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O ROMANCE FAMILIAR EM QUE CAVALOS SÃO AQUELES QUE FAZEM SOMBRA NO MAR?, DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES

THE FAMILY NOVEL IN QUE CAVALOS SÃO AQUELES QUE FAZEM SOMBRA NO MAR?, BY ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Resumo

Neste artigo, refletimos sobre as aproximações entre o que se convencionou chamar romance familiar pós-moderno e o romance Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009), de António Lobo Antunes. Mais especificamente, buscamos compreender o diálogo entre a narrativa antuniana e a constituição romanesca que se tem mostrado sensível às alterações da estrutura familiar contemporânea. Explicitando a tendência da geração de escritores portugueses que despontaram literariamente com a Revolução de Abril de 1974, a perda da função original dos núcleos familiares figura no romance tanto através da fragmentação formal, quanto através da problematização temática, ao revelar conflitos familiares profundos que deixam feridas psicológicas extremas e assim contestam, definitivamente, a moralidade conservadora e a ordem patriarcal.

Palavras-chave
romance familiar pós-moderno; António Lobo Antunes; estrutura familiar contemporânea

Abstract

In this paper, we reflect on approximations between what is conventionally called postmodern family novel and the novel Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009), by António Lobo Antunes. More precisely, we try to understand the dialogue between the Antunes’s narrative and the fictional constitution which have been shown sensitive to the transformations of contemporary familial structure. Making explicit the inclination of generation of Portuguese writers who emerged literarily with the April Revolution, the loss of the original function of the family pictures in the novel both through the formal fragmentation, and through the thematic problematization, revealing deep familial conflicts which imply extreme psychological wounds and therefore contest, definitely, the conservative morality and the patriarchal order.

Keywords
postmodern family novel; António Lobo Antunes; contemporary familial structure

Resumen

En este artículo, reflexionamos sobre las aproximaciones entre lo que se suele llamar romance familiar pos-moderno y el romance Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009), de António Lobo Antunes. Más específicamente, buscamos comprender el diálogo entre la narrativa antuniana y la constitución romanesca que se ha demostrado sensible a las transformaciones en la estructura familiar contemporánea. Explicitando la tendencia de la generación de escritores portugueses que desconcertaron literariamente con la Revolución de Abril de 74, la pérdida de la función original de los núcleos familiares figura en el romance tanto a través de la fragmentación formal, cuanto a través de la problematización temática, mediante la revelación de conflictos familiares profundos que dejan heridas emocionales extremas e así contestan, definitivamente, la moralidad conservadora e la orden patriarcal.

Palabras-clave
romance familiar pos-moderno; António Lobo Antunes; estructura familiar contemporánea

Surgido enquanto termo designatório de um subgênero do romance cujo assunto primordial são as relações familiares e não raramente a sequência de três ou mais gerações, o “romance familiar” tem origem na Europa, no século XIX. Na tese The Family Novel in North America from Post-War to Post-Millennium: A Study in Genre (2005), Kerstin Dell explora o desenvolvimento do romance familiar a partir da segunda metade do século XX. Aproximando-se de obras como White Noise (1985), de DeLillo e The Corrections (2001), de Jonathan Franzen, procura demonstrar que esses romances dialogam com as transformações socioculturais do período, representando, na ficção, as novas funcionalizações assumidas pela família do período pós-guerra ao pós-milênio.

O trabalho do estudioso alemão consiste, em suma, em uma reavaliação crítica das mudanças e desenvolvimentos do romance familiar americano nas últimas cinco décadas. Na concepção de Dell (cf. 2005: 17-26)DELL, Kerstin. The Family Novel in North America from Post-War to Post-Millennium: A Study in Genre. Tese de doutorado. 239 p. Trier: Universität Trier, 2005., as críticas realizadas por autores como Philip Tody, em The Politics of the Family Novel. Is Conservatism Inevitable? (1969), Roger Boyers, em The Family Novel (1974), e Christopher Flint, em Family Fictions. Narrative and Domestic Relations in Britain (1998), baseadas em aspectos que apontariam ao conservadorismo da forma e do conteúdo das narrativas familiares do século XIX e início do século XX, tornaram-se inefetivas para a abordagem do romance familiar da segunda metade do século XX. Reconhece, a despeito disso, que tais críticas permitem depreender a unanimidade da consideração do século XIX como o período do apogeu do romance familiar: se a perspectiva e a técnica realista seriam as mais adequadas à representação da família que resistia em se manter intacta e funcional em um período em que o núcleo familiar tradicional começava a perder muitas das funções que detinha no passado, então os romances familiares necessariamente devem ter tido seu auge em um tempo em que o realismo dominava o romance.

O modo de realização do romance familiar no período que se convencionou denominar pós-modernismo é explorado pelo autor no capítulo “The Postmodern Family Novel. Nele, Dell (2005: 99-110)DELL, Kerstin. The Family Novel in North America from Post-War to Post-Millennium: A Study in Genre. Tese de doutorado. 239 p. Trier: Universität Trier, 2005. se propõe a delinear alguns aspectos essenciais dos novos temas e preocupações do subgênero, em diálogo com as transformações que o próprio romance experimenta a partir da segunda metade do século XX. Sem objetivar uma delimitação conclusiva, considerando que as questões relacionadas ao “pós-moderno” e à “pós-modernidade” constituem uma discussão em curso, assegura que o romance pós-moderno – e, por extensão, o subgênero romance familiar pós-moderno –, nas suas mais diversas realizações, compartilha algumas hipóteses básicas sobre a linguagem, a representação, a literatura e os limites da percepção humana. Alguns desses pressupostos manifestam-se de modo mais ou menos radical no tratamento temático prevalente nesses romances, em geral não propensos a uma interpretação definitiva, mas abertos a sucessivas linhas de fuga.

