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Subjetividade literária

Literary subjectivity

Resumo:

O presente ensaio trata de pensar uma subjetividade literária e, com ela, uma via clínica propícia ao entendimento do conceito de sublime-ação, assim grafado devido à renovação de seu uso. Considera a obra e, em certo sentido, a vida do escritor Wilson Bueno, extraindo de seu entrelaçamento consequências analíticas que trazem, a um mesmo plano de exame, as noções de sublime-ação e sinthoma, esta última tal como é concebida por Lacan. Serão ainda empregados conceitos deleuzianos, nietzschianos e bergsonianos que devem oferecer perspectivas éticas e clínicas de inesperado alcance ao saber analítico.

Palavras-chave:
subjetividade literária; pulsão; sublime-ação; uma vida; extemporâneo

Abstract:

This essay deals with thinking about a literary subjectivity and, with it, a clinical way conducive to understanding the concept of sublime-action, thus spelled due to the renewal of its use. It considers the work and, in a sense, the life of the writer Wilson Bueno, drawing from its intertwining analytical consequences that bring to the same plane of examination the notions of sublime-action and synthoma, the latter as conceived by Lacan. Deleuzian, Nietzschean, and Bergsonian concepts that should offer ethical and clinical perspectives of unexpected scope to analytical knowledge will also be employed.

Keywords:
literary subjectivity; drive; sublime-action; one life; extemporaneous

INTRODUÇÂO

Lacan dizia que a escrita é o desrecalque. Nunca se disse em psicanálise algo tão sucinto e deflagrador. Dedicamo-nos então a pensar o inconsciente sob o signo, muito especialmente, de uma subjetividade literária. Logo definimos linhas de exploração mais aguda, ao assimilarmos a linguagem de um escritor ao que denominamos de língua indígena, aquela que esclarece, analiticamente, dado exercício pulsional. O termo “originário” nos parece adequado para qualificar esse exercício, a ponto de estendê-lo ao que, na teoria, apareceu inicialmente como desvio quanto aos fins, na linhagem - lembremo-nos - das perversões, a saber, a sublimação. Eis a obviedade que resulta dessa pesquisa, e que propomos, no entanto, como problema clínico: a sublimação começa antes e vai muito além das perversões. É, pois, o destino originário da pulsão, seu alvo por excelência. Não há outro sentido para a cura analítica, que se inscreve, eventualmente, como subjetividade literária, ao modo da análise mesma. Não seria preciso dizer que uma tal subjetividade re-quer - associe-se aqui desejo e repetição - o tempo de uma vida.

Fronteiras do tempo

A fronteira é maior, bem maior do que o generoso coração do viajante, mesmo o mais peregrino. 1 1 Do Diário da Fronteira, escrito ainda inédito de Wilson Bueno.

Wilson Bueno, em Mano, a noite está velha, foi além de sua morte:

Passo rente a uma enorme palmeira, alargo o passo, o terror quase orgiástico do punhal na jugular, e súbito. Boa noite, meu! Outra voz, essa com uma sensualidade masculina e jovem, malícia de prostituto pronto ao bote. [...] Escapo, Mano. Mais uma vez escapo - de uma marquise, já me vejo salvo da chuva e da crônica policial... (BUENO, 2011BUENO, Wilson. Mano, a noite está velha. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011., p, 113).

Uma proposição clínica de Deleuze, de acento ético, poderia servir como fio condutor à exploração dos termos vitais de uma subjetividade literária.

Desde que se pensa, se enfrenta necessariamente uma linha onde estão em jogo a vida e a morte, a razão e a loucura, e essa linha nos arrasta. Só é possível pensar sobre essa linha feiticeira, e diga-se, não se é forçosamente perdedor, não se está obrigatoriamente condenado à loucura ou à morte. (DELEUZE, 2000DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 31).

Percorrendo as vias fronteiriças de Meu tio Roseno, a cavalo, onde a escrita múltipla se reúne, escorre e passa, segundo a apresentação de Benedito Nunes, “de lugar a lugar como de língua a língua, no limite entre a lembrança retrospectiva e a percepção comum, reelaboradas pela força da linguagem” (BUENO, 2000BUENO, Wilson. Meu tio Roseno, a cavalo. São Paulo: Editora 34, 2000.), ingressa-se, quase imediata e imperceptivelmente, numa atmosfera alucinógena, da qual não se sairá mais até o fim da cavalgada. É uma atmosfera desterritorializada, de um tempo inatual, anterior ao nascimento do narrador-sobrinho e, no entanto, contemporâneo da subjetividade literária WB. O real se deixa tocar no alto tempo: “sete céus” cadenciam a narrativa, intercalados ainda de “entre-céus”, que são como hiatos na peregrinação e fendas no firmamento, por onde o tempo vaza a alturas inapreensíveis. A fronteira não é apenas o lugar do híbrido, mas também da passagem além do híbrido, a uma espécie de silêncio, estratosfera ou deserto. WB é um grande pesquisador dessas passagens. A ambiguidade sexual de Bueno, mas também seus flertes temerários com a morte, eram expressões provisórias dessa pesquisa remota, à qual acedia mediante o uso soberano (dir-se-ia artificioso e encantatório) de uma língua indígena - a mesma que compõe lapsos e sonhos. É toda uma conquista do inconsciente ou, se preferirmos, da existência. E, como tal, só se verifica em ato, em ato sublimatório, cuja natureza ética requer nada menos que constância. Meu tio Roseno, a cavalo, “ficção sagaz”, segundo Benedito Nunes, é um gênero de fronteira não só pelas transições e mesclas entre o português, o espanhol e o guarani, mas também porque o plano de escrita se estende, como a cavalgada, pelos sete céus e suas fendas. Graduações intensivas da memória. Toda a escrita se produz no intempestivo, a ponto de não se saber mais se ela brota dele ou o faz jorrar. É o desrecalque. Talvez seja o que inspira WB a usar como epígrafe, em Meu tio Roseno, a frase embruxada de Cesar Aira: “Hay sabios antigos que, como vejigas secas e desinfladas, han cabalgado los vientos - y no sabian si era el viento quien los transportava o ellos los que movian al viento” (BUENO, 2000BUENO, Wilson. Meu tio Roseno, a cavalo. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 11).

