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Pela pluralidade da psicanálise: Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe e Andrea Carvalho

RESENHA

Pela pluralidade da psicanálise. Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe e Andrea Carvalho. São Paulo: Estação Liberdade, 2014, 392 p.

Ana Patitucci

Psicanalista, membro do Depto de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; doutora pela PUC-SP. anapatitucci@hotmail.com

O título do prefácio que abre Psicanálise entrevista faz jus ao conteúdo que o leitor encontrará ao longo das suas páginas: nelas se abre "um convite ao pensamento livre". Organizado por Mara Selaibe e Andrea Carvalho, o livro reúne entrevistas realizadas durante os 25 anos da revista de psicanálise Percurso, publicada pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Segundo as organizadoras, a coletânea não foi concebida originalmente para o aniversário da publicação, mas podemos considerar que veio à luz em momento oportuno, de modo a dar sequência aos eventos comemorativos ocorridos no final de 2013. Afinal, as entrevistas são um retrato da linha editorial da revista, revelando a qualidade de seu trabalho.

Renato Mezan, coordenador editorial da Percurso e responsável pelo prefácio do livro, destaca que o conjunto das entrevistas "faz surgir um panorama fascinante" na medida em que se evidenciam as "tradições diversas" que compõem o cenário da psicanálise atual (p.9). Tal panorama, registrado em 35 entrevistas, tomará forma em dois volumes: o primeiro já está disponível ao público e o segundo se encontra no prelo.

Neste primeiro volume reúnem-se 18 autores, em cuidadosa edição, na qual há uma breve apresentação de cada um deles - com a data, o local em que a mesma se realizou e o nome dos entrevistadores. No final da obra, encontra-se um índice onomástico. Entre os entrevistados, 17 são psicanalistas que representam diferentes correntes teórico-clínicas, brasileiros e estrangeiros, cujas produções se estendem de 1950 até os dias de hoje. Para citar alguns, aí encontramos Jurandir Freire Costa, J.-B. Pontalis, Jean Laplanche, Joyce McDougall, Monique Schneider. A décima oitava entrevista é de Sérgio Paulo Rouanet, o único pensador deste volume que não é psicanalista, embora grande estudioso da obra freudiana, com vários livros publicados sobre o assunto.

Cada entrevista é uma porta de entrada ao pensamento do entrevistado, o que torna a coletânea interessante para um público amplo: para o leigo interessado no tema, para o pesquisador de áreas afins e para o psicanalista. Ao conhecermos o percurso de formação e o pensamento dos autores, vemos surgir, com as narrações, a própria história da psicanálise pós-freudiana, em seus diversos segmentos. Aqui, a clínica continua a ter seu lugar privilegiado, pois, falada de forma explícita ou não, ela é o fundamento a partir do qual se constrói e alimenta a teoria, num processo dialético com ela. É constante a presença do olhar crítico sobre a cultura contemporânea.

O que se desvela então, ao longo do livro, é que, na letra dos pós-freudianos, a psicanálise continua a seguir a herança deixada por seu fundador e produz clínica, teoria e análise da cultura. Todos os autores partem de uma origem comum, a obra freudiana, ao reconhecê-la como referência para o desenvolvimento de seu próprio repertório conceitual teórico-clínico. Para eles, não se trata de superar Freud, mas sim trabalhar as insuficiências, lacunas e limites de seu pensamento, tal como aponta André Green: "Penso que é preciso trabalhar sobre ela [obra de Freud] a partir do que a história do pensamento psicanalítico pós-freudiano nos trouxe e a partir dos desafios que a clínica contemporânea nos lança" (p.59). Assim, são temas recorrentes: a formação do analista, o desenvolvimento metapsicológico, a importância da psicanálise como prática terapêutica, sua relação com o campo político-social, com a psiquiatria, as problematizações e o lugar da psicanálise em nossa cultura.

Desvela-se também a importância da interface da psicanálise com a filosofia e a política, no sentido de que estas oferecem um repertório poderoso para a formação do analista e para a construção e reflexão teórica e clínica. O intercâmbio de ideias entre a psicanálise e outras ciências ou campos do saber é valorizado e pensado como uma das formas de se evitar o fechamento da psicanálise em si mesma e a formação de igrejas - fatos responsáveis por um dogmatismo deletério e paralisante da criatividade do psicanalista. Assim, o relato de Jean Oury nos dá o testemunho de como o encontro entre a psicanálise, a psiquiatria, a filosofia e a política produziram trabalhos fecundos e de referência, como a psicoterapia institucional e a formação de La Borde, na França. Marcelo Viñar, a partir de sua experiência na ditadura uruguaia, retrata como a política se apresenta na clínica e como pensar os efeitos e as possibilidades de elaboração de situações de violência social, tal como aquelas vivenciadas na guerra ou em regimes de exceção, como os regimes militares na América do Sul. Trata-se de uma contribuição importante para a discussão de um tema que está na ordem do dia, neste momento em que se rememoram os 50 anos do golpe militar no Brasil.

As entrevistas se abrem, portanto, para um diálogo com o leitor, contribuindo para pensarmos a clínica que praticamos, as instituições nas quais nos inserimos, a formação que seguimos, o pensamento que podemos construir em nome próprio. Mas isso ainda não é tudo.

É possível uma leitura transversal do livro, na medida em que os relatos abrem também um diálogo entre os próprios entrevistados, amplificando as questões que cada um deles tematiza e a riqueza de um "campo pluralista marcado por diferenças", como se refere Joel Birman (p.270). Nesse ponto emerge, por exemplo, a psicanálise que detém um conhecimento sobre o psiquismo humano e questiona, com olhar crítico, o nosso tempo, como vemos em Chaim S. Katz: "O que têm os psicanalistas a dizer, a não ser que os humanos se destinam ao mal-estar e que se deva evitar os atalhos (prometidos pelos biopsíquicos) para diminuí-lo?" (p.261). Sua interrogação pode ser articulada ao modo como Sílvia Alonso coloca a problemática da contemporaneidade na clínica, em geral pensada com a preocupação de compreender a formação das novas subjetividades e dos novos sintomas face às transformações da sociedade. Ela inverte essa problemática ao colocar o analista, e não a análise ou o paciente, no centro da reflexão. Alonso alerta que pensar sobre as novas disposições sintomáticas e as novas subjetividades é importante, mas não suficiente. É necessário refletir também sobre os efeitos desse contexto cultural na posição e no modo de clinicar do analista, pois ele é parte dessa mesma cultura.

A evidência dessa colocação de Alonso me levou a pensar, então, no quanto temos discutido sobre o uso, cada vez mais frequente e indiscriminado, dos medicamentos e de seus efeitos no cotidiano de nossa clínica. Em contrapartida, e é isso que tem me chamado a atenção, é raro pensarmos sobre a clínica de um analista que usa medicação: quais são as implicações para sua escuta e para a transferência? E, em última instância, quais são as implicações no rumo da própria psicanálise, dado que esta tem, desde a sua fundação, um "lugar excêntrico" em relação às demandas correntes do indivíduo e da sociedade, como lembra Joel Birman (p.280)?

Esse é apenas um exemplo das muitas questões que são suscitadas pela leitura prazerosa de Psicanálise entrevista , v.1, cuja qualidade maior é mostrar uma psicanálise que, com uma base comum, se caracteriza atualmente pela pluralidade e, consequentemente e a despeito da comentada crise que a cerca, continua muito viva, interessante e produtiva.

Recebida em 2/6/2014

Aprovada em 27/6/2014

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2014
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