De acordo com Dell, alguns desses romances seriam escritos em um estilo radical, dispensando noções convencionais de tempo, organização do enredo, sequência de eventos, figuração de personagens, ou mesmo coerência de sentença ou parágrafo. Na nova estética, parece importar a atitude que o texto denuncia, a celebração ou o lamento advindo da perda da estabilidade ou da identidade, o questionamento acerca do sentido da vida e da função da arte. Conforme o estudioso, em virtude das alterações fundamentais na estrutura familiar contemporânea, muitos autores parecem sentir que o núcleo familiar tem perdido sua função original de proporcionar amor, abrigo e valores, destituindo-se de sensibilidade e significado – o que, em maior ou menor medida, tem tido ressonância sobre o romanesco.

Ao nos aproximarmos do contexto de produção do nosso objeto de estudo, encontramos marcas evidentes dessa problemática. Segundo José Gil, em “Da economia dos afetos” (2012), Portugal mantem-se uma sociedade aparentemente aberta às transformações mundiais mas fechada em seu interior. O fechamento a que se submete resulta do apego aos modelos antigos que não produzem novas ideias e impedem novos modos de adaptação e novos discursos éticos. Tais modelos, contudo, já não possuem papel predominante na vida nacional em função das transformações socioeconômicas experimentadas. No que diz respeito à família, José Gil salienta o processo de desagregação por que tem passado:

As separações, os divórcios com todas as sequelas que arrastam; a adolescência cada vez mais ameaçada, os pais que já não sabem lidar com os filhos, a solidão crescente das mulheres, jovens e menos jovens; o abandono dos velhos; a baixa da taxa de natalidade; o desaparecimento da sociedade rural, a falta de emprego, etc., etc. – tudo isso contribuiu para o desaparecimento da antiga família, regida por normas tradicionais, ancestrais. (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 53-54)

Se no plano dos conceitos e das idealizações o conservadorismo prevalece, no plano das vidas reais as mudanças na estrutura familiar são inegáveis. O núcleo familiar tradicional, a despeito dos problemas que sempre lhe foram inerentes, constituía antes “um núcleo de base que agia positivamente para a manutenção do equilíbrio no campo social” (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 54). Tal núcleo, segundo Gil, teria sido o responsável por fomentar a criação de uma singular forma de “afetividade social”, o “familiarismo”: a atividade familiar representava um “eixo essencial” (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 54) sobre o qual se assentava todo o mundo português, desde a própria família até o Estado. O familiarismo teria encontrado sua grande expressão no período ditatorial: sob uma atmosfera política opressiva, servia como forma de abrigo, “insuflando afetividade pessoal numa vida materialmente, intelectualmente, espiritualmente e existencialmente pobre” (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 54). Além disso,

a família e a relação social regida pelo familiarismo surgiam como os únicos lugares de possível inscrição do indivíduo. Não que aí acontecesse de fato qualquer coisa que transformasse a experiência pessoal, ou que fizesse brotar sentido para a experiência social e coletiva. [...] No entanto, o ambiente afectivo reinante, a textura afectiva da atmosfera entre as pessoas era tão pregnante que se criava a ilusão de uma inscrição. Era ali, na família, que a vida tomava sentido. Eram os laços pessoais [...] ou o simples contacto entre os seres, que “contava na vida”. Ou seja, aquele estranho efeito do afecto activo (como a alegria e o amor) que consiste em dar a ilusão da imortalidade. [...] Porque sentíamos afectos (ternura, carinho, preocupação dos outros por nós, doçura, solidariedade, etc), estávamos salvos. (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 58)

Mesmo com a democracia política, “os corpos e espíritos” mantiveram-se presos à “democracia dos afetos do tempo salazarista”, porque esta “mantinha-os semicerrados, adormecidos numa ilusão de laço afectivo formador e criativo, mas efetivamente clandestino e imaginário” (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 58). Contudo, assinala Gil, a partir dos anos 80 alterações econômicas acabaram por incorrer na desestruturação da família e, por consequência, no abalo da afetividade social e do familiarismo: passava-se “de uma economia familiar de poupança para uma economia de consumo desenfreado” (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 59).

Se na economia de poupança salazarista “poupava-se na comida, na roupa, [...] nos prazeres da vida de toda ordem” e desenvolvia-se um “espírito cauteloso, prudente, desconfiado” (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 60), adequado ao “estreitamento do horizonte da consciência” (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 61), com o estabelecimento da lógica do desperdício – resultante da ordem cavaquista e da entrada de Portugal na União Europeia – começou a operar-se um processo de mudança de mentalidade que ainda se encontra em curso. Não obstante a vivência de mudanças radicais nos hábitos e nas transformações de ordem econômica e tecnológica, o horizonte espiritual do povo português permanece, em muitos sentidos, preso ao de antigamente. Na medida em que não consegue inscrever-se na própria história, na própria terra e na próxima existência (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 63), Portugal liga-se agora menos ao ideal de família enquanto âmbito de inscrição do que ao núcleo familiar que se lhe tem afigurado mais comum: aquele que, desfeito, procura diariamente se remendar “com a ajuda de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas” (GIL, 2012GIL, José. “Da economia dos afetos”. In: ______. Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.: 63).

