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Escritura e amizade: a presença de Roland Barthes na obra de Leyla Perrone-Moisés

Writing and Friendship: Roland Barthes’s Presence in Leyla Perrone-Moisés’s Work

Resumo

As relações pessoais não se apagam nos projetos de colaboração intelectual e, embora não determinem os resultados de pesquisas, participam ativamente de seu desenvolvimento. Este artigo, embora não se dedique a explorar detalhes biográficos para além do que emerge de livros e entrevistas, trata da presença do escritor francês Roland Barthes na crítica literária de Leyla Perrone-Moisés.

Palavras-chave:
Escritura; Crítica; Amizade; Roland Barthes; Leyla Perrone-Moisés

Abstract

Personal relationships do not disappear in collaborative intellectual projects and, although they do not determine the outcomes of research, they do play an active role in its development. This article, although not devoted to exploring biographical details beyond what emerges from books and interviews, examines the presence of the French writer Roland Barthes in Leyla Perrone-Moisés’s literary criticism.

Keywords:
Writing; Criticism; Friendship; Roland Barthes; Leyla Perrone-Moisés

Résumé

Les relations personnelles ne s’évanouissent pas dans les projets de coopération intellectuelle et, même si elles ne déterminent pas les résultats des recherches, elles participent activement de leur développement. Cet article, qui ne se propose pas d’exploiter des détails biographiques au-delà de ce qui émerge des livres et interviews, aborde la présence de l’écrivain français Roland Barthes dans la critique littéraire de Leyla Perrone-Moisés.

Mots-clé:
Écriture; Critique; Amitié; Roland Barthes; Leyla Perrone-Moisés

... j’ai l’impression, la sensation et presque la certitude
d’avoir réussi plus mes amis que mon œuvre.
Roland Barthes (2003BARTHES, Roland. Conclusion (discours final au Colloque de Cerisy de 1977). In : COMPAGNON, A. (Org.). Prétexte : Roland Barthes. Paris : Christian Bourgois, 2003. p. 486-490. (Publicado pela primeira vez na Coleção 10/18, em 1978)., p. 490)

L’amitié, ce rapport sans dépendance, sans épisode et où entre cependant toute la simplicité de la vie, passe par la reconnaissance de l’étrangeté commune qui ne nous permet pas de parler de nos amis, mais seulement de leur parler, non d’en faire un thème de conversations (où d’articles), mais le mouvement de l’entente où, nous parlant, ils réservent, même dans la plus grande familiarité, la distance infinie, cette séparation fondamentale à partir de laquelle ce qui sépare devient rapport. Maurice Blanchot (1971BLANCHOT, M. L’Amitié. Paris : Gallimard, 1971., p. 328)

Introdução

Todos os que seguem uma carreira acadêmica ou científica sabem que o trabalho em cooperação é, muitas vezes, inseparável do sentimento de amizade. Não é exagero dizer que toda cooperação científica emerge de iniciativas individuais, que fazem com que estruturemos nossas pesquisas em diálogo com um determinado autor e não com outros e, no pretensamente árido mundo acadêmico, vamos nos lançando em encontros pessoais, que se multiplicam em textos, teorias, obras e histórias de estudo e amizade, de produção e companheirismo, de debate e admiração. Esse movimento pode ser verificado, por exemplo, em livros como L’Amitié, de Blanchot (1971BLANCHOT, M. L’Amitié. Paris : Gallimard, 1971.), em que o artigo que dá título à coletânea é o adeus a Bataille, ou Chaque fois unique, la fin du monde, de Derrida (2003DERRIDA, J. Chaque fois unique, la fin du monde. Paris: Galilée, 2003.), que traz uma compilação de textos publicados para seus amigos que foram, ao longo de vinte anos, cada um vivendo seu próprio fim de mundo, de acordo com a imagem criada pelo filósofo. Entre os dezesseis nomes que compõem o livro de Derrida, estão Barthes, cuja morte foi o objeto do primeiro desses artigos, e Blanchot, que recebe o último texto, passando por Deleuze e Foucault, entre vários outros. Claro que nem sempre as relações entre esses autores foram pacíficas, mas, ao ler Derrida, percebe-se facilmente que há entre eles algo além das ideias e além do sentimento de pertença a uma geração. Talvez seja esse algo mais que atinge também seus leitores, fazendo com que eles, muitas vezes, reflitam essa simpatia (no sentido de uma comunhão de páthos) também nas leituras de seus textos, conforme diz, não sem humor, Leyla Perrone-Moisés1 1 Deste ponto em diante, Leyla Perrone-Moisés e Roland Barthes serão citados, no texto, por suas iniciais: LPM e RB. :

