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Tudo o que é ar: Psicanálise & Trabalho

All that is air: Psychoanalysis & Labor

Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar (...)

Karl Marx e Friedrich Engels

La théorie c'est bon, mais ça n'empêche pas d'exister.

Jean-Martin Charcot

A publicação do livro Psicanálise & Trabalho: retratos do contemporâneo, em junho de 2020, organizado por Rosana Coelho e Diego Airoso da Motta, nos revela uma iniciativa original e arrojada e nos inspira e convoca a uma leitura atenta à novidade e à importância que esta obra coletiva representa.

A obra contou com o apoio do Memorial da Justiça do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, que tornou possível a publicação em formato digital, podendo ser acessada gratuitamente no site do Memorial,1 1 Recuperado em 3 out. 2020 de: <https://www.trt4.jus.br/portal/portal/memorial>. instituição que também organizou o lançamento do livro via redes sociais, em um momento delicado da pandemia de Covid-19 no Brasil. Trata-se, então, de uma obra inovadora, com trabalhos de autores de reconhecida importância e competência no âmbito nacional e internacional, de acesso aberto e gratuito — fato que não pode deixar de receber menção nesta resenha.

Composto por uma coletânea de 19 capítulos escritos por psicanalistas e pesquisadores do campo de interseção entre psicanálise e trabalho em suas diversas manifestações, além de uma elucidativa introdução de Rosana Coelho, o livro se divide em dois grandes eixos: 1. Sujeito e Instituições e 2. Sociedade e Política.

O primeiro eixo se dedica a reunir capítulos que articulam a questão do sujeito trabalhador e as instituições, no sentido amplo do termo: desde as instituições de saúde mental e de segurança pública às empresas privadas. Trata-se aí de uma interrogação muito produtiva sobre o atravessamento que pode ter o trabalho psicanalítico e a escuta do sujeito no fazer cotidiano dessas instituições. A psicanálise, malgrado não seja sempre convocada, tem vocação para a escuta do sujeito em sua singularidade, podendo ocupar os mais variados lugares institucionais, transmitindo um saber articulável desde Freud. E de que é feito tal saber?

Freud utiliza largamente o sufixo arbeit em sua obra. Seja para o trabalho do sonho, o trabalho de transferência, o trabalho de luto, a elaboração ou perlaboração (Durcharbeiten), passando pelo importante conceito de pulsão, que para ele está situado entre o somático e o psíquico, constituindo--se a partir de uma exigência incessante de trabalho feita ao aparelho psíquico (Freud, 1905/2016Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). In Obras completas (Vol. 6; Paulo César de Souza, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905).). Freud sustentou que uma análise teria sucesso na medida em que proporcionasse ao sujeito a capacidade de amar e trabalhar.2 2 Marco Antonio Coutinho Jorge acrescenta ao amar e trabalhar o deliberar como capacidade proporcionada por uma análise. O conceito de deliberação tal como trabalhado por ele é muito importante e diz respeito ao processo de desrecalcamento (Cf. Jorge, 2017a e 2017b). Lacan, por sua vez, relaciona o término da análise ao momento em que a satisfação do sujeito encontra meios de se realizar na satisfação de todos aqueles com quem se associa em uma obra humana (Lacan, 1953/1998, p. 322Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953).). Diante do impossível da castração, cabe ao ser falante a possibilidade de realização de um trabalho que, enquanto atividade que possui um sentido, só existe para o humano. Em 1966, Lacan observou que o objeto da psicanálise não é o homem, mas aquilo que lhe falta: não uma falta absoluta, mas a falta de um3 3 Realce meu para o artigo indefinido desta afirmação: um objeto – qualquer. objeto (Lacan, 1966/2003, p. 218Lacan, J. (2003). Respostas a estudantes de filosofia. In Outros escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).). Assim, poderíamos afirmar que o objeto qualquer que falta é o motor de um trabalho possível, aquilo de que depende o humano para fazer-se enquanto humano.

O trabalho tem relação íntima com o desejo na medida em que ambos são mediados pela linguagem. Sobre este ponto, cabe observar que a psicanálise tem muito a contribuir com o pensamento sobre as raízes das instituições e o sentido de seus fundamentos, na medida em que mobiliza em sua base teórica a presença necessária e primordial do Outro. Desde o “Projeto para uma psicologia científica”, Freud já apresenta a importância do próximo para os exercícios dos primeiros cuidados da criança mediante uma ação específica direcionada ao infans,4 4 É neste fundamental trabalho que Freud afirma que o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. tendo como consequência “a importantíssima função secundária da comunicação” (Freud, 1950[1895]/1996b, p. 241Freud, S. (1996b). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. I). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]).). Tais apontamentos de Freud são fundamentais para a concepção das instituições em nossas sociedades.

O segundo eixo de Psicanálise & Trabalho se dedica a reunir capítulos que pensam o trabalho no aspecto social, político e filosófico em sua relação com a psicanálise.

Os dois eixos do livro realizam, neste sentido, importantes incursões sobre um campo no qual a psicanálise tem muito a dialogar com as humanidades, desde a filosofia às ciências jurídicas e sociais. Trata-se, a meu ver, da apresentação de um vasto campo de pesquisas em que se pode sustentar conceitualmente e epistemologicamente a pavimentação de uma via para as humanidades atravessada pela psicanálise, com seus inúmeros desdobramentos éticos e políticos.

