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O Tempo do Brasil

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

O Tempo do Brasil

Fábio Guedes Gomes

Doutor em Administração com ênfase em Instituições e Políticas Públicas pela Universidade Federal da Bahia, professor da graduação e do Programa de Mestrado em Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade Federal de Alagoas (FEAC/UFAL) e tutor do Programa de Educação Tutorial em Economia da mesma instituição. Contato: fbgg30@yahoo.com.br

Resenha de GONÇALVES, Reinaldo. Desenvolvimento às Avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

O historiador francês Fernand Braudel tinha uma definição de tempo que extrapolava o conceito físico. No terceiro volume da sua monumental obra Civilização Material, Economia e Capitalismo (1996), cujo subtítulo é O Tempo do Mundo, ele conceitua o tempo em três dimensões: cotidiano, conjuntura e estrutura. No tempo do cotidiano, os homens estão mais preocupados com os afazeres do dia a dia; o horizonte do pensamento não ultrapassa muitas semanas e o imediato domina as consciências e ações. No tempo da conjuntura, as reflexões e preocupações humanas se projetam no médio prazo, envolvendo os aspectos ligados à vida social cotidiana, mas, também, e principalmente, como os homens podem garantir a sobrevivência, escapando dos infortúnios da vida. Então, por exemplo, é no tempo da conjuntura que nos preocupamos com as dívidas contraídas para financiar habitações e veículos, as safras agrícolas, o futuro de nossos filhos e netos, o planejamento das cidades etc. Por fim, o tempo das estruturas é mais complexo. Além de envolver todos aqueles aspectos, diz respeito às trajetórias históricas de sistemas societais, suas características e contradições, dinâmicas econômica, social e política, os aspectos evolutivos, o nascimento, apogeu e decadência de tais sistemas, etc.

Quando pensamos em um país, uma nação ou sistema social e econômico, é claro que refletimos sobre a situação presente, comparando suas características com outras experiências históricas e contemporâneas. Projetamos para o futuro como deveríamos ser ou não ser, criamos expectativas ou nos conformamos com nossas impossibilidades.

Esse breve preâmbulo teve por objetivo refletir sobre o futuro da sociedade brasileira e sua economia a partir da leitura do mais novo livro de Reinaldo Gonçalves, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com o título Desenvolvimento às Avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento (Gonçalves, 2013), esse recente trabalho preenche uma lacuna singular na crítica à evolução recente da economia brasileira e ao seu padrão de desenvolvimento. Também, trata-se de uma preocupação com o nosso futuro, como será seu desdobramento se continuarmos na mesma trajetória do presente.

Desde meados da última década do século XX, Gonçalves vem afiando sua crítica ao modelo neoliberal de desenvolvimento da economia brasileira e apontando suas consequências sociais. Entretanto, foi a partir da segunda metade dos anos 2000 que o pessimismo da razão se ampliou. A capitulação do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), sob a gestão do presidente José Inácio Lula da Silva, ao bloco de poder e dominação econômica, agora sob a liderança do capital rentista-parasitário, despertou em Gonçalves uma "veia" crítica mais radical1 1 Esse bloco de poder tem suas representações institucionais na Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), na qual se reúne a poderosa classe bancária-rentista, na Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), representante das conservadoras classes dos proprietários fundiários e rentistas do agronegócio, e na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) em que estão parcelas significativas do empresariado industrial nacional. , Toma-se este substantivo não como sinônimo de sectarismo ou qualquer outra conotação negativa: radical no sentido de buscar, na raiz dos fenômenos e movimentos, a verdadeira essência explicativa de nossas contradições.

Um dos primeiros passos naquela direção foi o lançamento do livro Economia Política Internacional: fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil (Gonçalves, 2005), no qual o autor sustenta a tese de que o Brasil vem aumentando sua vulnerabilidade externa estrutural nos campos comercial, produtivo-real, monetário-financeiro e tecnológico. O aumenta da vulnerabilidade externa contribui para um hiato de poder significativo, e no livro são relacionadas variáveis que dizem respeito às potencialidades do país com seu exercício efetivo de poder no plano internacional.

