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Uma análise do caso Dora à luz dos quatro discursos lacanianos1 1 Este artigo é um recorte da dissertação intitulada Os lugares ocupados pelo caso Dora nos quatro discursos lacanianos, pesquisa que teve como objetivo analisar o caso Dora de Freud (1905) à luz dos quatro discursos lacanianos.

An analysis of Dora’s case in the light of Lacan’s four discourses

Resumo:

Este artigo busca analisar fragmentos do caso Dora, de Freud, a partir dos quatro discursos lacanianos. Para isso, apresentamos alguns conceitos psicanalíticos que compõem a teoria dos quatro discursos, para depois desenvolver cada um dos matemas estabelecidos por Lacan. No caso Dora, analisamos alguns episódios descritos por Freud, mas também teorizações de outros psicanalistas acerca do tema. Concluímos que novas leituras de casos clínicos são possíveis a partir da noção dos quatro discursos, uma vez que nos apontam para os modos com que o sujeito se relaciona com o Outro no laço social.

Palavras-chave:
Psicanálise; os quatro discursos lacanianos; o caso Dora

Abstract:

This article analyzes parts of Dora’s case, by Freud, based on Lacan’s four discourses. We present some concepts from psychoanalysis that form the four discourses theory, and develop each one of Lacan’s matemas. In Dora’s case, we analyze some of the episodes Freud described, as well as other authors’ theoretical contributions on the subject. The study concludes that it is possible to understand the clinical cases from other perspectives when based on the notion of the four discourses theory, since it leads to the ways the subject relates to the Other in social interactions.

Keywords:
Psychoanalysis; Lacan’s Four Discourses; Dora’s Case

Introdução

Os quatro discursos lacanianos constituem uma tentativa de simbolizar, por meio dos matemas, a relação (im)possível entre o sujeito e o outro de cada discurso. De acordo com Souza (2008SOUZA, A. Os discursos da psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008.), o discurso obedece a uma condição que vem fazer limite entre o real e o simbólico, mobilizando uma estrutura que sustenta um significado específico a partir da relação entre os quatro lugares possíveis para cada discurso.

Ao conceituar os quatro discursos, Lacan faz uma descoberta, deixando claras as formas de discurso existentes no laço social. A noção de discurso como um tipo de liame social está ancorada entre dois lugares distintos, o do sujeito e o do outro significante, sendo que, entre eles, não há interlocução ou produção de diálogo. O que define a identidade de cada discurso não são as palavras, mas a posição ocupada por seus termos (SOUZA, 2008SOUZA, A. Os discursos da psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008.).

Cada discurso estabelecido por Lacan é demonstrado, e cada matema tem uma estrutura específica, formulada por meio da coordenação de quatro símbolos - S1, S2, $, a -, que ocupam quatro lugares fixos: agente, saber, produção e verdade. Cada discurso, de resto, é produzido a partir da rotação horária de um quarto de giro desses quatro símbolos pelos quatro lugares disponíveis. A sequência lógica dos símbolos é mantida inalterada. Como resultado, surgem quatro matemas: o Discurso da Psicanálise (DP), o Discurso do Universitário (DU), o Discurso do Mestre (DM) e o Discurso da Histérica (DH). Observa Darmon (1994DARMON, M. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.) que Lacan foi buscar na operação de permutação circular, conceito conhecido na matemática e na teoria dos grupos, a base para obtenção dos seus quatro discursos. Nesse tipo operação, como se sabe, nenhuma comutação é possível.

A formulação dos quatro discursos tem como ponto de partida o Discurso do Mestre. O início da constituição de seu matema repousa na operação de alienação do significante (FINK, 1998FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.). Esse primeiro momento é representado pela seguinte notação: S1 ( S2. Nela, S1 é chamado de significante mestre, e S2, por sua vez, é a cadeia de significantes que representa o significante primordial (S1). A essa operação Lacan nomeou de Metáfora Paterna. O trajeto S1 ( S2 tem como efeito o surgimento do sujeito. Como afirma Lacan, “um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante” (LACAN, 1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 807-842., p. 833).

Isto posto, tem-se até o momento a seguinte elaboração: S1 $ ( S2. No entanto, algo se perde dessa operação. Tal resto - chamado por Lacan de objeto a - é o que cai no nível do ato fundamental da existência do sujeito. Esse aspecto de resto refere-se à dimensão do objeto como vazio, portanto, como um lugar de pura falta que não permite ser totalmente satisfeito, e, por isso, impulsiona o sujeito a buscar substitutos do objeto desde sempre perdido. É a crença na existência desse objeto que possibilita a entrada do sujeito na linguagem. Enfim está formado o matema que representa o Discurso do Mestre e a matriz que irá constituir os outros três discursos. Sua representação algébrica é:

Os símbolos que transitam entre os lugares fixos definidos por Lacan foram produzidos a partir do Discurso do Mestre e têm o mesmo significado, não importando a posição que ocupem no matema. Sendo assim, tem-se S1 - o significante-mestre; S2 - o saber; $ - o sujeito; a - o objeto a.

