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DA EXCLUSÃO SOCIAL AO DESALENTO: UM OLHAR “DECOLONIAL”1 1 Esta pesquisa contou com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES (Bolsa de Doutorado - Programa de Demanda Social e Bolsa de Doutorado Sanduíche no Exterior) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Bolsa de Produtividade de Pesquisa).

RESUMO:

O objeto central deste artigo, fundamentado na psicanálise, é a problemática da exclusão social. Trata-se de mostrar a importância desse saber em uma reflexão dedicada a situações de precariedade social. Um de seus eixos principais concerne à dimensão de pertencimento, própria ao laço social, tendo em vista, em particular, vividos subjetivos marcados por significativas falhas quanto a essa dimensão. A questão da colonialidade é um operador de relevo neste trabalho, visando ao aprofundamento da relação exclusão/pertencimento. A noção de desamparo e sua modalidade extrema, o desalento, têm grande relevância neste estudo, o qual se ancora na articulação entre subjetividade e universo sócio-cultural.

Palavras-chave:
exclusão social; colonialidade; desalento; subjetividade; laço social

ABSTRACT:

From social exclusion to discouragement: a “decolonial” look. The central object of this article, based on psychoanalysis, is the issue of social exclusion. It is about showing the importance of this knowledge in a reflection dedicated to situations of social precariousness. One of its main axes concerns the dimension of belonging, specific to the social bond, taking into account, in particular, subjective experiences marked by significant flaws in this dimension. The issue of coloniality is a relevant operator in this work, aiming to deepen the relationship of exclusion/belonging. The notion of helplessness and its extreme modality, discouragement, has great relevance in this study, which is anchored in the articulation between subjectivity and the socio-cultural universe.

Keywords:
social exclusion; coloniality; discouragement; subjectivity; social bond

INTRODUÇÃO

Neste artigo, exploraremos a problemática da exclusão social ressaltando a potência que tem o saber psicanalítico para escutá-la, tendo em vista a indissociável imbricação dessa ordem de questões com uma dimensão histórico/política. Em nossa reflexão, buscaremos mostrar que essas situações de precariedade social são paradigmáticas de certa modalidade de organização social, ao mesmo tempo em que nos interrogam sobre uma dinâmica psíquica particular, passível de estar em jogo nos sujeitos a elas expostos. Trata-se de formações sociais nas quais vidas humanas não são efetivamente consideradas, colocadas que são em situação de marginalidade, de não pertencimento. Isto constitui importante fonte de desalento no vivido desses sujeitos, os quais são situados nas bordas da cidadania e da humanidade, continuamente “invisíveis” e silenciados na cena social, onde a arquitetura política, jurídica e psíquica não lhes concede lugar.

Investigaremos a função da dimensão de pertencimento social na experiência subjetiva, psíquica, o que representa para cada indivíduo habitar um lugar no mundo. Faz-se necessário um discurso crítico sobre os processos de exclusão social, discurso que não tenda a fazer da margem um problema isolado, e problema do “fora”, cuja suposta solução seria encontrada através de referências de um “dentro”. Nossa tentativa é justamente depreender, da “margem”, elementos que façam repensar as dinâmicas operantes no fenômeno da exclusão/pertencimento em que se conjugam, de maneira indissociável, os eixos da exclusão/inclusão e do dentro/fora.

O que se tende a excluir, que se esconde da vista, negado socialmente, advém de um modo particular de produção de subjetividades e não de uma disposição particular própria aos sujeitos excluídos. Sobre este ponto, Curiel (2014CURIEL, O. Construyendo metodologías feministas desde el feminismo decolonial. In: AZKUE, I. M. et al. (Eds.). Otras formas de (re)conecer: reflexiones, herramientas y aplicaciones desde la investigación feminista. Bilbao: UPV/EHU, 2014.) propõe uma “antropologia da hegemonia e da dominação” segundo a qual a relação sujeito-objeto seria centrada em processos de hegemonia e dominação. Trata-se, desse modo, de uma análise das relações de violência e opressão tendo como foco a questão das identidades, das posições e lugares de poder hegemônicos. Afastamo-nos, assim, de uma perspectiva de “patologização” dos sofrimentos psíquicos advindos da exclusão social. Nossa meta é contribuir para uma teorização, no campo da psicanálise, capaz de uma compreensão consequente sobre os processos de subjetivação das minorias quanto à formação social. Essa teorização leva em conta, com a devida autocrítica, as posições étnicas, culturais, de classe, implicadas nesses processos (AYOUCH, 2019AYOUCH, T. Psicanálise e hibridez: gênero, colonialidade, subjetivações. Curitiba: Calligraphie, 2019.).