Designar a pulsão de língua indígena, como fazemos, sem desvio ou mediação, não poderia ter aplicação mais justa que à linguagem de Wilson Bueno, embora retomemos assim a ideia de Proust de que a literatura insinua uma língua estrangeira dentro da língua. Contudo, esse traço estrangeiro ou indígena vale para todas as formações do inconsciente, ali onde se lê a literatura em estado nascente. O tempo desse plano ativo de linguagem faz parte da estranheza. Freud já registrava a coincidência da linguagem onírica com uma temporalidade inatual, antiga e mesmo arcaica, não sem assinalar sua vigência futura, sob o aspecto de uma interpretação interminável. É que o antigo e o arcaico recebem novo influxo do inatual, que é, para situarmos o nível de sua interpretação, o verdadeiro ambiente do sonho, seu solo originário.

Mba’esporomondîihá, engrolava, pitando o cachimbo, bem velha, e bruxa, a Avó índia do tio, bisavó nossa já em germe, mamaguasú, o ovo, a bisavó, a avó de nossa mãe, mamaguasú, o tio no ticavacuá do tempo. Cuñambayé. Ñe’ê. (BUENO, 2000BUENO, Wilson. Meu tio Roseno, a cavalo. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 54).2 2 Mba’esporomondîihá: milagre. Mamaguasú: bisavó materna, a avó da mãe. Ticavacuá: corrente, correnteza. Cuñambayé: bruxa, feiticeira. Ñe’ê: palavra, falar.

A memória ou a rememória se torna assim o elemento imaterial da escrita, imprimindo-lhe, por certo, sua duração. Tudo aqui constitui um único plano de vida ativa, inorgânica. Sua virtude é durar e vencer todos os obstáculos. Univocidade do ser, que não é senão a atividade na qual ele consiste - o caroço ou o coração do ser. A isso, chamamos de imanência. Que WB use uma cadência temporal para Tio Roseno, composta de sete céus e seus intervalos, e faça dessa viagem, em ritmo de cavalgada, uma incursão pela memória, segundo uma geografia ao mesmo tempo real e fictícia, recorda o último escrito de Deleuze, o pequeno artigo denominado A imanência, uma vida.

Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que atravessa este ou aquele sujeito vivo e aos quais certos objetos vividos dão a medida: vida imanente levando consigo os acontecimentos e singularidades que nada fazem senão atualizar-se nos sujeitos e nos objetos. (DELEUZE, 2016DELEUZE, Gilles. Dois regimes de loucos. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 410).

A pulsão foi considerada acéfala por dois motivos: subtrai-se a toda identidade e exige, em contrapartida, seu próprio exercício, sob pena de continuar acéfala. Que espécie de subjetividade - ou de subjetivação - lhe fará justiça? “Roseno é também Rosano, Rosenalvo, Rosenino, Rosemânio, [...] uno e múltiplo, [...] como se cada nome indicasse um estado de alma, a sucessão de lembranças ou o conhecimento do mundo” (BUENO, 2000BUENO, Wilson. Meu tio Roseno, a cavalo. São Paulo: Editora 34, 2000.).3 3 Extraído da apresentação de Benedito Nunes.

O sexto entrecéu, preparo de novo céu, nessa história a cavalo, é entreceú conversador - cavaleiro e cavalgadura, alegres os dois, não importa que a vida teime em ser só agrura, a guerra e o Itacoatiara, o Paranavaí e Andradazil, as fogueiras, as fumaças, os incêndios e as balas, cavayú, Brioso, nosso caváio, o que de estrada a nossa vida andeja, por que caminos? (BUENO, 2000BUENO, Wilson. Meu tio Roseno, a cavalo. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 76).

Os personagens literários são como os personagens conceituais de Deleuze e Guattari, frequentam o intempestivo, entre-tempos, e daí retiram sua virtude, sua força e uma espécie de ubiquidade: devir de todo mundo ou devir do mundo inteiro.

Muita gente até hoje pergunta onde é que nasceu o tio se sabedor destrincha a arenga paraguaya e cioso cavalga dentro o guarani feito fosse a sua pátria, e temos que Rosemundo como que nasceu em todos os lugares... (BUENO, 2000BUENO, Wilson. Meu tio Roseno, a cavalo. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 47-48).

A lógica pulsional envolve uma pesquisa das condições originárias, especialmente no que concerne às escolhas. A pulsão tem ar de fronteira para as instâncias não pulsionais; de seu ponto de vista, porém, não é fronteira. Foi considerada mítica, “meio física e meio psíquica” (GARCIA-ROZA, 1996GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1996., p. 115), mas o que designa não é ficcional, e sim ético. Fronteira significa, segundo aquela lógica, desimpedimento, margem de escolha, terceira margem. À equivocidade do significante, a pulsão opõe a univocidade do afeto e sua direção - que, dada sua implicação ética, chamaremos de retidão pulsional. Seria então preciso situar a twilight zone de Wilson Bueno sob esta perspectiva, a da retidão pulsional, e detectar as forças que ela atende, que ela convoca, e como se fazem ouvir mediante tal linguagem híbrida, experimental. Desde onde começa o empreendimento de Wilson Bueno e onde chega e nunca termina de chegar? E como apesar disso é interrompido? Uma sublime-ação é um exercício de retidão pulsional, a qual se esclarece pela continuidade. Daí a nossa proposição de que a força pulsional, definida como constante por Freud, aspira a uma prática constante. Um continuo sublimatório, unívoco, desterritorializado, é assim uma prática da imanência ou sua conquista sem fim. Não há e nunca houve outro alvo pulsional. Toda a obra de Bueno, com seus incontáveis pontos brilhantes, cristais de tempo, não cessa de testemunhar um desejo de alçar-se da terra, de suas misturas e paixões, conforme a liberdade com que, apesar das leis, ele se serve da linguagem para experimentos de voo.

