RESUMO
Este trabalho investiga a desindustrialização como um processo globalmente desigual, relacionado tanto ao grau de desenvolvimento e a dependência de trajetórias quanto às políticas econômicas que reforçam tendências de longo prazo ou, alternativamente, possibilitam mudanças estruturais. Este fenômeno, tradicionalmente visto como a queda da produção/emprego industrial à medida que o país se desenvolve, pode, todavia, engendrar considerável heterogeneidade subsetorial e até mesmo regional, aspecto que esta pesquisa busca explorar. A metodologia compreende uma análise teórica, com a revisão da literatura sobre desindustrialização e heterogeneidade setorial, e uma investigação empírica, com a análise descritiva dos dados da manufatura para 111 países, além de uma análise específica para o Brasil. Os resultados revelam que os países desenvolvidos consolidaram sua liderança nos setores mais avançados da indústria, enquanto a maior parte das economias em desenvolvimento, entre elas o Brasil, experimentou não apenas um processo de desindustrialização, como a concentração das atividades produtivas industriais em subsetores intensivos e em tecnologias de menor valor agregado. E, neste cenário, se a mudança estrutural constitui uma importante força motriz do desenvolvimento econômico, as tendências recentes observadas sinalizam sérios desafios à promoção do crescimento inclusivo e sustentado nas economias em desenvolvimento e no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE:
desindustrialização; heterogeneidade subsetorial; indústria manufatureira; intensidade tecnológica; economia brasileira
ABSTRACT
This paper investigates deindustrialization as a globally unequal process, related both to the degree of development and path dependence, and to economic policies that reinforce long-term trends or, alternatively, enable structural changes. This phenomenon, Traditionally seen as the fall in industrial production/employment as the country develops, can, however, engender considerable subsectoral and even regional heterogeneity, an aspect that this research seeks to explore. The methodology comprises a theoretical analysis, with a review of the literature on deindustrialization and sectoral heterogeneity and an empirical investigation, with descriptive analysis of manufacturing data for 111 countries, in addition to a specific analysis for Brazil. The results show that developed countries consolidated their leadership in the most advanced sectors of industry, whereas most developing economies, including Brazil, experienced not only a process of deindustrialization, but also the concentration of industrial productive activities in subsectors intensive in technologies with lower added value. In this scenario, if structural change constitutes an important driving force of economic development, the recent trends observed signal serious challenges to the promotion of inclusive and sustained growth in developing economies and in Brazil.
KEYWORDS:
deindustrialization; subsectoral heterogeneity; manufacturing industry; technological intensity; Brazilian economy
INTRODUÇÃO
Temas ligados aos problemas da indústria brasileira, ao perfil de sua estrutura produtiva e comércio, bem como as políticas industriais adotadas no Brasil e no mundo foram temas que o professor David Kupfer se dedicou ao longo de sua carreira, em suas aulas, artigos de opinião, palestras, debates, livros e artigos acadêmicos. Dentre suas obras que influenciaram a discussão sobre indústria no Brasil, publicações como Carvalho e Kupfer (2011CARVALHO, L. B.; KUPFER, D. Diversificação ou especialização: Uma análise do processo de mudança estrutural da indústria brasileira. Revista de Economia Política, v. 31, p. 618-637, 2011.), Kupfer (2007KUPFER, D. Indústria. Brasil em Números, v. 15, p. 7, 2007.), Kupfer (2003KUPFER, D. Política industrial. Econômica, v. 5, n. 2, p. 91-108, 2003.), Kupfer e Rocha (2002KUPFER, D.; ROCHA, F. Structural changes and specialization in Brazilian industry: The evolution of leading companies and the M&A process. The Developing Economies, v. 40, n. 4, 2002.) e Kupfer et al. (1999KUPFER, D.; FERRAZ, J. C.; SERRANO, F. Macro micro interactions: Economic and institutional changes in Brazilian industry. Oxford Development Studies, v. 27, n. 3, p. 279-304, 1999.) são estudos de grande relevância para o entendimento da trajetória e perfil da indústria brasileira, em abordagens teóricas, históricas, empíricas, comparativas e institucionais.
Inserido nessas temáticas caras ao professor David Kupfer, o presente trabalho se propõe a investigar a relação entre desindustrialização e a heterogeneidade subsetorial, isto é, a heterogeneidade de desempenhos dentro do próprio setor manufatureiro, com o foco nas tendências recentes da economia mundial e as evidências da economia brasileira. Os dados da pesquisa mostram que existe uma considerável heterogeneidade subsetorial, isto é, o padrão de desindustrialização varia conforme o grau tecnológico das atividades manufatureiras e mesmo entre países ou regiões. Enquanto a estrutura produtiva nas economias desenvolvidas, além de um pequeno grupo de países em desenvolvimento, tem se concentrado cada vez mais em atividades tecnologicamente mais sofisticadas, no Brasil, são as atividades de baixa tecnologia que respondem pela maior parte do valor adicionado do setor manufatureiro e das exportações.
No entanto, é sabido que o sucesso dos países em se mover para as atividades da indústria manufatureira mais avançada é crucial para obtenção de altas taxas sustentadas de crescimento da produtividade. Nas economias avançadas, a competitividade na manufatura de alta tecnologia permite a manutenção de um setor industrial expressivo e o crescimento de forma mais ampla. Já nos países em desenvolvimento, a mudança para a manufatura de alta tecnologia é fundamental para o processo de catching up, uma vez que tais setores têm mais condições para ampliar o escopo para a criação e captura de valor e a mudança tecnológica.
Em um debate recente sobre a importância da manufatura para o crescimento de longo prazo, muitos autores têm enfatizado o papel dos serviços comercializáveis, como uma importante fonte de produtividade do trabalho e crescimento econômico, por exemplo, Andreoni (2020ANDREONI, A. Technical change, the shifting ‘terrain of the industrial’, and digital industrial policy. In: OQUBAY, A. et al. (Eds.). The Oxford Handbook of Industrial Policy. Oxford: Oxford University Press , 2020.) e Rodrik (2014RODRIK, D. The past, present, and future of economic growth. Challenge, v. 57, n. 3, p. 5-39, 2014.). Nesse sentido, a classificação tradicional de atividades manufatureiras deve ser atualizada para incluir serviços modernos, tendo em vista que estes exibem os mesmos efeitos promotores e difusores do progresso técnico e do crescimento sustentado atribuídos à manufatura. No entanto, Zysman et al. (2011ZYSMAN, J. et al. Services with Everything: The ICT-Enabled Digital Transformation of Services. BRIE Working Paper, n. 187a, 2011.), observa que o setor de serviços sofisticados, ao invés de substituir o papel dinâmico da manufatura, tem representado contribuição adicional a mudança estrutural e desenvolvimento econômico vindos do próprio setor de manufaturados, por crescerem de forma associada a esse setor.
Além disso, conforme documentou Amsden (2001AMSDEN, A. H. The Rise of “the Rest”: Challenges to the West from late-industrializing economies. Oxford: Oxford University Press, 2001.), países pobres e em desenvolvimento não podem saltar diretamente para serviços de média e alta tecnologia sem estabelecer um setor manufatureiro relativamente diversificado e competitivo. Conforme documentou a autora, não há experiência histórica em que um país tenha alcançado alta renda per capita sem industrialização. Portanto, as economias em desindustrialização terão necessariamente que recuperar sua indústria manufatureira como condição adicional para avançar em tecnologias mais sofisticadas de manufatura juntamente com os novos serviços.
Feita essa ressalva e seguindo outros estudos nesta linha, como o de Tregenna e Andreoni (2020TREGENNA, F.; ANDREONI, A. Deindustrialisation reconsidered: Structural shifts and sectoral heterogeneity. London: UCL Institute for Innovation and Public Purpose, 2020. (Working Paper 2020-06). Disponível em: Disponível em: https://www.ucl.ac.uk/bartlett/public-purpose/wp2020-06 . Acesso em: 23 jan. 2023.
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) e Haverkamp e Clara (2019HAVERKAMP; K. CLARA, M. Four Shades of Deindustrialization. Working Paper, Department of Policy, Research and Statistics, UNIDO, n. 2, 2019.), esta pesquisa sugere que o processo de desindustrialização, mais do que um processo que atinge os países de modo parecido, é, na verdade, um processo globalmente desigual, relacionado tanto ao grau de desenvolvimento e à dependência de trajetórias quanto às políticas econômicas que reforçam tendências de longo prazo ou, alternativamente, possibilitam mudanças estruturais. A metodologia consiste em uma análise teórica e uma investigação empírica. A parte teórica traz uma revisão da literatura sobre desindustrialização e a heterogeneidade subsetorial e, na parte empírica, tem-se uma análise descritiva dos dados da manufatura mundial para 111 países, no período entre 1993 e 2018, bem como uma análise específica para o Brasil, entre 1993 e 2020, com o intuito de investigar os diferentes padrões de desindustrialização.
