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Importância da avaliação sorológica pré-transfusional em receptores de sangue

The importance of pre-transfusional serological screening in blood transfusion recipients

Resumos

A triagem sorológica em doadores de sangue, não possibilita segurança de 100% quanto à possibilidade de transmissão de agentes infecto-contagiosos. O Ministério da Saúde determina a realização de testes para sífilis, hepatite B e C, HIV, doença de Chagas, HTLV I/II e malária nas áreas endêmicas, em todas as unidades de sangue coletadas no Brasil. A amostra do doador deve ficar armazenada por um período mínimo de seis meses. Com relação aos receptores de sangue, o Ministério determina a realização de testes imuno-hematológicos pré-transfusionais tais como classificação ABO/Rh, pesquisa de anticorpos irregulares e testes de compatibilidade. Nesse caso, a amostra do receptor deve ficar armazenada por um período de dez dias. Considerando que algumas patologias testadas, quando não detectadas no doador, podem ser transmitidas e cursar durante décadas sem apresentar sintomas, um estudo de provas entre receptores e seus respectivos doadores fica comprometido. Um recente estudo no Brasil, envolvendo receptores sem passado transfusional, eventual e politransfundidos mostrou uma importante prevalência de patologias que podem ser transmitidas pelo sangue. O estudo revelou também que uma elevada percentagem dos receptores que apresentaram reatividade não tinha conhecimento prévio à transfusão do seu estado sorológico. A segurança transfusional e a importância da aplicação de testes sorológicos em receptores de sangue antes da transfusão são pontos discutidos na presente revisão.

Triagem sorológica; receptores de sangue; transfusão sangüínea; hemoterapia


The serological screening of blood donors does not constitute a 100% guarantee of protection against the possible transmission of infectious and contagious agents. The Ministry of Health determines that tests for syphilis, hepatitis B and C, Aids, Chagas' disease and HTLV I/II, as well as malaria in endemic areas, are mandatory in all the blood collection bags used in Brazil. The samples from blood donors must be stored for six months. Concerning the recipients of blood, the Ministry determines that pre-transfusional immunohematological tests such as ABO/Rh classification, irregular antibody titers and compatibility must be preformed. In these cases, the sample from the recipient is stored for ten days. Considering that some pathologies tested, when not detected in donors, can still be transmitted to the recipients and remain asymptomatic for several decades, a study of cause-effect among recipients and their respective donors is impaired. A recent study in Brazil analyzed recipients of blood without any history of transfusion as well as eventual and multitransfused recipients. It showed an important prevalence of the pathologies transmitted by blood transfusion. The study also revealed that a high percentage of recipients that were reactive, were unaware of their serological status before their transfusion. Transfusional safety and the serological pre-transfusional evaluation in recipients of blood are points discussed in this review.

Serological screening; blood recipients; blood transfusion; hemotherapy


ARTIGO ARTICLE

Importância da avaliação sorológica pré-transfusional em receptores de sangue

The importance of pre-transfusional serological screening in blood transfusion recipients

Cristina F. V. CarrazzoneI,II,III; Ana Maria de BritoI,IV; Yara M. GomesI

ICentro de Pesquisas Aggeu Magalhães - CPqAM/Fiocruz, Recife

IIFundação Hemope, Recife

IIIHospital Oswaldo Cruz — HUOC/Universidade de Pernambuco/UPE, Recife

IVFaculdade de Ciências Médicas — Universidade de Pernambuco/UPE, Recife

Endereço para correspondênciaEndereço para correspondência Yara M Gomes Departamento de Imunologia, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fiocruz — Cidade Universitária 50670-420 — Recife-PE Tel: (81) 33012559 — Fax: (81) 34532449 e-mail: yara@cpqam.fiocruz.br