Trata-se, pois, para quem quer que seja, de atualizar por inteiro o virtual, embora isso nunca termine. O afeto unívoco “atualizado” só é pensável em vista do plano virtual que ele atualiza em certo aspecto, ainda que um afeto possa atualizá-lo por inteiro em determinados casos. Atualização por inteiro do virtual: é o que parece ser a assimilação deleuziana do plano de imanência a uma vida, na medida em que esta, por sua vez, define a imanência (“imanência da imanência”). No escrito já citado de Deleuze, uma vida não se confunde com suas vicissitudes. E, no entanto, a atualização por inteiro do virtual é certamente uma vida. O homem que morreu, de D. H. Lawrence, diz a certa altura: “Era a vida do dia pequeno, a vida da gente pequena. [...] A menos que o englobemos no dia maior, e coloquemos a vida no círculo da vida maior, tudo é desastre” (LAWRENCE, 1990LAWRENCE, David Herbert. Apocalipse, e o Homem que morreu. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 141-142). Trata-se de um modo de ser afetado, desde que não reenviemos o afeto a um sujeito (do cogito ou da representação), mas à força pulsional e seu poder de avaliação. A raridade do fato não contradiz sua pertinência originária. O plano de imanência, o virtual por inteiro (atualizando-se) e a univocidade do ser (ou do afeto) designam a mesma coisa. O que nos interessa ressaltar é que essa coisa só existe mediante uma prática. Esta pode fazer-lhe justiça ou não, e suas consequências serão muito distintas em cada caso.

Mas a que se reporta esse plano virtual-real, plano da potência e dos atos? Às condições superiores ou desconhecidas da vida - o que nos reenvia, analiticamente, ao campo pulsional. Existir segundo essas condições é assim um real que sempre retorna, ao modo de uma exigência e de uma questão em aberto. Há muitos filões de vida inconsciente não realizada, graus de poder e de avaliação ainda não experimentados. A assimilação do virtual às condições superiores da vida aparecerá em Bergson, especialmente em A evolução criadora, “onde a própria vida é comparada a uma memória, correspondendo os gêneros e as espécies a graus coexistentes dessa memória virtual” (DELEUZE, 1999DELEUZE, Gilles. Dois regimes de loucos. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 61). O virtual remete assim a uma vitalidade inconsciente, real, porém não realizada, e que não pode ser destruída ou abolida. Graus e graus de vida desconhecida. É em relação a essa vitalidade que situamos os afetos originários, afetos que a atualizam diretamente e parecem dotados de sua virtude, pois são, como ela, indestrutíveis.

A sublime-ação se aplica diretamente à vida, não como algo que se sobrepõe a ela, mas como prática e conceito que a esclarece em última instância. Uma breve e pontual incursão pela vida e obra de Wilson Bueno nos faria ver, num plano distinto ao da sublimação, ali onde a vida subsistia e se repetia como uma espécie de transgressão, operar-se a interrupção da linha sublimatória, o golpe fatal que, no entanto, encontrava-se escrito no entre-céu literário. Em Mano, a noite está velha, não havia a prescrição do evento mortal, mas ele fora escrito, com as características de um oráculo. Esse livro, assim como os outros de Bueno, eram a cada vez sua salvação. Ao fazer um “retrato do artista quando jovem”, Paulo Leminski já demarcara, em seu prefácio Bueno’s blues band & seus boleros ambíguos, a vertente da rebeldia transgressora, não sem diluí-la na vizinhança de outras faces.

Quem é o personagem Wilson Bueno, saiba quem lê-lo. Bueno ora se dá como menino abandonado (meio Dickens, meio ‘beat’). Ora como escritor de província e de subúrbio, cercado de natureza, ‘retired writer in the sun’, diria Donovan. Ora é um lobisomem das madrugadas, das ferozes boemias beirando a crônica policial, melodramático caçador de gente entre as lâmpadas da neblina fria. Insisto: este ‘falso’ Bueno é o verdadeiro Bueno. O Bueno, que é dono e frequentador do ‘Bolero’s Bar’, esse boteco sórdido e esplêndido, que abre quando pode e fecha quando não é mais possível” (BUENO, 2007BUENO, Wilson. Bolero's Bar. Curitiba: Travessa dos Editores, 2007., p. 13).

Uma sublimação originária não se confunde com transgressão, já que o dizer não pode ser previsto por qualquer lei que seja. As confusões são sempre secundárias, embora constituam o tecido mais comum da experiência, com todos os seus efeitos no pensamento e nos corpos. A articulação desses dois domínios, o da sublimação e o da rebeldia ou transgressão, com suas confusões, separações e distâncias variáveis, é decisiva para o entendimento literário e clínico de casos como o de Wilson Bueno. É que as pulsões de vida e morte se efetuam realmente como linhas, envolvendo direções, estases, impasses, misturas e distinções. Daí a necessidade de se pensar além das misturas.

Impossível perceber a coral - pequenina e traiçoeira, enrolada em si em meio a flores e ao mato-carrapicheiro. Tão mimética que é capaz, a coral, de se fazer confundir com a dália-do-bispo, rubra e furta-cor - já não sabemos se cobra ou dália, cipó ou serpente. Os índios guardam, pela coral, um respeito que é junto de Deus e das mais agressivas entidades da noite. 4 4 Do Diário da fronteira, “A coral em flor”.

Uma análise minuciosa é requerida em benefício da clínica, pois a interrupção da linha de fuga (ou de força) de um processo subjetivo é anti-sublimatória, de modo algum inocente, não importa o aspecto que assuma, lembrando o que Artaud chamava de “enfeitiçamento” e “conspiração coletiva contra alguns casos singulares” (ARTAUD, 1994, p. 157). Urge empreender uma leitura atenta e desimpedida desses fenômenos, de modo a atingir o que reside em seu fundo, o domínio ético. Ora, esse domínio afeta primeiramente a subjetividade em questão, uma vez que compete a ela exercer-se nele. Aliás, ela se faz dessa matéria-força em exercício.

