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O encontro Lacan-Foucault entre a crítica, a interlocução e a resistência

Lacan e Foucault: conjunções, disjunções e impasses , por Birman, Joel; Hoffmann, Christian. . São Paulo: Instituto Langage e Universidade Paris Diderot, 2017, 192 p.

Seria preciso buscar uma ideia completamente outra, alhures, em outro domínio, de tal forma que entre as duas alguma coisa se passa que não está nem em uma nem em outra. Ora, essa outra ideia a gente, geralmente, não encontra sozinho, é preciso um acaso ou que alguém a dê a você. (DELEUZE; PARNET, 1996DELEUZE, G.; PARNET, C. Dialogues. Paris: Flammarion, 1996., p. 16).

Em 27 de maio de 1978, logo depois de uma viagem ao Japão, Foucault daria na Société Française de Philosophie uma conferência sem título, que se construiria em torno de uma questão. O que é a crítica?, perguntaria, interrogando-se sobre o que deve ser esse “projeto que não cessa de se formar, de se prolongar, de renascer nos confins da filosofia, sempre perto e contra ela, às suas custas, em direção a uma filosofia por vir” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique, suivi de la culture de soi. Paris: Vrin , 2015., p. 34). Depois de quase dez anos de ter abordado ali, naquela mesma sociedade, uma outra questão - O que é um autor? -, ele proporia analisar dessa vez a importância e o lugar da crítica de Kant no que tange aos limites do conhecimento, mas também de que modo essa crítica não pode ser dissociada de uma análise do presente.

Ora, se a empreitada de Kant endereçava ao saber a seguinte questão - Até onde é possível conhecer? -, essa problematização só foi possível porque no limiar da modernidade se tornou preciso se perguntar: quem somos nós? Seria necessário ver na crítica, além da determinação dos limites do conhecimento, a caracterização de uma atitude propriamente moderna que se interroga: O que se passa hoje, na atualidade? O que podemos saber? O que devemos fazer? O que nos é permitido esperar? (FOUCAULTFOUCAULT, M. Introduction à l’anthropologie de Kant (1961). Paris: Vrin, 2008., 1961/2008, p. 68-69).

De fato, se FoucaultFOUCAULT, M. Qu’est-ce que les Lumières? (1984) In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, v. 4. Paris: Gallimard , 1994. (1984/1994, p. 577), de maneira explícita, identificou o seu projeto teórico a uma tradição que, desde Kant, formula que “a crítica do que somos é, ao mesmo tempo, uma análise histórica dos limites que nos são impostos e uma prova de seu ultrapassamento possível”, o psicanalista francês, Jacques Lacan, em momento algum de seu percurso o considerou como um inimigo da psicanálise (BIRMAN; HOFFMANN, 2017BIRMAN, J.; HOFFMANN, C. Lacan e Foucault: conjunções, disjunções e impasses. São Paulo: Instituto Langage e Universidade Paris Diderot, 2017., p. 58). Percorrendo nada mais, nada menos do que as três principais décadas em que essa interlocução se deu, isto é, de 1950 a 1980, o livro Lacan e Foucault, de Joel Birman e Christian Hoffmann , pretende demonstrar, através de uma elaboração densa e sistemática, a especificidade das conjunções, das disjunções e dos impasses desse encontro. Para tanto, seria preciso, com efeito, abandonar uma leitura ingênua a respeito do “que representa a crítica” e do que significa “a diferença de posições teóricas no campo intelectual”, e identificar, entre as bordas dos discursos de ambos os autores, o que está em jogo na construção e na enunciação de suas diferentes problemáticas.

Como já se assinalara alhures (BIRMAN, 2010BIRMAN, J. A problemática da verdade na psicanálise e na genealogia. Tempo psicanalítico, v. 42, n. 1. Rio de Janeiro, 2010, p. 183-202. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v42n1/v42n1a10.pdf >. Acesso em: 2 jul. 2018.
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, p. 184), Lacan era mais velho que Foucault; ele pertencia a uma geração anterior, de forma que, quando Lacan defendia a sua tese de doutorado em 1932, Foucault tinha apenas 6 anos. Logo, o sentido dessa interlocução se deu, evidentemente, no começo, de Lacan para Foucault.