RESUMO

A triagem sorológica em doadores de sangue, não possibilita segurança de 100% quanto à possibilidade de transmissão de agentes infecto-contagiosos. O Ministério da Saúde determina a realização de testes para sífilis, hepatite B e C, HIV, doença de Chagas, HTLV I/II e malária nas áreas endêmicas, em todas as unidades de sangue coletadas no Brasil. A amostra do doador deve ficar armazenada por um período mínimo de seis meses. Com relação aos receptores de sangue, o Ministério determina a realização de testes imuno-hematológicos pré-transfusionais tais como classificação ABO/Rh, pesquisa de anticorpos irregulares e testes de compatibilidade. Nesse caso, a amostra do receptor deve ficar armazenada por um período de dez dias. Considerando que algumas patologias testadas, quando não detectadas no doador, podem ser transmitidas e cursar durante décadas sem apresentar sintomas, um estudo de provas entre receptores e seus respectivos doadores fica comprometido. Um recente estudo no Brasil, envolvendo receptores sem passado transfusional, eventual e politransfundidos mostrou uma importante prevalência de patologias que podem ser transmitidas pelo sangue. O estudo revelou também que uma elevada percentagem dos receptores que apresentaram reatividade não tinha conhecimento prévio à transfusão do seu estado sorológico. A segurança transfusional e a importância da aplicação de testes sorológicos em receptores de sangue antes da transfusão são pontos discutidos na presente revisão. Rev. bras. hematol. hemoter. 2004;26(2):93-98.

Palavras-chave: Triagem sorológica; receptores de sangue; transfusão sangüínea; hemoterapia.

ABSTRACT

The serological screening of blood donors does not constitute a 100% guarantee of protection against the possible transmission of infectious and contagious agents. The Ministry of Health determines that tests for syphilis, hepatitis B and C, Aids, Chagas' disease and HTLV I/II, as well as malaria in endemic areas, are mandatory in all the blood collection bags used in Brazil. The samples from blood donors must be stored for six months. Concerning the recipients of blood, the Ministry determines that pre-transfusional immunohematological tests such as ABO/Rh classification, irregular antibody titers and compatibility must be preformed. In these cases, the sample from the recipient is stored for ten days. Considering that some pathologies tested, when not detected in donors, can still be transmitted to the recipients and remain asymptomatic for several decades, a study of cause-effect among recipients and their respective donors is impaired. A recent study in Brazil analyzed recipients of blood without any history of transfusion as well as eventual and multitransfused recipients. It showed an important prevalence of the pathologies transmitted by blood transfusion. The study also revealed that a high percentage of recipients that were reactive, were unaware of their serological status before their transfusion. Transfusional safety and the serological pre-transfusional evaluation in recipients of blood are points discussed in this review. Rev. bras. hematol. hemoter. 2004;26(2):93-98.

Key words: Serological screening; blood recipients; blood transfusion; hemotherapy.

Introdução

A hemoterapia, no Brasil e no mundo, tem se caracterizado pelo desenvolvimento e adoção de novas tecnologias objetivando minimizar os riscos transfusionais, especialmente quanto à prevenção da disseminação de agentes infecto-contagiosos.1,2

A transmissão de patógenos através da transfusão necessita basicamente que o doador tenha o agente circulante em seu sangue, que os testes de triagem sorológica não sejam capazes de detectá-lo e que o hospedeiro seja susceptível.3 Além disso, o tropismo de agentes infecciosos por determinado componente do sangue determina a contaminação dos diferentes hemocomponentes (concentrado de hemácias, concentrados de plaquetas, concentrados de leucócitos e plasma). Assim, o Vírus Linfotrópico da Célula T Humana (HTLV) e o Cito­megalovírus (CMV) localizam-se exclusivamente nos leucócitos, o Vírus da Hepatite B (HBV) e o Vírus da Hepatite (HBC) localizam-se preferencialmente no plasma. O Trypanosoma cruzi, agente etiológico da doença de Chagas, pode estar presente em todos os hemocomponentes; o Plasmodium, agente etiológico da malária, encontra-se nas hemácias, e o Vírus da Imunodeficiência Humana Adquirida (HIV), nos leucócitos e plasma.3

Para se obter segurança dos produtos sangüíneos a serem utilizados em transfusões, rígidos parâmetros de qualidade devem ser seguidos. Entende-se por segurança transfusional o conjunto de medidas quantitativas e qualitativas adotadas que vise um menor risco aos doadores e receptores de sangue, além da garantia de estoques estratégicos de sangue capazes de atender à demanda transfusional. Em que pese todo o avanço na busca de segurança transfusional, "não existe transfusão isenta de riscos".4,5,6 Daí a importância de se cumprir com eficiência o ciclo hemoterápico cujo processo se inicia com a captação e seleção de doadores, seguindo-se a triagem soro­lógica e imuno-hematológica, processamento e fracio­namento das unidades coletadas, dispensação, transfusão e avaliação pós tranfusional.7,8,9