Na altura da pulsão abre-se um campo de escolhas. O discernimento teórico não se distingue aqui do discernimento prático: trata-se de não permitir a mistura da sublimação com a transgressão, sob pena de inviabilizar a primeira no decorrer do tempo. A mistura, a contaminação de um regime por outro já constitui uma inviabilização em curso. A mistura serve a isso. Mas não serve igualmente à sublimação? A sublimação é originária e não depende de processos secundários, perversos, embora possa utilizá-los estrategicamente. Subordinação, e não confusão ou inversão de comando. Pode utilizá-los como peças e engrenagens de seu maquinismo superior. O virtual de uma vida nunca esteve dado, e sua potência só existe em exercício. O risco do artista é grande porque a sublimação originária não é coisa que se descubra e sustente facilmente, exceto do ponto de vista dela mesma. Como escreveu Spinoza no final de sua Ética: “todas as coisas notáveis são tão difíceis como raras”. A subjetividade participa da conspiração coletiva em que é visada, e - como numa corrente de conversão elétrica - a reconduz por sua vez, na passagem ao ato, já convertida em sujeição. Conspiração inevitável, se o dizer é sempre extra-pessoal. Nem por isso deixa de frequentar uma coletividade diversa, da qual ele surge e para a qual se dirige, e que forçosamente chamaremos de originária. Tal coletividade não se confunde com uma formação gregária, não é um coletivo de indivíduos de mesma raça ou espécie, não é tampouco uma cultura, a menos que se trate de uma cultura ao modo ameríndio, cosmológica, de feição animista.

Atentemos à zoofilia literária desse “lobisomem das madrugadas”. Das fronteiras do humano, Wilson Bueno desliza, com uma naturalidade quase animal, para os outros reinos, seguindo, como diriam Deleuze e Guattari, uma linha feiticeira. Não se sabe mais onde começa o animal e onde termina o humano. Na verdade, um ponto de vista pulsional não encontra autorização no mundo humano. Por isso, o escritor se dirige aos animais, como queria Deleuze. Do bestiário luxurioso de Bueno ao restante de sua obra, percorre-se um único solo, uma germinação constante, que não deixa de figurar sua terra natal.

Nasci em Jaguapitã, que quer dizer cachorro vermelho em tupi-guarani, no norte do Estado do Paraná, de bisavó índia e bisavô alemão, pelo lado materno, um sem número de portugueses e espanhóis, pelo lado paterno... Mas a influência mais marcante é ainda hoje a desta avó bugra de olhos azuis cuja mãe índia, a minha bisavó, foi caçada a laço no medonho entrevero que foi a colonização daqueles ermos paranaenses, ao final da primeira metade deste século. Muita gente me pergunta o porque desta coisa índia em minha escritura e acho que esta resposta é a mais cabal - sou bisneto de índia guarani e daí o cabelo preto, o gosto pajé dos racontos e dos amuletos, a vocação por estas estórias tocadas de delicadeza que os índios inventavam a cada vez, acrescidas sempre de novos elementos e magias. A paixão pela literatura vem justamente de haver nascido em pleno sertão, ouvindo rugir das onças, aquele tempo, e os barulhos misteriosos da floresta.5 5 Trecho de uma entrevista concedida por Wilson Bueno em jornal não mais identificado.

Manual de zoofilia, Jardim Zoológico e, para culminar, Cachorros do céu, perfazem, em profundo amor fati, a transposição da terra de origem ao plano da escrita. A última obra mencionada evoca, talvez, uma Jaguapitã celeste.

Que valor clínico isso tem? Elaboração da origem, sublimação no sentido convencional, ou seja, expressão artística, poética, de traços afetivos da infância, destinando-os, pela via da representação, à fruição estética? Não, é pouco, e enganoso. Situemo-nos abaixo da linha do silêncio, muito abaixo, para reencontrar o fio indígena da língua. É o exercício pulsional que, regendo as formações do inconsciente, irá preencher esse nível. Agenciamento duplo. Aqui o afeto permanece ativo, como a consciência ou a memória de uma força ativa.

Antílopes

Assim são: como o vento e onde que a brisa mande. Na noite do cio, galgos súbitos, revoam pelas savanas, pombos, aos corcoveios, relincho e orgasmo.

Diligenciar ouvidos para escutar como é que mugem nos zôos, nos parques - de tristes cornos, e derrotados.

Desse modo, extrair a aprendizagem: nenhum homem em toda a Terra alcançará aprisionar, na caixa-do-peito, o coração indomável do antílope.

Desnecessário lembrar o quanto, acorrentados neste apartamento, temos sido o zôo, a gangorra, a grade, a gangrena,

Um antílope é maior que a liberdade. (BUENO, 1997BUENO, Wilson. Manual de zoofilia. Ponta Grossa: Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa, 1997., p. 48-49).

Sublime-ação e sinthoma

Por que escrevemos sublime-ação? Porque assim destacamos o caráter vivo e ativo desse destino pulsional, ou seja, aquilo que esclarece essencialmente a pulsão: ela designa o não-sujeitável, o não seduzível, o não hipnotizável, apresentando-se, no limite, como um ato herético.