Segundo Darmon (1994DARMON, M. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.), além de fundar o ponto de partida para a constituição dos demais discursos, o Discurso do Mestre organiza os lugares fixos que cada símbolo irá ocupar. Acrescenta Coutinho Jorge (2002)COUTINHO JORGE, M. A. Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 17-32. que tais lugares são escritos por Lacan por meio de dois binômios interligados por uma seta:

O agente, na perspectiva de Lacan (2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 17)), não é forçosamente aquele que faz, mas aquele a quem se faz agir. O lugar do agente determina, por seu dito, a ação (LÉRÈS, 1999 apud COUTINHO JORGE, 2002COUTINHO JORGE, M. A. Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 17-32.). O lugar do saber, também referido por Lacan como o campo do Outro, é o lugar visado pelo agente e movido por seu dito. De acordo com Villela Dias (2008VILLELA DIAS, M. G. L. Do gozo fálico ao gozo do outro. Ágora: Estudos em teoria psicanalítica, v. 11 n. 2, 2008. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982008000200006 . Acesso em:29 mar. 2019.
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), o agente é aquele que, mobilizado por sua verdade, ao intervir no campo do Outro, coloca-o a trabalhar e recebe, sob o nome de mais-de-gozar, a sua produção. Como bem nota Darmon (1994DARMON, M. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.), o mais-de-gozar é constituído por essa perda, que opera de forma homóloga ao conceito de mais-valia de Marx. Com base nessa articulação, o resto representa a produção de uma perda que não retorna ao trabalhador, visto que o excedente (mais-valia) fica para o dono dos meios de produção. Em termos psicanalíticos, essa perda é representada pelo objeto a, que, no laço social, busca restituir parcialmente o gozo perdido.

Assim, o mais-de-gozar é o resultado dessa operação pelo qual um significante (S1) intervém no campo dos outros significantes articulados entre si (S2), tendo como efeito um sujeito dividido ($). A verdade é aquilo que o agente tenta esconder do outro, pois ela revela o real de sua estrutura. Acessível apenas pelo semi-dito, a verdade sustenta o discurso, mas nunca se mostra por inteira, pois é sempre uma meia-verdade.

Segundo Lacan (2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 17)), há um contraste entre a primeira e a segunda linhas de cada discurso. A primeira, indicada por uma flecha, é qualificada como uma relação impossível. De acordo com Villela Dias (2008VILLELA DIAS, M. G. L. Do gozo fálico ao gozo do outro. Ágora: Estudos em teoria psicanalítica, v. 11 n. 2, 2008. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982008000200006 . Acesso em:29 mar. 2019.
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), todo discurso é definido como a forma particular de um sujeito estabelecer um laço social com o outro. No entanto, nesse laço vigora uma impossibilidade radical, considerada um fato de estrutura1 2 Em Lacan, a noção de estrutura rompe com o conceito desenvolvido pelos estruturalistas. Neste, a estrutura está ligada à ideia de totalidade, que recusa o sujeito (exterior) a fim de manter a suposta completude. Para a psicanálise lacaniana, a estrutura assume um caráter antinômico e incompleto, pois não recua frente ao real, operando a partir do impossível e da castração. Segundo Martinho (2012), “o real tem como estatuto o impossível e se inscreve na estrutura sob a forma de um buraco, que comparece como furo real no imaginário e como falta de Um significante no simbólico” (MARTINHO, 2012, p. 124). . A chave dessa relação impossível situa-se na segunda linha, onde não existe comunicação entre produção e verdade. De acordo com Elia (2002ELIA, L. O ‘Avesso da Psicanálise’ e a formação do psicanalista. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 33-41.), a função da verdade, associada à impotência, é encobrir a impossibilidade. Nas palavras de Lacan (2007)LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 17), a impotência cobre a mais sutil impossibilidade.

O objeto a, representado pela produção, é aquilo que garante a impossibilidade entre o agente e o Outro. Tal produção não tem, em qualquer caso, relação com a verdade. Toda impossibilidade nos deixa em suspense quanto à sua verdade, como se essa impotência, situada entre os lugares da produção e da verdade, fosse uma proteção da verdade do agente. Não é por acaso que Lacan (2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 17)) conclui que a verdade é irmã do gozo. Isso porque, quando tomada pelo sujeito como objeto de amor, a verdade entorpece o apaixonado e encobre todas as incidências do impossível do real em sua experiência (ELIA, 2002ELIA, L. O ‘Avesso da Psicanálise’ e a formação do psicanalista. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 33-41.).

Segundo Coutinho Jorge (2002)COUTINHO JORGE, M. A. Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 17-32., os quatro discursos propostos por Lacan recobrem as três atividades caracterizadas por Freud (1937/2006FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 225-270. (Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23)) como as profissões impossíveis: Regieren, Erziehen, Analysieren, quer dizer, governar, educar e analisar. Mas, o que é impossível na relação entre o agente e o Outro? Lacan (1969-1970/2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 17)) não nega a existência de uma articulação entre esses dois significantes, mas adverte que todo resultado obtido dessa operação será parcial, isso porque é no plano do impossível que se define o que é real, um lugar inapreensível, posto que está sempre inacabado.