A estrutura do artigo é a seguinte: após esta introdução, a seção 1 faz uma discussão acerca da desindustrialização e a heterogeneidade subsetorial na manufatura. A seção 2 fornece um panorama da evolução da indústria manufatureira mundial, analisando dados do valor agregado e do emprego, segundo regiões e nível tecnológico. Na sequência, a seção 3 traz uma análise para a economia brasileira, tentando entender o perfil da estrutura produtiva do país e o padrão de desindustrialização apresentado. Os principais resultados da pesquisa sugerem que a trajetória do produto/emprego manufatureiros segue curso distinto ao longo do tempo, conforme a intensidade tecnológica das atividades manufatureiras, diferenciando-se regionalmente e em termos do grau de desenvolvimento dos países, de modo que a desindustrialização nos países avançados e em poucos países em desenvolvimento, notoriamente no leste/sudeste asiático, ocorreu somente nos níveis tecnológicos mais baixos da manufatura. Tal fato reafirma que políticas econômicas inadequadas podem ter contribuído para a desindustrialização em vários países e em setores relevantes da manufatura, como parece ter sido o caso da economia brasileira.
1. DESINDUSTRIALIZAÇÃO E HETEROGENEIDADE SUBSETORIAL: ASPECTOS GERAIS E O CASO BRASILEIRO
As contribuições seminais de Rowthorn e Ramaswamy (1997ROWTHORN, R.; RAMASWAMY, R. Deindustrialisation: Causes and Implications. IMF Working Paper , v. 97, n. 42, p. 1-38, 1997.) e Rowthorn e Coutts (2004ROWTHORN, R.; COUTTS, K. Deindustrialisation and the balance of payments in advanced economies. Cambridge Journal of Economics, v. 28, n. 5, p. 767-790, 2004.) estabeleceram um padrão para observar a desindustrialização, uma curva em formato de U invertido que mostra que, à medida que a renda per capita cresce, a participação da indústria no emprego total cresce inicialmente, enquanto a participação da agricultura exibe um declínio. A partir de certo ponto dessa trajetória de desenvolvimento, ocorreria uma virada, momento em que a parcela da manufatura no total de empregos se estabiliza e diminui.
Em relação às causas desse processo, a interpretação convencional é a de que se trata de um resultado natural do processo de desenvolvimento, devido à combinação das mudanças na composição da demanda e dos maiores ganhos de produtividade do setor manufatureiro em relação aos demais. Supondo que a elasticidade-renda da demanda por manufaturas seja maior do que a unidade nos estágios iniciais de desenvolvimento, e nos estágios mais avançados, torna-se menor do que a unidade, então, no curso do processo de desenvolvimento, essa mudança na composição da demanda favoreceria o setor de serviços em detrimento da indústria. Isoladamente, esse fator seria insuficiente para explicar a desindustrialização, pois desconsidera as influências da produtividade e das variações dos preços relativos na estrutura da demanda e, portanto, na produção industrial e no emprego. Assumindo as mesmas condições para a elasticidade-renda da demanda, dado que a produtividade do trabalho cresce mais rapidamente no setor manufatureiro, então, no curso do desenvolvimento, haveria uma redução nos preços relativos dos bens manufaturados, estimulando a demanda por eles nos estágios iniciais enquanto, nos estágios mais avançados, haveria um efeito de substituição por outros itens, como serviços (ROWTHORN; RAMASWAMY, 1999ROWTHORN, R. E.; RAMASWAMY, R. Growth, trade, and deindustrialization. IMF Working Paper, v. 46, n. 1, p. 1-28, 1999.).
Portanto, o efeito líquido sobre a produção industrial e o emprego depende crucialmente do comportamento da demanda em resposta às mudanças nos preços relativos. Dependendo da resposta da demanda à queda dos preços dos manufaturados, a variação na produção e no emprego pode ser positiva ou negativa. Nas economias avançadas, há fortes evidências de que a queda dos preços relativos dos manufaturados, devido aos ganhos de produtividade, não é suficientemente compensada pelo aumento da demanda por esses bens, de modo que as participações relativas do setor (valor adicionado e emprego) começam a declinar, com o emprego declinando relativamente mais rápido (LAWRENCE; EDWARDS, 2013LAWRENCE, R. Z., EDWARDS, L. US Employment deindustrialization: Insights from history and the international experience. Peterson Institute for International Economics, n. PB13-27, 2013.; RODRIK, 2016RODRIK, D. Premature deindustrialisation. Journal of Economic Growth, v. 21, p. 1-33. 2016.; ROWTHORN; RAMASWAMY, 1999ROWTHORN, R. E.; RAMASWAMY, R. Growth, trade, and deindustrialization. IMF Working Paper, v. 46, n. 1, p. 1-28, 1999.; TREGENNA, 2009TREGENNA, F., Characterizing deindustrialization: An analysis of changes in manufacturing employment and output internationally. Cambridge Journal of Economics , v. 33, n. 3, p. 433-466, 2009.).
Outros fatores não convencionais que explicam a desindustrialização podem estar ligados à globalização, principalmente pelo canal do comércio internacional ou da nova divisão internacional do trabalho. Dependendo do padrão de comércio estabelecido pode haver uma especialização da produção entre bens manufaturados e outros bens e serviços, ou mesmo uma especialização dentro do setor manufatureiro, entre a produção de bens intensivos em mão de obra qualificada e não qualificada. Para os países desenvolvidos, embora este não seja o principal meio que afeta a desindustrialização, as evidências sugerem um impacto negativo sobre a demanda por mão de obra, especialmente a menos especializada (ROWTHORN; RAMASWAMY, 1999ROWTHORN, R. E.; RAMASWAMY, R. Growth, trade, and deindustrialization. IMF Working Paper, v. 46, n. 1, p. 1-28, 1999.; WOOD, 1995WOOD, A. How Trade Hurt Unskilled Workers. Journal of Economic Perspectives, v. 9, n. 3, p. 57-80, 1995.).
Em países em desenvolvimento que se desindustrializam, entretanto, é improvável que o clássico argumento da combinação de mudanças na composição da demanda e produtividade do trabalho se aplique, uma vez que, dada a elasticidade da demanda nesta fase de desenvolvimento, a diferença de produtividade no setor manufatureiro estimularia ainda mais a demanda por bens industriais, alimentando o crescimento do setor. Uma explicação alternativa está no comércio internacional. Segundo Rodrik (2016RODRIK, D. Premature deindustrialisation. Journal of Economic Growth, v. 21, p. 1-33. 2016.), pode ser que, ao se abrirem para o comércio internacional, os países em desenvolvimento foram atingidos por um duplo golpe. Em primeiro lugar, os que não tinham vantagem comparativa sólida no setor manufatureiro tornaram-se importadores líquidos desses bens, revertendo o longo processo de substituição de importações. Em segundo lugar, ao ficarem expostos às tendências de queda dos preços relativos nas economias avançadas, os países em desenvolvimento teriam “importado” essa desindustrialização, haja vista que a pressão sobre os preços ocorreu globalmente, mesmo nos países que não o fizeram.
Outra causa da desindustrialização deve-se à realocação de plantas industriais caso, principalmente, das economias desenvolvidas. Segundo Palley (2015PALLEY, T. I. The theory of global imbalances: Mainstream economics vs. structural Keynesianism. Review of Keynesian Economics, v. 3, n. 1, p. 45-62, 2015.), a globalização implicou alta mobilidade internacional dos fatores de produção (capital e tecnologia), resultante de melhorias de transportes, comunicações e na capacidade de gerenciar redes de produção globalmente diversificadas. Isso criou um novo modelo de produção global configurado em torno do princípio da arbitragem global de custos, em busca de taxas de câmbio favoráveis, menores impostos, subsídios, menos regulamentação e mão de obra abundante e barata.
Palma (2005PALMA, J. G. Four sources of de-industrialisation and a new concept of the Dutch Disease. In: Ocampo, J. A. (Comp.). Beyond reforms: Structural dynamic and macroeconomic vulnerability. Palo Alto: Stanford University Press; Banco Mundial, 2005., 2008PALMA, J. G. De-industrialisation, premature de-industrialisation and the Dutch disease. In: The New Palgrave Dictionary of Economics. 2. ed. London: Palgrave, 2008.), Palley (2015PALLEY, T. I. The theory of global imbalances: Mainstream economics vs. structural Keynesianism. Review of Keynesian Economics, v. 3, n. 1, p. 45-62, 2015.) e UNCTAD (2016UNCTAD - UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT. Trade and Development Report 2016: Structural transformation for inclusive and sustained growth. Geneva: UNCTAD, 2016.), observam que este é o caso de algumas economias desenvolvidas - principalmente europeias - cujas transformações políticas, financeiras e institucionais geraram instabilidade macroeconômica e uma distribuição regressiva de renda. Isso pode ter contribuído para a desacelerar a demanda agregada e limitar a capacidade do setor de serviços de absorver produtivamente a mão de obra liberada do setor industrial, o que levou a níveis elevados e persistentes de desemprego/subemprego, subconsumo e a baixos níveis de produtividade e investimento.