Um acontecimento literário e clínico pode ser lido em dois planos, o da sublime-ação e o do sinthoma. Os dois termos surgiram, cada qual a seu tempo, por necessidades clínicas e teóricas. Fazemos deles um uso clínico, observando que a insuficiência da noção de sinthoma deve-se ao limite da pesquisa analítica nos termos da lógica e dos conceitos lacanianos, não sem reconhecer que essa noção compreende um traço real da experiência subjetiva. Com ela, todavia, não se verifica o poder de resolução pulsional, ética e clínica, que atribuímos à sublime-ação. No nível do sinthoma, reside ainda o equívoco e a confusão que não para de ser reintroduzida no pensamento analítico, e que poderia ser resumida como a queda do vetor extra-pessoal no âmbito pessoal. Lacan não criou uma palavra comprometida, imprecisa; pelo contrário, é um belo achado de lalangue, porém facilmente sujeitável a um uso sintomático. E aqui, justamente, nesse ponto de equivocação ou de distinção dos planos, vemos o benefício do recurso a Bergson. Para ele, o esforço empreendido pela vida no sentido de realizar a ação livre - que é originariamente visada - se detém, muito frequentemente, num giro hipnótico em torno da matéria, sob o fascínio de uma forma alcançada. Essa parada corresponde a uma queda devido ao abandono do movimento ascendente. Assinalamos algo semelhante em nossa crítica, que se resolve inevitavelmente como clínica, ao descrevermos a passagem da sublime-ação ao sinthoma. Ou seja, há o esforço da vida em ir além de si mesma - processo que atribuímos à pulsão (aliás, é para isso que serve o conceito) - e a tendência contrária a repetir o mesmo. Como não ver que o sinthoma compreende ao mesmo tempo o traço singular e a repetição do mesmo? É a equivocidade que decide a natureza última do sinthoma? Alguns traços pulsionais não são abordados pela lógica lacaniana do sinthoma, a saber, o caráter ativo da singularidade e seu poder de resistir a toda sujeição, e a resistir, note-se bem, em ato. Nem sequer se assinalou que a falha de nodulação, que requer uma correção do nó, o sinthoma propriamente dito, é de consistência ética, e não ontológica. Os problemas do inconsciente não exprimem uma “falta-a-ser”, mas uma falta ética.

Tanto sob o aspecto do sinthoma quanto da pulsão de morte, a diferença, que certamente designa a pulsão, corre o risco de ser reduzida ao mesmo, repetindo-se desfigurada sob recalque, como é comum a qualquer sintoma compreendido psicanaliticamente. Não seria um equívoco de Lacan a propósito de Joyce, quando dá especial ênfase à ambição do escritor de ser lido pelos universitários por mais de 300 anos (LACAN, 2007LACAN, Jacques. O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 23), p. 86)? O ego do artista, eis o que teria sido o entrave à sua arte, e não uma condição dela. Mas a suposição de um ego joyceano, de preferência anômalo, algo destituído de imaginário, se impõe a Lacan por não avançar até o que chamamos de subjetivação pulsional - a anomalia subjetiva por excelência. Se Joyce é um escritor de enigmas, como é assinalado no Seminário 23, isso se deve aos seus experimentos de enunciação pulsional, cujos enunciados requerem uma decifração pragmática à altura da pulsão: atos de escrita. No que se esmera, aliás, o próprio Lacan, com a escrita dos nós. Se há em Joyce algum intento mal dissimulado de se tornar um redentor, não é tanto devido à relação do filho ao pai segundo a temática cristã, envolvendo a particularidade de um pai ausente, como sugere Lacan que, como Freud, precisaria se ler. Joyce aspira à santidade de se tornar, precisamente, um “desabonado do inconsciente” (LACAN, 2007, LACAN, Jacques. O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 23)p. 160) - como o nomeia Lacan, que não escapa à equivocação na qual lança grande parte do seu ensino. Pois não foi ele quem disse o essencial sobre o santo - que este está pouco se lixando para a justiça distributiva (LACAN, 2003LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003., p. 518-519)? E não é isso a subjetivação pulsional - o não sujeitável? J. A. Miller soube assim mesmo extrair o rendimento inequívoco do caso Lacan & Joyce: a psicanálise, mais uma vez, foi salva pela literatura.

“Sinthoma” e “pulsão de morte” não são apenas nomes teóricos e, eventualmente, conceitos clínicos; designam modos e linhas de experiência efetiva que parecem compor e até mesmo animar a subjetividade contemporânea, inclusive onde ela mais se singulariza. É um problema analítico que explica, em última instância, a existência da própria psicanálise. Requer todo o discernimento pulsional, pois aqueles nomes indicam também o grau de enfermidade psíquica e de desorientação ética em que nos encontramos de modo geral. A doença se insinua na teoria, assim como nas ações clínicas. Ela aí comparece, entretanto, como índice de um processo em curso, ao modo de um sintoma.

O nó borromeu lacaniano, enquanto nodulação de real, simbólico e imaginário, corrigível ou reelaborável como sinthoma, permanece uma noção frágil e insuficiente, tanto do ponto de vista da compreensão da subjetividade humana como do ponto de vista clínico, pragmático. E por um motivo bem simples, embora decisivo: o real é tratado como equivalente aos outros dois registros, o simbólico e o imaginário, quando, na qualidade de potência ética e clínica, ou seja, como poder de avaliação extra-pessoal e extra-moral, determina o uso da linguagem (e a natureza do simbólico), bem como as condições do imaginário. Não se chegou, pela via do sinthoma, a esclarecer que o real é um problema de exercício. Daí as imprecisões de seu uso conceitual.

Extra-mundo

Sartre fez uma leitura analítica inspirada da vida e da obra de Jean Genet (SARTRE, 2002SARTRE, Jean-Paul. Jean Genet, ator e mártir. Petrópolis: Vozes, 2002.). Caberia revê-la a propósito dos dois planos, pois concebe um saint Genet próximo ao saint homme, isto é, ao que Lacan, no escrutínio analítico de Joyce, presumia ser o destino mais remoto do analista e da análise. A santidade de Genet é a desarticulação do sinthoma por meio da arte literária, provando, como Lacan o fará de modo equívoco, que mesmo o sinthoma, o osso, o dito elemento irredutível da subjetividade, pode ser remanejado, deslocado, em favor da sublime-ação. O andarilho, bandido e homossexual que aparece como personagem de Diário de um ladrão, finalmente condenado e encarcerado por muitos anos, serve apenas para fornecer dados, como diz Leminski6 6 Consta ainda no “retrato do artista quando jovem” proposto por Leminiski: “Na vida real, o eu histórico, o da carteira de identidade, é apenas o fornecedor de dados, o traficante de vivências para o verdadeiro culpado, o eu-personagem, o eu-persona, este sim, o verdadeiro criador. Como é o personagem Wilson Bueno, saiba quem lê-lo” (BUENO, 2007, p. 12-13). - o escritor se encontra alhures, do lado de fora, extra-muros, tanto que é capaz de transfigurá-los. A prisão é um mosteiro medieval, é o mundo. Assim como o sertão de Guimarães Rosa, ela está em toda parte. Enquanto ladrão, Genet se deixa apanhar, mas como escritor empreende uma linha de fuga absoluta, não interceptável. Que a vida e a obra sejam inextricáveis não impede a distinção - que é real e prática - do que deve comandar e decidir em última instância, sendo a obra uma graduação da vida, sua dobra ou, como queria Nietzsche, sua atividade metafísica. Imanência quer dizer exatamente isso.

