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Talassemia beta maior: uma nova era

Beta thalassaemia major: a new era

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Talassemia beta maior: uma nova era

Beta thalassaemia major: a new era

Rodolfo D. Cançado

Professor Adjunto da Disciplina de Hematologia e Oncologia. Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Médico do Serviço de Hematologia e Hemoterapia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo

Correspondência Correspondência: Rodolfo Delfini Cançado Hemocentro da Santa Casa de São Paulo Rua Marquês de Itú, 579 - 3º andar 01223-001 - São Paulo-SP - Brasil Tel.: (+55 11) 21767255

Talassemias constituem um grupo heterogêneo de doenças geneticamente determinadas, que se caracterizam por defeito na síntese de uma ou mais cadeias polipeptídicas da hemoglobina.1,2

Transfusão regular de hemácias e uso de deferoxamina (DFO) subcutânea, quando utilizados de forma adequada, conferem aos pacientes com talassemia beta maior taxa de sobrevida global de 95% aos 40 anos.3 Entretanto, a maioria dos pacientes não consegue realizar o tratamento com DFO de forma adequada. A baixa adesão ao tratamento associada à baixa disponibilidade de DFO e/ou do aparelho infusor em alguns países são as principais causas de insucesso dessa terapia.

A realidade descrita anteriormente motivou a procura e o desenvolvimento de novos agentes quelantes de ferro que apresentassem eficácia e segurança semelhantes à DFO, porém de administração oral, sem o inconveniente da necessidade de infusões subcutâneas por tempo prolongado. Entre centenas de quelantes estudados, a deferiprona e, mais recentemente, o deferasirox passaram a fazer parte do arsenal terapêutico disponível para o tratamento de pacientes com talassemia e sobrecarga de ferro.4,5,6

A maioria das manifestações clínicas observadas na talassemia beta maior está diretamente relacionada a dois principais conjunto de fatores: 1) intensidade da hemólise crônica, capacidade de compensação frente a anemia, efeitos da hipóxia crônica, esplenomegalia e alterações ósseas, e, portanto, quanto melhor o tratamento transfusional menor o risco e intensidade destas complicações; 2) riscos relacionados à transfusão de hemácias, como transmissão de doenças infecciosas, aloimunização, mas, sobretudo, as complicações relacionadas à sobrecarga de ferro que, por sua vez, depende da qualidade e grau de adesão ao tratamento ferroquelante, com a finalidade de manter o balanço corporal de ferro negativo e, ao mesmo tempo, evitar os efeitos adversos associados ao uso excessivo do agente ferroquelante.7

A etiologia das alterações ósseas é multifatorial e inclui, além da hipóxia crônica e hiperplasia eritróide, diminuição dos níveis de hormônio da paratireóide, deficiência de vitamina D, hiperatividade dos osteoclastos com consequente aumento da fosfatase alcalina, diminuição dos níveis séricos de oligo-elementos, principalmente de zinco, cobre, alumínio e manganês, associados ao uso de deferoxamina.7

O estudo de Vicari et al.,8 publicado neste fascículo, traz importante contribuição pelos resultados obtidos com o estudo da densidade óssea mineral em crianças brasileiras com talassemia maior.

Com relação à sobrecarga de ferro, na ausência de tratamento adequado, o ferro em excesso deposita-se gradativamente em vários órgãos ou tecidos, principalmente no fígado, baço, miocárdio, glândulas endócrinas e medula óssea, ocasionando lesão celular e tecidual, fibrose e insuficiência funcional.6

Sem dúvida, o comprometimento cardíaco é uma das principais complicações da sobrecarga de ferro, está diretamente relacionado à terapia ferroquelante e é considerado como principal causa responsável de óbito em pacientes portadores de talassemia beta maior.6,9,10

Olivieri et al., estudando pacientes com beta talassemia maior, demonstraram que, para um mesmo paciente, quanto mais tempo a ferritina for menor que 2.500 ng/ml, menor a chance de doença cardíaca e maior a sobrevida deste paciente (taxa de sobrevida global em 15 anos de 90%). Assim, a determinação periódica (bimensal ou trimestral) da ferritina sérica é indispensável para o seguimento de pacientes em transfusão regular de hemácias.11

O estudo de Angulo et al.,12 também publicado neste fascículo, enfatiza a importância da quantificação do ferro hepático e miocárdico determinada pela ressonância nuclear magnética (RNM), e da correlação deste método com a ferritina sérica na estratificação do grau de sobrecarga de ferro e, portanto, na conduta terapêutica a ser tomada em função destes achados.

