Acessibilidade / Reportar erro

O desafio da voz na mulher transgênero: autopercepção de desvantagem vocal em mulheres trans em comparação à percepção de gênero por ouvintes leigos

RESUMO

Objetivo:

analisar a autopercepção de desvantagem vocal de mulheres transgêneros em comparação à percepção de gênero das vozes por ouvintes leigos.

Métodos:

foram eleitas para o estudo 31 mulheres transgêneros. Todas foram submetidas à análise acústica vocal para mensuração da frequência fundamental e desvio padrão. Após, responderam ao protocolo Índice em Desvantagem Vocal, do qual, ao final da coleta de todos os dados, foram selecionadas as questões consideradas mais afeitas às demandas diárias desta população. Subsequentemente, 50 ouvintes leigos foram cegamente expostos às vozes e tiveram de identificar as vozes como sendo masculinas, femininas ou indefinidas. Estatística descritiva foi aplicada para as características das transgêneros e correlação de Spearman para as pontuações do protocolo e a identificação de gênero pelos ouvintes leigos.

Resultados:

a frequência fundamental média encontrada foi de 172,40 Hz (DP=4,8 Hz) e um terço das transgêneros relatou satisfação com a própria voz. Foi encontrada correlação moderadamente significante e positiva nas vozes consideradas masculinas (rs=0,584; p=0,001) e fortemente significante e negativa nas femininas (rs= -0,605; p<0,001). Não houve correlação significativa com o IDV para as vozes consideradas indefinidas (rs=0,320; p=0,079).

Conclusão:

a autopercepção de desvantagem vocal em mulheres trans está diretamente relacionada à percepção de gênero por ouvintes leigos.

Descritores:
Voz; Pessoas Transgênero; Identidade de Gênero; Autoimagem; Percepção Social

ABSTRACT

Purpose:

to analyze the self-perception of transgender women’s voice handicap in comparison to the voices’ gender perception by naïve listeners.

Methods:

31 transgender women, who were first submitted to vocal acoustic assessment and had their voices recorded to measure fundamental frequency and standard deviations, were eligible to the study. Next, they answered to the Voice Handicap Index protocol, from which, at the end of data collection, the most suited questions to the daily demands of this population were selected. Subsequently, 50 naïve blindfolded listeners were exposed to the recordings and had to identify the voices as males, females or undefined. Descriptive statistics were applied to speakers’ characteristics and the Spearman's correlation coefficient was applied to the protocol scores and the speaker's voice identifications.

Results:

the mean fundamental frequency found was 172.40 Hz (SD=4.8Hz) and one third of the transgender women reported being satisfied with their voices. A moderate positive significant correlation was found in voices considered as males, and strongly significant and negative in voices considered as females. For the voices considered undefined, however, no significant correlation was found.

Conclusion:

transgender women’s self-perception of voice handicap is directly related to naïve listeners' perception of their voice gender.

Keywords:
Voice; Transgender Persons; Gender Identity; Self Concept; Social Perception

Introdução

Pessoas transgênero não se identificam como pertencendo ao gênero biológico. Dentre todas as dificuldades enfrentadas por estes indivíduos, a identificação do gênero da voz pode ser considerada a principal, especialmente por mulheres transgênero.

A voz é um importante definidor de gênero, embora seja uma característica sexual secundária 11. Mastronikolis NS, Remacle M, Biagini M, Kiagiadaki D, Lawson G. Wendler glottoplasty: an effective raising surgery in male-to-female transexuals. J Voice. 2013;27(4):516-22.,22. Sandmann K, Zehnhoff-Dinnesen A, Schmidt CM, Rosslau K, Lang-Roth R, Burgmer M et al. Differences between self-assessment and external rating of voice with regard to sex characteristics, age, and attractiveness. J Voice. 2014;28(1):128.e11-28.e18. e é relevante para a mulher transgênero, visto que pode ser “traidora” do gênero ou um último obstáculo para a adequação de gênero frente à sociedade 33. Hancock A, Krissinger J, Owen K. Voice perceptions and quality of life of transgender people. J Voice. 2011;25(5):553-8.. A mudança de gênero de masculino para feminino requer ajustes mais complexos para a adequação da voz à nova identidade social. A voz masculina possui padrões de ressonância, velocidade de fala, intensidade, pitch e outras características supra-segmentais que a diferem da voz feminina 44. Carew L, Dacakis G, Oates J. The effectiveness of oral resonance therapy on the perception of femininity of voice in male-to-female transsexuals. J Voice. 2007;21(5):591-603.,55. Gelfer MP, Tice RM. Perceptual and acoustic outcomes of voice therapy for male-to-female transgender individuals immediately after therapy and 15 months later. J Voice. 2013;27(3):335-47..