Leia-se Dostoievski e o parricídio: dir-se-ia que Freud não soube se medir analiticamente com Dostoievski. Ao privilegiar, neste estudo, a neurose e a angústia epiléptica do escritor em detrimento de sua literatura, observa que o dom artístico era tão somente um dos três fatores que descreviam sua subjetividade, marcada igualmente pela intensidade dos afetos e pela disposição perversa. Assume, simplesmente, que tal dom não era passível de análise. Mas, mediante a constatação de que o escritor russo, em vista de seus impulsos ambivalentes, exaltava os criminosos, tão frequentes em sua literatura, acaba por sugerir que a neurose invadia o fazer literário (FREUD, 2014FREUD, Sigmund. Obras completas, vol. 17. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 341). Freud devia reler Freud. A atividade literária de Dostoievski escapava à análise por ser uma análise em curso. Os criminosos, não menos que os santos de sua obra, são personagens literários que permitem explorar as condições extra-morais e não humanas do homem, esse ser que, segundo Nietzsche, deve ser ultrapassado. Tão analítico, portanto, quanto o discurso do analista. Mais que em qualquer outro plano de existência, a subjetividade literária de Dostoievski se exerce como agente duplo, agenciando o que escapa aos discursos de mestre, da universidade e inclusive da histeria (LACAN, 1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. (O seminário, 17)), seu caso particular, levando-os junto, de roldão, segundo uma direção e uma economia libidinal imprevistas.

“Escapo, Mano. Mais uma vez escapo - de uma marquise, já me vejo salvo da chuva e da crônica policial...” (BUENO, 2011BUENO, Wilson. Mano, a noite está velha. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011., p. 113) Para continuar com Bergson: o escritor se salvaria pelo eu social, a despeito do eu individual e seu capricho, e com isso salvaria igualmente o eu individual? Na verdade, ele se salva pela escrita, desrecalcando o que a Aldeia, aparelhada dos eus mencionados, recalcava originariamente: uma vida. Bergson soube mostrar que o individual e o social se aliam precisamente no nível do que ele chama “o todo da obrigação”, cujo caráter “instintivo” reporta-se à exigência de uma formação social fechada (BERGSON, 1963BERGSON, Henri. Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: Presses Universitaire de France, 1963., p. 1006). Castaneda registra a colusão do social com o pessoal em sua estranha iniciação, quando é instado por Don Juan a apagar sua história pessoal.

- Não tenho mais história pessoal - disse ele, fitando-me atentamente. - Larguei-a um dia, quando senti que não era mais necessária.

[...] - Por que uma pessoa havia de ter esse desejo?

[...] - Você não sabe o que sou, não é? - disse ele, como se estivesse lendo meus pensamentos. - Nunca saberá quem sou ou o que eu sou, porque não tenho nenhuma história pessoal.

[...] Don Juan disse que todo mundo que me conhecia tinha ideia a meu respeito e que eu alimentava aquela ideia com tudo o que eu fazia.

- Você não vê? - perguntou teatralmente. - Você tem de renovar sua história pessoal contando a seus pais, seus parentes e amigos tudo o que faz. Por outro lado, se não tiver história pessoal, não há necessidade de explicações, ninguém fica zangado nem desiludido com seus atos. E, acima de tudo, ninguém o prende com seus pensamentos. (CASTANEDA, 1972CASTANEDA, Carlos. Viagem a Ixtlan. Rio de Janeiro: Editora Record, 1972., p. 28-30).

Ao prescrever a dissolução da história pessoal e a desarticulação das tramas sociais que constituem o plano tonal, Don Juan se inclina a um plano mais secreto, o nagual, onde o aprendiz de guerreiro (depois de feiticeiro) irá se deparar com novas condições de percepção e de ação, novos filões de vida ativa. A cumplicidade do social e do pessoal serve para inibir a experiência nagual. Daí surgir a pretensão de que o plano tonal não tem exterior, ou que seu exterior se reduz às mônadas últimas, isoladas umas das outras. É o que daria esteio, segundo alguns, à singularidade do sinthoma, “distante de qualquer comunidade” (MILLER, 2008MILLER, Jacques Alain. Coisas de fineza em psicanálise, Documento de trabalho para os seminários de leitura da Escola Brasileira de Psicanálise, lições de I a IV, 2008. Disponível em: Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/horizontes/textos/licoes.pdf . Acesso em: 05 abr. 2015.
http://institutopsicanalise-mg.com.br/ho...
, p. 59).

“Outra atitude”, dirá Bergson, que chamamos em auxílio da psicanálise e de Joyce, “é aquela da alma aberta” (BERGSON, 1963BERGSON, Henri. Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: Presses Universitaire de France, 1963., p. 1006). Ela se vincula à vida ou à “humanidade”, ainda no sentido ameríndio estudado por Viveiros de Castro. Até poderá ser apropriada socialmente num segundo momento, mas apenas em seus aspectos favoráveis ao todo da obrigação. Este atua, segundo Bergson, como “pressão”, enquanto o vínculo originário age como “aspiração”.