O acontecimento de Psicanálise & Trabalho no âmbito da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul é motivo de alegria e entusiasmo: afinal, a psicanálise floresce e pode ocupar espaços variados, apontando para a possibilidade do exercício da escuta do sujeito no seio das instituições e organizações que agenciam o trabalho. A cultura, se por um lado é formada e transmitida pela palavra, também o é pelo trabalho. É nesse sentido que Freud aproxima o trabalho ao amor e à criação artística em “O mal-estar na cultura”, como bem marca Rosana Coelho em seu capítulo “Trauma, angústia e desamparo: contribuições da psicanálise à saúde mental no trabalho” (pp. 53-72), reverberando a questão do trabalho e do mal-estar em concomitância com outros autores da coletânea. É possível afirmar que, estruturalmente, toda a coletânea é atravessada pelo eixo trabalho/mal-estar, em perspectivas variadas, retomando uma questão relevante sobre o conceito de sintoma em seu enlaçamento subjetivo que aproxima o trabalho de Freud (1930/2020)Freud, S. (2020). Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. In Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1930). ao de Marx (1867/2013)Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política. São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1867)..

Em um momento histórico dramático em que a humanidade luta contra a propagação de um vírus cujo principal efeito patogênico é a deterioração pulmonar e a capacidade de respiração, a atuação política dos poderes constituídos na maioria dos países teve como principal meta a garantia de ar para o maior número possível de pessoas. Este é, na verdade, o único caminho de que dispomos: a respiração e a fala, traduzidas a partir do importante conceito de pneuma (Abbagnano, 2012Abbagnano, N. (2012). Dicionário de filosofia. São Paulo: WMF Martins Fontes.), que faz referência ao espírito e à palavra, mas também aqui significando a entrada e a participação do ser falante no campo da cultura e da linguagem, constitui uma dívida simbólica e, ao mesmo tempo, como aponta Alain Didier-Weill (2011, p. 6)Didier-Weill, A. (2011, jul-dez.). Psicanálise e direitos do homem. Trivium, 3(2), 1-6., uma possibilidade de libertação pela fala. Quando as instituições se deixam atravessar pela psicanálise, pela escuta e pelo método clínico que ela mobiliza, há uma janela aberta para um funcionamento institucional mais acolhedor para o sujeito e mais preparado para elaborar as contingências e as marcas de sua singularidade. Em outras palavras, um funcionamento voltado ao reconhecimento das diferenças e, neste sentido, orientado por uma perspectiva de aceitação e acolhimento da contradição.

É possível sustentar intervenções orientadas pela psicanálise nas relações de trabalho como psicanálise em extensão, com foco na posição e nas relações do sujeito com as instituições, no horizonte de seu acolhimento subjetivo e do reconhecimento das diferenças e contradições inerentes à dinâmica sociopolítica: perspectiva que traz para a cena, em primeiro plano, aportes sobre a ética e a política da psicanálise.

  • Psicanálise & Trabalho: retratos do contemporâneo Rosana Coelho, Diego Airoso da Motta (Orgs.) Porto Alegre, RS: Tribunal Regional do Trabalho da 4ª região, 2020, e-book 369 págs.
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    Recuperado em 3 out. 2020 de: <https://www.trt4.jus.br/portal/portal/memorial>.
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    Marco Antonio Coutinho Jorge acrescenta ao amar e trabalhar o deliberar como capacidade proporcionada por uma análise. O conceito de deliberação tal como trabalhado por ele é muito importante e diz respeito ao processo de desrecalcamento (Cf. Jorge, 2017a e 2017b).
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    Realce meu para o artigo indefinido desta afirmação: um objeto – qualquer.
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    É neste fundamental trabalho que Freud afirma que o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais.

Referências

  • Abbagnano, N. (2012). Dicionário de filosofia São Paulo: WMF Martins Fontes.
  • Coelho, R. (2020). Trauma, angústia e desamparo: contribuições da psicanálise à saúde mental no trabalho. In Coelho, R., & Motta, D. A. da (Orgs.). Psicanálise & Trabalho: retratos do contemporâneo Porto Alegre, RS: Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.
  • Didier-Weill, A. (2011, jul-dez.). Psicanálise e direitos do homem. Trivium, 3(2), 1-6.
  • Freud, S. (1996a). Charcot. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. III). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1893).
  • Freud, S. (1996b). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. I). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]).
  • Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). In Obras completas (Vol. 6; Paulo César de Souza, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905).
  • Freud, S. (2020). Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. In Obras incompletas de Sigmund Freud Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1930).
  • Jorge, M. A. C. (2017a, jun.). Freud com Lacan: a psicanálise hoje. Reverso, 39(73), 15-26.
  • Jorge, M. A. C. (2017b). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, vol. 3: a prática analítica Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953).
  • Lacan, J. (2003). Respostas a estudantes de filosofia. In Outros escritos Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).
  • Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1867).
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D'Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2021
  • Aceito
    08 Abr 2021
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