A noção de exclusão é polissêmica, muito difundida nas ciências humanas e sociais, mas sem que haja univocidade quanto à sua significação. Uma de nossas tentativas será traçar algumas coordenadas dessa noção, orientadoras de seu uso a partir do saber psicanalítico. Cabe, de antemão, alertarmos para os riscos de se fazer uma transposição direta à realidade social de elementos próprios à vida psíquica. Isso certamente reduziria a complexidade dos elementos constituintes da cena social, nela se desconsiderando, no que tange à sua gênese, os atravessamentos da materialidade histórica, a qual não é atemporal. Não há realidade psíquica fora do enlace estabelecido com a realidade política; os contornos singulares das dinâmicas de exclusão social são mutáveis e não estanques ou essenciais. Entendemos o fenômeno da exclusão como fato social, assim como a categoria dos sujeitos “excluídos”. Uma abordagem psicanalítica dessas questões tem como pressuposto seu entrecruzamento com as conformações do laço social em um dado contexto sócio-histórico.

PERTENCIMENTO E EXCLUSÃO: APORTES FREUDIANOS

Uma importante via de análise da temática da exclusão/pertencimento encontra-se em Totem e tabu (1913/2012FREUD, S. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos (1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 13-244. (Obras completas, 11)), obra na qual Freud situa o momento mítico do advento da cultura, abordando a passagem que a ela se faz a partir de um tempo primevo. Antes imperam relações de força e relações sexuais não-controladas, as quais vêm a ser submetidas a uma ordenação simbólica da força pulsional sob o estabelecimento de um contrato social (ENRIQUEZ, 1990ENRIQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.). O referido texto de Freud parte de “um estado social em que a força fazia lei” (KOLTAI, 2010KOLTAI, C. Totem e tabu: um mito freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010., p. 47), tempo mítico de uma horda primitiva, dominada por um macho que gozava de uma situação de monopólio sexual absoluto, submetendo a sua lei a todos, pela força. O advento da cultura tem como marco o assassinato do chefe da horda, ser onipotente ao qual nenhuma interdição se impõe. Nesse ato fundador, aqueles, antes submissos, se reúnem, em sua impotência e ódio em comum dirigido ao chefe tirano, realizando coletivamente o que nenhum deles teria sido capaz de fazer de modo individual.

Sustenta Enriquez (1990ENRIQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.) que o nascimento do grupo é correlativo a um crime cometido em comum. Segundo ele, nem pai nem irmãos existiam na horda primitiva, de modo que é somente através do ato parricida que os seres submissos, excluídos da sexualidade e da palavra, se identificam entre si, reconhecendo o vínculo libidinal que os une no referido ódio contra o pai, tornando-se, desse modo, irmãos. O festim totêmico marca essa transformação, vindo assim a ser selada a existência durável do grupo: “ao comerem juntos da mesma carne, os irmãos se reconhecem definitivamente como tais, isto é, em igualdade, repartindo os despojos, unidos pelo mesmo sangue” (ENRIQUEZ, 1990ENRIQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990., p. 33).

Ao devorar o corpo do pai, eles incorporam a força e a virtude que àquele atribuíam, inaugurando, ao mesmo tempo, a comunidade de irmãos, fazendo ressurgir em cada um deles o desejo de ocupar o lugar destronado do pai: “o sangue do onipotente corre na veia de todos” (ENRIQUEZ, 1990ENRIQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990., p. 32). Esses irmãos dão-se conta duplamente de que o que cada um almejava em segredo era ocupar esse lugar onipotente, recusando, assim, qualquer relação de alteridade. Porém, sem haver renúncia à satisfação incestuosa e à violência como meio de consegui-la, o resultado seria um mútuo extermínio. O tabu vem revelar a ambivalência entre o atraente e o temível, entre desejo de transgressão e a sua renúncia por meio da consciência moral, o que, nas palavras de Enriquez (1990ENRIQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990., p. 38), evidencia que “não basta renunciar uma vez, é preciso aprofundar-se na renúncia”.

O pacto social só se estabelece com a instituição da morte do chefe da horda, o pai mítico emergindo como representante da Lei da cultura (ENRIQUEZ, 1990ENRIQUEZ, E. Da horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.). É em torno de um lugar vazio de poder que a pactuação social se estabelece, e a partir da qual os irmãos vêm a se relacionar horizontalmente. Mas será preciso que todos abdiquem do lugar narcísico de onipotência, lugar em que o sujeito permaneceria como fonte da lei, do permitido e dos ideais, pautando-se apenas por aquilo que o faria gozar (BIRMAN, 1996BIRMAN, J. A economia do gozo e os impasses da justiça. Uma leitura psicanalítica da justiça. Physis: Rev. de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1/2, p. 121-134, 1996.). Conforme apontado em Totem e tabu, e posteriormente retomado em Mal-estar na civilização - dessa vez sob a égide do conflito entre Eros e Thanatos -, a civilização apresenta-se como ordenadora do gozo, via substituição fundamental do poder do indivíduo pelo poder da comunidade, a qual passa a se chamar “Direito” (FREUD, 1930/2010FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 13-123. (Obras completas, 18)).