Ora, existe uma distância entre essa ideia e aquela que faz do singular algo de isolado, fechado em si. Por que destoam a esse ponto? Por que os psicanalistas da “segunda clínica” não veem no real o lugar da força, do vivo e do ativo, com os quais a dimensão do singular se esclarece como aberta e impessoal? Aberta - dado não existir regime simbólico-imaginário que a capture, que a territorialize ou sujeite; impessoal - porque uma singularidade interessa a todos.

Queriendo-me talvez acabe aspirando, en este zoo de signos, a la urdidura essencial del afecto que se vá en la cola del escorpión. Isto: yo desearia alcançar todo que vibre e tine abaixo, mucho abaixo de la línea del silêncio. No hay idiomas aí. Solo la vertigen de la linguagem. Deja-me que exista. (BUENO, 1992BUENO, Wilson. Mar paraguayo. São Paulo: Iluminuras, 1992., p. 13).

Em Mano, a noite está velha, tudo se passa numa certa referência à Aldeia e à vida social, porém segundo um nomadismo invisível, originário e extemporâneo, que as penetra e ultrapassa inteiramente. A literatura de Bueno, feito uma vida fervilhante, incendeia o mais profundo cotidiano.

A gente completamente e nem sequer a ideia se íamos continuar sendo ou se ontem era amanhã ou se amanhã era hoje; doentes, sempre os dois, ao mesmo tempo, um e outro queimando em febre nas cataporas e sarampos, nas gripes que nos atacavam duramente ouvidos e gargantas, sobretudo depois que migramos à Aldeia gelada e de ventos soturnos, pintainhos aninhados um no outro que, por sua vez, aninhavam-se à Mãe, e ao Pai, a seu jeito. Bichos, bichos pequenos, bichos gracilianos. (BUENO, 2011BUENO, Wilson. Mano, a noite está velha. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011., p. 91).

Seria preciso situar os graus daquela ultrapassagem e sua mudança de natureza. Ressaltamos mais uma vez a utilidade analítica de Bergson, investigando um plano invisível da natureza - sua vertente ativa.

Indo da solidariedade social à fraternidade humana, rompemos com uma certa natureza, mas não com toda natureza. Pode-se dizer, desviando-se as expressões spinozistas de seu sentido, que é para voltar à Natureza naturante que nos desligamos da Natureza naturada. (BERGSON, 1963BERGSON, Henri. Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: Presses Universitaire de France, 1963., p. 1006).

Insistimos em um único ponto: a exceção, para falar como Godard - que a distinguia da norma e da cultura -, e suas vicissitudes, entendendo que a exceção se dissemina por tudo (o sertão está em toda parte). É uma nova versão do animismo. Como a Aldeia poderia conter a subjetividade literária de Wilson Bueno? Não é ela, certamente, que compreende o devir dessa subjetividade, inseparável da obra. Nunca a Aldeia soube dizer algo da arte twilight-zone de Bueno, sendo, entretanto, insolitamente bem-dita na tessitura da obra, desde a juventude do artista, inclusive pelo vaticínio sombrio que denuncia seu limite e fechamento, seus dias contados - diferentes dos de WB, que não têm fim.

Nesse bar de Curitiba, entre esta gravata, este copo e o crime vai uma distância considerável. [...] Minha Curitiba estremece aqui dentro suavemente nua, mal lobisome no céu uma lua cheia. Por ela e por seus andaimes, geadas, sujos postes na avenida noturna, por ela ser minha, de bar em bar, de logro em logro, tão minha comigo, que segue assim, ao meu lado, incompreensivelmente só, e companhia, é que eu a guardo junto de mim - feito um degredo ou um castigo. [...] Porres, ônibus, suicídios, trens, aviões - ah, o vício de partir é de Curitiba, é da minha Curitiba o vício de partir. E de morrer um pouco a cada queda pelas quebradas. (BUENO, 2007BUENO, Wilson. Bolero's Bar. Curitiba: Travessa dos Editores, 2007., p. 17).

Aventura pessoal, por certo, numa cidade vista muito pessoalmente, isto é, nos termos experimentais de Bueno. E, no entanto, o escritor, “retired writer in the sun”, lança uma luz diurna sobre si e a cidade, como se nada ficasse escondido aos seus olhos. E esse é o ponto. Existir em outro plano de percepção envolve, igualmente, outro grau de intensidade, de conhecimento, e por isso o escritor nos dá a ver uma cidade invisível a olhos nus. Mas que seja invisível não quer dizer que não exista e atue, constituindo mesmo a base viva e movente da realidade visível, cotidiana, com seu aspecto de mundo administrado. Mas se o situarmos na ordem do sinthoma, WB não se separa dela - seja ela Mãe ou Aldeia - e seu voo de pássaro insolente reencontra sempre um termo, a queda, sob o aspecto da paixão resoluta, ali onde a resistência à sublime-ação assume a sua mais ardilosa face - as núpcias do erotismo com a morte. Da paixão resoluta à imolação é um passo. A insolência que assombra a Aldeia é a imagem algo ambígua da força subterrânea ou extra-terrestre que a perpassa de ponta a ponta e vai além, em direção ao deserto (ou ao sertão), deslocando seu eixo de referências, desestabilizando o todo da obrigação social. Essa desestabilização não é visada em si mesma; ela decorre inevitavelmente da fissura que a linha de força sublimatória introduz no campo social. A insolência, por mais individualizada, é ainda uma imagem social, resultante equívoca de uma fatalidade ética - a da potência sublimatória. É ao nível da sublime-ação que a subversão decisiva acontece, sendo sua expressão sexual ou agressiva apenas efeito de segunda ordem, ainda que possa figurar, sob determinada ótica pulsional, como transição ou condição prévia a esse destino originário. No mais das vezes, a conduta sexual está sob a prescrição da Aldeia, não indo além de uma pére-version. Esta demarca um limite ao saber, a ponto de nos dizerem que o lugar remoto da subjetividade, o sinthoma, é o de um não-saber. Vemos assim como o problema do entendimento analítico se torna imediatamente clínico.