A indicação adequada do uso do sangue e componentes, atendendo preceitos da hemoterapia seletiva, vem propiciando uma maior otimização das unidades coletadas e redução quantitativa na exposição dos receptores.6 O Ministério da Saúde determina que, para cada doação efetivada, sejam realizados testes sorológicos para os seguintes patógenos: HIV1 e HIV2, HTLV I e HTLV II, HCV, HBV, T. cruzi, Treponema pallidum, Plasmodium em áreas endêmicas de malária e CMV para pacientes imunos­suprimidos.10

No Brasil, a hemorrede pública encontra-se concebida de forma hierárquica, equânime e descentralizada, sendo responsável por 60% das transfusões realizadas no país, ficando os procedimentos restantes a cargo da rede privada ou conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS).10

Uma breve revisão sobre a segurança transfusional e a importância da aplicação de testes sorológicos em receptores de sangue antes da transfusão serão discutidas a seguir.

Medidas preventivas para doenças com possibilidade de transmissão transfusional

A transmissão de agentes infecto-contagiosos, por meio da transfusão sangüínea, nos hemocomponentes e hemoderivados, caracteriza-se pela reação adversa tardia de maior risco para o receptor de sangue. Minimizar a possibilidade de transmissão de doenças pela transfusão requer ações que possam garantir a segurança do sangue que será transfundido. Essas ações que envolvem a captação de doadores, seleção clínica e epidemiológica, assim como a triagem sorológica dos mesmos, serão comentadas a seguir.

Captação de doadores de sangue

A captação de doadores de sangue, início propriamente dito da hemoterapia, deve ter uma preocupação epidemiológica, objetivando evitar o direcionamento de candidatos à doação que possam estar sob risco de infecção de alguns agentes passíveis de transmissão pelo sangue.10 Nessa etapa, é fundamental afastar pessoas que vivam em maior exposição a risco, a exemplo daqueles indivíduos confinados em regime carcerário, usuários de drogas, promiscuidade sexual, dentre outras.11

Seleção clínica e epidemiológica de doadores de sangue

A seleção clínica e epidemiológica de doadores de sangue significa a fase inicial, e provavelmente a mais importante, na obtenção de segurança transfusional. Buscar doadores espontâneos, benévolos, altruístas e habituais é uma missão para os serviços de hemoterapia em todo o mundo. Trabalhos demonstram que a melhoria do perfil dos doadores de sangue influencia diretamente na qualidade e segurança das unidades coletadas.3 Identifica-se, como indicador de qualidade das unidades de sangue coletadas, a proibição de doação de sangue remunerada a partir da década de 80.10 As normas brasileiras determinam que toda doação seja precedida de triagem clínico-epidemiológica criteriosa dos candidatos à doação. Através de profissional capacitado, a triagem clínica é realizada visando a identificação de sinais e sintomas de enfermidades nos candidatos a doação que possam causar riscos para si próprio ou para o receptor.10,12

Uma vez confirmada a reatividade para as doenças triadas, o doador é encaminhado aos serviços de referência para atendimento específico em cada patologia. A principal característica dos doadores com sorologia reagente é serem acometidos de doença crônica e assintomática, dificultando muitas vezes a sua exclusão na fase de triagem clínica. Outro fator importante, na análise epidemiológica dos candidatos à doação, é a omissão, na triagem clínica, de informações consideradas íntimas (número de parceiros sexuais, utilização de drogas ilícitas, dentre outras). Diante da possibilidade de omissão, por parte dos doadores, de alguma situação de risco, criou-se o voto de auto-exclusão, em que a pessoa pode excluir a sua doação da finalidade transfusional.10,13 Da mesma forma, o doador deve ser informado da importância da veracidade de suas respostas e de sua responsabilidade sobre as mesmas. A motivação não esclarecida do indivíduo procurar o serviço de hemoterapia com o propósito de realizar doação pode sinalizar para interesses pessoais, comprometendo todo o processo de segurança. Nas décadas de 80 e 90, com o aparecimento da Aids, pessoas procuravam a doação de sangue para a realização de testes sorológicos de forma anônima. Com a criação dos Centros de Triagem e Aconselhamento (CTA), a demanda em procurar a doação como meio de obter resultados de exames tende a desaparecer.