Se as coordenadas do Mal-estar na civilização já tinham sido descritas por Freud tendo sido retomadas depois por diversos outros autores, vale nos questionar, a partir desse ponto, sobre modalidades de mal-estar dos não-irmãos, daqueles indivíduos que, de formas mais sutis ou mais radicais, veem-se excluídos do pacto social. É no “mal estar” referente às situações de exclusão social que nos deteremos a seguir, na tentativa de evidenciar alguns elementos capazes de contribuir para sua elucidação.

UMA LÓGICA DA EXCLUSÃO: VIDAS “MATÁVEIS”?

A respeito da questão do pertencimento no discurso freudiano, dois elementos nos parecem essenciais, aos quais iremos deter nossa atenção, retomando-os. Inicialmente, reforça Birman (1996BIRMAN, J. A economia do gozo e os impasses da justiça. Uma leitura psicanalítica da justiça. Physis: Rev. de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1/2, p. 121-134, 1996.), a alternância subjetiva entre os pólos alteritário e narcísico é o que possibilita afirmar não haver possibilidade de separação estanque entre indivíduo e sociedade. Logo, a psicanálise propõe uma leitura sobre a dimensão de pertencimento a partir da qual a sociedade não pode ser considerada simplesmente como uma esfera com a qual o sujeito se relaciona, pois se trata de uma esfera que o constitui; a emergência dele depende da internalização e apropriação de processos relacionais.

De acordo com Castanho (2012CASTANHO, P. de C. G. Um modelo psicanalítico para pensar e fazer grupos em instituições. Tese de Doutorado, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2012.), o advento da cultura é concomitante ao advento do sujeito, tendo em vista que os tabus do incesto e do parricídio, criações coletivas, têm implicações fundamentais na estruturação psíquica de cada membro do grupo. Em segundo lugar, a partir da leitura do referido mito do advento da cultura, segundo o discurso freudiano, o pertencimento à civilização está intimamente referido à renúncia ao exercício ilimitado da força bruta sobre o outro. A contrapartida disso é a “proteção” garantida por meio de uma lei compartilhada, possibilitando abertura à alteridade e ao reconhecimento mútuo. Trata-se, portanto, de uma modalidade de pertencimento cujo molde fundamental é a condição de igualdade, condição que não se sustentaria em uma lógica própria à onipotência do Um.

É nesse sentido que destacamos o apontamento de Birman (2016BIRMAN, J. A leitura freudiana da política. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 28, n.2, p. 55-68, 2016. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652016000200004 . Acesso em: 31 jul. 2023.
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) segundo o qual a leitura freudiana da cultura, situada na modernidade, se relaciona diretamente com o advento das democracias modernas e aos seus impasses. Trata-se da passagem de uma modalidade de sociedade, centrada na figura do soberano como “Um”, para uma sociedade fundada nos laços fraternos. Mostra Birman (2016) BIRMAN, J. A leitura freudiana da política. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 28, n.2, p. 55-68, 2016. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652016000200004 . Acesso em: 31 jul. 2023.
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que isto se dá em um registro ético, fundador do sujeito, e em um registro político, constituinte da figura do cidadão. A marca maior da modernidade se opera, portanto, mediante deslocamento do pólo do poder absoluto para o poder relativo, a partir do qual emerge, em chão de igualdade, a fratria.

Isso não implica, no entanto, a desaparição do registro do pai primevo na economia psíquica, mas se trata, antes, da manutenção desse registro sob nova forma, descrita por Lefort (1999 apudD’ALLONNES, 2010D’ALLONNES, M. R. Pourquoi nous n’aimons pas la démocratie? Paris: Seuil, 2010.) em termos de uma “desincorporação”. Segundo ele, a democracia moderna nasce da rejeição à dominação monárquica, emergindo da descoberta coletiva de que o poder não pertence a ninguém e que aqueles que o exercem não o encarnam, sendo eles depositários temporários da autoridade pública. Aqueles que, no novo estágio, exercem posições de poder o fazem como representantes do público e não como detentores naturais ou espirituais da ordem do mundo e da ordem social, não estando, então, em posição de decidir o que cada um teria direito ou não de fazer, pensar, dizer e compreender.

Considerando-se um modelo social onde as relações horizontais e igualitárias são preconizadas como pilar essencial do processo de pactuação social, cabe ainda interrogar-nos sobre as coordenadas implicadas nesse pacto, já que vemos proliferar, em particular na atualidade, um cenário de crescente desigualdade e de incremento de vidas supérfluas. Essas exclusões, que não cessam de se alastrar no tecido social, não são exceções à regra, mas formam parte da estrutura de sustentação à dimensão de pertencimento. É levando em conta os aspectos políticos e históricos envolvidos na produção desse pacto social e de seus moldes de pertencimento e exclusão que buscaremos romper com certo círculo vicioso. Este tende a aprisionar o debate sobre exclusão social em um beco sem saída, por tender a supor uma espécie de “universal” de uma superestrutura psíquica, suposição na qual toda e qualquer sociedade tenderia a conduzir a um inevitável movimento de exclusão.

