigma foi proveniente da palavra do médico, portanto do discurso do mestre, pois este é visto socialmente como uma figura de prestígio, sendo aquele que detém o saber sobre as enfermidades. É, assim, o diagnóstico acerca de um sujeito que provém do Outro.
A partir de Freud (1912-1913/2012a)Freud, S. (2012a). Totem e tabu. In Obras completas, volume 11: Totem e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913). é possível perceber, por outro lado, que a diagnóstica está presente nas relações como um meio de dar sentido àquilo que é desconhecido — e que, portanto, pode representar uma ameaça. Sendo assim, em um primeiro momento civilizatório as tribos se diferenciavam, como um meio de afirmar a própria identidade — e aqui surgem também, a partir do totem e das proibições, os primeiros vestígios de lei, o que tem uma implicação com a estruturação da neurose.
Portanto, em Freud (1930/2010b)Freud, S. (2010b). O mal-estar na civilização. In O mal-estar na civilização; Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930). se a manutenção da civilização implica a renúncia pulsional, algo eminentemente insatisfatório, por sua vez a transgressão da lei exerce fascínio — e é tido socialmente como algo perigoso. A partir disso, apresenta-se, então, a hipótese de que o diagnóstico psiquiátrico--político emerge como uma resposta, não só ao controle social, mas que tem por detrás uma questão neurótica com a lei. “O efeito inquietante da epilepsia e da loucura tem a mesma origem. Os leigos veem nelas a manifestação de forças que não suspeitavam existir no seu próximo, mas que se sentem obscuramente mover-se em cantos remotos da própria personalidade” (Freud, 1919/2010aFreud, S. (2010a). O inquietante. In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”); Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919)., p. 363).
O efeito do sentido, a partir do discurso da medicina, implicou, portanto, o estigma e a exclusão de Jacinta Passos da sociedade. Trata-se, assim, de entender como ela representava uma ameaça aos poderes vigentes, a partir dos seus atos de transgressão da lei, que se deram com a recusa do papel tradicional destinado à mulher na época, e a sua tentativa de fazer-se sujeito por uma via de contestação. A psicanálise, eticamente, opera em uma outra lógica, a do fracasso do sentido. Lacan (1967)Lacan, J. (1967). Petit discours aux psychiatres. Recuperado em 17 jun. 2016, de: <http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1967-11-10.pdf>.
http://ecole-lacanienne.net/wp-content/u...
demonstra que esta disciplina rompe com o discurso cientificista, e busca a verdade como causa — no sentido de causação — ou seja, da busca da singularidade proveniente do inconsciente e que isto opõe-se, por exemplo, ao ideário moral da religião (e aqui estendo para o ideário de qualquer ideologia), que supõe Deus como causa e limita o acesso à verdade, ainda que na sua estrutura de ficção.
Do ponto de vista do tratamento, a escritora foi vítima de uma série de violências e sucessivas internações sem que, em qualquer momento, emerjam aspectos referentes à sua subjetividade. Não fossem pelos seus escritos e o resgate dos seus textos e da sua biografia, feito por sua filha (Amado, 2010Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010.) e pela monografia de Machado (2000)Machado, D. (2000). A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador: EGBA., a sua história estaria fadada ao esquecimento. Muitos outros foram esquecidos e foram, de forma violenta, apagados da história a partir de uma suposta justificativa científica proveniente do incômodo por eles gerado no corpo social.
O caso apresentado demonstra o dever ético da psicanálise no sentido de subverter as práticas diagnóstico-políticas e de resguardar a dignidade do sujeito no tratamento no campo da saúde mental. Para tanto, não deve ceder da sua ética em prol de combinações e adaptações aos quereres contemporâneos, sob o risco de que a palavra do sujeito do inconsciente seja foracluída, como esteve em diversos momentos da história. Há, na atualidade, diversas práticas que apontam nessa direção, seja através de diagnósticos políticos ou de discursos que buscam restaurar os antigos modelos manicomiais, prática parcialmente superada.
Defender, então, a universalização de uma ética no campo da saúde mental, é possível: apesar das disciplinas terem campos distintos, prescindir do sujeito e da sua subjetividade em prol de um modelo biológico que, além de redutivo é limitado, é colocar-se sempre diante de um real que escapa. Também não é possível forjar um tratamento supostamente justificado pela ciência e direcioná-lo ao Bem, à moral e ao corpo social. O resultado disso está bem descrito pelo que ocorreu com Jacinta Passos e a história dela pode servir, ao menos, para que fique eticamente demarcado o efeito de violência dessa prática que sempre deve ser denunciada e combatida no campo epistemológico e político. Por fim, ficam uma interrogação e um alerta num dos escritos de Jacinta Passos, feito durante a sua última internação.
Que nome dar a esta prisão?
Reformatório familiar? Zadruga de proprietários? (o que é zadruga? Não existe em dicionários)
Base trabalhista? Quantos nomes para
uma coisa só prisão (Amado, 2010Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010., p. 17)
Trecho de poema do “Caderno 3” escrito por Jacinta Passos em 1967.
Referências
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Esse prontuário foi fornecido a Dalila Machado pelo diretor da Casa de Saúde Mental de Santa Maria, dr. Herlício Cruz Filho, por ocasião da sua pesquisa acerca da biografia de Jacinta Passos. Ele também foi publicado por Amado (2010)Amado, J. (Org.) (2010). Jacinta Passos, coração militante; obra completa: poesia e prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador. EDUFBA/Corrupio, 2010. na página 425.
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Financiamento/Funding: Pesquisa financiada pelo PIBIC-CEPE (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP / Research funded by the PIBIC-CEPE (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Editado por
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
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Recebido
20 Jul 2016 -
Aceito
24 Set 2016