Interessado desde o início na elaboração filosófica francesa em torno da epistemologia regional, Foucault participou assiduamente dos primeiros seminários de Lacan, bem como se familiarizou com sua produção teórica escrita. Foi por essa via que rapidamente a psicanálise apareceu em seus estudos sobre os saberes do psiquismo. Haveria, com efeito, na importância dada por Lacan ao “fenômeno da loucura”, e isso para a compreensão do que deveria ser o “ser mesmo do homem” (LACAN, 1946/1966, p. 154), bem como na designação do “limite da morte”, como sendo uma “possibilidade absolutamente própria, incondicional, intransponível, certa e como tal indeterminada do sujeito” (LACAN, 1953/1966, p. 318), elementos fundamentais para a elaboração em FoucaultFOUCAULT, M. Introduction à l’anthropologie de Kant (1961). Paris: Vrin, 2008. (1961/1994, p. 159-160) de uma História da Loucura na Idade Clássica, assim como para a centralidade que adquiriu o problema da finitude em sua arqueologia da clínica médica. Se “da experiência da Desrazão nasceram todas as psicologias”, “dos cadáveres abertos de Bichat ao homem freudiano, uma relação obstinada com a morte prescreve ao universal sua face singular” (FOUCAULT, 1963FOUCAULT, M. Naissance de la clinique: une archéologie du regard médical. Paris: PUF, 1963., p. 201-202).

Inversamente, foi Lacan quem, por sua vez, rompeu o silêncio com que a recepção francesa da tese de Foucault estivera marcada. Ao indicar em seu Breve discurso aos psiquiatras, de 1967, como Foucault demonstrou “de maneira magnífica a mutação essencial que resulta do momento em que os loucos [...] são tratados do modo que chamamos de humanitário, a saber, confinados”, e isso para definir aquilo que identificou como “posição psiquiátrica”, Lacan (1967/1981, p. 491-492) fez questão de assinalar, para a sua surpresa, a inexistência de qualquer comentário ou resenha a respeito do livro de Foucault em uma revista sequer de psiquiatria da época. Se, para Lacan, com efeito, era importante retomar a história da loucura para falar do que deveria ser a “formação do psicanalista”, ele já havia, com efeito, alguns anos antes, em 1964, quando abordara Os quatro conceitos fundamentais, retomado a noção de transgressão desenvolvida por Foucault, para caracterizar esse conceito “de tão difícil acesso” que seria o de pulsão (LACAN, 1964/1973, p. 22). Se, de fato, “o que caracteriza a sexualidade moderna”, segundo FoucaultFOUCAULT, M. Naissance de la clinique: une archéologie du regard médical. Paris: PUF, 1963. (1963/1994, p. 233), é “não ter encontrado [...] a linguagem de sua razão ou de sua natureza, mas sim ter sido, pela violência dos discursos, ‘desnaturalizada’, lançada num espaço vazio, encontrando apenas a forma tênue de um limite”, “o caminho da pulsão”, por sua vez, se constituía, para Lacan (1964/1973, p. 205), como sendo “a única forma de transgressão possível ao sujeito em relação ao princípio do prazer”. Seria apenas no limite de um gozo, segundo Lacan (1964/1973, p. 205), que se poderia entrever a emergência daquilo que em psicanálise se designaria por “sujeito da pulsão”.

Mas além dos momentos de conjunção entre esses dois autores, Joel Birman e Christian Hoffman apresentam, de maneira franca e direta, momentos em que esse encontro se caracterizou por disjunções e por impasses. Com efeito, a partir dos anos 1970, com os estudos de Foucault sobre a emergência da delinquência e a caracterização que fez dos sistemas de punição e de vigilância na modernidade, mas, sobretudo, com sua leitura da história de sexualidade, sua análise histórica da psicanálise se tornou cada vez mais crítica.