Para darmos seguimento a nossa argumentação, pontuamos a existência de certa estrutura vertical hierárquica onde vidas humanas são discriminadas e classificadas em termos de uma maior ou menor valia, a alguns sendo reservado, portanto, um tratamento marcadamente desumano. Sobre este aspecto, argumenta Butler (2018BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.) que a desigual distribuição do luto público estaria diretamente relacionada a enquadramentos normativos através dos quais se pretende estabelecer domínios de inteligibilidade da vida, a condição humana sendo reconhecida, portanto, como uma experiência eminentemente social.

Em Quadros de guerra (2018), a autora apresenta alguns ensaios em resposta às guerras contemporâneas, indicando haver, a partir de então, uma divisão do mundo em vidas passíveis ou não passíveis de luto. Deslizando-se do luto enquanto tema da vida privada para o luto enquanto situação de direito, a autora aponta como este seria coextensivo ao reconhecimento da vida política, como pressuposto de toda vida que importa. A partir dessa lógica, Butler (2018BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.) sustenta a idéia da presença do que ela denomina “vidas matáveis”, visando assim situar aquelas vidas sem direito ao luto e à comoção pública ou a qualquer mecanismo de proteção, vindo, na verdade, revelar se tratar de vidas nunca consideradas vivíveis. Para melhor compreender essa desigual distribuição do luto público, a autora recorre ao conceito de enquadramento, referenciado em Goffman (2012 apudBUTLER, 2018BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.) para demonstrar que o reconhecimento de uma vida como vivível estaria intimamente relacionado ao modo como esta vida vem a ser socialmente enquadrada. Trata-se, portanto, de um conceito que permite articular perda e inteligibilidade, uma vez que:

Esse enquadramento interpretativo funciona diferenciando tacitamente populações das quais minha vida e minha existência dependem e populações que representam uma ameaça direta à minha vida e à minha existência. Quando uma população parece constituir uma ameaça direta à minha vida, seus integrantes não aparecem como “vidas”, mas como uma ameaça à vida (uma representação viva que representa a ameaça à vida). (BUTLER, 2018BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 69).

O enquadre é normativo, ou seja, depende de um conjunto de normas que, a partir de certos marcadores - tais como gênero, classe e raça -, determina o padrão do que seria reconhecível como humano, relegando ao que fica de “fora” desse enquadre o plano do excedente, do ininteligível, e, logo, das vidas que não importariam, as “vidas matáveis”. Estamos todos inscritos em um circuito de comoção social onde o enquadramento aparece como o que “busca conter, transmitir e determinar o que é visto” (BUTLER, 2018BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 25), atuando na diferenciação entre as vidas passíveis ou não de serem apreendidas. Rodrigues e Gruman (2021RODRIGUES, C.; GRUMAN, P. Do abjeto ao não-enlutável: o problema da inteligibilidade na filosofia de Butler. Anuário Antropológico, v. 46, n. 3, p. 67-84, 2021. Disponível em: Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/8933 . Acesso em: 10 ago. 2023.
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) complementam essas ideias, mostrando que o ininteligível e o inteligível se constituem mutuamente; o elemento que participa da formação do quadro depende dos que dele ficarão de fora, ou seja, ao enquadrar uma vida como inteligível daí também se originará a figura da vida ininteligível.

Sustenta Butler (2018BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.) que esse enquadramento não é fixo ou eterno, sendo preciso enquadrar o próprio enquadramento, ou seja, garantir suas condições de reprodutibilidade. A este respeito, Rodrigues e Gruman pontuam que “enquadrar o enquadramento seria outra maneira de dizer que a tarefa é pensarmos, não apenas na precariedade de cada uma dessas formas de vida, mas pensarmos no que sustentaria a condição de possibilidade de manter essas vidas precárias, enquadradas como humanas ou inumanas” (RODRIGUES; GRUMAN, 2021RODRIGUES, C.; GRUMAN, P. Do abjeto ao não-enlutável: o problema da inteligibilidade na filosofia de Butler. Anuário Antropológico, v. 46, n. 3, p. 67-84, 2021. Disponível em: Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/8933 . Acesso em: 10 ago. 2023.
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, p. 80-81). Neste ponto, vale salientar que a condição de vida ininteligível, segundo Butler, se relaciona diretamente com a alocação da condição precária, noção política que se distingue, no entanto, de uma precariedade mais ou menos existencial. Os desenvolvimentos de Butler (2004BUTLER, J. Precarious life: the powers of mourning and violence. London: Verso, 2004.; 2018BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.) expõem de que maneira os marcadores sociais atuam de modo a tornar certas vidas humanas irreconhecíveis. Essa ininteligibilidade torna o próprio estatuto de humano questionável, autorizando sua precarização e exposição à violência e à morte.

A ideia de enquadrar o próprio enquadramento - ou seja, de apontar haver algo que sustenta a possibilidade de se manter certas vidas sob o referido enquadre do inumano - será o objeto de nossa elaboração a seguir, na tentativa de articular essas questões com o campo dos estudos “decoloniais”, visando assim a continuidade e aprofundamento de nossa reflexão.