A maneira como um indivíduo se comunica é influenciada pela percepção alheia e por como estes outros indivíduos interagem consigo 66. Hancock A, Garabedian LM. Transgender voice and communication treatment: a retrospective chart review of 25 cases. Int Journal of Lang Comm Disord. 2013;48(1):54-65., bem como por fatores secundários como prosódia, peculiaridades articulatórias e vocabulário 77. Neumann K, Welzel C. The importance of the voice in male-to-femaletranssexualism. J Voice. 2004;18(1):153-67.. Tais características também influenciam na percepção da voz 77. Neumann K, Welzel C. The importance of the voice in male-to-femaletranssexualism. J Voice. 2004;18(1):153-67.. Ao se definir o gênero de um falante diversos aspectos, como cultura e sotaque, são levados em conta, pois há associação entre a percepção da voz e a percepção de fala e linguagem do sujeito 88. Miller CL. Developmental changes in male/female voice classification by infants. Infant Behav Dev. 1983;6(3):313-30.. Ainda que uma voz não soe familiar, o ouvinte conseguem ter impressões quanto ao gênero do falante, altura, peso, dentre outros aspectos 99. Mullenix JW, Johnson KA, Topcu-Durgun M, Farnsworth LM. The perceptual representation of voice gender. J Acoust Soc Am. 1995;98(6):3080-95..

Atualmente os transgêneros têm buscado qualidade vocal mais adequada, especialmente as mulheres trans. Estas representam a maior parte desta população (proporção de 3 para 1) 1010. Van Kesteren PJ, Gooren LJ, Megens JA. An epidemiological and demographic study of transsexuals in the Netherlands. Archives of Sexual Behavior. 1996;25(6):589-600., ainda que se saiba que, na literatura, a prevalência de transgêneros é incerta devido a diferenças nos métodos utilizados nas pesquisas, bem como a aspectos sociodemográficos e à diversidade cultural 1111. Schwarz K, Fontanari AMV, Mueller A, Costa AB, Soll B, Silva DC et al. Transsexual Voice Questionnaire for Male-to-female Brazilian Transsexual People. J Voice. 2017;31(1):120.e15-120.e20.. Ainda que tenham feito tratamento hormonal por um longo período de tempo, as modificações na voz são nulas, pois nenhum hormônio por si só eleva a frequência fundamental, reduz massa de prega vocal ou tem efeito duradouro no pitch 77. Neumann K, Welzel C. The importance of the voice in male-to-femaletranssexualism. J Voice. 2004;18(1):153-67.,1212. Spiegel JH. Phonosurgery for pitch alteration: feminization and masculinization of the voice. Otolaryngol Clin North Am. 2006;39(1):77-86.,1313. Hancock A, Colton L, Douglas F. Intonation and gender perception: applications for transgender speakers. J Voice. 2014;28(2):203-9.. Sendo assim, mulheres trans procuram adequar a voz, geralmente, por meio de fonoterapia ou cirurgias, como a tireoplastia, a fim de obter qualidade vocal suficiente para serem identificadas como sendo do gênero feminino em situações de vida diária, especialmente aquelas em que não são fornecidas pistas visuais ao ouvinte, como, por exemplo, durante um telefonema 1111. Schwarz K, Fontanari AMV, Mueller A, Costa AB, Soll B, Silva DC et al. Transsexual Voice Questionnaire for Male-to-female Brazilian Transsexual People. J Voice. 2017;31(1):120.e15-120.e20..

Transgêneros têm suas vozes julgadas diariamente por pessoas sem experiência em análise vocal e tal julgamento pode ter impacto significante na integração do sujeito com sua nova identidade de gênero 1414. McNeill EJM, Wilson JA, Clark S, Deakin J. Perception of voice in the transgender client. J Voice. 2008;22(6):727-33.. Um estudo 1414. McNeill EJM, Wilson JA, Clark S, Deakin J. Perception of voice in the transgender client. J Voice. 2008;22(6):727-33. investigou a relação entre a frequência fundamental da voz, sentimento de feminilidade e satisfação com a própria vozes, e concluiu-se que a felicidade da população estudada não estava diretamente relacionada à frequência fundamental ou à percepção de feminilidade por profissionais da voz ou por ouvintes leigos. Entretanto, foi encontrada correlação moderada a forte entre a própria percepção de feminilidade e a percepção de ouvintes leigos.