Longe de se revelar apenas como o móvel daquilo que no início do século XIX se caracterizaria, contra Aristóteles, por uma relação estreita entre a linguagem e o real no domínio da ética (LACAN, 1959-1960/1986, p. 21-22), Bentham seria o inventor, segundo Foucault (1975FOUCAULT, M. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard , 1975.), de um modelo arquitetônico exemplar que, aplicado a diferentes lugares de vigilância (fábricas, usinas, hospitais e escolas), definiria uma forma de exercício de poder inexistente na pré-modernidade. Através de um sistema de visibilidade organizado em torno dessa casa de inspeção do Panóptico, seria possível determinar de que modo a constituição de uma sociedade disciplinar atuaria sob a forma da objetivação dos indivíduos e de sua distribuição segundo um sistema de utilidades.

Em relação à sexualidade, igualmente. A substituição da repressão pelo recalque ou a compreensão de um desejo constituído pela lei não seria suficiente para destituir em psicanálise uma leitura jurídica do poder (FOUCAULT, 1976FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité: la volonté de savoir, v. 1. Paris: Gallimard, 1976., p. 107-120). Para entender como um dispositivo de sexualidade atuou na modernidade sob a forma da produção das subjetividades, seria preciso conceber que a palavra não é tanto a morte da coisa (LACANLACAN, J. D’un Autre à l’autre (1968-1969). Paris: Seuil, 2006. (Le séminaire, 16)., 1953/1966, p. 319), mas que a coisa só pode ter existência real e efetiva na história, na medida em que é situada no ponto de cruzamento de uma injunção discursiva e uma implantação perversa. “A causalidade no sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio desconhece, tudo isso só foi possível se desenvolver no discurso do sexo” (FOUCAULTFOUCAULT, M. Histoire de la sexualité: la volonté de savoir, v. 1. Paris: Gallimard, 1976., 1976, p. 94).

Mas foi certamente em torno das noções de linguagem e de discurso que a interlocução entre Lacan e Foucault encontrou sua maior proficuidade, nos diferentes momentos em que se desenvolveu. Primeiro em FoucaultFOUCAULT, M. Propos sur la causalité psychique (1946). In: FOUCAULT, M. Écrits. Paris: Seuil, 1966. (1966, p. 385-398): com a formalização de um “inconsciente estruturado como uma linguagem” em LacanLACAN, J. D’un Autre à l’autre (1968-1969). Paris: Seuil, 2006. (Le séminaire, 16). (1966, p. 868), a psicanálise, juntamente com a antropologia estrutural de Lévi-Strauss, produziria na modernidade uma relação estreita do pensamento com o impensado. Depois em Lacan (apudFOUCAULTFOUCAULT, M. Préface à la transgression (1963). In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, v. 1. Paris: Gallimard , 1994., 1969/1994, p. 820-821): identificando-se com a hipótese de que a psicanálise deve ser uma discursividade, e isso porque se define por um movimento de “retorno a Freud”; o psicanalista escreveria no quadro de seu seminário De um Outro ao outro: “A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACANLACAN, J. D’un Autre à l’autre (1968-1969). Paris: Seuil, 2006. (Le séminaire, 16)., 1968-1969/2006, p. 11). Se é preciso se perguntar “O que acontece com o discurso chamado discurso psicanalítico”, quando se formula uma “regra de pensamento que tem que se assegurar do não-pensamento como aquilo que pode ser a sua causa”?, é pela incidência daquilo que é fora-de-sentido em psicanálise que essa prática da estrutura não coincide com a redutibilidade do discurso à fala (LACANLACAN, J. D’un Autre à l’autre (1968-1969). Paris: Seuil, 2006. (Le séminaire, 16)., 1968-1969/2006, p. 11-14).

Por essa via e para Foucault (2015FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique, suivi de la culture de soi. Paris: Vrin , 2015., p. 114), menos como ciência, a psicanálise se aproximaria de uma experiência ética (LACANFOUCAULT, M. L’éthique de la psychanalyse (1959-1960). Paris: Seuil, 1986. (Le séminaire, 7)., 1959-1960/1986, p. 9). Longe de praticar o hermetismo ou o terrorismo intelectual, como pretendiam seus críticos, e querendo simplesmente ser “psicanalista”, Lacan gostaria que a leitura de seus textos fosse, além de uma simples “tomada de consciência” de suas ideias, um trabalho do sujeito consigo mesmo (FOUCAULT, 1981FOUCAULT, M. Petit discours de Jacques Lacan aux psychiatres (1967). In: FOUCAULT, M. Petits écrits et conférences. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1981./1994, p. 205).