O sucesso era tamanho que outras estrelas ascendentes [depois de Lévy-Strauss, Lacan, Foucault e Barthes] também começaram a oferecer shows particulares: Derrida, Deleuze, Kristeva, Todorov, Greimas, Lyotard, Morin. Um amigo meu chamava essa lista de “escapulário”: quando se encontrava, num texto, um desses nomes, os outros se seguiam obrigatoriamente, como as contas de um terço. (LPM, 1983PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes: o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 43).

Nesse livro, a autora descreve a vaga estruturalista na França, nos anos 1960 e 1970, em um tom pessoal, simples e direto. Trata-se muito mais de um livro de introdução à obra de RB, cujo encontro, segundo os próprios depoimentos de LPM, foi determinante para ela. Esse mesmo tom encontramos em inúmeros textos dedicados por outros autores a RB, desde o famoso colóquio de Cerisy, em 1977BARTHES, Roland. Conclusion (discours final au Colloque de Cerisy de 1977). In : COMPAGNON, A. (Org.). Prétexte : Roland Barthes. Paris : Christian Bourgois, 2003. p. 486-490. (Publicado pela primeira vez na Coleção 10/18, em 1978)., onde Robbe-Grillet apresentou seu “Por que amo Barthes”, até os estudos e homenagens póstumos, inclusive alguns cujos autores nem chegaram a conhecer RB pessoalmente. Impregnados que estão pelas questões apontadas pela obra de Barthes, obviamente, esses textos não se configuram como simples elogios, mas como reações muitas vezes amigáveis a suas afirmações e a suas propostas teóricas. É com esse espírito2 2 Este artigo, ainda que procure acompanhar o percurso de LPM em suas publicações, não aborda toda a atividade dessa autora na divulgação da obra de RB, sobretudo como tradutora e organizadora da publicação de textos inéditos do crítico francês no Brasil. Sobre esse viés do trabalho de LPM,cf. Brandini (2014). Também não se buscou aqui aprofundar a presença de RB no trabalho de LPM, embora isso ocorra. Esse aspecto foi muito bem apresentado por Max Hidalgo Nacher (2016). O que se pretende aqui é muito mais evidenciar o que aflora nos textos de LPM como biografemas de uma amizade. que pretendemos revisitar aqui a obra de LPM, uma das maiores responsáveis, no mundo acadêmico brasileiro, pela difusão do pensamento francês contemporâneo, trabalho no qual se destaca seu empenho pela publicação entre nós da obra de RB, num espírito de amizade que se apresenta no plano intelectual.

Texto, crítica, escritura

A noção de escritura, forjada no seio do estruturalismo e, a partir daí, apropriada e reapropriada por diversos teóricos, tornou-se, para o campo dos estudos literários, um significante privilegiado, ainda que o principal responsável pela utilização do termo tenha, ele mesmo, modificado, nos últimos trabalhos, seu pensamento acerca da escritura, em proveito de um retorno à literatura. A tese de livre-docência de LPM, publicada em 1978 com o título Texto, crítica, escritura e reeditada em 2005, possibilitou a circulação, nos cursos de Letras, não só desse conceito, como também das ideias e da obra de Butor, Blanchot e, sobretudo, Barthes, autor a quem ela retorna com maior frequência em seus outros escritos.