Quanto à motivação para a doação de sangue, o doador pode ser identificado como: espontâneo, de reposição, convocado e autólogo. Nenhuma forma de coação deve ser utilizada para induzir a doação. O doador espontâneo e habitual é o mais desejado e, conseqüentemente, aquele com maior possibilidade de promover melhor segurança transfusional.14,15,16

Triagem sorológica

Os testes sorológicos a serem utilizados para a triagem das unidades coletadas devem ter alta sensibilidade e, quando possível, alta especificidade. Ao identificar-se a necessidade da introdução de um novo teste na triagem sorológica, deve-se ter assegurado a disponibilidade de aquisição no mercado, registro no Ministério da Saúde, equipamentos e treinamentos necessários.10 Ainda não há disponível, no mercado mundial, teste sorológico com 100% de sensibilidade e especificidade. A alta sensibilidade dos testes, exigida para uso nos serviços de hemoterapia na seleção laboratorial, visa aumentar a segurança para o receptor. Porém, a alta sensibilidade com baixa especificidade acarreta resultado falso-positivo, podendo trazer sérias conseqüências aos doadores de sangue que terão que lidar com o estigma de um teste supostamente reagente, até o esclarecimento diagnóstico. Para os serviços de hemoterapia isso implica descarte de bolsas e desperdício de sangue.17,18

Os testes chamados de primeira geração, em que o antígeno é obtido por intermédio do lisado do patógeno, utilizados especialmente nas últimas décadas de 80/90, causaram fortes danos emocionais em doadores falsos- positivos e um alto custo para os serviços de hemoterapia, com o descarte de bolsas com suspeita de infecção.18

Nos últimos 30 anos, novos testes de triagem sorológica foram sendo introduzidos, na medida em que os agentes patógenos eram identificados e reagentes disponibilizados. Atualmente, o método Enzyme Linked Immunosorbent Assay (Elisa) é o mais utilizado nos serviços de hemoterapia, por permitir boa reprodutibilidade, fácil execução e possibilidade de automação. Os testes Elisa de segunda e terceira geração utilizam antígenos recombinantes e peptídeos sintéticos, respectivamente. Outros tipos de testes também são utilizados em triagem de doadores de sangue, como por exemplo, hemaglutinação (HA), aglutinação de partículas (AP) e quimioluminescência.6

O emprego dos testes de amplificação e detecção de ácidos nucléicos (NAT) é importante para o esclarecimento de reações indeterminadas nos testes de triagem sorológica, em virtude da elevada sensibilidade e especificidade que os mesmos apresentam.19,20,21

Legislação brasileira que rege a matéria sangue

No Brasil existe amplo disciplinamento quanto à captação de doadores, processamento, seleção e uso do sangue, hemocomponentes e hemoderivados. Particularmente, em relação ao controle de doenças com possibilidade de transmissão através da transfusão sangüínea identificam-se as seguintes diretrizes:10

— Em 1980, por meio da Portaria Interministerial nº 7 (Ministério da Saúde/Ministério da Previdência e Assistência Social), é criado o Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados (Pro-Sangue).

— A Constituição Federal/ 1988, nos artigos 197 e 199, confere ao poder público a regulamentação, fiscalização e controle de ações referentes ao uso de hemoderivados, e a proibição de comercialização de sangue, sob qualquer forma, em todo o território nacional, respectivamente.

— O Decreto nº 95.721/1988, que regulamenta a Lei nº 7.649/1988, estabelecendo a obrigatoriedade do ca­drastamento dos doadores de sangue, bem como a realização de exames laboratoriais no sangue coletado, visando prevenir a propagação de doenças.