Por outro lado, outro estudo 33. Hancock A, Krissinger J, Owen K. Voice perceptions and quality of life of transgender people. J Voice. 2011;25(5):553-8. indicou que a relação entre a classificação de gênero da voz da mulher transgênero por outros ouvintes e por ela mesma, bem como o impacto no bem-estar físico, social e emocional, permanecem incertos. Os autores enfatizaram que a autopercepção de qualidade vocal é essencial para uma transição de gênero bem-sucedida 33. Hancock A, Krissinger J, Owen K. Voice perceptions and quality of life of transgender people. J Voice. 2011;25(5):553-8.. Ter a voz percebida como feminina também melhoraria a autopercepção de qualidade de vida 33. Hancock A, Krissinger J, Owen K. Voice perceptions and quality of life of transgender people. J Voice. 2011;25(5):553-8..

Os estudos mencionados 33. Hancock A, Krissinger J, Owen K. Voice perceptions and quality of life of transgender people. J Voice. 2011;25(5):553-8.,1414. McNeill EJM, Wilson JA, Clark S, Deakin J. Perception of voice in the transgender client. J Voice. 2008;22(6):727-33. foram realizados em países desenvolvidos e demonstraram que uma voz adequada à identidade de gênero implica em melhor qualidade de vida. Não há conhecimento quanto a estudos semelhantes realizados em países em desenvolvimento, onde o tratamento é disponibilizado integralmente pelo sistema público de saúde e há carência de instrumentos adequados e validados para mensurar a satisfação da população geral acerca da qualidade vocal ou desvantagem vocal.

Sendo assim, a voz da mulher transgênero deve ser analisada de acordo com a própria perspectiva e com a de ouvintes leigos, especialmente os que não possuem conhecimento prévio de que a voz ouvida é de origem transgênero, a fim de alcançar identificação de gênero bem-sucedida na sociedade. Assim, o presente estudo tem por objetivo analisar a relação entre as vozes de mulheres transgênero brasileiras e a identificação destas com o gênero feminino, comparando as próprias percepções de desvantagem vocal com a percepção por ouvintes leigos quanto à identidade de gênero e contexto da fala.

Métodos

Todas as mulheres transgênero selecionadas para o estudo foram informadas quanto ao objetivo da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Informado ao início da coleta dos dados (breve entrevista clínica e avaliação acústica vocal com cada uma). O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, sob o número 03-090.

Este é um estudo transversal descritivo, no qual pacientes transgênero que fazem parte do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (PROTIG) de um hospital universitário no sul do Brasil foram selecionados por meio de amostragem de conveniência. Os critérios de inclusão foram ser mulher transgênero assistida pelo PROTIG e concordar em participar da pesquisa durante o período de coleta de dados, independentemente da idade ou de ter submetido-se a cirurgias ou fonoterapia. A coleta de dados ocorreu entre os anos de 2005 e 2012.

Inicialmente, foi realizada breve entrevista clínica com cada mulher trans, consistindo em relatar impressões acerca das próprias vozes (por meio de resposta simples a perguntas como "Você gosta da sua voz?" e "O que você acha da sua voz?") e responder a questões referentes à realização prévia de exame de laringoscopia, tireoplastia e fonoterapia. Após, as vozes foram gravadas (emissão de vogal sustentada /ε/ e contagem de 1 a 20) utilizando um MiniDisc Sony MZ-R50. As gravações foram submetidas a análise acústica vocal para serem caracterizadas quanto à frequência fundamental (média e desvio padrão) por meio do software Vocalgram 1.0 da CTS Informática.