ENQUADRES COLONIAIS DO HUMANO

De acordo com Quintero, Figueira e Elizalde (2019QUINTERO, P.; FIGUEIRA, P.; ELIZALDE, P. C. Uma breve história dos estudos decoloniais. São Paulo: MASP Afterall, 2019.), os estudos decoloniais designam um conjunto heterogêneo de contribuições teóricas e investigativas sobre estruturas de dominação e exploração, configuradas pelo poder colonial. Esses estudos também têm sido denominados subalternos, pós-coloniais e contracoloniais. Mignolo descreve: “A colonialidade nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o Renascimento até hoje, da qual colonialismos históricos têm sido uma dimensão constituinte, embora minimizada” (MIGNOLO, 2017MIGNOLO, W. D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, p. 1-18, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/nKwQNPrx5Zr3yrMjh7tCZVk/?lang=pt#. Acesso em: 19 jan. 2021.
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, p. 2). Trazer a questão da colonialidade para o centro do debate permite expor as lógicas de dominação implicadas na sustentação do edifício da modernidade, visando maior compreensão sobre a escolha de certas marcas de diferença que são produtoras de inferiorização e desumanização ainda nos dias atuais. Muitos são os marcadores sociais a partir dos quais o valor da vida humana é medido, tais como gênero, classe, raça e nacionalidade; marcadores que se entrelaçam na cena social sob arranjos diversos.

Quijano destaca que um dos eixos fundamentais do novo padrão de poder colonial refere-se à “codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros” (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo; CASTRO-GÓMES, Santiago. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 117). Segundo o autor, a ideia de raça não tem história conhecida antes da América, tendo sido construída em referência a supostas estruturas de diferenciação entre grupos como forma de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. É a partir da colonização que a ideia de raça virá a se impor como “primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade” (ibidem, p. 118).

O padrão colonial de poder assenta-se nessa hierarquização sistematizada, prosseguida, segundo Fanon (2022FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2022.), de maneira implacável, diante do que nem todos teriam o mesmo “nível” de humanidade. A partir da racialização empreendida pelo colonialismo, há, por um lado, a interdição do reconhecimento das identidades racializadas como sendo parte da humanidade; por outro lado, afirma-se, mesmo que de modo ocultado, o que seria suposto como verdadeiramente humano. São dois lados da mesma moeda, a humanidade vendo-se assim vinculada, de qualquer modo, ao privilégio da branquitude.

Fanon discute este ponto por meio da distinção arbitrada entre homem e homem negro, afirmando que o homem negro não seria um homem - relegado, dessa forma, à zona do não ser, “uma região extraordinariamente estéril e árida” (FANON, 2022FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 22). Correlato a esse não-ser, ou ainda, situado em uma zona de ininteligibilidade, estaria o ser humano ao qual este vem a ser comparado e medido, enquanto ser inteligível e compreensível segundo os moldes culturais perpetrados por essa lógica da colonialidade. Negro e branco, conforme Fanon (2022FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2022.), encontram-se enclausurados, pelo poder colonial, em sua negrura e brancura respectivas, sem possibilidade de reconhecimento de semelhança entre eles.

Cabem aqui algumas considerações: primeiramente, a condição de humanidade não é igualmente distribuída. Em segundo lugar, a lógica da igualdade se estabelece a partir de um determinado enquadramento, que não apenas faz surgir um “eu” humano, mas um “nós” enquanto comunidade que se reconhece como esfera de semelhantes (BUTLER, 2018BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.). No entanto, questiona Butler: “que ordem política implícita produz e regula a semelhança nesses casos?” (ibidem, p. 61). Os estudos decoloniais ajudam a mostrar que esse molde seria branco, compreendendo aqui branquitude como “sistema político, em que raça, classe e gênero proporcionam uma experiência imbricada de privilégios” (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019., p. 47). Só os semelhantes poderiam ser reconhecidos como iguais, ao mesmo tempo em que muitos só podem ser vistos em sua diferença, nesta vendo-se enclausurados, conforme complementa Fanon (2022FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2022.).

Sob a lógica colonial, o pertencimento assume contornos identitários, o que, de acordo com Mbembe, não se dá “em termos de pertença mútua (co-pertença) ao mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo ao mesmo” (MBEMBE, 2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2014., p. 10). O ideário civilizatório tem importante participação nesse sistema violento enquanto construção imaginária. Esta vem autorizar não apenas a distinção entre o humano e aquilo que não seria “suficientemente” humano, como também os hierarquiza, preconizando uma direção única para onde todos deveriam caminhar para alcançar o enquadre necessário para obter reconhecimento quanto à sua humanidade.