Em outro importante trabalho, escrito dessa vez em parceria com Luiz Filgueiras, professor da Escola de Economia da UFBA, intitulado A Economia Política do Governo Lula (Filgueiras e Gonçalves, 2007), o desempenho do primeiro mandato do governo petista é avaliado em uma perspectiva comparativa com outros governos, reforçando o argumento de que a vulnerabilidade externa estrutural e a inserção passiva no sistema econômico internacional se aprofundaram durante aquele período.

Até então, as análises realizadas das políticas macroeconômicas, do padrão de inserção internacional, da vulnerabilidade externa conjuntural e estrutural e das políticas sociais, vinham compondo um quadro mais geral, mas ainda não definido na dimensão do que Braudel chamou de tempo das estruturas.

Esse passo será dado em o Desenvolvimento às Avessas. Segundo as próprias palavras do autor, o modelo de desenvolvimento atual, denominado de Modelo Liberal Periférico (MLP)2 2 O Modelo Liberal Periférico foi originalmente definido por Filgueiras et al (2010). , pós-1995, está às avessas. Para Gonçalves, em termos econômicos o MLP é marcado por:

fraco desempenho; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo. Nas dimensões social, ética, institucional e política dessa trajetória, observam-se: invertebramento da sociedade; deterioração do ethos; degradação das instituições; e sistema político corrupto e clientelista. (2013, p. ii)

Inicialmente, o autor não recomenda o livro aos que gostam de leituras otimistas ou acreditam, cegamente, que estamos no caminho certo. Nesse sentido, certamente para ele, o otimista no Brasil é o pessimista mal informado. Porém, o que o livro tem de importante? Onde está a diferença dos anteriores já citados? A resposta vem nas próprias palavras do autor: "Desmascarar o jogo de 'aparência versus essência' ou 'alegoria versus enredo' é o objetivo da análise a respeito do passado, presente e futuro do Brasil, particularmente no que se refere ao seu processo de desenvolvimento econômico" (2013, p. 2). Por isso o subtítulo do livro: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento.

Inspirado em Fernand Braudel, que usou os mesmos substantivos para analisar e desmistificar a importância dos mercados no desenvolvimento capitalista, Gonçalves tem como objetivo central justamente desiludir a sociedade brasileira, mostrar a realidade, descortinar a verdadeira trajetória, o presente e futuro da economia brasileira. Nesse caso ele bem que poderia ter citado, também, outro grande crítico da economia política. Marx fez uma observação importante no início do primeiro capítulo do 18 Brumário (1997, p. 21): "Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa". Parece que, imbuído desse espírito, Gonçalves analisa a continuidade do desenvolvimento capitalista brasileiro, depois do período nacional-desenvolvimentista (1930-1979).

O livro divide-se em oito capítulos, incluindo as conclusões. Diferentemente das análises anteriores, nos dois primeiros capítulos são descritas e analisadas a trajetória de desenvolvimento econômico brasileiro e suas respectivas fases. Neles, o autor constrói uma visão global do nosso processo de formação. No primeiro capítulo, são analisadas três fases: Sistema Colonial (1500-1822); Independência e Economia Agroexportadora Escravista (1822-1889); e República Velha e a Hegemonia da Cafeicultura (1889-1930). No segundo capítulo, encontraremos três períodos fundamentais de nossa história recente, responsáveis pelo início, auge e regressão de um sistema econômico capitalista industrializado. Trata-se dos períodos denominados de Era Nacional-Desenvolvimentista (1930-1970); Crise, Instabilidade e Transição (1980-1994), que analisa a saturação do modelo de substituição de importações, com os abalos e consequências da crise da dívida externa e das políticas de ajustamento estrutural; e Modelo Liberal Periférico (1995 em diante), quando o país passou a adotar o modelo neoliberal de desenvolvimento e se deu sua inserção na nova ordem internacional.

A contextualização feita por Gonçalves, nos dois primeiros capítulos, é primorosa para dar sentido à análise de longo prazo que deseja realizar a respeito da trajetória do desenvolvimento econômico brasileiro. Mostra que o autor fez um esforço de inserir o conteúdo histórico-estruturalista em seu método de análise, algo não muito comum em outros trabalhos já citados.

No capítulo terceiro, conferimos apenas um aperfeiçoamento de sua análise realizada em outros momentos (Filgueiras e Gonçalves, 2007), quando analisou o desempenho de vários indicadores macroeconômicos, fazendo uma comparação entre os períodos históricos e os diversos governos, desde a Velha República.