Por fim, para verificar a satisfação geral e possível desvantagem atribuída ao uso diário da voz e funções, responderam ao Índice de Desvantagem Vocal (IDV) 1515. Jacobson HB, Johnson A, Grywalski C, Silbergleit AK, Jacobson GP, Benninger M et al. The Voice Handicap Index (VHI): development and validation. Amer J Speech Lang Pathol. 1997;6(3):66-9.,1616. Behlau M, Santos LMA, Oliveira G. Cross-cultural adaptation and validation of the Voice Handicap Index into Brazilian Portuguese. J Voice. 2011;25(3):354-9.. Embora o IDV seja usualmente aplicado para verificar desvantagem vocal, também é um instrumento apropriado para mensurar aspectos psicossociais de distúrbios vocais. Portanto, algumas das perguntas do IDV foram consideradas, de acordo com a autopercepção e a percepção dos especialistas envolvidos no estudo, com base em um estudo piloto, mais afeitas às demandas vocais das mulheres transgênero, e selecionadas para análise (Figura 1). Estas questões são mais específicas quanto a como a percepção do indivíduo quanto à própria voz se relaciona com a identidade de gênero.

Figura 1:
Questões selecionadas do Índice de Desvantagem Vocal (IDV)

As vozes gravadas foram apresentadas a 50 indivíduos, alunos de um curso de graduação em Farmácia, em uma sala silenciosa. Eles foram solicitados a identificar, em um instrumento adequado de análise auditiva-perceptiva, de múltipla escolha, desenvolvido para o estudo, o gênero do falante como masculino, feminino ou indeterminado (quando a voz leva à confusão de gênero). Os ouvintes não foram informados quanto ao propósito da pesquisa ou expostos a pistas visuais, a fim de evitar indução ao responder. A partir das respostas pôde-se obter a porcentagem de vozes consideradas indefinida, feminina e masculina para cada falante.

Estatística descritiva foi realizada para caracterizar as mulheres trans, a autopercepção vocal segundo o IDV e a percepção dos ouvintes leigos quanto às vozes dos transgêneros, calculando média e intervalo de confiança de 95%, mediana e intervalo interquartil. O teste de normalidade de Shapiro-Wilk e o coeficiente de Spearman 1717. Spearman C. 'Footrule' for measuring correlation. Brit J Psychol. 1906;2:89-108.,1818. Spearman C. The proof and measurement of association between two things. Am J Psychol. 1904;15(1):72-101. foram aplicados para estimar a porcentagem de concordância entre a autopercepção das mulheres trans e a percepção dos ouvintes leigos quanto às vozes destas a um nível de significância de 1% (p≤0.01). Os dados foram analisados por meio do SPSS v.17.

Resultados

Foram considerados elegíveis para o estudo 31 mulheres trans, com idades variando entre 17 e 59 anos. Destas, 12 (38,7%) tinham idades entre 30 e 39 anos, nove (29,0%) foram submetidas a exame de laringoscopia, três (9,7%) foram submetidas à cirurgia de tireoplastia e apenas duas (6,5%) à terapia de voz (Tabela 1). A frequência fundamental média encontrada foi de 172,4 Hz (SD = 4,8 Hz, IC 95% 170,9-174,1).

Tabela 1:
Características clínicas das mulheres transgênero estudadas

Dentre todas as participantes, nove relataram gostar de suas próprias vozes e três, não gostar. Uma participante afirmou gostar parcialmente de sua voz; uma relatou que a autopercepção varia. Duas participantes relataram ter suas vozes identificadas como "senhora". Nenhuma relatou problemas vocais prévios.

A pontuação média do IDV encontrada foi de 18,9 (SD = 17,4; IC 95% 12,8-25,0; mínimo = 0; máximo = 56). Para as questões Funcionais, a pontuação média foi de 4,9 (SD = 4,9; mínimo = 0; máximo = 17), para as questões Físico, foi de 6,4 (SD = 5,2; mínimo = 0; máximo = 18) e para as questões Emocional, 6,9 (SD = 7,7; mínimo = 0; máximo = 23). Em relação às frequências das respostas às perguntas do IDV, nenhuma das mulheres trans respondeu a alternativa "sempre" às perguntas, explicando porque esta resposta não aparece na tabela (Tabela 2). A questão com mais respostas "Quase sempre" foi a 30 ("Tenho vergonha do meu problema de voz ").

Tabela 2:
Frequências de respostas às questões do Índice de Desvantagem Vocal (IDV)

A análise de gênero vocal realizada pelos ouvintes não-especialistas (68% mulheres) identificou 20 vozes (64,5%) como sendo femininas, oito (25,8%), como masculinas e três (9,7%), como indefinidas (quando não era possível identificar o gênero do falante).