— A Lei 10.205/ 2001 estabelece a Política Nacional de sangue e seus derivados, ratificando a proibição da comercialização e regulamenta o parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal.

— A Portaria nº 1.840/ setembro de 1996, do Ministério da Saúde, cria o Programa Nacional de Controle de Qualidade Externo em Sorologia (PNCQES)

— A Portaria nº 1.376/ novembro de 1993, do Ministério da Saúde, aprova alterações na Portaria 721/GM, de 09.08.1989, que define normas técnicas para coleta, processamento e transfusão de sangue, componentes e hemoderivados, obrigando a determinação ABO, Rh(D), antígeno D fraco (Du) e dos testes para identificação das hepatites B e C, doença de Chagas, sífilis, Aids, dos anticorpos anti-HTLV I/II e anti-HBc. Recomenda ainda a realização de testes para exclusão de malária, falcização e hemoglobinas anormais.

— A Resolução nº 343/2002, do Ministério da Saúde, determina a obrigatoriedade da realização de exames laboratoriais de alta sensibilidade em todas as doações, para identificação das doenças transmissíveis pelo sangue, além de recomendar que: "Estes exames devem ser feitos em amostra colhida do dia a ser testada com conjunto diagnóstico ("kits") registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em laboratórios específicos para tal fim. Fica vedada a realização de exames em "pool" de amostras de sangue. Caso surjam novas tecnologias que tenham aplicação comprovada pela Anvisa para utilização em "pool", essa proibição será reconsiderada. O sangue total e/ou seus componentes não podem ser transfundidos antes da obtenção de resultados não reagentes".10

Avaliação sorológica pré-transfusional em receptores de sangue

No Brasil, a Portaria 1376/93, reforçada pela resolução nº 343 MS/2001, determina a realização de testes de triagem sorológica nos serviços de hemoterapia para sífilis, doença de Chagas, hepatite B e C, Aids, HTLV e malária. Quanto aos receptores de sangue, a referida portaria determina a realização de testes imuno-hematológicos, quais sejam, ABO/Rh, pesquisa de anticorpos irregulares (PAI) e testes de compatibilidade (Prova Cruzada).10

Embora haja conhecimento do perfil clínico, epidemiológico e sorológico dos doadores de sangue, não se conhecem esses dados a respeito dos receptores de sangue no Brasil, em especial aqueles que necessitam de sangue eventualmente. Consideramos receptor eventual aqueles pacientes que necessitam de transfusão de forma esporádica (politraumatizados, queimados, submetidos a cirurgia de grande porte, etc). Em contraposição, o receptor politransfundido (leucêmicos, talassêmicos, hemofílicos) carece de transfusão freqüentemente.

Em relação ao doador, existe a possibilidade de rastreamento mesmo após anos da realização da transfusão, no caso do aparecimento de doença infecto-contagiosa no receptor imputada ao recebimento de sangue. No entanto, dentro do modelo ora praticado, não se pode afirmar o estado sorológico do receptor no momento da necessidade transfusional. A resolução nº 343/2002 da Ministério da Saúde determina que "amostra dos doadores de sangue seja armazenada por um período de, no mínimo, seis meses e dos receptores por apenas dez dias". Considerando que algumas patologias testadas, quando não detectadas no doador (ex: hepatite C, HTLV e doença de Chagas), podem ser transmitidas e cursar durante décadas sem apresentar sintomas, um estudo de provas entre receptores e seus respectivos doadores fica comprometido. Estes fatos mostram a necessidade de estudos que avaliem o perfil sorológico pré-transfusional do receptor de sangue, especialmente o eventual e aquele sem passado transfusional. A detecção de uma determinada patologia transmitida pelo sangue, em um receptor antes da transfusão, contribuirá para adoção de medidas terapêuticas precoces propiciando dessa maneira a minimização do risco de co-morbidade. Além disso, respaldaria o Estado e os serviços de hemoterapia quanto à sua isenção como órgão responsável pela infecção imputada à transfusão, em casos de demanda judicial.