Na concepção do sinthoma, ou sob sua égide, “o ápice do gozo dado pelo real” (LACAN, 2007LACAN, Jacques. O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 23), p. 76) se define como masoquismo. Desvencilhado, porém, de uma pregnância simbólico-imaginária, ele se resolve como sublime-ação. Repetindo: não se trata da concepção tradicional de sublimação, enquanto desvio dos fins sexuais em direção aos interesses da cultura e da evolução do homem. Esse destino não corresponde ao processo real. Pois não há desvio na sublimação originária, somente avanço involutivo e - em face de critérios culturais e humanos - ruptura.

No livro de Bueno, na medida em que é colocada em processo, a Aldeia mesma é reconstituída.

Os sabiás não dão trégua, Mano. Sibilam ao luar de verão para que amanheçam logo as árvores das ruas e dos quintais. Incrível ainda existam os quintais aqui onde a Aldeia exibe, fulgor barato, os prédios revestidos de pastilha e vidro, aço e raiban (BUENO, 2011BUENO, Wilson. Mano, a noite está velha. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011., p. 57).

[...] Agora, Mano, é a noite, a mesma e imemorial noite do bairro new-kitsch que nos acolheu um dia, região posta à margem convertida hoje em polo referencial da cidade. Terminais de ônibus expressos, prediozinhos acanhados e as casas d’antanho - persistentes; algumas de madeira, com lambrequins e ali, ainda, a chaminé do jurássico fogão a lenha. (BUENO, 2011BUENO, Wilson. Mano, a noite está velha. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011., p. 61).

Por mais que aglutine elementos de toda sorte e seus confins se percam, o fluxo de escrita a penetra e salva da destruição inexorável, transmutando sua natureza ao mesmo tempo fixa e mutável em matéria expressiva, espiritual. Ela se abre ao poder de uma língua indígena, que a trabalha internamente de um modo jamais previsto. Não é mais Bueno que é seu filho adotivo e por certo maldito; é ela que nasce dele, de sua arte, reconstruída sub speciae aeternitatis.

Será que sonhamos ao dizer que a Aldeia nasce para sempre da literatura do escritor, que essa pretensão ficcional não mudará em nada a realidade? Ora, Wilson Bueno é tanto o passado como o futuro da Aldeia. A potência do verbo (virtual-real), enquanto atividade por excelência, e o alto tempo de uma vida, são uma e mesma coisa. Nada sobrepuja a sua duração, e tal é a dívida da Aldeia para com o vagau que a iluminou, digamos assim, com um clarão de eternidade. Do mesmo modo que, segundo Artaud, não se pode mais ver um girassol na natureza sem passar por Van Gogh, não se pode mais conceber a Aldeia-Curitiba-Mundo sem passar por Bolero’s Bar e Mano, a noite está velha.

Referências

  • BERGSON, Henri. Les deux sources de la morale et de la religion Paris: Presses Universitaire de France, 1963.
  • BUENO, Wilson. Bolero's Bar Curitiba: Travessa dos Editores, 2007.
  • BUENO, Wilson. Diário da fronteira Inédito.
  • BUENO, Wilson. Mano, a noite está velha São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.
  • BUENO, Wilson. Manual de zoofilia Ponta Grossa: Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa, 1997.
  • BUENO, Wilson. Mar paraguayo São Paulo: Iluminuras, 1992.
  • BUENO, Wilson. Meu tio Roseno, a cavalo São Paulo: Editora 34, 2000.
  • CASTANEDA, Carlos. Viagem a Ixtlan Rio de Janeiro: Editora Record, 1972.
  • DELEUZE, Gilles. Bergsonismo São Paulo: Editora 34, 1997.
  • DELEUZE, Gilles. Conversações São Paulo: Editora 34, 2000.
  • DELEUZE, Gilles. Dois regimes de loucos São Paulo: Editora 34, 2016.
  • FREUD, Sigmund. Obras completas, vol. 17. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • FREUD, Sigmund. Obras completas, vol. 19. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
  • GUATARRI, Félix. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise. Campinas: Papirus, 1988.
  • LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise Rio de Janeiro: Zahar, 1992. (O seminário, 17)
  • LACAN, Jacques. O sinthoma Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (O seminário, 23)
  • LACAN, Jacques. Outros escritos Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
  • LAWRENCE, David Herbert. Apocalipse, e o Homem que morreu São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • MILLER, Jacques Alain. Coisas de fineza em psicanálise, Documento de trabalho para os seminários de leitura da Escola Brasileira de Psicanálise, lições de I a IV, 2008. Disponível em: Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/horizontes/textos/licoes.pdf Acesso em: 05 abr. 2015.
    » http://institutopsicanalise-mg.com.br/horizontes/textos/licoes.pdf
  • SARTRE, Jean-Paul. Jean Genet, ator e mártir Petrópolis: Vozes, 2002.
  • 1
    Do Diário da FronteiraBUENO, Wilson. Diário da fronteira. Inédito., escrito ainda inédito de Wilson Bueno.
  • 2
    Mba’esporomondîihá: milagre. Mamaguasú: bisavó materna, a avó da mãe. Ticavacuá: corrente, correnteza. Cuñambayé: bruxa, feiticeira. Ñe’ê: palavra, falar.
  • 3
    Extraído da apresentação de Benedito Nunes.
  • 4
    Do Diário da fronteira, “A coral em flor”.
  • 5
    Trecho de uma entrevista concedida por Wilson Bueno em jornal não mais identificado.
  • 6
    Consta ainda no “retrato do artista quando jovem” proposto por Leminiski: “Na vida real, o eu histórico, o da carteira de identidade, é apenas o fornecedor de dados, o traficante de vivências para o verdadeiro culpado, o eu-personagem, o eu-persona, este sim, o verdadeiro criador. Como é o personagem Wilson Bueno, saiba quem lê-lo” (BUENO, 2007, p. 12-13).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2019
  • Aceito
    10 Set 2020
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