Anteriormente, LPM havia publicado Falência da crítica, em 1973, que, centrando-se em um único objeto, a abordagem crítica de Lautréamont, faz um levantamento preciso de todas as vertentes da crítica literária que procuraram lidar com os Cantos de Maldoror desde seu surgimento. Num percurso quase que cronológico, ainda que se tenha renunciado a um objetivo histórico, a autora faz desfilarem, página após página, várias leituras, interpretações, exclamações, condenações acerca de um mesmo objeto, baseadas nos mais diversos suportes ideológicos ou teóricos. A referência a RB no capítulo destinado à crítica estruturalista e semiológica é mínima e não está explícita em uma citação, pois ganham ali maior relevo as propostas de Kristeva e Sollers. As citações explícitas de RB estão nos capítulos em que LPM trata da crítica ética (LPM, 1973PERRONE-MOISÉS, L. Falência da crítica. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 50) e da crítica de fontes (LPM, 1973PERRONE-MOISÉS, L. Falência da crítica. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 84), extraídas da publicação organizada por LPM, que reuniu textos dos Essais critiques e de Critique et vérité, de RB, com o título Crítica e verdade (RB, 1970BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo : Perspectiva, 1970.). Entretanto, à conclusão, a autora, tendo-se valido do caráter sui generis da obra de Lautréamont, aponta para a ausência de distinção entre crítico e escritor, provocada pela quebra da fronteira entre escrever e ler, o que viria a ser explorado em sua tese, apoiando-se aqui em S/Z, que RB lançara três anos antes: “Os textos contemporâneos não preexistem à sua escritura, eles se escrevem à medida que o escritor lê a linguagem e outros continuam a leitura de sua escritura”, diz a autora, acrescentando adiante que, “à medida que a crítica se torna escritura, o texto criticado se torna pré-texto para uma aventura na linguagem” (LPM, 1973PERRONE-MOISÉS, L. Falência da crítica. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 166), conclusão que aponta para uma nova vertente da crítica que viria a ser tratada em Texto, crítica, escritura (LPM, 1978PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978.), a de uma crítica-literatura, que transformaria em substantivo, num movimento de apropriação, aquilo que sua antecessora, e opositora, a crítica literária, carregava como adjetivo.

O que LPM se propõe a estudar, além de precisar as noções de texto e de escritura com os novos sentidos que eram, então, atribuídos a essas palavras, é o trabalho dos críticos-escritores. A escritura, definida como “uma questão de enunciação”, um “ato intransitivo”, para além da simples intenção de comunicar, é apresentada detalhadamente, seguida de um estudo do desenvolvimento desse termo na obra de RB, ao fim do qual a autora aponta para o problema da recepção, que não é totalmente elucidado: “O texto só é escrito na medida em que é lido, e uma leitura sensível ao escriptível do texto pode transformá-lo em texto de escritura” (LPM, 1978PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978., p. 40). Esse problema vai perdendo importância à medida que a autora apresenta novos conceitos, como o de significância, a partir do trabalho de Kristeva, para, em seguida, aproximá-los do Prazer do texto, de RB, ao qual reporta a seguinte consideração: “O texto legível é o que só permite uma representação; o texto escriptível, o que permite uma re-apresentação. O primeiro só pode ser lido, o segundo pode ser re-escrito. O primeiro se presta à crítica, o segundo solicita uma outra escritura” (LPM, 1978PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978., p. 53). A distinção entre crítica e escritura, entendendo-se a primeira como a crítica “tradicional” e a segunda como a única forma de atingir o texto “de gozo”, fica clara no seguinte parágrafo, que traz citações de S/Z e de “Reflexões sobre um manual”:

A crítica se situa do lado da cultura, das instituições do texto e, como tal, ela tende a perder até mesmo o prazer do texto. O texto (a escritura) tem “pouco futuro institucional”, porque ele não visa uma ciência, um método, uma pesquisa, uma pedagogia; o texto é apenas uma prática eufórica. A escritura não se ensina, “a literatura é o que se ensina, ponto final; é um objeto de ensino”. (LPM, 1978PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978., p. 54).