Lacan formula algebricamente a escrita dos quatro discursos, visando deixar clara a estrutura que determina as enunciações elementares produzidas pelo sujeito. De acordo com Coutinho Jorge (2002)COUTINHO JORGE, M. A. Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 17-32., seguindo as próprias indicações de Lacan, pode-se afirmar que o Discurso da Psicanálise veio não só introduzir uma nova forma de laço social, mas também possibilitar que os outros discursos pudessem ser isolados. É o Discurso da Psicanálise que permite a inscrição congruente dos outros discursos com ele mesmo (DARMON, 1994DARMON, M. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.). Por essa razão, tomaremos o Discurso da Psicanálise como referência principal para estabelecer a leitura dos demais discursos.


Discurso da Psicanálise:

O analista, ao ocupar o lugar de agente do DP, opera sob a forma de objeto a, fazendo semblante de objeto causa do desejo do analisante. Essa função desempenhada pelo analista, segundo Villela Dias (2008VILLELA DIAS, M. G. L. Do gozo fálico ao gozo do outro. Ágora: Estudos em teoria psicanalítica, v. 11 n. 2, 2008. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982008000200006 . Acesso em:29 mar. 2019.
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), possibilita uma dupla face: de um lado, a de impossibilidade, decorrente da perda originária, que causa o desejo do sujeito; de outro, na função de suplência, o mais-de-gozar, na produção de maneiras de tamponar a falta no Outro.

Essa posição ocupada pelo analista aciona o sujeito a dizer o que ele próprio sabe, sem saber que sabe. Mesmo na posição de agente do discurso, ele deve se opor a “toda vontade, pelo menos confessada, de dominar” (LACAN, 1969-1970/2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 17), p. 66). Por isso, Lacan afirma que o Discurso da Psicanálise é o avesso do Discurso do Mestre, posto que é o mestre que impõe ao outro o seu domínio. O DP é o único laço social que dá ao outro um lugar de sujeito, sem pretensões de impor um saber ou uma verdade a ser seguida. O analista que sustenta o Discurso da Psicanálise o faz a partir de uma ética que lhe é própria, a ética do desejo, aquela que aposta na possibilidade de cada um, um por um, poder inventar algo que seja bom para si e que lhe permita, ao mesmo tempo, estar no laço social com os outros.

O sujeito, ocupando o lugar do Outro (trabalho), interroga-se acerca de seu desejo a partir das associações que produz livremente. Essa produção conduz o sujeito a ter contato com os significantes primordiais da sua própria história e a reorganizá-los.

O saber (S2), que ocupa o lugar da verdade, está subordinado ao objeto causa de desejo. A verdade que se propõe à psicanálise é aquela que diz respeito à revelação de um real do sujeito (analisante) por meio da queda do objeto a. Verdade e saber não são definições e tampouco lugares homônimos no matema psicanalítico. Há uma impossibilidade estrutural que protege a verdade, uma vez que ela é o que não se pode dizer, restando apenas semi-dizê-la. O saber da psicanálise é um saber que toca o impossível, e que, no lugar da verdade, interpela o sujeito sobre sua posição frente ao Outro (CASTRO, 2009CASTRO, J. E. Considerações sobre a escrita lacaniana dos discursos. Ágora: Estudos em teoria psicanalítica, v. 12n. 2, 2009. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982009000200006 . Acesso em:29 mar. 2019.
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). De acordo com Villela Dias (2008VILLELA DIAS, M. G. L. Do gozo fálico ao gozo do outro. Ágora: Estudos em teoria psicanalítica, v. 11 n. 2, 2008. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982008000200006 . Acesso em:29 mar. 2019.
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), o saber no lugar da verdade é um saber disjunto, produzido pelo sujeito em questão.


O Discurso do Mestre:

O matema fundador da descoberta lacaniana dos quatro discursos apresenta, na posição dominante de sua estrutura, o significante-mestre, o significante não-senso. Essa nomenclatura, significante não-senso, refere-se, segundo Fink (1998FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.), ao efeito da relação entre S1 (mestre) ( S2 (Outro), em cujos termos o mestre deve ser obedecido; não porque o outro irá se beneficiar com isso, mas porque ele assim o diz.

Segundo Lacan (2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 17)), o saber no DM está no plano do escravo. Ele trabalha para o senhor sem receber o produto de sua labuta, mas, em contrapartida, encarna o próprio saber como algo produtivo. O escravo goza por possuir um saber que o mestre não possui. No entanto, o senhor não se preocupa com o saber, mas com a produção (mais-valia). Esse excedente (mais-de-gozar), derivado da atividade do trabalhador mas direcionado ao mestre, não tem relação alguma com a verdade. Isso indica um furo no discurso: não se pode extrair, tanto do produto quanto da produção, qualquer verdade subjetiva. De acordo com Villela Dias (2008VILLELA DIAS, M. G. L. Do gozo fálico ao gozo do outro. Ágora: Estudos em teoria psicanalítica, v. 11 n. 2, 2008. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982008000200006 . Acesso em:29 mar. 2019.
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), o mestre sempre tenta esconder a sua verdade. Que verdade? A de que ele, assim como o escravo, também é castrado.


O Discurso do Universitário:

No Discurso do Universitário, o lugar do outro, representado pelo estudante, ou nas palavras de Lacan (1969-1970/2007) pelo a-estudante - com o que ele faz menção ao objeto a - é destituído de qualquer saber singular. Sua função reduz-se a reproduzir o saber do mestre.