Finalmente, uma fonte adicional de desindustrialização é a “doença holandesa”, associada a uma mudança na trajetória “natural” ou a um grau excessivo de desindustrialização em relação ao que seria esperado a partir do nível de renda per capita, da produtividade do setor manufatureiro e das elasticidades da demanda. Este grau “extra” de desindustrialização pode resultar de: (i) a descoberta de recursos naturais abundantes (por exemplo, na Holanda), (ii) aumento significativo na exportação de serviços, particularmente em finanças e turismo (Hong Kong e Grécia), e (iii) mudanças na política econômica, especialmente a liberalização financeira e comercial em países de renda média (Brasil e África do Sul).
Considerando a análise acima, é possível a crença de que existam, portanto, várias causas possíveis para a desindustrialização e, provavelmente, diferentes combinações dessas fontes que poderiam explicar o fenômeno em diferentes países, mais do que uma só causa considerada isoladamente.
Discutidos o processo de desindustrialização e suas causas, é relevante conhecer padrões de desindustrialização em termos de suas diferentes dinâmicas setoriais. A literatura acerca dessa temática (HAVERKAMP; CLARA, 2019HAVERKAMP; K. CLARA, M. Four Shades of Deindustrialization. Working Paper, Department of Policy, Research and Statistics, UNIDO, n. 2, 2019.; PALMA, 2014PALMA, J. G. De-industrialisation, ‘premature’ de-industrialisation and the Dutch-disease. Revista NECAT, v. 3, n. 5, jan./jun. 2014.; RODRIK, 2016RODRIK, D. Premature deindustrialisation. Journal of Economic Growth, v. 21, p. 1-33. 2016.; TREGENNA; ANDREONI, 2020TREGENNA, F.; ANDREONI, A. Deindustrialisation reconsidered: Structural shifts and sectoral heterogeneity. London: UCL Institute for Innovation and Public Purpose, 2020. (Working Paper 2020-06). Disponível em: Disponível em: https://www.ucl.ac.uk/bartlett/public-purpose/wp2020-06 . Acesso em: 23 jan. 2023.
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) enfatiza três aspectos.
Primeiramente, a desindustrialização não tem se apresentado como um fenômeno generalizado. Embora possa refletir uma tendência natural do desenvolvimento, como ocorre em boa parte dos países desenvolvidos, apresenta forte heterogeneidade, isto é, as diferentes dinâmicas independem do grau de desenvolvimento o que sugere, portanto, que o processo tem forte ligação com as políticas macroeconômicas adotadas. Em segundo lugar, a desindustrialização está ocorrendo segundo uma trajetória diferente da ocorrida no passado, isto é, daquela verificada nos países atualmente desenvolvidos, de modo que, nas décadas recentes, tem se iniciado em níveis de renda per capita cada vez mais baixos e com as participações relativas da manufatura no PIB (pico) a níveis cada vez menores. Portanto, sugere-se para os países de renda média um fenômeno precoce/prematuro. Em terceiro lugar, o processo de desindustrialização afeta de forma diferente os subsetores da manufatura, dada a heterogeneidade presente nos subsetores da manufatura (diferentes graus tecnológicos, velocidades de mudança tecnológica, níveis de eficiência de escala e graus de comercialização). A curva em U invertido tradicional, que denota a queda da participação do valor adicionado da manufatura/emprego no PIB à medida que o país se desenvolve, pode não se verificar. Mais ainda, pode até mesmo assumir uma forma crescente e se tornar quase côncava em alguns casos. Portanto, a partir de certo ponto avançando nos segmentos de alta tecnologia, um país poderia seguir expandindo sua participação relativa e continuar gerando empregos nestes segmentos enquanto abandona atividades menos complexas tecnologicamente.
Nas economias avançadas, isso permite a manutenção de um setor industrial expressivo e a obtenção de crescimento. Já nos países em desenvolvimento, é um aspecto fundamental para o processo de catching up, uma vez que tais segmentos têm mais condições para ampliar o escopo para a criação e captura de valor e a mudança tecnológica.
No caso brasileiro, vários trabalhos, em especial a partir de meados da década de 2000, têm se dedicado a investigar a temática da desindustrialização, com foco na abordagem setorial ou desagregada. A ideia central que norteia esta abordagem é a de que o desenvolvimento é setor-específico, uma vez que certos setores de atividades industriais possuem características especiais, que tornam tais setores indutores do crescimento e, neste caso, a desindustrialização se constituiria uma fonte de constrangimento ao próprio processo de desenvolvimento.
Alguns trabalhos merecem destaque. Morceiro (2012MORCEIRO, P. C. Desindustrialização na economia brasileira no período 2000-2011: Abordagens e indicadores. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.) se debruçou sobre a temática da desindustrialização nos anos de 2000 a 2010 segundo três óticas: da produção, emprego e comércio exterior. Os resultados da pesquisa evidenciaram que a indústria de transformação teve sua participação reduzida frente a todos os demais macrosetores, não apenas o de serviços e, na análise intrassetorial, evidenciou-se uma “inércia estrutural”, com um resultado melhor das indústrias de alta e média-alta intensidade tecnológica, relativamente as indústrias de média-baixa e baixa, no período estudado. Acerca da trajetória do comércio exterior, as evidências do estudo sugeriram uma especialização regressiva, com a concentração das exportações em produtos primários e dependência da importação de manufaturados.
Arend (2015AREND, M. A industrialização do Brasil ante a nova divisão internacional do trabalho. Brasília, DF: IPEA, 2015. (Texto para Discussão).) analisou a evolução da matriz industrial brasileira por grupos de atividades industriais no período de 1980 a 2010, buscando evidências de desindustrialização precoce e, adicionalmente, a construção de um indicador que fosse capaz de capturar processos de desindustrialização relativa brasileira em relação ao nível internacional. O indicador de desindustrialização relativa internacional (DRI), construído no estudo, mostrou que o Brasil vem enfrentando uma desindustrialização relativa frente a economia mundial e também em relação à vários outros grupos de países em desenvolvimento: da América Latina, África, Oceania e até mesmo em relação às economias desenvolvidas, de modo que considerou o país um caso extremo de desindustrialização precoce, além do ingresso em uma trajetória de especialização regressiva, corroborando a ideia de Morceiro (2012MORCEIRO, P. C. Desindustrialização na economia brasileira no período 2000-2011: Abordagens e indicadores. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.).
Drach (2016DRACH, D. A. Componentes estruturais da desindustrialização: Uma análise da economia brasileira para o período 2003-13. 2016. Dissertação (Mestrado em Economia) -Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016.) também investigou a desindustrialização pela ótica do emprego no Brasil, utilizando uma metodologia para a decomposição estrutural a partir das matrizes insumo-produto no período de 2003 a 2013, no intuito de explicar as mudanças das participações do emprego industrial no emprego total em função: (i) das variações da demanda final, (ii) substituição/penetração de importações e (iii) modificações na eficiência produtiva. A análise foi feita para os macrosetores agricultura, indústria extrativa, indústria de transformação, Serviços Industriais de Utilidade Pública (SIUP) e construção civil e serviços. Os resultados obtidos sugeriram, no período considerado pelo estudo, que houve um aumento de participação da indústria da transformação no emprego total, entendida como uma “industrialização negativa”, já que foi fruto de reduções na eficiência produtiva industrial em relação ao restante da economia. Além disso, o estudo verificou que a agropecuária perdeu participação no emprego total, em virtude dos seus elevados ganhos de eficiência, revelando indícios de que ocorreu um processo de especialização regressiva, uma vez que o dinamismo tecnológico se concentrou nos setores primários.
Finalmente, o trabalho de Morceiro e Guilhoto (2019MORCEIRO, P. C.; GUILHOTO, J. J. M. Desindustrialização setorial e estagnação de longo prazo da manufatura brasileira. Paris: OECD, 2019. Working Paper, Departamento de Economia FEA-USP, n. 2019-01, 2019.) investigou se a desindustrialização brasileira foi generalizada ou concentrada no nível setorial, ou ainda se o comportamento agregado diferiu do verificado para os setores de atividades. Os autores construíram séries inéditas da participação dos setores manufatureiros no PIB brasileiro, entre 1970 e 2016 e, também, da evolução real do valor adicionado dos setores manufatureiros desde 1980, a partir de diversas bases de dados das Contas Nacionais.
Os resultados da pesquisa evidenciaram que a desindustrialização ocorreu de modo heterogêneo dentro da indústria de transformação, de modo que os setores mais intensivos em trabalho (vestuário, couros e calçados; têxteis; madeira e móveis; e minerais não-metálicos) passaram por um processo de desindustrialização nas décadas de 1970 e 1980, considerada normal e esperada, dada a evolução da participação setorial no PIB e a renda per capita. No entanto, quando considerados setores manufatureiros intensivos em tecnologia, tais como, máquinas e equipamentos, química e petroquímica, e automobilística e outros equipamentos de transporte, o estudo conclui que se trata de um processo anormal e prematuro, haja vista que tais setores começaram a se desindustrializar em níveis de renda per capita inferior ao esperado. Além disso, os demais setores intensivos em tecnologia (farmacêutico, material elétrico, informática e eletrônica) não seguiram uma trajetória de industrialização robusta entre 1970 e 2016, o que seria esperado para o nível relativamente baixo de renda per capita do Brasil nesse período.