Importantes elementos históricos da civilização moderna são indicados por Dussel, ao sustentar que a modernidade só se afirmaria como fenômeno europeu a partir de uma relação dialética com o não-europeu: “a Modernidade aparece quando a Europa se afirma como ‘centro’ da História Mundial que inaugura, e por isso a “periferia” é parte de sua própria definição” (DUSSEL, 1993DUSSEL, E. 1492: O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993., p. 7). O autor parte da origem deste “mito da modernidade” denunciando seu núcleo irracional, uma vez que a modernidade só teria nascido quando a “Europa pôde se confrontar com o seu ‘Outro’ e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo: quando pôde se definir como um ‘ego’ descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da própria Modernidade” (ibidem, p. 8). O eurocentrismo constitui pilar essencial da modernidade; para ele se afirmar, precisa esquecer o papel da “periferia” em sua constituição, o que se faz mediante encobrimento do “outro”.

A partir do eurocentrismo, a Europa adquire lugar central na História Mundial, bem como se afirma como destino final de qualquer formação civilizada. De acordo com Amin (1989AMIN, S. El Eurocentrismo, crítica de una ideología. México: Siglo XXI, 1989.), o eurocentrismo é marcado por um caráter universalista, propondo a todos uma imitação desse modelo ocidental, suposto como única solução para os desafios de nosso tempo. Ressalta o autor, no entanto, que a história da centralidade e do protagonismo europeus constitui uma invenção que desconsidera, de antemão, todos os empréstimos culturais, ideológicos e econômicos dos sistemas asiáticos e africanos (China, Pérsia, Mesopotâmia, Egito) que a Europa tomou para estruturar sua modernidade e vir posteriormente a afirmar o lugar dos não-europeus na sustentação dessa hegemonia.

O pensamento decolonial coloca em questão o entendimento da modernidade como projeto gestado no interior da Europa a partir da Reforma, da Ilustração e da Revolução Industrial, ao qual o colonialismo seria apenas um acréscimo. Essa estrutura eurocêntrica de colonização do tempo e do espaço participa da imposição de seu próprio modelo de produção, de racionalidade e existência ao redor do mundo, espécie de suposto destino final de toda a humanidade. A teoria decolonial evidencia a colonialidade como empreendimento não somente político, militar e econômico, mas também epistemológico a partir de uma idéia que historicamente passa a ser identificada à razão.

Acompanhamos como a colonialidade atua na sustentação de um enquadramento normativo do humano, evidenciando que o processo de emergência da civilização moderna ocidental, enquanto centro, é acompanhado pela marginalização de tudo aquilo que não corresponde a esse referencial. Tendo em vista esse processo e o caráter indissociável entre modernidade e colonialidade, torna-se evidente que a condição de exclusão configura parte estrutural dessa lógica intrínseca em uma dada concepção do que seria pertencimento social. Logo, não estamos aqui diante de uma igualdade entre irmãos, mas de um modelo constituído à custa da exclusão dos não-irmãos.

A perspectiva freudiana merecerá ser retomada a seguir, assinalando, desde este ponto, que, se a cultura se coloca enquanto lugar de contenção dos excessos, não podendo ser ocupado por ninguém, isso suporia uma distribuição entre irmãos mediante imposição externa e interna de limites à satisfação pulsional, mas sem que se barre o acesso a alguma possibilidade de prazer. Porém, não é esta a realidade de todos, aspecto para o qual agora nos deteremos, interrogando-nos sobre os efeitos subjetivos naqueles submetidos a situações de precariedade social, particularmente aquelas marcadas por uma dimensão de exclusão.

EXCLUSÃO, PRECARIEDADE SOCIAL E DESALENTO

Na lógica da exclusão, há incitação a uma condição onipotente, em contraposição à de descarte de sujeitos, lógica própria às modalidades de relação social cuja característica é a presença de desigualdades cada vez mais abissais, com zonas de exceção para todos os lados. Chegamos, assim, aos vividos subjetivos de desalento, tópico de especial relevância em uma reflexão dedicada a modalidades radicais de mal-estar, próprias ao não pertencimento, à exclusão social, em suma, às condições extremas de precariedade social.

Na obra freudiana, sobretudo em Mal-estar na civilização, expõe-se a que ponto a vida em sociedade é produtora de mal-estar, a busca pela felicidade tornando-se um projeto irrealizável, ao menos, limitado em suas possibilidades. No discurso freudiano, isso se dá tanto pelas renúncias à agressividade e à sexualidade, condição do estabelecimento da comunidade, quanto pelo desamparo, o qual emerge pela dependência às relações com outros seres humanos. O sentimento de desamparo, por mais que possa ser atenuado pela proteção oferecida pelo pertencimento a uma comunidade ante a ameaça da força bruta, das intempéries da natureza e das limitações do corpo, segue presente, na medida em que o sofrer experimentado com maior dor pelo sujeito é aquele que Freud (1930/2010FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 13-123. (Obras completas, 18)) supõe advir da “fonte social”. Este concerne não apenas ao medo da perda do amor do outro - que nos faz precários ao longo de toda a nossa vida - mas igualmente ao que resulta da insuficiência das normas reguladoras dos vínculos humanos, o laço social.