Os dados relacionados à desvantagem vocal percebida pelas mulheres transgênero e para a classificação de gênero de suas vozes por ouvintes leigos foram correlacionados (Tabela 3). Não houve correlação significativa com o IDV para as vozes consideradas indefinidas (rs=0,320; p=0,079), uma vez que quanto maior a porcentagem de tais vozes, maiores foram as pontuações do IDV. Foram encontradas correlações significantes moderadamente positivas entre as vozes identificadas como masculinas no IDV (rs=0,584; p=0,001) em comparação com as pontuações de IDV relacionadas à análise perceptivo-auditiva, demonstrando que maiores pontuações de IDV estão significativamente correlacionadas a maiores porcentagens auditivo-perceptivas para vozes consideradas como masculinas. Estes achados refletem em maior desvantagem vocal, bem como em sentimentos de inadequação da voz relacionados ao gênero dentre os indivíduos identificados principalmente como homens. Quanto aos resultados do IDV referentes a vozes identificadas como femininas, as correlações encontradas foram significativamente fortes e negativas (rs= -0,605; p<0,001), demonstrando que pontuações baixas no IDV estão significativamente correlacionadas com menor desvantagem vocal, bem como com sentimentos mais positivos quanto à correlação entre gênero e voz dentre os indivíduos que foram principalmente identificados como mulheres.

Tabela 3:
Análise do Índice de Desvantagem Vocal (IDV) comparado à análise perceptivo-auditiva das vozes

Discussão

O presente estudo analisou a relação entre a autopercepção de mulheres transgêneros quanto às próprias vozes e a percepção do gênero de suas vozes por ouvintes leigos. Os principais resultados mostram que aquelas que consideram suas vozes adaptadas ao gênero desejado, que reportaram satisfação com suas próprias vozes e, consequentemente, apresentaram pontuações mais baixas no IDV, tiveram as vozes mais identificadas como femininas pelos ouvintes leigos. Por outro lado, as participantes com queixas quanto à qualidade vocal e adequação à identidade de gênero, apresentando maiores pontuações do IDV e maior desvantagem vocal, tiveram as vozes mais identificadas como sendo de falantes masculinos.

Nenhuma das participantes transgênero referiu problemas de voz durante o exame inicial clínico, o que poderia explicar o motivo da baixa taxa de participantes que se submeteram anteriormente a exame de laringoscopia, tireoplastia e terapia de voz. Apenas dez indivíduos foram submetidos à laringoscopia, embora esta seja estritamente recomendada antes de se iniciar terapia de voz 33. Hancock A, Krissinger J, Owen K. Voice perceptions and quality of life of transgender people. J Voice. 2011;25(5):553-8..

Outra achado interessante foi em relação à frequência fundamental média encontrada dentre os indivíduos estudados, em 172,4 Hz, abaixo da frequência mínima considerada necessária pela literatura para identificar uma voz como feminina 1919. Gorham-Rowan M, Morris R. Aerodynamic analysis of male-to-female transgender voice. J Voice. 2006;20(2):251-62.,2020. Gelfer MP, Schofield KJ. Comparison of acoustic and perceptual measures of voice in male-to-female transsexuals perceived as female versus those perceived as male. J Voice. 2000;14(1):22-33.. Sabe-se que para considerar uma voz como feminina a frequência fundamental por si só não é suficiente, pois existem inflexões específicas de gênero que não se alteram apenas com o aumento desta 77. Neumann K, Welzel C. The importance of the voice in male-to-femaletranssexualism. J Voice. 2004;18(1):153-67., o que explicaria o fato de que um terço dos participantes tiveram suas vozes identificadas como femininas. Além disso, este achado demonstra que a frequência fundamental não é determinante para que uma mulher trans considere sua voz adequada ao gênero, concordando com outro estudo 1111. Schwarz K, Fontanari AMV, Mueller A, Costa AB, Soll B, Silva DC et al. Transsexual Voice Questionnaire for Male-to-female Brazilian Transsexual People. J Voice. 2017;31(1):120.e15-120.e20..

As pontuações do IDV foram, na maioria, baixas, mesmo comparando o teste inteiro com as perguntas selecionadas - 13.4 nas perguntas selecionadas (SD = 14.3; mínimo = 0; máximo = 42), demonstrando a satisfação geral da população estudada com suas próprias vozes. A pequena diferença entre o teste completo e as questões selecionadas foi devido a questões relacionadas com o uso da voz, como a fadiga, não investigadas no presente estudo. Além disso, presume-se que as diferenças entre as pontuações podem resultar em mudanças na pontuação final de desvantagem vocal.