Em suma, a abordagem setorial, tanto em termos da literatura internacional, quanto dos estudos realizados para a economia brasileira corrobora a ideia de que, não apenas a indústria como um todo tem se passado por um processo de desindustrialização consideravelmente desigual entre os distintos setores de atividade, mas que há um processo de heterogeneidade relevante no interior da própria indústria de transformação. Isso é relevante pois setores intensivos em tecnologia/conhecimento são setores-chave para o crescimento de longo prazo, porque empregos de qualidade, inovações e efeitos de transbordamento, encadeamentos na cadeia produtiva e sua ausência podem interferir negativamente na trajetória de desenvolvimento de um país.
2. PADRÕES DE DESINDUSTRIALIZAÇÃO/ESPECIALIZAÇÃO NA INDÚSTRIA MANUFATUREIRA (1993-2018)
No período recente, embora a contribuição do setor manufatureiro ao valor adicionado total tenha, em média, se mantido relativamente constante, este padrão não se mantém quando analisados os diferentes grupos de renda. Conforme o Gráfico 1 para uma amostra total de 111 países, a parcela média do valor adicionado do setor manufatureiro no valor adicionado total manteve-se em torno de 14,5% entre 1993 e 2018. Contudo, no grupo de países de renda alta, o setor manufatureiro teve sua participação ampliada, de 14,7% para 15,4%, enquanto o grupo das economias de renda média e baixa experimentaram uma retração. No grupo dos países de renda média, a referida parcela retraiu de 15,2% para 14,6% e, no grupo dos países de renda baixa, a queda foi de 14,4% para 13,4%.
Participação do setor manufatureiro no valor adicionado total, médias por grupo de renda, 1993-2018 (% em US$ constantes de 2015)
Nota: Níveis de renda agrupados de acordo com a classificação do Banco Mundial. Amostra de 111 países inclui África do Sul, Albânia, Alemanha, Argélia, Argentina, Armênia, Austrália, Áustria, Azerbaijão, Bahrein, Bangladesh, Bélgica, Bolívia, Bósnia e Herzegovina, Botsuana, Brasil, Bulgária, Burundi, Camarões, Camboja, Canadá, Catar, Cazaquistão, Chile, China, Chipre, Colômbia, Coréia do Sul, Costa Rica, Croácia, Dinamarca, Egito, El Salvador, Equador, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estado da Palestina, Estônia, Etiópia, Filipinas, Finlândia, França, Gabão, Gâmbia, Geórgia, Grécia, Holanda, Honduras, Hong Kong, Hungria, Ilhas Maurício, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Jamaica, Japão, Jordânia, Kuwait, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Macedônia do Norte, Madagascar, Malásia, Maláui, Marrocos, México, Moldávia, Mongólia, Namíbia, Nigéria, Noruega, Nova Zelândia, Omã, Panamá, Paquistão, Paraguai, Peru, Polônia, Portugal, Quênia, Quirguistão, República Tcheca, Romênia, Ruanda, Rússia, Senegal, Singapura, Sri Lanka, Suécia.
A Tabela 1 traz essas informações, dividindo-se as economias em desenvolvimento e em transição por regiões geográficas. Nota-se que, entre 1993 e 2018, com exceção do grupo de países desenvolvidos e do leste e sul da Ásia, a contribuição do setor manufatureiro se reduziu nas demais regiões. Nesses 26 anos, a participação relativa do grupo dos países desenvolvidos cresceu 7,4%, em média; 22,0 % nas economias do leste asiático e Pacífico, e 23,8% no sul da Ásia, cuja média de participação inclusive ultrapassou a média das economias desenvolvidas.
Naturalmente, o comportamento do setor manufatureiro dentro dos grupos de países é bastante heterogêneo. Nações desenvolvidas como Austrália, Reino Unido, Canadá, Espanha, entre outros, apresentaram reduções significativas de acima de 20% entre 1993 e 2018. Já a Irlanda, Suíça, Suécia, Finlândia e diversas economias do leste europeu têm experimentado um rápido crescimento do setor nos últimos anos, e sustentam hoje parcelas acima de 15%, chegando a 35,7% na Irlanda. No leste e sul da Ásia, se destacam, em termos de crescimento do setor manufatureiro, Camboja e Vietnã, que mais que dobraram suas parcelas no período, seguidos por Taiwan e Coreia, e Bangladesh ao sul. Em termos de nível, é interessante notar que, em ambas as regiões, todas as economias da amostra apresentam contribuições elevadas do setor manufatureiro, acima de 17%, exceto Mongólia (10,4%), Paquistão (13,4%) e Hong Kong (1,1%), que vêm se estabelecendo como uma economia essencialmente baseada em serviços.
Por outro lado, destaca-se em termos de desindustrialização a América Latina e o Caribe, que no início do período apresentavam o maior grau médio de industrialização, considerando o valor adicionado, e atualmente encontram-se atrás do grupo dos países desenvolvidos e do leste e sul da Ásia. Diversos países experimentaram reduções significativas no período, acima de 23%, como Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Costa Rica. Na verdade, a única variação positiva entre os países da amostra é de Trinidad e Tobago (74,8%), enquanto na Bolívia o setor manteve-se estável (0,5%). A desindustrialização mais acentuada, no entanto, é a observada na amostra das economias em desenvolvimento da Europa e Ásia Central, sendo a Turquia a única nação não considerada uma economia em transição.
Na África Subsaariana, a queda do setor manufatureiro também é pronunciada, o que é particularmente curioso, uma vez que a maioria dos países se encontra na faixa de renda média-baixa e baixa. Isto é, eles parecem experimentar uma desindustrialização ainda em baixos níveis de renda per capita, o que pode comprometer seriamente qualquer expectativa de catching up no longo prazo. No Oriente Médio e Norte da África, não há basicamente nenhuma alteração na média do período, embora, individualmente, o que se observa sejam tendências de crescimento para alguns e de queda para outros, independentemente do grupo de renda dos países. De qualquer forma, o que os dados por este agrupamento apontam é uma ampliação do “gap industrial” entre os países desenvolvidos, as economias mais dinâmicas da Ásia, e as demais regiões.
Portanto, ao menos para o período aqui analisado, os dados do Gráfico 1 e da Tabela 1 não parecem corroborar a expectativa geral de que o setor manufatureiro encolha à medida que os países se desenvolvem. Ao contrário, o comportamento do setor manufatureiro parece depender muito mais de decisões políticas e peculiaridades de cada país do que simplesmente o grau de desenvolvimento econômico. Como discutido acima, há diversos países de renda per capita elevada que continuam a expandir a parcela de sua indústria no PIB, e diversos países de renda baixa que, muito provavelmente, estão se desindustrializando precocemente.
É importante considerar também que, dentre os subsetores da manufatura, o grau de intensidade tecnológica varia significativamente em termos de características e quantidade de produção, de capacidades tecnológicas e organizacionais que são necessárias para produzir em escala eficiente, gerar inovação e competir internacionalmente. Isto significa que as trajetórias de industrialização e desindustrialização desses subsetores podem diferir substancialmente, refletindo a ideia de que um país seria capaz de ser competitivo em cada subsetor em diferentes níveis ou etapas de desenvolvimento econômico, produzindo uma parcela relativamente crescente de agregação de valor no PIB, bem como empregando um número maior de pessoas.
Essa é a ideia de que a industrialização segue uma trajetória de mudança estrutural, ou seja, de uma trajetória de industrialização que envolve pontos de inflexão entre os grandes setores, isto é, de um ponto de inflexão em que o setor manufatureiro passa a ceder cada vez mais espaço para o setor de serviços, mas também de uma mudança estrutural dentro da própria manufatura. Ou seja, conforme o PIB per capita cresce, as economias deveriam migrar de atividades ou subsetores menos intensivos em tecnologia e conhecimento para aqueles tecnologicamente sofisticados e, eventualmente, até mesmo se tornarem economias totalmente baseadas em serviços.
Contudo, os dados apresentados para este período apontam para um comportamento um pouco distinto desta “trajetória natural” da manufatura. Evidentemente, um período mais longo poderia mostrar uma imagem diferente, e mesmo na presente amostra, há provavelmente inúmeros países para os quais esta trajetória natural é verdadeira.