Segundo Coutinho Jorge (2002), o outro do DU produzirá um sujeito racional, conforme o saber que o produziu. O sujeito gerado pelo DU é o produto de um resto, uma vez que deriva do mais-de-gozar e ocupa a posição de reprodução do saber. O a-estudante, após a sua relação com o saber, dá lugar ao sujeito da repetição, que tem como função retornar ao saber primeiro sem quaisquer mudanças que poderiam desestruturá-lo. Num primeiro momento, esse sujeito produzido pelo a-estudante parece um sujeito sem furos, uma vez que é preenchido por um saber universal, quase sempre sustentado por uma instituição. Porém, de acordo com Quinet (2009QUINET, A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.), o laço de educar produz, ao tratar o outro como objeto, o sujeito patológico, e não o sujeito pleno.

O saber como agente do DU é a autoridade máxima que interroga o mais-de-gozar, que ocupa o lugar do outro no discurso, trabalhando, segundo Fink (1998FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.), a serviço do significante-mestre, a partir do qual qualquer tipo de argumentação servirá, contanto que ela assuma o disfarce da razão. O saber, segundo Souza, “é recolhido sob a forma de um conhecimento organizado e cumulativo, capaz de converter-se até mesmo numa burocracia” (SOUZA, 2008SOUZA, A. Os discursos da psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008., p. 143). Do lugar de dominante, o saber dirige-se ao outro na tentativa de educá-lo, mas, à diferença do que se anuncia, estabelece com o a-estudante uma relação de interesse.

Segundo Quinet (2009QUINET, A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.), o lugar da verdade de cada discurso revela aquilo que se encontra velado nos laços sociais. Lacan aponta que há um imperativo tirânico no ato de educar, representado pelo significante-mestre que ocupa o lugar da verdade no DU. Esse significante mostra a lei do mestre no processo de ensino-aprendizagem, que se apresenta como imperativo de um saber único. Para que isso transcorra bem, o outro (a-estudante) não pode colocar esse saber universal em dúvida, como se supõe que o sujeito dividido o faria. O saber do DU não pode ser confrontado ou gerar críticas; ele tem que ser unânime.


O Discurso da Histérica:

Segundo Elia (2002ELIA, L. O ‘Avesso da Psicanálise’ e a formação do psicanalista. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 33-41.), aquilo que o mestre esconde - e que constitui a sua verdade -, a histérica expõe como agente do seu discurso: a castração. A histérica sabe o segredo do mestre, mas paga com o seu sintoma por esse saber. De acordo com Quinet (2009QUINET, A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.), o dominante do Discurso da Histérica é o sintoma, “que é produzido pela recusa da coerção exigida pelo acesso à vida sexual, da penosa renúncia que ela impõe” (MELMAN, 1996MELMAN, C. Sintoma. In: KAUFMAN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 478-479., p. 478). É por não querer renunciar que a histérica faz do Outro o seu mestre, uma vez que, assim, não corre o risco de fracassar.

Na posição de dominância, o sujeito convoca o Outro, representado pelo significante-mestre, a produzir um saber sobre o seu sintoma. A histérica demanda que o mestre mostre sua substância por meio da produção legítima em termos de saber (FINK, 1998FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.). No entanto, o saber produzido pelo mestre não interessa à histérica: sua demanda é um engodo cuja finalidade é ocultar a sua verdade. Dito de outra forma, a histérica elege um mestre não para admirá-lo, mas para destituí-lo. Essa é a verdade da histérica: produzir a insatisfação do seu desejo, já que o desconhece e está sempre em busca de não encontrá-lo.

Assim que a histérica passa a considerar que falta saber ao mestre, ou que este não tem todas as respostas, uma dimensão de falta-ao-saber invade o sujeito dividido e é sentida por este como uma angústia de desamparo do significante do pai. Tal é o paradoxo da estrutura histérica: ao mesmo tempo em que elege um mestre para amar, ela também deseja destituí-lo desse lugar idealizado, pois sabe que o mestre é castrado e que este só lhe serve enquanto garantir a insatisfação do seu desejo. Nas palavras de Lacan, a histérica “quer um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina, e ele não governa” (LACAN, 1969-1970/2007, p. 136).

O desejo da histérica não está na sua demanda, mas num outro lugar. Por isso, o suposto saber do mestre não é suficiente, uma vez que o que de fato importa é um outro tipo de saber, chamado por Freud de saber inconsciente. Foi a partir dessa compreensão que Freud pôde fundar a psicanálise, pois identificou nas histéricas um saber que não se sabe, que está para além das palavras e que carrega um indizível acerca do seu desejo.

Na análise do caso Dora, o esforço despendido pela jovem paciente para manter o seu desejo insatisfeito é o grande mobilizador da trama amorosa. A fim de evitar ocupar um lugar ativo frente às suas questões, Dora mantém sem resposta a pergunta sobre o seu desejo. O enigma sobre os sexos - o que é uma mulher? - é mantido em suspense, impedindo que a jovem implique-se na sua condição de sujeito desejante.

Análise do caso Dora

A análise desenvolvida a seguir tem um caráter experimental e por vezes paradoxal, dadas as diferentes perspectivas que construímos para um único relato. O objetivo da análise foi identificar possíveis leituras do caso Dora que nos ajudem a compreendê-lo a partir de uma nova ferramenta: os quatro discursos lacanianos.