A crítica, portanto, para tratar da escritura, precisaria ela mesma se constituir como escritura: “Rendamo-nos à evidência fascinante e assustadora: a escritura só pode ser colhida por outra escritura” (LPM, 1978PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978., p. 80). A própria autora, porém, mantendo-se fiel ao gênero tese e confessando um possível temor ou incapacidade para a prática da escritura, prefere apontar apenas algumas características no texto dos críticos-escritores que passará a abordar. Essa hesitação, provocada pela imprecisão em que o conceito ainda estava instalado, não passa desapercebida a Antonio Candido, cuja arguição acompanha a reedição do livro: “Entre uma insatisfatória ciência de orientação semiológica, uma escritura que ainda não se configurou e uma série de atividades subalternas, onde ficar? A sua tese, neste sentido, é escritura, linguagem instrumento ou discurso científico?” (LPM, 2005PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 194).

Mesmo não assumindo em seu texto um caráter escritural, LPM deixa claro que sempre houve escritores que também exerceram a crítica e críticos que, eventualmente, apresentaram-se como escritores. Estes, chamados de “críticos-artistas”, diferem dos críticos-escritores, que, ao apresentar sua leitura de um texto, o fazem produzindo, por sua vez, um texto que também é escritura, como Blanchot, Butor e Barthes, analisados pela autora, que forja para a abordagem de seus trabalhos, respectivamente, as expressões “crítica-obsessão”, “crítica-invenção” e “crítica-sedução”.

Não cabe aqui a análise do trabalho desses autores, que os faz merecedores da qualificação de “críticos-escritores”, já competentemente efetuada por LPM. Interessa-nos apenas a escolha desse corpus, harmônico com as ideias que ganhavam corpo naquele momento e operador de uma nova postura no campo da crítica literária. Da leitura de Texto, crítica, escritura, apesar da abordagem de três autores, sobressaem as ideias de Barthes, ou, se não isto, pelo menos a formulação barthesiana daquelas ideias. Isso se veria pela presença constante desse crítico na obra de LPM a partir da tese de livre docência.

A nova postura crítica que a autora defendia naquele momento passa a ser questionada em seus escritos posteriores, como em Flores da escrivaninha, de 1990, na qual, apresentando ensaios sobre autores cujos escritos habitam sua “escrivaninha”, LPM volta-se para a literatura latino-americana e para a situação da crítica e dos estudos de literatura comparada no Brasil. Nesse livro, Barthes aparece em algumas citações, mas sem que suas ideias sejam problematizadas, como na citação de Ensaios críticos em que o autor afirma que se escreve para ser amado (LPM, 1990PERRONE-MOISÉS, L. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 19), ou em outro trecho sobre a derrocada do estruturalismo, em que RB chega a anunciar qual seria essa derrocada, que LPM (1990PERRONE-MOISÉS, L. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 87) corrobora.

Mas é em Altas literaturas, de 1998, que a autora vai se posicionar firmemente contra a atual polarização do campo literário entre estudos “tradicionalistas” e “estudos culturais”. Em entrevista a Alcino Leite Neto (LPM, 1998bPERRONE-MOISÉS, L. Literatura contra barbárie. Folha de S. Paulo, 2 ago. 1998b, Cad. Mais!, p. 4-5. Entrevista a Alcino Leite Neto., p. 4-5), quando do lançamento desse livro, a autora vê-se diante de uma pergunta que, aparentemente, opõe Altas literaturas a Falência da crítica, o que lhe dá margem para uma rápida análise do percurso entre uma obra e outra:

Você está tocando no meu percurso pessoal. A divergência deste percurso é recente. Não se trata de dizer que o que escrevi está errado ou certo, pois era aquilo que eu podia fazer naquele momento. Mas, mais que em Falência da crítica, em Texto, crítica, escritura postulei um tipo de crítica que ao mesmo tempo falasse da obra e fosse ela própria uma obra, uma escritura. Estava sob influência muito grande de Roland Barthes e do grupo Tel Quel. Não tinha consciência naquele momento de que aquilo viria a ser chamado de desconstrução, pós-estruturalismo. Isso começou a me preocupar a partir do momento em que passei a receber textos que eles chamavam de crítica-escritura e que eram de pura subjetividade. Aquilo tinha sido interpretado muitas vezes como uma espontaneidade, uma expressão. Não era bem isso. Aqueles críticos-escritores foram pessoas de uma enorme cultura e, se eles permitiram fazer em determinado momento a chamada crítica-escritura, é porque tinham um lastro considerável de conhecimento literário. (...) À medida que alguns destes grandes críticos foram desaparecendo, como o próprio Barthes, Jacinto do Prado Coelho, Emir Monegal, eu vi que existia não uma contradição, mas algo além do que aquilo que eu tinha elogiado como sendo a única possibilidade da crítica.

Altas literaturas traz uma inversão dos termos do conceito utilizado pela autora vinte anos antes: em vez dos “críticos-escritores”, temos agora os “escritores-críticos”. Contra todos os perigos da leveza de uma prática escritural desavisada, e contrariamente à lei matemática, a ordem dos termos opera uma mudança conceitual importante para o livro em questão e a autora chega a um corpus de escritores cuidadosamente submetidos a um “retrato falado”, na verdade um conjunto de características elencado por LPM para nortear sua abordagem da obra dos autores escolhidos. Em uma nota, a autora explica que

“Escritor-crítico” não é o mesmo que “crítico-escritor”, categoria de crítico que analisei em meu livro Texto, crítica, escritura [...]. O escritor-crítico é o escritor que também pratica a crítica. O crítico-escritor é o crítico que pratica a escritura, tipo de discurso teorizado pelo pós-estruturalismo. Alguns críticos-escritores não são escritores-críticos (não têm obra de ficção ou de poesia): Roland Barthes, por exemplo. Alguns críticos-escritores são também escritores-críticos: Michel Butor, Maurice Blanchot. E por que Blanchot não figura no corpus deste livro? Porque, independentemente de suas grandes qualidades como escritor e crítico, ele não tem todas as características do “retrato falado” aqui estabelecido. Os escritores sobre os quais ele escreveu pertencem a um âmbito mais restrito, no tempo e no espaço. (LPM, 1998aPERRONE-MOISÉS, L. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a., p. 217).

A não-inclusão, no novo trabalho, de Blanchot e Barthes - embora este último seja muito citado e seus conceitos relembrados - deve-se à utilização rigorosa do “retrato falado” elaborado pela autora. No caso específico de Barthes, ainda que se concedesse a ele um lugar no rol daqueles que fazem ficção ou poesia, como o fazem muitos dos críticos amigáveis, ao considerar sua obra como literatura, não seria possível negligenciar seu quase desinteresse pelas línguas e literaturas estrangeiras, de que julgava impossível perceber a mesma riqueza de nuances que era capaz de identificar em sua língua materna. Quanto ao abandono da escritura, LPM só fez seguir a tendência posterior à Aula Inaugural de Barthes no Collège de France, posição que ela mesma explica:

[...] a teoria da escritura, que corresponde ao pós-estruturalismo e à desconstrução, não teve a vida longa que se imaginava. Já no finzinho de sua vida, Barthes, na Aula, que é o seu testamento, dizia: eu vou chamar indiferentemente o texto literário de escritura ou de literatura. E afinal é a literatura que predomina.