A literatura relacionada a esse tema envolvendo o receptor eventual ou aquele sem passado transfusional é escassa. Recentemente, uma avaliação do perfil sorológico pré-transfusional de receptores de sangue (n=85) foi realizada no Hospital Universitário Oswaldo Cruz da Universidade de Pernambuco (UPE).22 Esse estudo, pioneiro no Brasil, envolveu três grupos de receptores: sem passado transfusional, politransfundidos e eventuais. Os resultados revelaram que 37 (43,6%) foram reagentes aos mesmos testes de triagem sorológica utilizados para doadores. Destes, 23,1% foram reativos para sífilis, 3,8% para Aids, 11,5% para hepatite C, 61,1% para hepatite B e 7,7% para doença de Chagas.22 É importante salientar que 26 (70,3%) dos receptores que apresentaram reatividade não tinham conhecimento prévio à transfusão do seu estado sorológico. Segundo Carrazzone (comunicação pessoal), deve ser ressaltada a elevada porcentagem (40%) dos receptores sem passado transfusional que se motraram reagentes na sorologia aplicada. Apesar de preliminares, esses dados podem ser considerados um alerta e demonstram a necessidade de outras avaliações, inclusive mais amplas, dos testes pré-transfusionais ratificando o entendimento da Anvisa,23 que reconhece que, "somente com a realização de testes específicos nos receptores, antes da transfusão sangüínea, seria possível assumir a correlação entre uma transfusão sangüínea e a contaminação".

Discussão

As medidas pré-transfusionais como a captação e seleção de doadores, somados aos testes de triagem sorológica, diminuem sensivelmente a possibilidade de transmissão de doenças por meio de transfusão, mas não isenta de riscos para os receptores. Embora todas as ações hemoterápicas visem garantir sangue com segurança para seus receptores, pouco se conhece a respeito dos pacientes que necessitam de sangue, em especial aqueles que recebem eventualmente uma transfusão.

A literatura sobre a transmissão de agentes patógenos por transfusão de sangue em população politransfundida, como hemofílicos, talassêmicos, leucêmicos, é relativamente ampla.24,25,26 Em contraposição, com relação ao receptor eventual, no Brasil, em relatos oficiais registra-se apenas o total de transfusões realizadas a cada ano. Considerando que os testes para triagem sorológica não apresentam 100% de sensibilidade e especificidade, e, ainda, pela possibilidade da não identificação de doenças durante a triagem clínica, na grande maioria de curso assintomático, corre-se o risco de transmissão de patógenos em fase de janela imunológica.27 A amostra de sangue do doador é armazenada por, no mínimo, seis meses, enquanto a do receptor por apenas dez dias. Caso haja necessidade de esclarecimentos sobre o aparecimento de doença pós-transfusional em receptores de sangue, em especial nas doenças crônicas, nas recomendações atuais,10 a contraprova doador versus receptor fica comprometida.

Um outro aspecto a ser considerado, com respeito à possibilidade de infecção pós-transfusional, é a fragilidade do próprio Estado brasileiro quando, por meio de dispositivo legal, afirma ser "seu dever garantir a segurança transfusional a todo cidadão", sem no entanto criar qualquer mecanismo de conhecimento prévio do receptor. Os resultados da avaliação preliminar do perfil sorológico em receptores de sangue do Hospital Universitário Oswaldo Cruz/UPE, com um percentual de 43,6% de reagentes a pelo menos um dos testes de triagem22, corroboram essa preocupação.

Conclusão

Os pontos discutidos na presente revisão mostram que as medidas qualitativas e quantitativas adotadas para uma transfusão de sangue segura têm sido aprimoradas, cabendo aos orgãos públicos e privados o cumprimento das mesmas. No entanto, os pontos discutidos também apontam uma prevalência de doenças transmissíveis pelo sangue em receptores, inclusive naqueles sem passado transfusional, que merecem atenção não apenas da comunidade científica mas também dos órgãos de políticas de saúde.

Recebido: 30/12/2003

Aceito após modificações: 20/04/2004

Avaliação:

Conflito de interesse: não declarado

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  • Endereço para correspondência
    Yara M Gomes
    Departamento de Imunologia, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fiocruz — Cidade Universitária
    50670-420 — Recife-PE
    Tel: (81) 33012559 — Fax: (81) 34532449
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      20 Abr 2004
    • Recebido
      30 Dez 2003
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