De mesmo modo, nenhum indivíduo respondeu a opção "sempre" às perguntas. A categoria Emocional do IDV apresentou as pontuações mais altas, demonstrando que questões de cunho emocional afetam a percepção da voz para a adequação do gênero mais do que as de cunho físico ou funcional.

Para as vozes consideradas indefinidas para o gênero, não foi possível estabelecer uma correlação significativa ao se considerar o teste completo. A partir destes achados é possível inferir que mulheres trans têm certa autopercepção de desvantagem relacionada às suas atividades diárias de uso de voz. Isso demonstra que, na percepção de um ouvinte, algo soa "diferente". Nestes casos, a voz não identifica adequadamente o gênero do falante.

Compreender as situações diárias de uso da voz enfrentadas pela mulher transgênero é de grande auxílio para entender suas necessidades 1111. Schwarz K, Fontanari AMV, Mueller A, Costa AB, Soll B, Silva DC et al. Transsexual Voice Questionnaire for Male-to-female Brazilian Transsexual People. J Voice. 2017;31(1):120.e15-120.e20.. O IDV abrange problemas frequentes e situações de voz no dia-a-dia de transgêneros, é validado e amplamente utilizado no país, bem como pelo serviço de monitoramento de transição de gênero no qual a população do estudo foi selecionada, o que justificaria a aplicação deste no presente estudo. Assim, este instrumento poderia ser facilmente comparado ao TSEQ (considerado o instrumento ideal para avaliação vocal de transgêneros) 2121. Davies S. Transgender self-evaluation questionnaire. In: Adler H, Mordaunt M (eds.). Voice and communication therapy for the transgender/transsexual client: a comprehensive clinical guide. San Diego: Plural Publishing; 2006. p. 485-7. devido ao uso da mesma escala de medida 2222. Hancock AB. An ICF perspective on voice-related quality of life of american transgender women. J Voice. 2017;31(1):115.e1-115.e8.. Apesar do que está previamente descrito na literatura 2323. T'Sjoen G, Moerman M, Van Borsel J, Feyen E, Rubens R, Monstrey S et al. Impact of voice in transsexuals. Int J Transgenderism. 2006;9(1):1-7., o presente estudo demonstrou o IDV como uma ferramenta válida para se avaliar a voz da mulher transgênero.

Há algumas limitações no presente estudo. A coleta de dados foi realizada em um dos poucos serviços de monitoramento de transição de gênero espalhados pelo país, o que poderia explicar a razão da maioria das participantes se referir satisfeita com sua voz, bem como a grande quantidade de pontuações baixas no IDV. Em uma população de mulheres trans sem monitoramento especializado, os resultados poderiam ser diferentes, pois poderiam não receber apoio apropriado a questões psiquiátricas e fisiológicas envolvendo a transgeneridade. Este é um estudo pioneiro no Brasil utilizando o IDV para avaliar a desvantagem vocal no transgênero. São escassos os estudos abrangendo dados de desvantagem vocal em transgêneros em países em desenvolvimento, onde os recursos para a saúde são limitados. No Brasil, o tratamento de transição de transgênero é oferecido pelo sistema público de saúde.

A adequação da voz é uma das principais questões que as mulheres transgênero enfrentam durante a transição, e a satisfação ou insatisfação com esta vem a ser um importante parâmetro de como as políticas de transição de gênero estão funcionando no país. Além disso, a avaliação das vozes de transgêneros por ouvintes leigos vem a ser outro parâmetro, simples e barato, de avaliação de adequação de gênero para estas populações, bem como da qualidade e eficácia do tratamento de transição oferecido pelo sistema público de saúde brasileiro.

Conclusão

O presente estudo mostra que a autopercepção das mulheres transgênero quanto à voz e identidade de gênero está diretamente relacionada à percepção de ouvintes leigos quanto às vozes de tais indivíduos serem masculinas e femininas, especialmente quando os ouvintes não têm acesso a outras pistas que possam auxiliar na identificação do gênero do falante. Quanto às vozes consideradas como indefinidas, outros estudos, com amostras maiores, se fazem necessários.

Agradecimentos

Para Heather Beckius, pela revisão em inglês.