No entanto, se Freud (1930/2010FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 13-123. (Obras completas, 18)) apresenta alguns apontamentos para pensarmos o mal-estar na cultura, as situações de exclusão social radical nos convidam a considerar outra modalidade de mal-estar tratada aqui, de forma esquemática, como um mal-estar “de fora” da cultura. Com relação ao mal-estar na cultura, retomemos o impasse colocado na parábola dos porcos-espinhos de Schopenhauer, citada por Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13-113. (Obras completas, 15)), na qual o sujeito é colocado, apontam Reino e Endo (2011REINO, L. M. G.; ENDO, P. Três versões do narcisismo das pequenas diferenças em Freud. Trivium, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 16-27, 2011. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-48912011000200004&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 18 ago. 2023.
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), entre dois opostos: o frio e o espinho. De um lado, o frio como o primeiro mal, colocando-nos diante da impossibilidade de sobrevivermos sozinhos, de outro lado, os espinhos, enquanto um segundo mal, comportando a impossibilidade do viver junto.

Logo, diante da impossibilidade de prescindir do outro e também de estar com o outro, o sujeito precisa se constituir em uma báscula de avanços e recuos a partir dos quais algum modo de laço, em meio às restrições e exigências sociais, torne-se possível. É sob um solo de ambivalência que o mal-estar na cultura se assenta, sofrimento este marcado por uma precariedade que seria própria ao desamparo, neste caso, com caráter constitutivo. Este vem impor uma construção de si sem garantias, balizada por certos referentes a partir dos quais o sujeito se assegura, não sem impasses, de sua “autopreservação”. No entanto, quando nos referimos a um mal-estar “de fora” da cultura, situamo-nos em outro nível de precariedade, sem refúgio assegurado, nem mesmo entre espinhos, tratando-se de uma confrontação a um frio sem fim. Neste caso, a renúncia pulsional não é acompanhada de prerrogativas, mesmo falhas e limitadas quanto a formas de proteção e pertencimento a uma comunidade onde pudesse efetivamente se dar a substituição da força bruta pelo Estado de Direito.

Neste ponto, reforçamos o caráter didático dessa distinção, já que, conforme indicamos acima, o espaço do dentro e do fora não são realidades isoladas uma da outra; por mais que se busque criar limites fixos e estanques entre esses territórios, seu caráter é contingente e interseccional. Porém, é preciso estabelecer distinções entre essas formas de mal-estar, na medida em que estamos diante de modalidades de contrato social onde apenas uma parcela da população é abarcada, seu “resto” sendo colocado em situação de impossibilidade de participação do pacto social e, portanto, de um sistema de reconhecimento do sujeito como membro de uma coletividade. Essa modalidade de mal-estar remete não apenas às múltiplas violências às quais se vêem expostos esses sujeitos e às privações a eles impostas no campo material, mas remete, com ainda maior contundência, a emblemas identificatórios e a recursos simbólicos que deveriam ser disponibilizados pelo coletivo.

A este respeito, Furtos (2011FURTOS, J. La précarité et ses effets sur la santé mentale. Le Carnet PSY, v. 156, n. 7, p. 29-34, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.3917/lcp.156.0029. Acesso em: 14 jun. 2022.
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) apresenta relevante posição explorando formas de mal-estar que seriam decorrentes da exclusão social. Propõe que, mesmo havendo uma precariedade psíquica dita “normal” - a qual todos estariam inevitavelmente expostos, com origem na condição de desamparo -, é preciso conceber outra modalidade de precariedade, exacerbada, que não concerne a uma ordem constitutiva ou insuperável, mas que nos dá notícias da qualidade dos vínculos sociais e da forma como vem a se materializar de acordo com o lugar de cada um no laço social. Sustenta o autor que a precariedade psíquica normal diz respeito à dependência fundamental do outro, que funda o aparelho psíquico a partir do vínculo e de sua ambivalência; o sujeito nunca se desfazendo de sua condição de impotência e incompletude.

É apenas através do reconhecimento de uma relação de reciprocidade que um indivíduo pode ser considerado digno de existir por seu grupo de pertencimento. No que tange à precariedade psíquica exacerbada, no entanto, de ordem circunstancial, esta é relativa a uma configuração do laço social em que o reconhecimento está barrado, marcado por uma condição extrema, no limite de ejeção da comunidade humana. A exclusão social tem efeitos de minoração, fazendo com que o indivíduo seja reconhecido socialmente na posição de “resto” e “dejeto” da estrutura social, seu lugar no conjunto humano sendo desautorizado.