Lobo Antunes (1942)ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., como parte da geração de escritores que se viu imersa em um contexto geral de crises após a Revolução dos Cravos e seus desdobramentos, deu voz ao sentimento geral de desestabilização vivido pela nação portuguesa. É consenso que grande parte dos romances do autor apresenta temáticas ligadas à fragilidade ou à inexistência de laços afetivos sólidos, especialmente no âmbito doméstico:

o romance antuniano transborda de elementos de intriga bastante característicos: questões sórdidas de herança, inúmeros adultérios, casamentos socialmente desiguais [...], mulheres abandonadas quando grávidas, bastardos que se escondem ou se mostram, incestos. (CAZALAS, 2011CAZALAS, Inès. “O romanesco na obra de António Lobo Antunes: herança, desconstrução, reinvenção”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 49-70.: 55)

No romance a que nos dedicamos neste trabalho, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009), é narrada a história de uma família tradicional portuguesa na iminência de sua derrocada. O presente e o passado dos Marques são contados por diferentes vozes que frequentemente se entrecruzam e mesclam: a dos filhos Beatriz, Francisco, João, Ana, Rita (já falecida) e a de um filho bastardo não nomeado; a do pai (já falecido), responsável por perder a propriedade da família ao investir em apostas; a da criada Mercília, filha bastarda do bisavô Marques; e a da mãe, Maria José, em torno da qual os filhos aparecem reunidos à espera da consolidação da sua morte, às seis horas da tarde de um domingo chuvoso de Páscoa. Marcado pelo “virtuosismo linguístico-narrativo” (ARNAUT, 2009ARNAUT, Ana Paula. António Lobo Antunes. Lisboa: Edições 70, 2009.: 41), esse romance, como grande parte da obra de Lobo Antunes, expressa de maneira evidente a dissolução formal de que se utiliza o romance familiar pós-moderno. Tal desestruturação começa pelo mais visível na materialidade do texto: o desmembramento de frases, “resultado de estranhas translineações e, por consequência, de suspensões semânticas inusitadas (frases entrecortadas por frases de outras personagens ou por comentários da voz que então fala)” ou de “elipses lexicais e gráficas” (ARNAUT, 2009ARNAUT, Ana Paula. António Lobo Antunes. Lisboa: Edições 70, 2009.: 42-43):

[...] e eis o nosso irmão João (não tamborete, não faca, João) que não passeia no parque de dia, foge dele por vergonha de se encontrar a si mesmo (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 121) deito-me fixando uma fractura no tecto que faço tenções de consertar amanhã, [...] vejo a minha família tal como era dantes, a agitação que à época me aborrecia e hoje por assim dizer me, não digo, penso – Estarei a envelhecer por acaso? (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 153) [...] a minha irmã Ana saindo da capoeira [...] a enganar-se nas patas [...], desvia-te (a minha m sempre que contava uma história e adorava contar esta história no livro, a minha mãe mudava de posição no sofá [...] (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 161)

A apresentação fragmentária do texto implica também o rompimento da ordem temporal e causal entre os eventos e a imprecisão da localização espacial: a ruptura com a ordem temporal e causal é determinada enfaticamente pela memória, uma vez que as personagens, ao se perceberem na iminência da dispersão familiar, recordam as relações familiares e seus impactos na vivência individual. Em uma verdadeira sobreposição de tempos, passado, presente e futuro são acionados por livre associação, em que uma imagem conduz à outra graças a uma lógica puramente subjetiva, isto é, a partir de uma relação de “contiguidade sensorial e poética” (CAZALAS, 2011CAZALAS, Inès. “O romanesco na obra de António Lobo Antunes: herança, desconstrução, reinvenção”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 49-70.: 57).

Tal acontece no primeiro capítulo, por exemplo: das lembranças do que a mãe contava no passado, Beatriz supõe o atual esquecimento dela, prestes a morrer no hospital; da imaginação de uma pergunta do pai diante da mãe no hospital chega à lembrança de que ele nunca perguntava nada e nunca decidia nada; o costumeiro ensimesmamento paterno mistura-se à inexpressão da figura materna, imóvel no hospital; a percepção de seus resmungos diante dos cuidados médicos evoca a lembrança dos gritos dos empregados com os cavalos da quinta, numa infância perdida; a reminiscência das alianças escorregadias da mãe e do pai faz recordar os próprios casamentos falhados; a peremptória afirmação do esquecimento e do desamor modaliza-se no reconhecimento de momentos de carência e saudade; a menção aos maridos (não) esquecidos confunde-se com a lembrança do pai, dos cavalos e da complicada situação da quinta naquele momento de crise familiar; a lembrança da morte dos touros na quinta se embaralha com a imaginação da morte da mãe, e assim sucessivamente. Enredadas, sem hierarquia e separações, insinuam-se voltas e voltas no tempo, vultos e ecos, imagens que se materializam e logo se desfiguram. Soltos no meio disso tudo, cintilam furtivamente alguns lampejos de lucidez como estes: “que estranho viver, como se faz, começa-se por onde, em que capítulo” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 11); “ecos que não significam nada ou significam o que me escapa e todavia existe” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 20).