Referindo-se à célebre paciente de Freud, Katz (1992KATZ, C. S. S. Freud, ‘o caso Dora’ e a histeria. In: KATZ, C. S. A histeria, o caso Dora: Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 11-99.) afirma que o analista “prestou menos atenção ao relato de Dora, pois tinha uma opinião pré-concebida a respeito de sua síndrome e procurou encaixá-la no caso” (KATZ, 1992KATZ, C. S. S. Freud, ‘o caso Dora’ e a histeria. In: KATZ, C. S. A histeria, o caso Dora: Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 11-99., p. 50). Freud almejava uma vitória do amor nos moldes de um romance vitoriano, que confere ao processo analítico um tom de confissão, na medida em que o seu saber está marcado como algo que antecede o relato. Isso resulta, dirá Lacan (1951/1998LACAN, J. Intervenção sobre a transferência (1951). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 214-225.), de um preconceito de Freud com relação ao laço homossexual que unia Dora à sra. K.

Freud encarna o significante-mestre no discurso histérico de Dora, conduzindo o caso a partir do Discurso do Mestre. Preso a seus preconceitos, Freud não compreendia por que Dora não aceitava a corte do sr. K., visto que era um homem bem-apessoado; ou por que ficava enjoada quando outros homens faziam-lhe galanteios. Para transcender essas questões, Freud teria que escutar Dora em toda a sua singularidade. Contudo, como fazer isso ocupando o lugar de mestre? Tomando o matema do DM, propomos as seguintes substituições para essa primeira leitura:

O mestre exerce sobre o outro um controle que o faz produzir em causa própria, como no caso da insistência de Freud em apontar o sr. K. como o objeto amoroso de Dora, sugerindo o caminho que a jovem deveria tomar para a resolução de seus sintomas. Entretanto, sabemos que o mestre é uma fachada que sustenta um lugar de aparência para ocultar a sua verdade: a castração.

Freud tenta conduzir o caso ocupando a posição de bom mestre, que irá colocar a sua paciente no bom caminho. No entanto, a psicanálise não é uma teleologia, em que se possa identificar a presença de metas em sua prática. O analista não deve aspirar nem o bem nem o mal para o analisante, mas trabalhar para a construção de uma verdade, que não é a verdade do analista, mas a do sujeito do inconsciente do analisante. Foi por desejar o bem de Dora que Freud não a escutou, fechando-se para os significantes que estavam para além de suas palavras. O preconceito ocupa o lugar da verdade, pois é aquilo que Freud tenta ocultar, mas lhe escapa no discurso.

Naquele tempo, Freud ainda não havia compreendido a dimensão bissexual presente nas histéricas, e toma as questões de Dora como um drama edípico clássico: o da jovem moça que “por amar intensamente o seu pai, estava impedida de passar para outro homem” (MARISCAL, 1992MARISCAL, D. L. Dora e o discurso histérico. In: KATZ, C. S. A histeria, o caso Dora: Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 209-218., p. 215). Contudo, a resistência em reconhecer que Dora desejava apenas os presentes do sr. K. era de Freud. Como no seu primeiro sonho, deslocado na figura da mãe, o que importa para Dora não é a joia, mas a caixinha; ela só goza com a envoltura e não com o órgão, por isso, o que lhe importa é a garantia que o Outro é impotente, que não irá avançar além do cortejo, conservando o seu desejo insatisfeito.

Até o episódio do lago, o discurso de Dora operava em cooperação com os demais; suas queixas eram direcionadas unicamente a sua mãe, enquanto a família K. e seu pai eram investidos de amor e admiração. Foi só após o incidente com o sr. K., enquanto caminhavam à margem do lago, que Dora rompeu com os lugares até então estabelecidos, e caiu visivelmente enferma. Analisaremos o discurso de Dora antes da cena do lago. Para isso, vamos utilizar o Discurso da Histérica e pensar os lugares ocupados por cada integrante da trama amorosa.

O DH é marcado por um paradoxo na relação entre o sujeito e o significante mestre. Ao mesmo tempo em que a histérica aliena-se a um mestre, ela também o convoca a produzir um saber sobre si. Segundo Coutinho Jorge, “no lugar da dominante do Discurso da Histérica, o $ (sujeito) tem valor de sintoma que pede decifração e, para tal, ela se dirige ao mestre, S1” (COUTINHO JORGE, 2002COUTINHO JORGE, M. A. Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 17-32., p. 30). É desse lugar de sintoma que Dora lança-se ao pai e ao sr. K., como uma criança em busca de saber e compreensão.

O mestre da histérica deve ser um teórico, e não um atuador. Enquanto o sr. K. serviu-se apenas de palavras gentis para flertar com Dora, não colocando em risco sua inocência, a relação entre os dois era fluida, pois os sentidos produzidos nesse discurso garantiam o lugar passivo de Dora. No entanto, segundo Lacan (1951/1998LACAN, J. Intervenção sobre a transferência (1951). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 214-225.), o sr. K. teve apenas que dizer algumas palavras decisivas - minha mulher não significa nada para mim - para Dora dar-lhe uma bofetada, introduzindo uma nova configuração no discurso. Ao tentar promover Dora do lugar de menina para o de mulher desejada, o sr. K. é destituído do lugar de mestre, já que não representa mais a garantia da passividade do seu desejo, mas uma ameaça.