O Gráfico 2 explora a relação do setor manufatureiro com o PIB per capita, incluindo-se divisões do setor em três níveis tecnológicos de acordo com a classificação da Unido.1 1 A classificação dos níveis tecnológicos da Unido é baseada nos gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) incorridos na produção de bens manufaturados. As indústrias manufatureiras com maior intensidade de P&D são consideradas indústrias de alta tecnologia. A intensidade de P&D refere-se à razão entre os gastos com P&D e uma medida de produção, geralmente o valor adicionado bruto. A partir da a Classificação Internacional Normalizada Industrial de Todas as Atividades Econômicas (International Standard Industrial Classification of All Economic Activities - ISIC), Revisão 3, a 2 dígitos, os níveis tecnológicos são agrupados como segue: a) Baixa tecnologia - Alimentos e bebidas (15) e Produtos de tabaco (16), Têxteis (17), Vestuário, peles (18) e Couro, produtos de couro e calçados (19), Produtos de madeira (excl. móveis) (20), Papel e produtos de papel (21), Impressão e publicação (22), Mobiliário; Fabricação de produtos diversos não especificados anteriormente (36) e Reciclagem (37); b) Média tecnologia - Coque, produtos petrolíferos refinados, combustível nuclear (23); Produtos de borracha e plástico (25); Produtos minerais não metálicos (26); Metais básicos (27); Produtos fabricados de metal (28); c) Alta tecnologia (inclui média-alta tecnologia) - Produtos químicos (24); Máquinas e equipamentos, n.e. (29) e Máquinas de escritório, contabilidade e informática (30); Máquinas e aparelhos elétricos (31) e Equipamentos de rádio, televisão e comunicação (32); Instrumentos médicos, de precisão e óticos (33); Veículos a motor, reboques, semirreboques (34) e Outros equipamentos de transporte (35). Para uma discussão sobre a classificação da Unido, também em relação à classificação da OCDE baseada em gastos com P&D. UNIDO, 2021. Em primeiro lugar, o Gráfico 2 sugere ausência de relação entre PIB per capita e o tamanho do setor manufatureiro, ou talvez uma relação levemente positiva. Porém, o resultado mais intrigante é o de que a participação no PIB da manufatura de alta tecnologia parece seguir uma relação linear positiva com o nível de renda.
Participação do setor manufatureiro e dos subsetores tecnológicos no valor adicionado total versus o PIB per capita, 1993-2018
Nota: Subsetores agrupados de acordo com o nível de tecnologia a partir da classificação da Unido. Os dados estão em escala logarítmica e abrangem todos os países da amostra.
A mesma relação pode ser observada com respeito aos subsetores de média tecnologia, embora a inclinação seja menor que a observada no subsetor de alta tecnologia. Já para o subsetor de baixa tecnologia, os dados parecem corroborar em alguma medida a tendência esperada de desindustrialização conforme os países se desenvolvem. Isto pode sugerir que, enquanto os países mantêm ou mesmo elevam suas participações no PIB de setores de tecnologia média e alta, quanto mais eles avançam em seu desenvolvimento, mais os setores tecnologicamente mais sofisticados e tipos específicos de serviços, como aqueles relacionados à produção e serviços comerciais, tornam-se os motores de geração de riqueza, ao mesmo tempo em que subsetores de baixa tecnologia diminuem em termos de sua contribuição para o PIB. Diante disso, uma dúvida que se coloca é se países que estão provavelmente se desindustrializando prematuramente poderiam desenvolver os setores mais intensivos em tecnologia de forma bem-sucedida, isto é, gerando empregos e agregando valor de forma substancial às suas economias sem antes terem desenvolvido razoavelmente subsetores menos sofisticados, mas que trazem consigo oportunidades de ganhos de aprendizagem, produtividade e linkages intra e intersetoriais.
Os dados da Tabela 2 oferecem um panorama da contribuição dos subsetores manufatureiros ao PIB, por nível tecnológico. É importante esclarecer inicialmente que os dados das Tabelas 1 e 2 não são diretamente comparáveis, pois as fontes são diferentes e, principalmente, há muitas lacunas nas séries da INDSTAT2 e, por isso, o número de países utilizado nas médias dos subsetores é consideravelmente menor do que o utilizado nas médias do setor manufatureiro como um todo e, consequentemente, há diferenças significativas entre as médias do setor geral e a soma das médias dos subsetores entre os grupos de países. No entanto, os dados da Tabela 2 permitem a observação de algumas tendências interessantes nos países que compõem cada grupo regional, particularmente em termos de especialização dentro do setor manufatureiro.
Conforme se vê, no período de 1993 a 2018, a estrutura produtiva das economias desenvolvidas tem se concentrado cada vez mais em atividades tecnologicamente mais sofisticadas, embora as atividades de baixa tecnologia ainda respondam, em média, por parte importante do valor adicionado do setor manufatureiro. No subsetor de alta tecnologia, podemos destacar individualmente a Alemanha, Hungria e República Tcheca, que ampliaram de forma sustentada o tamanho do setor ao longo do período, registrando em 2018 as maiores participações, entre 12% e 14% do PIB, e crescimento mais modesto dos setores de baixa e média tecnologia, cujas parcelas situaram-se entre 4% e 7% nos últimos anos. Os EUA são um exemplo de manutenção do nível geral da manufatura e do subsetor de alta tecnologia (em torno de 6,5%), mas com crescimento do subsetor de média e redução do de baixa tecnologia. Alguns apresentam uma desindustrialização consistente nos três subsetores (e.g. Reino Unido, Austrália, Croácia), outros têm ampliado o setor de média tecnologia e reduzido os demais (e.g. Canadá, Noruega), ou ampliado a produção de high tech e reduzido as demais (e.g. Bélgica, Irlanda), ou ainda crescimento em alta e média tecnologia e redução em baixa tecnologia (e.g. Espanha, Finlândia, Holanda, Suécia, Suíça). Enfim, há grande heterogeneidade dentro do grupo para qualquer generalização.
No Leste asiático, destaca-se o impressionante crescimento do setor alta tecnologia, enquanto o movimento do setor de média tecnologia é mais modesto, e há uma manutenção ou ligeira queda da produção de baixa tecnologia. Pela média dos grupos, a contribuição do setor de alta tecnologia às economias da região parece já ser superior à contribuição equivalente nos países desenvolvidos. Exceto por Hong Kong, que se desindustrializa em todos os subsetores, todos os países do grupo ampliaram significativamente a produção no setor de alta tecnologia em proporção do PIB e, em 2018, destacam-se as altas parcelas da Coreia (22,0%), Singapura (15,7%), Vietnã (13,4%) e China (10,2%). Além de Hong Kong, há queda na participação dos setores de média e baixa tecnologia Singapura, Filipinas e Tailândia, enquanto na Coreia, ainda há um crescimento lento do setor de média tecnologia, mas uma forte retração das atividades de baixa tecnologia, cuja parcela reduziu-se de cerca de 9% para 4% entre 1993 e 2018. Por fim, é interessante notar que o único grupo em que o subsetor de alta tecnologia é o líder do setor manufatureiro, é o dos países desenvolvidos e o do leste asiático. Ao sul da Ásia, os três subsetores seguem uma tendência de crescimento, mas o movimento é mais acentuado nos setores de baixa e média tecnologia, que ainda predomina.
A predominância de atividades de baixa tecnologia também cresce nas economias da América Latina e o Caribe e da África Subsaariana, com a diferença de que, nas primeiras, a composição do valor adicionado tem se movido também em favor dos segmentos de média tecnologia, enquanto os de alta tecnologia mantêm-se estáveis, e no segundo grupo de economias, o subsetor de baixa tecnologia têm contribuído ainda mais para a geração de riqueza, em detrimento dos subsetores de alta e média tecnologia. Na América Latina, destaca-se a desindustrialização do Brasil no setor alta tecnologia, cuja contribuição para o PIB passou de 8,6% em 1993 para 4,7% em 2018, abaixo dos 5,4% registrado pelo setor de baixa tecnologia no mesmo ano, enquanto o setor de média tecnologia manteve-se estável entre 3,0% e 3,5%. O Uruguai, considerado um país de alta renda, é a única economia, desta limitada amostra, a apresentar uma consistente desindustrialização em todos os setores. No México, nota-se um forte movimento ascendente dos setores alta e média tecnologia, e um encolhimento do setor baixa tecnologia, particularmente nos últimos anos. Nas economias em desenvolvimento da Europa e Ásia Central, o setor de baixa tecnologia também é o de maior contribuição no PIB, contudo, este parece estar encolhendo ao longo do período, enquanto o setor de média tecnologia cresce de forma acelerada, o de alta tecnologia mantém-se relativamente estável.
Em relação ao emprego no setor manufatureiro, o quadro é ligeiramente distinto do valor adicionado. Conforme mostra a Tabela 3, entre 1993 e 2018, a média de participação do emprego nas atividades manufatureiras relativamente ao emprego total reduziu-se de 21,0% para 14,4% nas economias avançadas, mais acentuadamente nas atividades baixa tecnologia. O fato de o emprego manufatureiro estar se reduzindo neste período, ao contrário da contribuição do setor no PIB, reflete provavelmente que a produtividade na manufatura é mais elevada que em outros setores. Este comportamento também é observado no leste asiático embora, aparentemente, essa redução não esteja ocorrendo nos subsetores de média e alta tecnologia, apenas no de baixa tecnologia.