Assim se intensifica também no leitor a sensação da inapreensibilidade dos acontecimentos e das personagens, alimentada por um campo semântico do imprevisível e do incerto que se ramifica já nas primeiras páginas: “penumbra”, “mistérios”, “sonhos”, “resmungo”, “impressão”, “sombra”, “desordem”, “nódoas”, “desvão”, “hesitação”, “poeira”, “fragmentos indecisos”, “incompreensão”, “espanto”, “cintilação furtiva”, “acaso”, “ecos”, “pregas”, etc. Ao mesmo tempo e associadas a tal campo, imagens se cristalizam e fulguram na sua materialidade intensa: “brilho da saliva”, “patas dos animais a trotarem no soalho”, “tubo da garganta”, “galope dos cavalos vindo das estrebarias”, “alianças na fronha”, “toiro encostado a uma azinheira de baba a pingar do nariz”, “osso na algibeira do avental”, “chuva na cama da minha mãe”, “cuspo de sangue”, “berros”, “cartas atadas num cordel de embrulho”, “um gato que nos ilumina a nós com as lamparinas dos olhos”,, e assim por diante. Basta observar isso para entender que o enredo é dado como um fluxo, sem início e sem fim, em que coexistem e se interconectam percepção ordinária, recordação, fantasia, reflexão e afetividade,1 1 Aspectos que podem configurar a natureza da focalização, segundo Manfred Jahn (1999: 89-90): (A) affect (fear, pity, joy, revulsion, etc.) (B) perception: (i) ordinary/primary/literal perception (vision, audition, touch, smell, taste, bodily sensation); (ii) imaginary perception (recollection, imagination, dream, hallucination, etc.) (C) conceptualization (thought, voice, ideation, style, deixis, etc) ligadas a momentos temporais que remetem continuamente, através de seus horizontes, a outros. As recordações não se referem a um mesmo período temporal, mas invocam múltiplos tempos, sem delimitá-los e/ou datá-los: a lembrança da lembrança da lembrança, como se caíssem num abismo temporal.

Acerca da localização espacial, Maria Alzira Seixo (2004: 2)SEIXO, Maria Alzira. “Still Facts and Living Fictions: The Literary Work of António Lobo Antunes, An Introduction”. In: MENDES, V. K. (Org.). Facts and Fictions of António Lobo Antunes. Massachusetts: University of Massachusetts Dartmouth, 2011: 19-43. enfatiza que, no arranjo narrativo antuniano, “the sense of space progressively loses its pertinence as precise location, as each narrative develops, the relationship with space becomes simultaneously a relationship with time”:2 2 “[...] a sensação de espaço perde progressivamente a sua pertinência como uma localização precisa: a cada narrativa que se desenvolve, a relação com o espaço torna-se simultaneamente uma relação com o tempo” (tradução nossa).

(...) vieram buscar toiros na semana passada para a primeira corrida e os cavalos fazendo sombra no mar ou seja no penedo onde a gente brincava a escorregar no musgo, o meu irmão João não conseguia subir-me

– Puxem-me

e o animal olhando-o da azinheira, em que se distrairá a minha mãe no interior dela mesma, o meu marido com a trela e um pacote de cinzas que não necessitavam de alcofas

[...] um estacionamento em que nada fazia sombra em nada, candeias à pesca ao longe, sempre duplas, a da traineira e a da água, [...] um carro melhor que o nosso oscilar para frente e para trás de faróis apagados a impedirem que os toiros o vissem. (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 14)

No trecho, os lugares a que se ligam as lembranças é que se atualizam na vivência presente de Beatriz, isso porque os “acontecimentos” propriamente ditos dão lugar a “motivos” (CAZALAS, 2011CAZALAS, Inès. “O romanesco na obra de António Lobo Antunes: herança, desconstrução, reinvenção”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 49-70.: 59): ocorre o deslocamento da quinta no Ribatejo de um passado próximo ao mesmo local da infância, dele para o presente da morte da mãe, na segunda casa da família, em Lisboa, e, daí, para o estacionamento frente ao mar no qual rompera com o marido, cada espaço invocando, por sua vez, o seu tempo e as sensações a ele atreladas que, de imediato, como que se presentificam. Nesse sentido, conforme explica Eunice Cabral, “o lugar, convocado pela memória, é um espaço ido, dissipado, mas tornado absolutamente presente pela obsessão, pela rememoração involuntária que associa, o mais das vezes pela memória afectiva, tempos e espaços” (2009: 276). Assim, se é verdade que, como afirma Paula Morão (2011: 26)MORÃO, Paula. “Eu, às vezes: as labirínticas complexidades da alma”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 25-51., “o olhar combate o caráter predador do tempo, fixando pela escrita o que foi e não volta mais”, essa fixação aprisiona as personagens no instante presente, que não progride, apenas repete recordações, desperta monstros antigos.