Ao empreender a distinção entre essas duas modalidades de precariedade psíquica, Furtos (2012FURTOS, J. La clinique psychosociale et la souffrance d’exclusion. In: MARTY, F.; ESTELLON, V. (Eds.). Cliniques de l’extrême. Paris: Armand Colin, 2012.) mostra como o desamparo, condição insuperável, vem a se atualizar nessas situações sociais, impactando não apenas a qualidade da vida psíquica dos sujeitos, mas, igualmente, suas condições materiais de existência. Esse entrecruzamento entre dimensão material e subjetiva no fenômeno da exclusão social é bem elaborado pelo autor através da noção de objetos sociais. Estes são importantes mediadores da inserção do sujeito no laço social, pois desempenham papel de segurança, de status e de vínculo. Trata-se de objetos de mediação social dos mais diversos tipos, variando desde aqueles mais concretos - tais como bens, dinheiro - até o acesso a serviços e funções produtivas - tais como saúde, trabalho e educação.

O objeto social extrapola, no entanto, sua própria concretude, apesar de dela não prescindir, representando uma forma de segurança, por serem recursos organizadores da vida social, bem como por permitirem a ocupação de um lugar no ideal de determinado grupo social. Funciona, em última instância, como elo social a partir do qual o sujeito tem sua existência reconhecida pelo coletivo, autorizando ou interditando as relações. Ao perdê-los ou ver-se ameaçado de sua perda, o sujeito se vê desprovido da capacidade de troca do que é humano com outros humanos, sua aquisição não se restringindo ao campo do “ter” posto que essa perda o coloca em impasse no campo do “ser”.

Os objetos sociais evidenciam a importância do pertencimento do sujeito ao coletivo, no que concerne à qualidade da vida psíquica; sua perda reflete a perda no âmbito da relação com o outro, podendo desencadear, por sua vez, assinala Furtos (2011FURTOS, J. La précarité et ses effets sur la santé mentale. Le Carnet PSY, v. 156, n. 7, p. 29-34, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.3917/lcp.156.0029. Acesso em: 14 jun. 2022.
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), uma tripla perda de confiança no vivido do sujeito: perda de confiança em um outro que reconheça sua existência; perda de confiança em si e em sua dignidade de existir; e, igualmente, perda de confiança no futuro, que assume neste caso a tonalidade de ameaça, de catástrofe ou mesmo de desaparecimento do horizonte de possibilidades. Em situação de precariedade social, o sujeito pode se ver diante de um vivido de desespero, de se sentir como não fazendo parte da humanidade, sofrimento, de uma só vez, de natureza social e psíquica.

A escolha do termo precariedade é justificada por Furtos (2011FURTOS, J. La précarité et ses effets sur la santé mentale. Le Carnet PSY, v. 156, n. 7, p. 29-34, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.3917/lcp.156.0029. Acesso em: 14 jun. 2022.
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) pela origem etimológica da palavra, que vem do latim precarĭus, que significa “obtido através de uma prece”, remetendo, em seu primeiro plano, a um endereçamento ao outro, não assegurada de antemão, mas dependendo, portanto, de sua boa vontade. O referido termo permite que se coloque em destaque a dimensão alteritária, diferentemente do termo vulnerabilidade, que diria respeito ao indivíduo em situação de vulnus, de “ferida, lesão”, condição sem uma relação mais direta com a alteridade. A atenção que damos à origem etimológica desses termos permite que a dimensão psíquica da precariedade social possa ser sublinhada por trazer a posição do sujeito no laço social para um primeiro plano de análise. Apesar de seus efeitos serem experimentados de forma singular, ninguém seria intrinsecamente precário a partir de perspectiva apenas individualizada.

É também a partir da relação com uma dimensão alteritária que Birman (2012BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2012.) propõe distinguirmos desamparo e desalento; este último termo vindo designar as situações sociais marcadas justamente pela exclusão e pela violência. O desamparo supõe uma abertura ao outro a qual, por sua vez, é condição primordial da simbolização e temporalização da experiência subjetiva e no estabelecimento de um movimento desejante. Por sua vez, o desalento evidencia uma condenação do sujeito a uma posição solipsista, sem possibilidade de apelo ao outro. Isso remete ao silenciamento a que os sujeitos excluídos do laço social vêem-se submetidos, uma vez que aí são situados a partir de identidades maciças e desqualificadoras.

Sem possibilidade de endereçamento ao outro, o vivido de desamparo tende a se atualizar sob o registro do desalento, marca de um fechamento ao acolhimento do outro. Nas palavras de Birman, “tudo se passa como se a subjetividade acreditasse que estivesse vivendo num eterno presente, no qual a repetição do mesmo fosse tão poderosa que não anunciasse mais qualquer possibilidade de ruptura e de descontinuidade” (BIRMAN, 2012BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2012., p. 9). No desalento da exclusão social, o sujeito é exposto a uma dor à deriva, sem direção de elaboração, sem referência quanto aos seus pontos de partida e de intensificação, dor extraviada, portanto, de sua possibilidade de sentido.

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    Esta pesquisa contou com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES (Bolsa de Doutorado - Programa de Demanda Social e Bolsa de Doutorado Sanduíche no Exterior) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Bolsa de Produtividade de Pesquisa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2023
  • Aceito
    10 Nov 2023
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