Mas se esse encontro foi durante muito tempo entrevisto, conforme os autores do livro, pelo antigo e ultrapassado argumento da resistência à psicanálise:

[Esse argumento] deve ser inteiramente banido do cenário psicanalítico, pois a comunidade psicanalítica de todas as colorações deve não apenas apreender a conviver com as críticas ao discurso psicanalítico, como também se valer delas para poder avançar e tornar assim mais complexo e rico seu discurso teórico, no contexto epistemológico e histórico do campo interdisciplinar. (BIRMAN; HOFFMANN, 2017BIRMAN, J.; HOFFMANN, C. Lacan e Foucault: conjunções, disjunções e impasses. São Paulo: Instituto Langage e Universidade Paris Diderot, 2017., p. 17).

Seria preciso analisar, como sugeriu DerridaDERRIDA, J. Résistances de la psychanalyse (1991). Paris: Galilée, 1996. (1991/1996), um outro tipo de resistência, dessa vez, resistência da psicanálise em relação àquilo que se manifesta como outro e diferente de seu discurso; seria preciso analisar se o que está do outro lado e “que resiste à análise não resiste também ao conceito psicanalítico de ‘resistência à análise’” (DERRIDADERRIDA, J. Résistances de la psychanalyse (1991). Paris: Galilée, 1996., 1991/1996, p. 13).

Referências

  • BIRMAN, J. A problemática da verdade na psicanálise e na genealogia. Tempo psicanalítico, v. 42, n. 1. Rio de Janeiro, 2010, p. 183-202. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v42n1/v42n1a10.pdf >. Acesso em: 2 jul. 2018.
    » http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v42n1/v42n1a10.pdf
  • BIRMAN, J.; HOFFMANN, C. Lacan e Foucault: conjunções, disjunções e impasses. São Paulo: Instituto Langage e Universidade Paris Diderot, 2017.
  • DELEUZE, G.; PARNET, C. Dialogues Paris: Flammarion, 1996.
  • DERRIDA, J. Résistances de la psychanalyse (1991). Paris: Galilée, 1996.
  • FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité: la volonté de savoir, v. 1. Paris: Gallimard, 1976.
  • FOUCAULT, M. Introduction à l’anthropologie de Kant (1961). Paris: Vrin, 2008.
  • FOUCAULT, M. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard , 1966.
  • FOUCAULT, M. Naissance de la clinique: une archéologie du regard médical. Paris: PUF, 1963.
  • FOUCAULT, M. Préface (1961). In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, v. I. Paris: Gallimard , 1994.
  • FOUCAULT, M. Préface à la transgression (1963). In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, v. 1. Paris: Gallimard , 1994.
  • FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique, suivi de la culture de soi Paris: Vrin , 2015.
  • FOUCAULT, M. Qu’est-ce que les Lumières? (1984) In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, v. 4. Paris: Gallimard , 1994.
  • FOUCAULT, M. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard , 1975.
  • LACAN, J. D’un Autre à l’autre (1968-1969). Paris: Seuil, 2006. (Le séminaire, 16).
  • FOUCAULT, M. Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse (1953). In: FOUCAULT, M. Écrits Paris: Seuil, 1966.
  • FOUCAULT, M. La science et la vérité. In: FOUCAULT, M. Écrits Paris: Seuil, 1966.
  • FOUCAULT, M. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Paris: Seuil, 1973. (Le séminaire, 11).
  • FOUCAULT, M. L’éthique de la psychanalyse (1959-1960). Paris: Seuil, 1986. (Le séminaire, 7).
  • FOUCAULT, M. Petit discours de Jacques Lacan aux psychiatres (1967). In: FOUCAULT, M. Petits écrits et conférences Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1981.
  • FOUCAULT, M. Propos sur la causalité psychique (1946). In: FOUCAULT, M. Écrits Paris: Seuil, 1966.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2017
  • Aceito
    20 Dez 2017
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