José Gil, quando analisa outro dos romances do autor, o Arquipélago da Insônia (2008), explica muito bem tal formato, ligando-o à potencialidade da escrita:

são ilhas de tempos que se conectam pelo poder hipnótico da bruma que a escrita segrega. Porque a escrita cria uma bruma de tempo, todos os tempos podem ser evocados e surgidos na bruma. Cada cena é uma ilha e o conjunto um arquipélago sem fim. Saídos da bruma, mas totalmente envoltos ainda nela, são como imagens nascidas de uma insônia, mal situadas no espaço e no tempo, vacilantes, fantasmáticas. (2011: 161)

Em sentido semelhante e ao encontro da proposta de Dell, segundo a qual a estética do romance pós-moderno tende a propor um questionamento acerca do próprio fazer artístico, Arnaut assinala que

quebrando-se uma linha confortável de leitura, que obriga a ler o texto como construção, oferece-se a possibilidade de, no âmbito da produção post-modernista, considerar as várias vertentes de apresentação fragmentária como prática metaficcional. Tal acontece na medida em que é, justamente, todo o caos que exponencialmente se gera que acaba por chamar a atenção para “uma hiperconsciência relativamente à linguagem, à forma do literário e ao ato mesmo de escrever ficções”. (2009: 45)

Apesar do estilo fragmentário, é possível reconstruir em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? o que Arnaut chama de “fios de orientação narrativa”, ou seja, resgatar “uma narratividade só aparentemente perdida” (2009: 45), da qual se extrai a preocupação com testemunhos individuais que, de certo modo, projetam o contexto sócio-histórico da desestruturação da família a partir do abalo da afetividade que até o fim dos anos 80 permeava, ao menos idealmente, as relações sociais do homem português. As diferentes narrativas que compõem o romance trazem à tona a decadência de valores financeiros, afetivos e morais da família tradicional burguesa, revelando as fissuras provocadas pela perda da função original da família: a transmissão de valores morais e a garantia de afeto, diálogo e abrigo. Enquanto agoniza a mãe, a última figura a assegurar a relativa unidade da família, os demais membros dão testemunho dos conflitos que lhes atravessam a existência. Beatriz, a filha mais velha, é a primeira personagem a falar no romance. Em “antes da corrida”, antecipa o que se virá a encontrar nas outras narrativas: familiares estranhos que conversam “frases e frases no interior do silêncio” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 181); indignação, ressentimento, ódio, mas também ternura, preocupação, saudade – sentimentos que se adensam na intimidade muda, talvez por não se resolverem em uma expressão franca. Se o diálogo é mínimo, inferem-se também gestos, movimentações, atitudes – aludidos, contudo, ainda como puras intenções ou já como restos: “o que não chega a ser quase sendo e o que deixou de ser sendo ainda” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 335).

A personagem Beatriz tem suas duas únicas narrativas perpassadas pelo peso do abandono: da infância e da juventude chega-lhe a ausência dos pais; da vida adulta, dois casamentos fracassados. É ela quem constantemente vê os cavalos a fazerem sombra no mar, e essa recordação lhe vem possivelmente por sentir saudade das cavalgadas com o pai, como a lembrá-la, em comparação com a solidão presente, de que sua própria sombra não reflete em parte alguma, mantém-se desacompanhada: “embora haja momentos, eu cá me entendo, em que ao meter o prato na máquina penso que, penso que gostava de companhia, isto é o prato gostava de companhia que se nota pelo modo como pinga” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 12).

Francisco, cuja presença na narrativa se dá através de relatos repletos de manifesta amargura, é responsável por denunciar os principais traços da falência moral e afetiva da família. A preocupação com a herança dos pais é o sentimento mais recorrente em suas manifestações. Filho mais velho, tornou-se responsável pela gerência financeira familiar quando da ausência do patriarca, viciado em apostas, e do descaso da mãe, despreocupada dos assuntos monetários da família. Por isso, sente-se merecedor de uma recompensa financeira após a morte da matriarca – “é melhor não pensarem nem por um minuto em tirar o que é meu, roí os ossos da família a namorar credores, a convencer ganadeiros, a disfarçar disparates puxando o lençol daqui e dali” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 26).

A ânsia pela restituição material confunde-se em Francisco com uma grande fissura emocional, derivada principalmente do descaso, que lhe faz sentir como “uma excrescência”, “um intruso” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 96) na família. A infância traz à memória as repetidas censuras da mãe a dizer-lhe “Mesmo sem sair de casa consegues sujar-te custa-me acreditar que nasceste de mim” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 31) e o isolamento afetivo do pai, que pouco lhe dirigia a palavra e nunca lhe dissera “– Filho”. Confessa ainda ter deslocado sua referência maternal para a criada Mercília, “talvez a única criatura que não detestei por completo” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 26), assim como as mágoas e disputas com os irmãos, “Vê se estou lá fora/e eu ia, ao voltar riam-se de mim/ – És tão parvo” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 212).

Adulto, Francisco debate-se sobre o desejo de vingança – “pego no álbum de retratos, deito-lhe álcool em cima, acendo um fósforo e mato-vos” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 270) – e um antecipado remorso – “é provável que esteja a envelhecer sei lá, dado ao remorso e à saudade e esquecido das traições que me fizeram” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 153). Das imagens do passado, obsessivamente retornadas, Francisco conclui: “Infelizmente tudo que recordo me faz zangar ou dói (...)” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 277).