Se a sra. K. não é nada para o sr. K., o que Dora significa para ele? Freud toma essa questão acentuando o lugar do sr. K., e a interpreta como o momento em que Dora compreende o seu verdadeiro lugar na trama amorosa, o de objeto de permuta do pai com relação a condescendência do sr. K. Mas por que a frase do sr. K. desestabilizou tanto Dora se desde a sua adolescência ela já o aceitara? Porque o sr. K. só tem valor para Dora ao demonstrar o seu desejo pela sra. K., o verdadeiro objeto de amor de Dora. Foi o lugar de mulher ocupado pela sra. K. que foi questionado. Antes, Dora acreditava que tanto o pai quanto o sr. K a desejavam, mas a verdade é que apenas o pai, que sofria de impotência sexual, tinha interesse na sra. K. A cena do lago é fundamental para a compreensão do caso, pois possibilita, primeiro, a reordenação dos lugares no discurso, e, depois, a diferenciação entre o objeto de identificação e o objeto de amor de Dora (MARISCAL, 1992MARISCAL, D. L. Dora e o discurso histérico. In: KATZ, C. S. A histeria, o caso Dora: Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 209-218.).

Dora não deixou de amar o sr. K. por conta de sua atitude no lago, como propõe Freud. Isso seria um paradoxo, já que sua investida era justamente para produzir um romance com a jovem. Na realidade, não houve uma decepção amorosa porque não havia amor. Lacan (1951/1998LACAN, J. Intervenção sobre a transferência (1951). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 214-225.) nos esclarece justamente onde Freud vacila em sua interpretação. Segundo o psicanalista francês, Dora, identificada com o sr. K., interessa-se pela sra. K. Ou seja, “é do lugar do homem que Dora se dirige à mulher com a interrogação: que é uma mulher? A partir dessa identificação, as relações com os homens manifestam agressividade, na qual não podemos deixar de ver a dimensão narcísica” (MARISCAL, 1992MARISCAL, D. L. Dora e o discurso histérico. In: KATZ, C. S. A histeria, o caso Dora: Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 209-218., p. 215).

Para Freud, se o sintoma é o retorno do recalcado, o sintoma histérico deverá ser considerado, na mulher, como o retorno da sexualidade masculina de sua infância. Segundo André (1998ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.), essa tese freudiana, publicada em 1909 em suas Considerações gerais sobre o ataque histérico, é a primeira tentativa de Freud de estabelecer uma teoria do recalque feminino, um movimento, contudo, ainda submetido à sexualidade masculina.

Essa identificação viril com os homens coloca Freud na mesma cadeia significante que o sr. K. E, como Freud assume uma posição de mestre frente ao tratamento, o Discurso da Histérica reina sem que o analista muitas vezes se questione sobre o seu lugar. Prova disso é a resposta de Dora à insistente interpretação de Freud sobre o seu amor reprimido ao sr. K. Ao final de uma sessão, Dora conclui com um tom bem diferente do esperado por Freud: não saiu grande coisa, diz ela. E é no início da sessão seguinte que Dora abandona Freud, assim como fez com o sr. K.

Durante as sessões com Dora, Freud transita por outros lugares no discurso, deslocando-se, por vezes, do lugar de mestre. Como em todo processo analítico, o psicanalista pode vir a ocupar outros lugares além do esperado (objeto a). No entanto, tal oscilação deve ser uma exceção ao longo do trabalho; caso contrário, pode significar alguma resistência do analista na condução do tratamento. Segundo Lacan (2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 17)), o analista pode circular pelos quatro discursos, desde que o faça como analista.

Há uma passagem no caso, bastante conhecida, em que Freud ocupa o lugar de objeto causa de desejo [a]. Logo no início do tratamento, Dora começa a se queixar de seu lugar de objeto de permuta, do quanto é vítima desse caso amoroso do pai com a sra. K. Escutando a enunciação, Freud oferece a Dora um lugar de sujeito dividido quando lhe pergunta: disso tudo que te queixas, qual é a parte que te concerne? É somente depois dessa intervenção, e do efeito que ela provoca na paciente, que podemos situar Dora no lugar não mais de sintoma, mas de sujeito dividido, implicado com a singularidade de sua história. Propomos a seguinte configuração no Discurso do Analista para analisarmos a inversão dialética produzida por Freud no discurso de Dora:

É só na condição de causa de desejo que Freud pode escutar os deslizes, as equivocações, os outros sentidos produzidos pela cadeia significante do discurso de Dora. Sem impor nenhuma verdade, o analista se abstém do lugar do mestre, possibilitando, nessa escuta, que o próprio analisante produza um saber sobre si. Verificando uma contradição entre o dizer de Dora e sua posição no discurso, Freud, ao relançar a palavra, instiga a jovem paciente a falar, a fim de tocar em algo do seu desejo, na questão: disso tudo que te queixas, qual é a parte que te concerne?