References

  • 1
    Mastronikolis NS, Remacle M, Biagini M, Kiagiadaki D, Lawson G. Wendler glottoplasty: an effective raising surgery in male-to-female transexuals. J Voice. 2013;27(4):516-22.
  • 2
    Sandmann K, Zehnhoff-Dinnesen A, Schmidt CM, Rosslau K, Lang-Roth R, Burgmer M et al. Differences between self-assessment and external rating of voice with regard to sex characteristics, age, and attractiveness. J Voice. 2014;28(1):128.e11-28.e18.
  • 3
    Hancock A, Krissinger J, Owen K. Voice perceptions and quality of life of transgender people. J Voice. 2011;25(5):553-8.
  • 4
    Carew L, Dacakis G, Oates J. The effectiveness of oral resonance therapy on the perception of femininity of voice in male-to-female transsexuals. J Voice. 2007;21(5):591-603.
  • 5
    Gelfer MP, Tice RM. Perceptual and acoustic outcomes of voice therapy for male-to-female transgender individuals immediately after therapy and 15 months later. J Voice. 2013;27(3):335-47.
  • 6
    Hancock A, Garabedian LM. Transgender voice and communication treatment: a retrospective chart review of 25 cases. Int Journal of Lang Comm Disord. 2013;48(1):54-65.
  • 7
    Neumann K, Welzel C. The importance of the voice in male-to-femaletranssexualism. J Voice. 2004;18(1):153-67.
  • 8
    Miller CL. Developmental changes in male/female voice classification by infants. Infant Behav Dev. 1983;6(3):313-30.
  • 9
    Mullenix JW, Johnson KA, Topcu-Durgun M, Farnsworth LM. The perceptual representation of voice gender. J Acoust Soc Am. 1995;98(6):3080-95.
  • 10
    Van Kesteren PJ, Gooren LJ, Megens JA. An epidemiological and demographic study of transsexuals in the Netherlands. Archives of Sexual Behavior. 1996;25(6):589-600.
  • 11
    Schwarz K, Fontanari AMV, Mueller A, Costa AB, Soll B, Silva DC et al. Transsexual Voice Questionnaire for Male-to-female Brazilian Transsexual People. J Voice. 2017;31(1):120.e15-120.e20.
  • 12
    Spiegel JH. Phonosurgery for pitch alteration: feminization and masculinization of the voice. Otolaryngol Clin North Am. 2006;39(1):77-86.
  • 13
    Hancock A, Colton L, Douglas F. Intonation and gender perception: applications for transgender speakers. J Voice. 2014;28(2):203-9.
  • 14
    McNeill EJM, Wilson JA, Clark S, Deakin J. Perception of voice in the transgender client. J Voice. 2008;22(6):727-33.
  • 15
    Jacobson HB, Johnson A, Grywalski C, Silbergleit AK, Jacobson GP, Benninger M et al. The Voice Handicap Index (VHI): development and validation. Amer J Speech Lang Pathol. 1997;6(3):66-9.
  • 16
    Behlau M, Santos LMA, Oliveira G. Cross-cultural adaptation and validation of the Voice Handicap Index into Brazilian Portuguese. J Voice. 2011;25(3):354-9.
  • 17
    Spearman C. 'Footrule' for measuring correlation. Brit J Psychol. 1906;2:89-108.
  • 18
    Spearman C. The proof and measurement of association between two things. Am J Psychol. 1904;15(1):72-101.
  • 19
    Gorham-Rowan M, Morris R. Aerodynamic analysis of male-to-female transgender voice. J Voice. 2006;20(2):251-62.
  • 20
    Gelfer MP, Schofield KJ. Comparison of acoustic and perceptual measures of voice in male-to-female transsexuals perceived as female versus those perceived as male. J Voice. 2000;14(1):22-33.
  • 21
    Davies S. Transgender self-evaluation questionnaire. In: Adler H, Mordaunt M (eds.). Voice and communication therapy for the transgender/transsexual client: a comprehensive clinical guide. San Diego: Plural Publishing; 2006. p. 485-7.
  • 22
    Hancock AB. An ICF perspective on voice-related quality of life of american transgender women. J Voice. 2017;31(1):115.e1-115.e8.
  • 23
    T'Sjoen G, Moerman M, Van Borsel J, Feyen E, Rubens R, Monstrey S et al. Impact of voice in transsexuals. Int J Transgenderism. 2006;9(1):1-7.
  • 4
    Pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, em parceria com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Fev 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2017
  • Aceito
    23 Out 2017
ABRAMO Associação Brasileira de Motricidade Orofacial Rua Uruguaiana, 516, Cep 13026-001 Campinas SP Brasil, Tel.: +55 19 3254-0342 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistacefac@cefac.br