Em Ana, também assim se volve a memória, como uma ferida vasta e incicatrizável. Para a família, é “– A filha que se droga e só lhe deu desgostos” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 40). Perturbada amiúde pela febre que lhe impõe o vício, transita entre a clareza proporcionada pela droga –“o mundo facílimo de compreender, perguntem o que lhe der na gana [...] que conheço a resposta” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 41) – e a confusão penosa das imagens do passado –“o meu pai mais alto que nós, a minha mãe gorda, vinha uma senhora emendar-lhe as unhas e trancavam-se na sala aos risinhos, uma vez espreitei-as do terraço e beijavam-se” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 41). Para sustentar a dependência, muitas vezes rouba as economias de Mercília e objetos da casa. Vive à mercê do “que lhe vende o pó”, como a mendigar um afeto qualquer e a ele entrega a gerência de sua vida – “o que vende o pó [...] agarra-me o cotovelo/ – Anda cá [...]/ – Quem é teu dono/ e eu/ – Você” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 42).

No entanto, o que ressoa mais obsessivamente em sua consciência é o amor não demonstrado e a falta que sente do pai. A passar grande parte do tempo na companhia dos empregados, este “não sorria para a gente ou se importava conosco, nenhuma palavra à mesa” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 290). Ana não conseguia dirigir-se ao pai, relutante em demonstrar seu afeto: “não dizia paizinho para fora e todavia dentro de mim, sei lá por quê, não por amor é óbvio, que amor” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 48). Do mesmo modo que resiste à expressão franca do amor pelo pai, também o faz em relação ao abuso sofrido na infância – “a primeira ocasião em que estive com um homem tinha treze anos, [...] um afilhado do meu avô que trabalhava para nós no escritório, nunca contei isto, não vou contar isto, chorei o tempo inteiro até ele me largar” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 48).

Entre os monstros antigos de João, está o da vergonha de encontrar “a si mesmo entre as árvores de que não conhece o nome” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 58), no parque que percorre às noites de Lisboa, em busca de meninos. Tal como os demais irmãos, João não se vê como integrante da família, embora seja da mãe o preferido entre os filhos – “Joãozinho, o meu único filho [...]. Se soubesses como é difícil [...] subir o parque ao teu encontro às escondidas dos irmãos que tens e me não pertencem, trouxe-os um tempo e esqueci-os” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 295). A infância lembra-lhe de que queria ser menina, portar-se como as irmãs: “[...] e queria ser menina, é verdade, que a lua me sorrisse como à minha irmã Rita/ queria um carro que me esperasse ao portão como à minha irmã Ana cheia de camisolas no verão” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 57).

A homossexualidade é para si um tormento antigo – “há alturas que me dou nojo, palavra, mas o Céu compreende, qualquer coisa reles na minha boca, nos gestos, e ninguém pode valer-me, estou sozinho, cercado pelo desdém e a troça” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 58). Em todas as suas manifestações, predomina o medo de um juízo final. Desde a infância, acompanha-lhe a crença de estar a viver em pecado – “o tapete em que eu rezo o mesmo de eu pequeno, na trama e os desenhos apagados no ponto em que os joelhos assentam” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 56). No silêncio das igrejas, o sofrimento da condenação dá-lhe prévia de um suposto futuro de tormentos – “[...] e a labareda das velas nunca direita, oblíqua, [...] na direção de quem entra/ – Pecaste pecaste/ os santos a acusarem-nos/ [...] – Tens o horror à espera” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 187).

Rita, a irmã morta lembrada pelos irmãos como aquela a quem a lua sorria, também dá seu depoimento. Partilhando da mesma impressão de não pertencimento dos irmãos –“vivi sempre à parte da minha família” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 198) –, começa seu relato a contar que em verdade respondia-lhes que a lua lhe sorria no intuito de que a deixassem em paz a sentir “coisas sem importância para os outros” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 197). Morta em decorrência de um cancro, lembra de que não fora capaz de viver como os outros e que perdera o hábito de falar – “[...] se é que alguma vez o tive” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 201). Tal como os irmãos, Rita recorda o distanciamento afetivo do pai, suas voltas do Casino e as traições nunca esclarecidas – “e como dizer que o meu pai não se aproximava de ninguém/ (ao voltar do Casino um perfume de mulher sobre o perfume dele)/ e portanto até hoje não esclareci onde arranjava o perfume e a minha mãe a cheirar-lhe o casaco” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 207). Na consciência de Rita, a solidão parece ter ressonância semelhante à da morte –“ao chegar aqui, pensei: / – Se calhar encontro o meu pai e não encontro nunca, fica-se sem companhia como na vida” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 200).