Segundo Souza, o silêncio do analista, predicado do lugar de objeto causa de desejo [a], “possibilita ao analisante [$], [...] interrogar seu desejo e fazer cada vez uma outra leitura disso que se realiza em ato, como formação do inconsciente” (SOUZA, 2008SOUZA, A. Os discursos da psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008., p. 148). Esse é o movimento de Freud quando questiona Dora sobre as suas queixas. Notem que, nesse momento, Freud se diferencia do pai de Dora e do sr. K., pois não assume o lugar de mestre, mas o de analista.

Por isso, “pode-se ler igualmente no discurso da psicanálise o desejo do analista, definido por Lacan como o desejo de obter a diferença absoluta - entenda-se, a posição radical do sujeito barrado” (COUTINHO JORGE, 2002COUTINHO JORGE, M. A. Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In: RINALDI, D.; COUTINHO JORGE, M. A. Saber, Verdade e Gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2002, p. 17-32., p. 30). O desejo do analista é um conceito que deve ser associado à própria ética da psicanálise. Lacan vincula o desejo do analista à figura de Sócrates - em particular, o Sócrates do Banquete -, pois articula o desejo do psicanalista com a questão do amor de transferência. Trata-se então, segundo Rabinovich, “do desejo como desejo do Outro, desejo do Outro que é o objeto do desejo” (RABINOVICH, 2009RABINOVICH, D. S. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009., p. 13).

A partir do Seminário 8, A transferência, Lacan vai delineando as coordenadas que o analista deve seguir para ocupar o seu lugar, “o qual se define como aquele que ele deve oferecer vago ao desejo do paciente para que se realize como desejo do Outro” (LACAN, 2010LACAN, J. A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Zahar, 2010. (O seminário, 8), p. 137). Esse lugar próprio do analista é fundamental para o exercício da psicanálise, pois é somente a partir dele que se pode produzir, em cada sujeito, o mínimo de liberdade. Sem isso, a prática psicanalítica se torna mera fraude.

Segundo Rabinovich, “o psicanalista deve oferecer um vazio, deixar livre o lugar do próprio desejo” (RABINOVICH, 2009RABINOVICH, D. S. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009., p. 14), que não deve estar ocupado por um objeto particular, do sujeito que opera a função de analista. Definido como um vazio, como um lugar onde algo poderá se instalar, o desejo do analista visa a singularidade do sujeito, aquilo que em cada falante é único.

Dora chega ao consultório de Freud levada pelo pai, que já o conhecia desde 1896, quando o procurou, indicado pelo já amigo sr. K., para tratar uma sífilis. O historiador Borch-Jacobsen, em seu livro Os pacientes de Freud: destinos (2012), nos apresenta algumas informações interessantes acerca dos bastidores desse caso, uma delas é o nome real da analisante, Ida Bauer. Segundo Borch-Jacobsen (2012), uma carta encontrada pelos pais - em que Dora falava sobre suicídio - não é a única e talvez nem a mais importante razão que a levou a se tratar com Freud. O que estava realmente em jogo eram suas frequentes cobranças para que o pai se afastasse da família K. O pai estava esgotado, não sabia como lidar com os sintomas de Dora. Foi nessa conjuntura que se dirigiu a Freud, para que este “curasse a filha da ‘doença’ e lhe tirasse da cabeça todas essas embaraçosas ‘ficções’ a respeito do sr. e da sra. K.” (FREUD, 1905/2006FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 15-116. (Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7), p. 78).

Assim, supomos que o tratamento da jovem Dora é uma tentativa engendrada pelo pai de restituir a filha ao lugar passivo e amoroso com relação ao seu romance com a sra. K. Isto é, Dora entra em análise com Freud já ocupando o lugar de objeto, cuja função seria reproduzir um saber determinado por um professor, que, no caso, seria Freud. Para o pai, o que importava era submeter a filha a um outro lugar no discurso, não mais o de contestadora, mas o de complacente. Como no Discurso do Universitário, o pai de Dora confere a Freud a educação de sua filha, com a condição de que ele a eduque a partir dos seus interesses pessoais. Propomos matematizar o discurso com o qual Dora entra em análise a partir do Discurso do Universitário:

A tentativa do pai de Dora é fazer com que Freud, ocupando o lugar de saber, instruísse a filha a não mais interferir em seu romance com a sra. K. Segundo Souza, “no Discurso Universitário, o saber já se constitui como algo que é dado pela intervenção do mestre e, desse lugar de dominância, busca controlar o ‘objeto’ de gozo” (SOUZA, 2008SOUZA, A. Os discursos da psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008., p. 144). Dora é levada para análise para ser educada; essa é a demanda e a verdade do pai. No entanto, o que Freud tenta instaurar é outra coisa.

Prova disso foi quando Dora comunicou ao pai sobre sua saída da análise, e este não se opôs à decisão da filha, “pois compreendera que Freud não estava disposto a tornar-se cúmplice de sua ligação com a sra. K” (BORCH-JACOBSEN, 2012BORCH-JACOBSEN, M. Os pacientes de Freud: destinos. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2012., p. 79). Contudo, já não seria mais possível ao pai de Dora interferir na decisão da filha, pois, naquele momento, ele já perdera todo o controle sobre ela. É Dora quem reina sobre o pai-mestre.