A RNM é um método não-invasivo bastante sensível na determinação da quantidade de ferro do organismo, sobretudo do fígado e coração (técnica do T2*), e tem proporcionado, de maneira mais fidedigna que a ferritina sérica, o diagnóstico precoce de sobrecarga de ferro bem como melhor monitoramento do paciente em terapia quelante de ferro.6

Recentemente, Borgna-Pignatti et al. demonstraram maior sobrevida aos pacientes italianos com talassemia beta maior, possivelmente relacionada à melhor avaliação da sobrecarga de ferro, incluindo a avaliação miocárdica através da técnica do T2* e utilização de agentes quelantes orais, sobretudo da terapia combinada DFO e deferiprona. Este esquema terapêutico oferece maior proteção cardíaca e, portanto, menor ocorrência de complicação cardíaca e menor mortalidade.13 Mais recentemente, o deferasirox também tem se mostrado eficaz, não apenas em remover o excesso de ferro hepático, mas também é capaz de oferecer proteção cardíaca, mesmo sendo utilizado como monoterapia.

Diante do exposto anteriormente, constatamos que os pacientes com talassemia beta maior estão tendo a oportunidade de viver mais e melhor. Cabe a nós, médicos e profissionais da área da saúde, conjuntamente com a atuação dos órgãos competentes dos governos federal e estadual, bem como das associações que representam os pacientes com talassemia beta maior, prover acompanhamento clínico e laboratorial capaz de prevenir, detectar e tratar precocemente complicações como a osteopenia e osteroporose, além de ajudá-los a entender a real importância do tratamento transfusional adequado e da melhor adesão possível à terapia ferroquelante.

Recebido: 02/12/2008

Aceito: 03/12/2008

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

  • 1. Olivieri NF. The ß-Thalassemias. N Engl J Med 1999;341:99-109.
  • 2. Cançado RD. Talassemias alfa. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2006;28:86-7.
  • 3. Gabutti V, Piga A. Results of long-term iron-chelating therapy. Acta Haematol. 1996;95:26-36.
  • 4. Neufeld EJ. Oral chelators deferasirox and deferiprone for transfusional iron overload in thalassemia major: new data, new questions. Blood. 2006;107:3436-41.
  • 5. Cappellini MD, Cohen A, Piga A, et al. A phase 3 study of deferasirox (ICL670), a once-daily oral iron chelator, in patients with beta-thalassemia. Blood. 2006;107:3455-62.
  • 6. Cançado RD. Sobrecarga e quelação de ferro na anemia falciforme. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2007;29:316-26.
  • 7. Cançado RD. Talassemias - Manifestações Clínicas e Tratamento. In: Naoum PC. Hemoglobinopatias e Talassemias. São Paulo, 1997, p. 120-136.
  • 8. Vicari P, Correa MMP, Szejnfeld VL, Figueiredo MS, Cavalheiro RCR, Yamamoto M. Densidade mineral óssea em crianças talassêmicas: uma experiência brasileira. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2008;30(6):445-8.
  • 9. Borgna-Pignatti C, Cappellini MD, De Stefano P et al. Survival and complications in thalassemia. Ann N Y Acad Sci. 2005;1054:40-7.
  • 10. Zurlo MG, De Stefano P, Borgna-Pignatti C, et al. Survival and causes of death in thalassaemia major. Lancet. 1989;2:27-30.
  • 11. Olivieri NF, Brittenham GM. Iron-chelating therapy and the treatment of thalassemia. Blood. 1997;89:739-61.
  • 12. Angulo IL, Covas DT, Carneiro AA, Baffa O, Elias Junior J, Vilela G. Determination of iron-overload in thalassemia by hepatic MRI and ferritin. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2008;30(6):449-52.
  • 13. Borgna-Pignatti C. Surviving with thalassemia major: the Italian experience. Pediatr Hematol Oncol. 2007;24:75-8.
  • Correspondência:

    Rodolfo Delfini Cançado
    Hemocentro da Santa Casa de São Paulo
    Rua Marquês de Itú, 579 - 3º andar
    01223-001 - São Paulo-SP - Brasil
    Tel.: (+55 11) 21767255
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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