No testemunho do pai, também já falecido, a lembrança de Rita é recorrente e aponta sempre à incomunicabilidade, não obstante o afeto subsistente entre os dois:

não morava conosco, morava sozinha, uma ocasião bati-lhe à porta, apercebi-me que espreitava pelo óculo e se foi embora [...], a minha filha Beatriz

– Ela não recebe ninguém

[...]

ainda bem que não me abriste a porta filha, se me recebesses que palavras teríamos nós, [...] gestos também não para quê, se me convidasses a entrar o que conseguia dizer-te e por que ordem e como. (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 75)

Em sua narrativa pós-morte, o pai acusa o afastamento dos filhos e da esposa, enquanto, nos demais testemunhos, era o algoz responsabilizado por isso – “distinguia a casa onde a minha mulher e os meus filhos que não me visitam nunca porque não são os seus passos que escuto” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 73).

Mercília, a criada octogenária da família, é, em verdade, filha do bisavô Marques. No início de sua narrativa, conta que a sua mãe legítima a visitava de tempos a tempos, submetida aos maus tratos da madrasta – “(ninguém lhe dizia/ – Senta-te/ não se diz/ – Senta-te/ aos pobres, eles que se aguentem de pé conforme aprendi a aguentar-me” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 135). Contudo, a partir de certa altura, a mãe deixa inexplicavelmente de visitá-la – “a mulher do meu pai:/ – Foi para o estrangeiro aquela/ e eu acreditei no estrangeiro até a empregada me explicar que morreu” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 137). A morte materna acentua seu sentimento de solidão, reforçado ainda pela negligência do pai– “a noção de pai intrigava-me conforme me intrigava a noção de mãe desde que ultrapassei o estado de ovo porque nasci numa capoeira de certeza, sou sozinha” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 137); e, no presente da narrativa, pela indiferença dos filhos dos patrões: “o menino Francisco ultrapassou-me no corredor/ – Seu estorvo/ a desviar-me as bengalas” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 149).

A matriarca dos Marques, à beira da morte, inicia seu testemunho a contar que quando sua mãe, zangada, chamava-lhe “– Maria José” em vez de “Zezinha” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 253), assustava-se a pensar que o nome não se parecia consigo. O estranhamento do próprio nome viria também em diversos momentos da vida, tal como no dia em que o médico, prestes a examinar-lhe, disse à enfermeira “– Ajude a dona Maria José Natércia” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 254). O fato permitira-lhe notar que já não era a “– Menina” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 253) a que Mercília chamava na juventude, mas já a “– Senhora” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 253). Era, então, a mãe no leito de morte a ouvir a filha perguntar “– Que vestido lhe pomos o azul ou o preto?” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 300). Passada a vida, observa a própria face “a estilhaçar-se e a recompor-se sozinha, a minha cara de rapariga, a minha cara de mulher, a minha cara de velha, sessenta e sete em maio que não chego a fazer” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 301).

Assim como do pai, que “nem sequer – Tu/ ausente” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 261), recorda do marido apenas o alheamento – “o meu marido a cova do lençol onde se estendia uma ausência e por conseguinte não houve marido” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 297) – e a convicção do casamento por conveniência – “casou comigo derivado ao dinheiro” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 308). Insatisfeita com a existência que tivera, admite: “sempre detestei a casa, não é aqui que moro” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 300); e insiste em negar a irreversibilidade do tempo – “continuo no colégio com a Silvina e a Berta debruçadas para os nossos reflexos no charco do pátio” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 300).

Enquanto os demais aguardam a morte da mãe na casa de Lisboa, o filho bastardo “de que não se pronuncia o nome” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 84) surge também a dar seu depoimento. Tendo vivido sempre afastado da casa da família, embora a morar na mesma quinta do Ribatejo, vale-se da ausência dos demais para adentrar o espaço que nunca lhe coube – como também não lhe coubera, até a parte final do romance, a oportunidade de falar ao lado dos irmãos. Alarmado com o eco de seus passos e o reflexo das pratas, depara-se com as “sobrancelhas dos retratos” e indaga a si próprio – “(o que pensam de mim?)” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 314). Ensejado pela ratificação da sua condição de filho ilegítimo, lembra-se da mãe e de quando, em pequeno, ela ficava longe a observá-lo – “há anos que não aparece no muro com saquitos” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 313). Acerca da sua origem, conjectura: “se calhar minha mãe engomava roupa na copa ou fazia a limpeza e o meu pai do escritório a segui-la” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 316).

Do pai, lembra-se de que a este nunca dissera “– Pai/ nem/ – Senhor” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 314) e de que mesmo depois da sua morte, não é capaz de responder se lhe faz falta (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 315) – “acho que me faz falta, acho que não, é assunto que não interessa e aliás quem me ouviria se falasse nele” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 315). Tais fatos levam-no a concluir: “– Nasci assim, sou sozinho” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.: 314).