Nas economias em desenvolvimento da Europa e Ásia Central, América Latina e Caribe, Oriente Médio e Norte da África, e África Subsaariana, a redução geral do emprego manufatureiro também é observado. Exceto na Europa e Ásia Central e África Subsaariana, em que a queda é consistente em todos os subsetores, nas duas outras regiões a redução do emprego é mais concentrada nos segmentos baixa tecnologia, mantendo-se praticamente inalterado nos demais subsetores. Interessante observar, que a única região em que o emprego industrial cresceu no período é o Sul da Ásia, basicamente devido ao forte crescimento do emprego nas atividades de baixa tecnologia.
Em suma, os dados apresentados sugerem que a manufatura de alta e média tecnologia está aumentando monotonamente sua participação no PIB e, em algumas regiões, no emprego. Isso sugere que, em um nível crescente de desenvolvimento econômico (aproximado pelo PIB per capita), a trajetória de referência entre países é de industrialização contínua. Esse padrão pode sugerir que, uma vez que um país tenha entrado em um determinado subsetor de manufatura de maior intensidade tecnológica, ele pode seguir aumentando a sua parcela relativa de contribuição para o PIB, e até mesmo aumentar continuamente o nível de emprego (e relativamente) em atividades desses subsetores. Esse cenário desafia a ideia tradicional de que a trajetória natural para os países que atingem um alto nível de desenvolvimento é a de desindustrialização, com uma mudança da manufatura para os serviços.
Por outro lado, há uma dinâmica mais doméstica que explica as situações em que a curva de U invertido ocorre. Embora um país possa manter por um tempo as parcelas do PIB e do emprego das atividades de baixa ou média-alta tecnologia, quanto mais os países avançam em seu desenvolvimento, mais as atividades manufatureiras de alta tecnologia e tipos específicos de serviços (por exemplo, associados à produção e serviços empresariais) se tornam seus motores de geração de riqueza. Diante dessa mudança estrutural, os demais subsetores ou atividades manufatureiras de menor intensidade tecnológica tendem a encolher relativamente em termos de sua contribuição para o PIB.
Vale mencionar, contudo, e conforme discutido em Andreoni e Gregory (2013ANDREONI, A.; GREGORY, M. Why and how does manufacturing still matter: Old rationales, new realities. Revue d’economie industrielle, v. 144, n. 4, p. 17-54, 2013.), a contribuição relativamente crescente dos serviços nas economias mais avançadas parece ser resultado de uma ilusão estatística associada a outro tipo de heterogeneidade dentro do setor de serviços. Esse crescimento é impulsionado por certos tipos de serviços relacionados à produção que costumavam fazer parte da manufatura e cada vez mais foram terceirizados, embora mantendo características típicas dos processos de manufatura.
Portanto, a diversidade das observações para o setor manufatureiro, seja em termos de valor adicionado ou de emprego, seja em termos de grupos tecnológicos, sugere a crença na existência de diversas fontes de desindustrialização e, provavelmente, combinações distintas destas fontes, que explicam, de modo mais satisfatório, esse processo em cada país e em dado período, mais do que alguma delas considerada isoladamente. Ou seja, os dados enfatizam a importância de respostas políticas direcionadas que levem em consideração a natureza específica da desindustrialização em contextos particulares a cada país, em vez de regras generalistas políticas. Embora uma análise desta natureza esteja além do escopo deste trabalho, entende-se que a identificação de potenciais determinantes do comportamento dos subsetores manufatureiros pode ser útil ao direcionamento de políticas e de pesquisas futuras em contextos mais específicos.
3. UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE O PERFIL DA ESTRUTURA PRODUTIVA BRASILEIRA
Esta seção analisa a evolução recente da estrutura produtiva brasileira, e procura identificar qual o padrão de especialização do país. Em primeiro lugar, merece destaque a tendência acelerada de declínio da participação do valor adicionado do setor manufatureiro no valor adicionado total da economia brasileira (Gráfico 3). Em 1995, a contribuição do setor manufatureiro para o valor adicionado do país era de aproximadamente 17%, reduzindo-se a 12% em 2019.
Valor adicionado da indústria de transformação no valor adicionado total, Brasil, 1996-2019 (em %)
Sobre isso, um levantamento do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI, 2019IEDI - INSTITUTO DE ESTUDOS INDUSTRIAIS. Desenvolvimento industrial em perspectiva internacional comparada. [S. l.]: IEDI, 2019. Disponível em: Disponível em: https://iedi.org.br/media/site/artigos/20190802_desind_intern_comp.pdf . Acesso em: 23 jan. 2023.
https://iedi.org.br/media/site/artigos/2...
) apontou que a indústria brasileira foi uma das que mais recuaram no mundo em quase 50 anos. Dentre 30 países analisados, o Brasil apresentou a terceira maior retração do setor desde 1970, ficando atrás apenas da Austrália e do Reino Unido. O que nos diferencia, contudo, é justamente que estes países já haviam atingido uma renda elevada quando iniciaram seus processos de desindustrialização, e continuaram aumentando sua renda, a um ritmo muito superior ao Brasil, nos anos que se seguiram.
Há diversas maneiras de caracterizar a composição tecnológica da estrutura produtiva e exportações de um país, uma frequentemente usada e empregada na seção anterior (de alta, média e baixa tecnologia) é altamente agregativa e oculta interessantes diferenças no desempenho do setor manufatureiro entre países. No entanto, dado o nível de desagregação e cobertura da base de dados utilizada na seção acima, a UNIDO INDSTAT2, a classificação que se mostrou mais viável foi a da própria UNIDO. Deve-se ter em conta, por exemplo, que existe uma grande variabilidade de comportamentos nacionais em termos de esforços e gastos em P&D setoriais. As classificações por intensidade tecnológica em geral refletem o comportamento da indústria dos países desenvolvidos em escala global. Seria de alguma forma o padrão de comportamento da indústria na fronteira tecnológica. Porém, muitas vezes comportamentos nacionais fogem a essa média. Esse aspecto não oculta, entretanto, as importantes diferenças estruturais entre o padrão de esforço tecnológico de uma economia desenvolvida e uma em desenvolvimento.
Por outro lado, para análise específica da estrutura produtiva brasileira, e a partir de dados do IBGE-PIA, provavelmente seja mais útil classificar os diversos segmentos industriais e não industriais segundo a tecnologia empregada na produção, conforme a tipologia sugerida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 1987OCDE - ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Structural adjustment and economic performance. Paris: OECD , 1987.), inspirada pela taxonomia clássica de Pavitt (1984PAVITT, K. Sectoral patterns of technical change: Towards a taxonomy and a theory. Research Policy, v. 13, p. 343-373, 1984.). Na construção da taxonomia, Pavitt realizou uma análise de fatores específicos dentro de setores, como os regimes tecnológicos dominantes, as características estruturais, a origem da inovação, os tipos de resultados, as formas de apropriação e as possibilidades de diversificação tecnológicas. Para o autor, as empresas tendem a se comportar de maneira similar quando atuam num mesmo setor, pois os determinantes produtivos são parecidos. Com isso, as rotinas observadas intrassetorialmente são semelhantes e permitem que as análises para a firma sejam projetadas para o âmbito setorial ou das indústrias. Seguindo a síntese de Holland e Xavier (2005HOLLAND, M.; XAVIER, C. L. Dinâmica e competitividade setorial das exportações brasileiras: Uma análise de painel para o período recente. Economia e Sociedade, v. 14, n. 1, p. 85-108, jan./jun. 2005., p. 107-108), o critério de agregação permite distinguir os seguintes grupos de firmas/indústrias:
-
Produtos primários: agrícolas, minerais e energéticos;
-
Indústria intensiva em recursos naturais: indústria agroalimentar, indústria intensiva em outros recursos agrícolas, indústria intensiva em recursos minerais e indústria intensiva em recursos energéticos. A principal característica deste grupo é a existência de uma oferta elástica de matéria-prima como determinante das vantagens comparativas de um país ou região;
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Indústria intensiva em trabalho: estão concentrados os mais tradicionais bens industriais de consumo não-duráveis como têxteis, confecções, couro e calçados, cerâmica, editorial e gráfico, produtos básicos de metais etc. Caracterizam-se pelo fato de que, um grau relativamente elevado dos processos de inovação utilizados pelas empresas é produzido exogenamente, ou seja, fora deste setor/grupo;
-
Indústria intensiva em escala: inclui a indústria automobilística, a indústria siderúrgica e os bens eletrônicos de consumo. A presença de grandes empresas oligopolistas com elevada intensidade de capital, amplas economias de escala de processo, learning e organizacionais, bem como uma elevada complexidade nas atividades de engenharia, caracterizam este grupo;
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Indústria de fornecedores especializados ou tecnologia diferenciada: inclui bens de capital sob encomenda e equipamentos de engenharia e são caracterizados pela elevada obtenção de economias de escopo, alta diversificação da oferta geralmente concentrada em empresas de médio porte, mas com uma grande capacidade de inovação de produto;
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Indústria intensiva em ciência ou P&D: inclui os setores de química fina (produtos farmacêuticos, entre outros), componentes eletrônicos, telecomunicações e indústria aeroespacial, os quais são todos caracterizados por atividades inovativas diretamente relacionadas com elevados gastos em P&D, tendo suas inovações de produto um alto poder de difusão sobre o conjunto do sistema econômico.