Os capítulos quatro e cinco representam a espinha dorsal do livro. Neles se encontra o fulcro da tese central, qual seja: o Modelo Liberal Periférico brasileiro é responsável pela regressão econômica do país e não pela continuidade de seu avanço no campo do desenvolvimento econômico e progresso no âmbito das conquistas sociais e coletivas. Apesar de o MLP ter sido adotado a partir de 1995, ele acentuou suas contradições durante o governo petista (2003-2010). Portanto, ao contrário do período 1930-1970, quando nos reinventamos como nação e saltamos para uma economia industrializada, entramos num período denominado pelo autor de Nacional-Desenvolvimentismo às avessas (2013, p. 89).

Especificamente no quarto capítulo, o objetivo é contrapor os argumentos dos principais trabalhos que defendem que o país encontrou seu rumo, adotou uma nova linha favorável ao desenvolvimento econômico, com a conduta do governo e o desempenho de vários indicadores econômicos, bem como as características da estrutura produtiva, do comércio exterior e a propriedade do capital. Com base numa análise consistente, recheada de indicadores e estatísticas importantes, o resultado é de difícil contestação: durante o governo petista os problemas estruturais do subdesenvolvimento econômico persistiram e se aprofundaram; tampouco os resultados da política desenvolvimentista às avessas foram muito expressivos, como aqueles verificados durante o período 1930-1979. Pelo contrário, o que se constata são processos inter-relacionados que promovem a desindustrialização, dessubstituição de importações, reprimarização das exportações, maior dependência tecnológica, desnacionalização produtiva, perda de competitividade internacional, maior concentração do capital, dominação financeira dos principais centros de decisão do país e, sobretudo, crescente vulnerabilidade externa estrutural. E é sobre esse último tópico que Gonçalves mostra grande preocupação no quinto capítulo.

Por vulnerabilidade externa, entende o autor a capacidade de um país de resistir ou não a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos. Essa vulnerabilidade pode ser tanto conjuntural quanto estrutural. Por exemplo, nossa vulnerabilidade externa conjuntural esteve muito baixa durante o ciclo favorável da economia internacional (2003-2008), quando nossa capacidade de resistência aumentou, refletindo-se numa situação mais favorável pelo lado do balanço de pagamentos. Entretanto, a vulnerabilidade externa estrutural é muito alta, quando se considera a forte deterioração das estruturas produtiva-real, comercial, monetária-financeira e tecnológica.

A análise sobre os desequilíbrios de fluxos e estoques, referentes às relações econômicas internacionais do Brasil, é um dos pontos mais importantes do quinto capítulo. Certamente não encontraremos abordagem semelhante em nenhum dos tradicionais manuais de economia internacional, tampouco na literatura de economia brasileira contemporânea. A conclusão é enfática: "a situação brasileira é ainda mais grave porque o custo do passivo externo para o país é muito maior do que o retorno dos ativos externo do país" (2013, p. 134).

No sexto capítulo, são abordados os custos das reservas internacionais brasileiras. Nele, o autor empreende uma inovadora avaliação dos custos de oportunidade da gestão da acumulação e aplicação das reservas em dólar. É afirmado no texto que a gestão das reservas não obedece, rigorosamente, a um plano estratégico; segue aleatoriamente uma linha de política que acaba trazendo elevados custos cambiais e fiscais. Ademais, ao conceder empréstimos ao Fundo Monetário Internacional (FMI), o país também estaria participando, diretamente, da política de pressão exercida pelo órgão sobre os países atualmente em crise de ajustamento, tanto no âmbito interno quanto externo.

O trabalho reconhece que durante o governo Lula ocorreu uma queda da desigualdade de renda e de pobreza, principalmente no período recente de bonança internacional (2003-2008), fato esse compartilhado pelos demais países da América Latina e Caribe, com exceção de Honduras. Portanto, não foi privilégio somente do Brasil. Porém, o que importa destacar sobre esse ponto do livro é que a distribuição de renda não se deu nos marcos da distribuição funcional da renda; a diferença entre os rendimentos do capital e do trabalho são muito grandes e com tendência a se ampliarem ainda mais. O que na verdade se observa são melhorias na distribuição dos rendimentos daqueles que vivem de salários.

