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Heteronomia e Metapsicologia

Heteronomy and Metapsychology

Fernando Pessoa e Freud: Diálogos inquietantes. Silva, Nelson da. Junior. Blucher, 2019. 332 págs

Esse livro faz parte da Série Psicanálise Contemporânea da Editora Blucher. Fernando Pessoa e Freud: Diálogos Inquietantes foi elaborado por Nelson ao longo de três décadas de estudo, ensino e prática em psicanálise, atravessadas por uma postura crítica e indagadora que resulta em uma instigante e original composição entre literatura, psicanálise e filosofia.

Se a composição entre dois campos de saber já oferece imensas complexidades, sobretudo pela tentação de subordinar um campo a outro como foi o caso da tentativa de James Jackson Putnam (2011) de subordinar a psicanálise à filosofia e gentilmente rechaçada por Sándor Ferenczi (2011)Ferenczi, S. (2011). Obras Completas – Psicanálise I. WMF Martins Fontes, então articular Psicanálise, Literatura e Filosofa parece constituir um desafo de proporções hercúleas.

É precisamente esse o notável desafo que Nelson logra enfrentar a contento, por meio de uma abordagem ao mesmo tempo determinada e profunda. A Filosofa atravessa e confere profundidade à obra: a diversidade da longa história da filosofia tomada através da escolha criteriosa de alguns autores (Aristóteles, 2015Aristóteles (2015). Poética. Editora 34.; Heidegger, 1988Heidegger, M. (1988). Ser e Tempo. Vozes.; Ricoeur, 2008Ricoeur, P. (2008). Hermenêutica e Ideologias. Vozes., entre outros) e de temas procedentes como subjetividade, ontologia, morte, hermenêutica, verdade, ficção, entre outros constructos, tomados como matéria-prima para reflexão, criação de conexões entre teoria e prática e como móveis orientadores de articulações conceituais que permitem estabelecer relações produtivas e originais entre Freud e Pessoa.

O autor escolheu organizar nove textos sob quatro ideias-chave denominadas como partes, a saber: Heteronomia, Diferença, Hermenêutica e Inquietante. Cada leitor poderá encontrar diferentes formas de organizar a leitura desses nove textos conforme queira e conforme determinem seus interesses despertados na própria leitura. Cumpre ressaltar que a temática psicanalítica freudiana-pessoana é atravessada em todo o livro por um constante recurso à crítica de base flosófica e, vale lembrar, a filosofia é por excelência o terreno da diversidade de pensamento. Assim, esta resenha é necessariamente uma das possíveis visadas sobre o texto conforme uma atitude eminentemente hermenêutica que sua leitura inspira, solicita ou mesmo recomenda Entretanto, conforme o espírito de resenhar limito-me a uma breve reflexão sobre o conteúdo do livro realizada sobre o tema fundamental da heteronomia o qual, para mim, se constituiu desde o primeiro contato com Fernando Pessoa como a marca de sua singularidade e que em minha intuição juvenil sempre dialogou com a psicanálise e a filosofia.

O tema da heteronomia está presente em todo o livro. De meu entendimento prévio e com o valioso auxílio do texto em epígrafe, compreendo heteronomia em Pessoa (1999)Pessoa, F. (1999). O livro do desassossego, composto por Bernardo Soares. Companhia das Letras. como uma estratégia de desvelar a questão essencial da diversidade de ser em si e fora de si, pois remete à impossibilidade de saber-se enquanto uma identidade, de formar sobre si mesmo uma representação unívoca e estável no tempo com e em relações com o outro. Como bem pontua o autor há uma diferença fundamental entre heterônimo e pseudônimo e é desde tal diferenciação que uma das partes recebe seu título: a heteronomia como avesso da metapsicologia.

Em meu exercício hermenêutico compreendo o avesso como uma proposta para a relação entre heteronomia e metapsicologia e não como uma oposição negativa entre polos, mas como a relação dialética entre contrapartes complementares na medida que o avesso implica um verso. Como define a etimologia da palavra, avesso vem do latim ad+versus: virar para fora, fazer o interno ser externo de tal modo que cada um é o avesso do outro, o externo implica o interno ou, desde um ponto de vista psicanalítico o manifesto implica o latente. E vice-versa.

Por essa chave de leitura o autor coloca em questão a certeza/necessidade de um Eu unívoco e estável no tempo e no espaço e desnuda como tal certeza é aceita como realidade inquestionável. Por consequência a ideia de um Eu consolidado e fortalecido que estaria, segundo certa escolha de compreensão, na base da metapsicologia e na tradição flosófica que se costuma denominar como filosofia do sujeito, fica exposta como fantasiosa, uma falácia que a rigor denota uma defesa contra a inevitável realidade das diferenças de ser em si mesmo. Assim, pela pena do autor, o encontro entre Pessoa e Freud produz uma contribuição preciosa na medida em que a pluralidade do Eu e mesmo sua impossibilidade podem ser descortinadas e afirmadas como condição da estruturação e do funcionamento psíquico na relação entre alteridades e espacialidades. Tal contribuição implica reconsiderar certo entendimento do edifício freudiano de modo a rever o pressuposto erroneamente atribuído a Freud de um Eu unívoco necessário, sólido e estável.

Como se costuma dizer o melhor fica para o final e é assim que vejo a escolha de Nelson pelo último grupamento de textos que tem por tema central o inquietante. Se fosse necessária uma escolha de leitura, esses dois textos colocados ao final são leitura indispensável, quer pela extrema qualidade quer pela profundidade de tratamento de um tema que dialoga com nosso inconsciente na estruturação do aparelho psíquico enquanto uma dinâmica conflituosa ente unidade e pluralidade, identidade e diversidade, tempo, realidade e ficção.

Em suma, embora cada parte do texto traga refexões relevantes sobre temas complexos, sobretudo para psicanalistas, não se trata de um livro exclusivamente dedicado a esse grupo de leitores. Entretanto, como ensinam os textos freudianos e de certos flósofos é possível tratar assuntos complexos de maneira acessível a todo tipo de leitor. Essa lição foi certamente apreendida por Nelson de tal modo que o prazer de ler e aprender está oferecido a todos que queiram exercitar alguma forma de reflexão sobre si e sobre a natureza humana. Boa leitura a todos!!

Referências

  • Aristóteles (2015). Poética Editora 34.
  • Ferenczi, S. (2011). Obras Completas – Psicanálise I WMF Martins Fontes
  • Freud, S. (2019). O Infamiliar Autêntica.
  • Heidegger, M. (1988). Ser e Tempo Vozes.
  • Pessoa, F. (1999). O livro do desassossego, composto por Bernardo Soares Companhia das Letras.
  • Ricoeur, P. (2008). Hermenêutica e Ideologias Vozes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2022
  • Aceito
    27 Ago 2022
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