Basicamente, os setores intensivos em escala, tecnologia diferenciada e ciência, ao possuírem, de forma geral, maior intensidade na relação capital/trabalho e maior sofisticação tecnológica em seus processos produtivos, têm maior capacidade de promover efeitos de encadeamento para frente e para trás e, portanto, de gerar maiores efeitos multiplicadores de renda e emprego, bem como de produzir e difundir inovações para o restante da economia. Assim, os demais setores caracterizam-se por serem apenas absorvedores líquidos dos processos de inovação simplesmente porque não geram novas tecnologias, mas apenas as adquire através da compra de equipamentos e insumos intermediários dos setores intensivos em escala, de tecnologia diferenciada ou intensivos em P&D. Ainda, os setores intensivos em recursos naturais e trabalho têm maior capacidade de gerar empregos diretos. Nesse sentido, diversas pesquisas recentes têm evidenciado que os setores com tecnologia diferenciada e baseada em ciência aparecem, particularmente, como os principais determinantes da maximização dos ganhos de produtividade nas economias e pela sustentação do crescimento econômico no longo prazo.2 2 Além de outros citados neste trabalho, destaca-se aqui, por exemplo, Reinert (1999), que observa que um aspecto comum a todas as estratégias bem-sucedidas de catching-up adotadas pelos países atualmente industrializados está no adiamento da adoção de práticas de livre-comércio, até que essas nações tenham desenvolvido vantagens comparativas nas atividades econômicas “certas” (aquelas baseadas em capacitações e conhecimento, não em recursos naturais).
Uma vasta literatura tem aplicado essa taxonomia para investigar as fontes de heterogeneidade na inovação e no desempenho econômico. Uma descoberta importante é que as classes de Pavitt realmente se ajustam bem à diversidade na relação entre inovação e resultados econômicos, usando diferentes medidas e níveis de análise.3 3 Ver Bogliacino e Pianta (2016) para uma revisão sobre a taxonomia de Pavitt. Mesmo reconhecendo a importância da taxonomia de Pavitt como ferramenta de análise, ela também apresenta limitações, como qualquer classificação agregativa.
Archibugi (2001ARCHIBUGI, D. Pavitt’s taxonomy 16 years on: A review article. Economics of Innovation and New Technology, v. 10, p. 415-425, 2001.) destaca que uma importante limitação é o alto grau de variação encontrado dentro de cada categoria. As firmas, por conveniência, são agrupadas em uma indústria com base em sua produção principal, mas elas podem ter uma base tecnológica muito diferente: tanto os chinelos quanto as botas lunares pertencem à indústria de calçados, mas a intensidade tecnológica dos dois produtos é muito diferente e é razoável esperar que seus produtores usem fontes diferentes para inovar.
Holland e Xavier (2005HOLLAND, M.; XAVIER, C. L. Dinâmica e competitividade setorial das exportações brasileiras: Uma análise de painel para o período recente. Economia e Sociedade, v. 14, n. 1, p. 85-108, jan./jun. 2005.) destacam que, nessa taxonomia, a mudança tecnológica não se limita à intensidade fatorial ou à morfologia setorial, mas incorpora principalmente as capacidades tecnológicas, as relações de encadeamento intra e interindustrial e o desempenho no comércio internacional. Por outro lado, os autores apontam que isto indica, também, a cautela que se deve ter na utilização desta taxonomia, porque um mesmo produto pode ser fabricado com tecnologias e com intensidades fatoriais distintas do padrão internacional. Por exemplo, atividades de telecomunicações desenvolvidas nas economias avançadas exibem padrões setoriais distintos quando comparados às atividades classificadas sob a mesma rubrica em economias em desenvolvimento, como a brasileira.
Além disso, no contexto de fragmentação internacional da produção, um país que tem um elevado market-share na exportação de produtos de informática (intensivos em P&D) não tem, necessariamente, competitividade em todas as etapas de desenvolvimento destes produtos (design, processo e mercado); no mesmo sentido, o sistema de produção de um produto pode estar concentrado apenas nas etapas à jusante de fabricação do produto, aproveitando-se apenas dos diferenciais do custo de mão de obra (HOLLAND; XAVIER, 2005HOLLAND, M.; XAVIER, C. L. Dinâmica e competitividade setorial das exportações brasileiras: Uma análise de painel para o período recente. Economia e Sociedade, v. 14, n. 1, p. 85-108, jan./jun. 2005.).
Entre outras críticas, um aspecto frequentemente discutido refere-se ao foco excessivo da taxonomia de Pavitt na tecnologia no setor industrial, negligenciando a heterogeneidade dos serviços (GALLOUJ, 1999GALLOUJ, F. Les trajectoires de l’innovation dans les services: vers un enrichissement des taxonomies evolutionnistes. Économies et Sociétés, v. 33, n. 5, p. 143-169, 1999., 2002GALLOUJ, F. Innovation in services and the attendant old and new myths. Journal of Socio-Economics, v. 31, n. 2, p. 137-215, 2002.). Sobre esse ponto, Bogliacino e Pianta (2016BOGLIACINO, F.; PIANTA, M. The Pavitt taxonomy, revisited: Patterns of innovation in manufacturing and services. Economia Politica: Journal of Analytical and Institutional Economics, v. 33, n. 2, p. 153-180, 2016.) apresentam uma revisão da taxonomia, abrangendo manufatura e serviços, bem como atividades de tecnologia da informação e comunicação.
Feitas essas considerações, com base na tipologia descrita anteriormente e utilizando o conceito de valor da transformação industrial (VTI),4 4 Conforme a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o valor da transformação industrial (VTI) corresponde à diferença entre o valor bruto da produção industrial (VBPI) e o custo com as operações industriais (COI). o Gráfico 4 informa sobre a evolução da estrutura produtiva da economia brasileira entre 1996 e 2019, conforme a participação dos setores industriais com tecnologia no VTI (desconsidera-se, portanto, os produtos primários).5 5 A agregação foi realizada com base nos dados da Pesquisa Industrial Anual (PIA), realizada pelo IBGE. Ressalta-se que há entre o período analisado um corte metodológico nos dados. A partir de 2008 a PIA deixou de ser apresentada de acordo com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas 1.0 (CNAE 1.0) e passou a ser divulgada com a nova CNAE 2.0. Com isso, utilizou-se as desagregações de 3 dígitos da CNAE 2.0 e 1.0, de modo a possibilitar um agrupamento harmônico das atividades. Detalhes sobre a compatibilização das atividades e os respectivos enquadramentos na taxonomia de Pavitt podem ser encontrados em Araújo e Peres (2018).
Nota-se no Gráfico 4, que o grupo de atividades intensivas em recursos naturais ampliou significativamente sua participação no VTI do país, haja vista que, em 1996, a participação do grupo era de 35% e, em 2019, foi cerca de 54% do VTI. Além de representar o progresso tecnológico nesses ramos produtivos e a abundante disponibilidade de matéria-prima básica como principal fator de competitividade, o crescimento parece estar intimamente ligado aos picos de preços das commodities energéticas e minerais observados na última década no mercado internacional, além, obviamente, da forte demanda dos países asiáticos por esses produtos.
Por outro lado, verifica-se que o setor intensivo em escala, que era, em 1996 e 1997, um dos setores de maior contribuição no VTI do país, representando cerca de 33% deste, teve sua participação reduzida gradativamente nos anos subsequentes, registrando, em 2019, valor inferior a 25%.
Já o setor de indústrias intensivas em P&D teve a sua participação no VTI total do país reduzida quase à metade, passando de 8% em 1996 para 4,4% em 2019. As indústrias intensivas em trabalho, por sua vez, reduziram sua participação de 13,6% no início do período para 9,8% ao final do período. Por fim, o setor de fornecedores especializados, embora tenha assinalado 10% do VTI em 1996, seguiu tendência de queda, representando 7,5% em 2019.
Em síntese, a análise da estrutura do valor da transformação industrial segundo parâmetros tecnológicos, evidencia mudanças importantes, especialmente, nos extremos dos setores industriais. Em uma ponta, a indústria intensiva em recursos naturais vem ampliando significativamente sua importância no valor da transformação industrial, superando o peso relativo do setor intensivo em escala e ficando bem próxima da metade do total da indústria. Na outra ponta, a indústria intensiva em ciência segue perdendo espaço.
No que se refere à participação desses setores na pauta brasileira de exportações e importações no período de 1993 a 2020, nota-se que, enquanto o setor industrial intensivo em recursos naturais tem mantido sua elevada participação no valor das exportações, os produtos primários ampliaram significativamente sua parcela em detrimento dos outros setores industriais (Gráfico 5).
Pela ótica das importações, são os produtos de média-alta e alta intensidade tecnológica que têm sua participação relativa aumentada. Nos últimos anos, observa-se um comportamento simétrico, isto é, enquanto as exportações de produtos primários e de produtos industriais intensivos em recursos naturais têm representado mais de 70% do total, os produtos industriais intensivos em economias de escala, tecnologia diferenciada e ciência têm correspondido a cerca de 70% do total importado (Gráfico 6).