Outro aspecto importante levantado pelo autor, no sétimo capítulo, é a necessidade do Modelo Liberal Periférico de construir as condições de governabilidade e legitimidade do poder dos grupos dirigentes, o que somente foi possível com a ampliação das políticas sociais focalizadas, em detrimento da cobertura universal dos direitos. No entanto, ao final dessa parte do livro, Gonçalves alerta que o espaço de ampliação dessas políticas esbarra nas condições de redução da vulnerabilidade externa conjuntural. Por isso, observa-se a enorme fragilidade de se manter a governabilidade e a legitimidade de maneira sustentável pelos grupos que estão no poder, principalmente na região sul-americana.

Nas conclusões todo o conteúdo do livro é passado em revista, só que de uma maneira contextualizada historicamente, e a critica é reforçada pelo argumento que o Modelo Liberal Periférico constitui uma estratégia de desenvolvimento muito aquém, em termos de resultados, daquela adotada no período Nacional-Desenvolvimentista. Como o leitor terá oportunidade de conferir, os dados e análises realizadas indicam isso e são eloquentes. Talvez o autor pudesse, também, lembrar que no período JK o modelo de desenvolvimento, que ficou conhecido como Dependente-Associado, foi responsável pela intensificação da desigualdade de renda e riqueza, aumento da vulnerabilidade externa estrutural e abertura econômica irrestrita. Sob a bandeira de "50 anos em 5", o governo JK inaugurou o processo de dominação de importantes setores da indústria nacional por parte de grupos estrangeiros - com os centros de decisão estratégicos sendo internacionalizados, sem grandes preocupações em transferir tecnologias e/ou seus centros de Pesquisa & Desenvolvimento para o país.

Entretanto, o que importa na parte final são as preocupações do autor resumidas em quatro grandes temas voltados para importantes reformas estruturais de que necessita o país, quais sejam: reforma no sistema penal brasileiro; reforma no sistema de combate ao abuso do poder econômico; reforma tributária; e reforma política.

O mais novo livro de Reinaldo Gonçalves, portanto, chega num contexto bastante oportuno. As várias e imensas mobilizações e protestos sociais que ganharam as ruas em junho de 2013 demonstram que em muitos aspectos o país vai muito mal (Gomes, 2013). Como certamente o texto de Gonçalves foi escrito antes desses eventos, ele parece antecipar, através de uma crítica radical e realista, o que as manifestações populares queriam dizer. Por essa razão, o livro poderá ter uma utilidade seminal ao debate que de agora em diante ficará ainda mais febril, pois a população brasileira está despertando politicamente e reconhecendo seus verdadeiros e essenciais problemas estruturais. Depois de tanto nos preocuparmos com o cotidiano e nos ajustarmos às mudanças conjunturais, o momento é mais do que conveniente para refletirmos, profundamente, com o longo prazo, sobre como acontecerão as necessárias transformações estruturais de que o país precisa, como será o tempo do Brasil.

Resenha recebida em 13/07/2013 e aprovada em 03/09/2013

  • BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo Rio de Janeiro: Ed. Martins Fontes, 1996.
  • GONÇALVES, R. Economia política internacional: fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2005.
  • FILGUEIRAS, L.; GONÇALVES, R. A economia política do Governo Lula São Paulo: Contraponto, 2007
  • FILGUEIRAS, L.; PINHEIRO, B.; PHILIGRET, C.; BALANCO, P. "Modelo Liberal Periférico e bloco de poder: política e dinâmica macroeconômica nos governos Lula". In: CORECON-RJ. Os anos Lula. Contribuições para um balanço crítico 2003-2010 Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2010, p. 35-70.
  • GOMES, F. G. Os protestos sociais e suas raízes econômicas. Jornal dos Economistas, CORECON-RJ, n. 288, jul. 2013.
  • MARX, K. 18 Brumário Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997.
  • 1
    Esse bloco de poder tem suas representações institucionais na Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), na qual se reúne a poderosa classe bancária-rentista, na Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), representante das conservadoras classes dos proprietários fundiários e rentistas do agronegócio, e na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) em que estão parcelas significativas do empresariado industrial nacional.
  • 2
    O Modelo Liberal Periférico foi originalmente definido por Filgueiras
    et al (2010).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013
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