O final do romance, coincidente com a morte da mãe e a dispersão dos membros da família, deixa ainda a impressão de não existirem “sentidos exclusivos nem conclusões definidas” (ANTUNES, 2002______. Receita para me lerem. Lisboa: Revista Visão, 2002.: 14) em relação aos “malogros existenciais” (ARNAUT, 2009ARNAUT, Ana Paula. António Lobo Antunes. Lisboa: Edições 70, 2009.: 46) patentes em cada um dos monólogos. Resta das vozes interiorizadas, muitas vezes “caladas”,3 3 “Mercília, por exemplo, tenta explicar , ‘calada’, a diferença nos olhos de Ana; esta, por sua vez, pede-lhe, também ‘calada’, que o não faça [...]. O mesmo sucede no exemplo em que Ana não usa a boca para dizer ‘– Tenho frio’, quando, no baldio sobre o Tejo, se encontra com o homem que lhe vende a droga [...]. Em outros momentos, sabemos também que o pai não está certo de falar [...]; que o bisavô Marques [...] tem uma ‘fenda do lábio’ [...]” (ARNAUT, 2011: 80) “uma linha de indecibilidade latente” (ARNAUT, 2009ARNAUT, Ana Paula. António Lobo Antunes. Lisboa: Edições 70, 2009.: 49) que aponta a zonas inapreensíveis da experiência. Assim, se a narração da história evidencia a noção de impossibilidade de síntese, de acabamento, estando seus horizontes sempre abertos e propensos à fuga, isso não significa, é claro, a pura aleatoriedade ou a irrelevância semântica da associação de vozes e imagens. Pelo contrário, os dados justapostos podem ser lidos nas suas relações de semelhança, diferença, complementariedade, sinalizando, como vimos, a complexidade dos relacionamentos familiares representados.

Dispensando convenções que outrora pregavam uma sistemática articulação da intriga familiar, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? dialoga não com as tradicionais narrativas familiares do século de Zola, mas, isto sim, com as narrativas contemporâneas que permitem ao romanesco “subsistir apenas enquanto microperipécias que pontuam um fluido memorial” (CAZALAS, 2011CAZALAS, Inès. “O romanesco na obra de António Lobo Antunes: herança, desconstrução, reinvenção”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 49-70.: 51). A denúncia da perda da estabilidade dos núcleos familiares exige do texto que extrapole, na e pela linguagem, as camadas superficiais da experiência para encontrar, no seu estrato profundo, a vulnerabilidade da própria condição humana. Desse estrato, reverberam culpas, remorsos, medos e traumas; desconfiança, rancor, solidão e silenciamento – ressentimentos condizentes com uma estrutura familiar em plena decadência, que convencionou manter a ordem patriarcal e a tradição de sangue, a propriedade e a autoridade, mas, nos seus escombros, adoeceu física e psicologicamente. Com isso, Lobo Antunes rompe com aquela “democracia dos afetos” da família tradicional portuguesa, sem negligenciar, todavia, a incansável tentativa humana de encontrar nos afetos domésticos a ilusão de inscrever-se no mundo: “[...] não sei se tenho casa mas é a casa que regresso” (ANTUNES, 2009ANTUNES, António Lobo. Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 334).

  • 1
    Aspectos que podem configurar a natureza da focalização, segundo Manfred Jahn (1999: 89-90)JAHN, Manfred. “More Aspects of Focalization: Refinements and Applications”, GRAAT: Revue des Groupes de Recherches Anglo-Américaines de L’Université François Rabelais de Tours, Tours: Université François Rabelais de Tours, n. 21, 1999: 85-11.: (A) affect (fear, pity, joy, revulsion, etc.) (B) perception: (i) ordinary/primary/literal perception (vision, audition, touch, smell, taste, bodily sensation); (ii) imaginary perception (recollection, imagination, dream, hallucination, etc.) (C) conceptualization (thought, voice, ideation, style, deixis, etc)
  • 2
    “[...] a sensação de espaço perde progressivamente a sua pertinência como uma localização precisa: a cada narrativa que se desenvolve, a relação com o espaço torna-se simultaneamente uma relação com o tempo” (tradução nossa).
  • 3
    “Mercília, por exemplo, tenta explicar , ‘calada’, a diferença nos olhos de Ana; esta, por sua vez, pede-lhe, também ‘calada’, que o não faça [...]. O mesmo sucede no exemplo em que Ana não usa a boca para dizer ‘– Tenho frio’, quando, no baldio sobre o Tejo, se encontra com o homem que lhe vende a droga [...]. Em outros momentos, sabemos também que o pai não está certo de falar [...]; que o bisavô Marques [...] tem uma ‘fenda do lábio’ [...]” (ARNAUT, 2011______. “A escrita insatisfeita e inquieta(nte) de António Lobo Atunes”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 71-88.: 80)

Referências

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  • ______. Receita para me lerem Lisboa: Revista Visão, 2002.
  • ARNAUT, Ana Paula. António Lobo Antunes Lisboa: Edições 70, 2009.
  • ______. “A escrita insatisfeita e inquieta(nte) de António Lobo Atunes”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 71-88.
  • CABRAL, Eunice. “Tempo e espaço na obra literária de António Lobo Antunes”, Études romanes de Brno, n. 30, Brno: Masarykova Univerzita, 2009: 275-282.
  • CAZALAS, Inès. “O romanesco na obra de António Lobo Antunes: herança, desconstrução, reinvenção”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 49-70.
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  • JAHN, Manfred. “More Aspects of Focalization: Refinements and Applications”, GRAAT: Revue des Groupes de Recherches Anglo-Américaines de L’Université François Rabelais de Tours, Tours: Université François Rabelais de Tours, n. 21, 1999: 85-11.
  • MORÃO, Paula. “Eu, às vezes: as labirínticas complexidades da alma”. In: CAMMAERT, F. (Org.). António Lobo Antunes: a arte do romance. Lisboa: Texto, 2011: 25-51.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2016
  • Aceito
    14 Jun 2016
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