Em suma, os dados recentes da estrutura de comércio exterior brasileira evidenciados na presente pesquisa não podem ser vistos com otimismo. As características estruturais das trocas do país e, consequentemente, de parte relevante da restrição externa revelam uma sistemática tendência à concentração, pelo lado das exportações, em mercados de baixa elasticidade-renda e baixo dinamismo tecnológico, enquanto, pelo lado das importações, nota-se um enrijecimento da pauta com acréscimo das importações em setores tecnologicamente mais dinâmicos.
À luz do exposto anteriormente, torna-se claro que a especialização nos segmentos de menor valor agregado e que possuem uma baixa elasticidade-renda de suas demandas é preocupante para o comércio exterior do país. Mesmo que se evite afirmar categoricamente que existe um processo de “especialização regressiva” da indústria brasileira, não se pode deixar de considerar que a atual dinâmica comercial contribui para a constituição de um quadro no qual a capacidade de geração de divisas por meio do comércio exterior seja altamente dependente da trajetória dos preços de commodities primárias e produtos intensivos em recursos naturais. A maior dependência em relação a esses produtos, cujos preços e volume exportado são mais sensíveis à conjuntura internacional, implicam uma elevação da vulnerabilidade externa estrutural do país na esfera comercial, além do já referido entrave ao crescimento econômico sustentado no longo prazo.
COMENTÁRIOS FINAIS
Este paper analisou a temática da desindustrialização, tendo como pano de fundo a heterogeneidade setorial da manufatura, isto é, os diferentes graus tecnológicos das atividades produtivas que determinam diferentes padrões de industrialização/desindustrialização. Buscou-se neste cenário avaliar os diferentes padrões de (des)industrialização para a economia mundial, além de uma análise específica para a economia brasileira, no período entre 1993 e 2020.
Foi possível observar que, nas últimas décadas, o setor manufatureiro se caracterizou por notável heterogeneidade de trajetórias, seja quando avaliado em termos da dinâmica regional e do grau de desenvolvimento dos países, seja em termos dos níveis tecnológicos das atividades manufatureiras. Embora a contribuição do setor manufatureiro ao valor adicionado total da economia tenha, em média, se mantido relativamente constante, notou-se que os países de renda alta, de fato, não se desindustrializaram, pelo contrário: elevaram ligeiramente sua participação, enquanto, nos países de média e baixa, esta participação declinou, ainda que para algumas regiões tenha se elevado, como foi o caso do leste asiático e Pacífico e sul da Ásia.
No que se refere à participação relativa do emprego industrial no emprego total da economia, observou-se que, em média, este se reduziu mais nas economias avançadas, queda que parece ter sido mais acentuada nas atividades de baixa tecnologia, refletindo provavelmente a produtividade maior da indústria manufatureira. Também nas economias em desenvolvimento esse fenômeno se repetiu, todavia, de modo diferente: a queda foi mais pronunciada nas atividades de baixa tecnologia na região do leste asiático, ao passo que, nas demais regiões do globo, essa proporção se mostrou praticamente inalterada em termos dos diferentes setores tecnológicos. No caso brasileiro, contudo, além de um acentuado processo de desindustrialização, notou-se uma queda relativa do valor adicionado e do emprego nos segmentos industriais de alta tecnologia, associada a uma concentração cada vez maior das exportações de produtos primários e intensivos em recursos naturais, e uma dependência cada vez maior de importações de manufaturados de média e alta tecnologia.
Em suma, observou-se que a estrutura produtiva nas economias desenvolvidas, além de um pequeno grupo de países em desenvolvimento, notoriamente do leste/sudeste asiático, tem se concentrado cada vez mais em atividades tecnologicamente mais sofisticadas, embora as atividades de baixa tecnologia ainda respondam, em média, por parte importante do valor adicionado do setor manufatureiro. Assim, nota-se que nas últimas duas décadas e meia, o gap tecnológico entre as economias em desenvolvimento e desenvolvidas aumentou. Os países desenvolvidos consolidaram sua liderança, enquanto a maior parte das economias em desenvolvimento, entre elas o Brasil, experimentou não apenas um processo de desindustrialização, como a concentração das atividades produtivas industriais em setores intensivos em tecnologias de menor valor agregado. Isso é um fator que permite explicar a crescente disparidade no crescimento médio da produtividade entre as economias desenvolvidas e em desenvolvimento, em geral.
E neste cenário, se a mudança estrutural - entendida como uma mudança da extração de matérias-primas e atividades do setor primário para processos de transformação técnica cada vez mais complexos - constitui uma importante força motriz do desenvolvimento econômico, as tendências recentes observadas para a maioria das economias em desenvolvimento e, destacadamente, o Brasil, sinalizam na atualidade sérios desafios à promoção do crescimento inclusivo e sustentado dessas economias no longo prazo.
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1
A classificação dos níveis tecnológicos da Unido é baseada nos gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) incorridos na produção de bens manufaturados. As indústrias manufatureiras com maior intensidade de P&D são consideradas indústrias de alta tecnologia. A intensidade de P&D refere-se à razão entre os gastos com P&D e uma medida de produção, geralmente o valor adicionado bruto. A partir da a Classificação Internacional Normalizada Industrial de Todas as Atividades Econômicas (International Standard Industrial Classification of All Economic Activities - ISIC), Revisão 3, a 2 dígitos, os níveis tecnológicos são agrupados como segue: a) Baixa tecnologia - Alimentos e bebidas (15) e Produtos de tabaco (16), Têxteis (17), Vestuário, peles (18) e Couro, produtos de couro e calçados (19), Produtos de madeira (excl. móveis) (20), Papel e produtos de papel (21), Impressão e publicação (22), Mobiliário; Fabricação de produtos diversos não especificados anteriormente (36) e Reciclagem (37); b) Média tecnologia - Coque, produtos petrolíferos refinados, combustível nuclear (23); Produtos de borracha e plástico (25); Produtos minerais não metálicos (26); Metais básicos (27); Produtos fabricados de metal (28); c) Alta tecnologia (inclui média-alta tecnologia) - Produtos químicos (24); Máquinas e equipamentos, n.e. (29) e Máquinas de escritório, contabilidade e informática (30); Máquinas e aparelhos elétricos (31) e Equipamentos de rádio, televisão e comunicação (32); Instrumentos médicos, de precisão e óticos (33); Veículos a motor, reboques, semirreboques (34) e Outros equipamentos de transporte (35). Para uma discussão sobre a classificação da Unido, também em relação à classificação da OCDE baseada em gastos com P&D. UNIDO, 2021UNIDO - UNITED NATIONS INDUSTRIAL DEVELOPMENT ORGANIZATION. INDSTAT2. Industrial statistics database. Vienna: United Nations, 2021. Disponível em: Disponível em: https://stat.unido.org/ . Acesso em: 23 jan. 2023.
https://stat.unido.org/... . -
2
Além de outros citados neste trabalho, destaca-se aqui, por exemplo, Reinert (1999REINERT, E. S. The role of the state in economic growth. Journal of Economic Studies, v. 26, n. 4/5, p. 268-326, 1999.), que observa que um aspecto comum a todas as estratégias bem-sucedidas de catching-up adotadas pelos países atualmente industrializados está no adiamento da adoção de práticas de livre-comércio, até que essas nações tenham desenvolvido vantagens comparativas nas atividades econômicas “certas” (aquelas baseadas em capacitações e conhecimento, não em recursos naturais).
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3
Ver Bogliacino e Pianta (2016BOGLIACINO, F.; PIANTA, M. The Pavitt taxonomy, revisited: Patterns of innovation in manufacturing and services. Economia Politica: Journal of Analytical and Institutional Economics, v. 33, n. 2, p. 153-180, 2016.) para uma revisão sobre a taxonomia de Pavitt.
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4
Conforme a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o valor da transformação industrial (VTI) corresponde à diferença entre o valor bruto da produção industrial (VBPI) e o custo com as operações industriais (COI).
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5
A agregação foi realizada com base nos dados da Pesquisa Industrial Anual (PIA), realizada pelo IBGE. Ressalta-se que há entre o período analisado um corte metodológico nos dados. A partir de 2008 a PIA deixou de ser apresentada de acordo com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas 1.0 (CNAE 1.0) e passou a ser divulgada com a nova CNAE 2.0. Com isso, utilizou-se as desagregações de 3 dígitos da CNAE 2.0 e 1.0, de modo a possibilitar um agrupamento harmônico das atividades. Detalhes sobre a compatibilização das atividades e os respectivos enquadramentos na taxonomia de Pavitt podem ser encontrados em Araújo e Peres (2018ARAUJO, E. C.; PERES, S. C. Política cambial, estrutura produtiva e crescimento econômico: Fundamentos teóricos e evidências empíricas para o Brasil no período 1996-2012. Análise Econômica, v. 36, p. 67-107, 2018.).
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CLASSIFICAÇÃO JEL: L16; L60; F63; O25.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
28 Out 2021 -
Aceito
10 Jan 2023