Freud escuta a demanda do pai e as queixas de Dora, mas, a rigor, busca estabelecer, a partir dos seus próprios interesses, o seu método psicanalítico para conduzir o tratamento. Segundo Lacan, “Freud está bastante advertido da constância da mentira social para ser por ela enganado, mesmo vindo da boca de um homem que ele considera como lhe devendo uma confiança total” (LACAN, 1951/1998LACAN, J. Intervenção sobre a transferência (1951). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 214-225., p. 91).

Retomando o Discurso da Histérica, mas sob a perspectiva da feminilidade presente na relação entre Dora e a sra. K., André (1998ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.) destaca que Freud insiste na interpretação de que Dora não reconhecia que amava o sr. K., quando, na verdade, ela amava e desejava a sra. K. E que, ademais, esse amor dirigido à sra. K. não estava relacionado à pessoa em si, mas ao enigma incitado. Era a representação da mulher, amada e desejada pelo pai, que produzia em Dora a seguinte questão: que objeto precioso essa mulher contém?

Privada pela mãe dos significantes que portam as marcas do feminino, Dora reivindica o amor paterno, mas o pai, impotente, substitui, segundo Roitman, “o falo imaginário pela circulação de presentes e favores no quadrilátero amoroso” (ROITMAN, 1992ROITMAN, A. Procura,dora. In: KATZ, C. S. A histeria, o caso Dora: Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 177-183., p. 181). Aceitando o lugar de cúmplice da relação entre o pai e a amante, Dora, que até o momento ocupava o lugar de filha de pais impotentes, produz um lugar entre o amor de seu pai e o daquela, que segundo Dora, representava o mistério da feminilidade: a sra. K. Assim, “Dora invejava a sra. K. por possuir o amor de seu pai, e contrariamente invejava o seu pai pelo amor dessa mulher” (MARISCAL, 1992MARISCAL, D. L. Dora e o discurso histérico. In: KATZ, C. S. A histeria, o caso Dora: Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 209-218., p. 214).

Tomando o matema do DH, propomos a seguinte formulação acerca das relações entre Dora e a sra. K.:

Dora busca ter um saber sobre a feminilidade justamente para evitá-la. O saber, nesse caso, assegura o lugar passivo de Dora frente ao seu desejo. A histérica mantém-se num lugar entre o ser e o ter, evitando a passagem do lugar de menina desejante para o de mulher desejada. Notem que todos que tentaram produzir essa passagem em Dora foram vetados, pois manter o seu desejo insatisfeito é manter-se num lugar infantil, à espera dos pais. É nessa espera que a histérica exerce sua atividade sexual. Por isso, Dora é cúmplice do romance do pai com a sra. K., uma vez que, assim, afasta-se de suas questões sexuais, deixando-as sob a maestria da sra. K.

Para concluir, acreditamos que, hoje, classificar o caso Dora como um fracasso seria uma injustiça. Sim, Freud cede do lugar de analista frente às demandas de Dora, mas devemos considerar que esse lugar estava sendo descoberto naquela época. Foi Dora quem suscitou os questionamentos de Freud acerca do lugar do analista e da parte que lhe concerne no tratamento: a transferência.

Foi Dora quem ensinou Freud sobre a heterogeneidade do discurso, dos vários sentidos que um enunciado pode assumir; sobre o real sentido da demanda da histérica, que evidencia para Freud um saber não sabido, confirmando sua noção de inconsciente. Ao destituir Freud do lugar de mestre, Dora ensina-lhe que a escuta do analista deve estar além das palavras plenas, nas suas equivocações, naquilo que não foi dito.

A partir do caso Dora, verificamos que o discurso, lugar que o sujeito ocupa na relação com o outro, é uma prática em movimento. Na análise do caso, pudemos apontar os vários sentidos que uma mesma relação pode assumir. Essa articulação é importante, pois evidencia que, ao longo do processo analítico, analista e analisante podem ocupar diferentes lugares no discurso. Esse trânsito não sinaliza necessariamente um entrave na direção do tratamento. O que pode comprometê-lo é a adesividade a um ou outro discurso que não o da psicanálise.

REFERENCIAS

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    » http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982008000200006
  • 1
    Este artigo é um recorte da dissertação intitulada Os lugares ocupados pelo caso Dora nos quatro discursos lacanianos, pesquisa que teve como objetivo analisar o caso Dora de Freud (1905FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 15-116. (Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7)) à luz dos quatro discursos lacanianos.
  • 2
    Em Lacan, a noção de estrutura rompe com o conceito desenvolvido pelos estruturalistas. Neste, a estrutura está ligada à ideia de totalidade, que recusa o sujeito (exterior) a fim de manter a suposta completude. Para a psicanálise lacaniana, a estrutura assume um caráter antinômico e incompleto, pois não recua frente ao real, operando a partir do impossível e da castração. Segundo Martinho (2012), “o real tem como estatuto o impossível e se inscreve na estrutura sob a forma de um buraco, que comparece como furo real no imaginário e como falta de Um significante no simbólico” (MARTINHO, 2012MARTINHO, M. H. C. A noção de estrutura em psicanálise. In: ELIA, L.; BARROS, R. M. M. Estrutura e Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012, p. 115-125., p. 124).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2019
  • Aceito
    03 Maio 2020
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