E, depois, a crítica escritural ou criativa é privilégio de poucos, dos que são também escritores, e o fato de ela poder existir não tira o lugar daquela crítica mais tradicional, que consiste em o crítico se apagar em função do texto que está analisando e transmitindo aos outros. (LPM, 1998bPERRONE-MOISÉS, L. Literatura contra barbárie. Folha de S. Paulo, 2 ago. 1998b, Cad. Mais!, p. 4-5. Entrevista a Alcino Leite Neto., p. 5).

Nos livros lançados nos anos 1990, LPM continua em um percurso bastante pessoal: não há em seus escritos uma adesão a nenhuma das correntes críticas que se seguiram aos sucessivos desaparecimentos dos autores com os quais dialogou por décadas, assim como não há uma defesa cega ou nostálgica de teorias que, pouco a pouco, foram tomando um lugar mais distante da cena literária contemporânea. Os dois livros que citamos por último trazem títulos bastante provocativos. Ao passo que Flores da escrivaninha parece sugerir a retomada do autor e de sua obra como expressões do sublime, Altas literaturas parece aderir à vaga reacionária que ganhou vida nos Estados Unidos em franca oposição aos estudos culturais, porém o que LPM procura estabelecer nesses livros é uma via que se distancie desses dois extremos. Ao mesmo tempo, reafirma o valor da literatura diante de uma crítica eufórica que parecia, naquele momento, abandonar o literário.

Abrindo o novo século, o livro Inútil Poesia (2000PERRONE-MOISÉS, L. Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.) mantém em seu título o aspecto irônico de seus predecessores, mas vai justamente mostrar a reunião de textos esparsos da autora, agrupados por nacionalidade: franceses, portugueses, brasileiros e, no último capítulo, os críticos. Essa organização reflete bem as escolhas de LPM e traz em livro alguns textos que só era possível ler nos vários periódicos com os quais ela tem colaborado. Os dois textos dedicados a Barthes nesse livro iniciam-se com o mesmo elemento desencadeador: a morte do autor em 1980. “O lugar de Barthes”, de 1990, começa fazendo menção aos dez anos de sua morte para, em seguida, perguntar qual seria o lugar de Barthes na França de então e qual seria o seu lugar ali, nos anos 1990. Essas perguntas refletem o espanto causado pelo desaparecimento de um intelectual que ladeava os grandes nomes do século XX, com uma presença midiática marcante, e que não veria “seguidores” ou “continuadores” de suas ideias, pelo simples motivo de ter ele mesmo procurado não oferecer uma via ou sequer uma teoria, mas, ao contrário, ter tentado apagá-las com suas incertezas. LPM avalia esse “lugar” de RB com as seguintes palavras:

Não tendo deixado um pensamento, um método ou uma obra pertencente a um gênero preciso, Barthes não se presta a uma exploração póstuma de tipo universitário ou simplesmente discursivo. Se ele é prosseguido, isso ocorre alhures, na arte ou na vida, sem que seja preciso citá-lo. (LPM, 2000PERRONE-MOISÉS, L. Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 289).

O outro texto, “Barthes e o pós-modernismo”, foi publicado três anos depois na revista La Quinzaine littéraire, com o título “Roland Barthes: comment s’en débarrasser”, no qual mostra como o escritor que não encontrava ou se recusava a encontrar um lugar para si permanecia na lembrança de seus antigos discípulos:

A própria morte do mestre foi sentida por eles como um abandono, uma traição. Ele gostava de citar Valéry: “Nem mesmo um deus ousaria tomar como lema este dito: eu decepciono”. Pois, ainda vivo, ele já havia decepcionado alguns de seus seguidores. Prometeu uma ciência dos signos (a semiologia), ela o aborreceu, ele a abandonou. Prometeu o desejo e o prazer, ambos o abandonaram. Anunciou um romance, nunca o escreveu. Deixou-se matar, num acidente suicida; e isso foi imperdoável. (LPM, 2000PERRONE-MOISÉS, L. Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 294).

Esse breve balanço serviu, no texto de LPM, para introduzir a apresentação que a autora passa a fazer dos livros que os antigos alunos de RB vinham publicando sobre ele, sob diferentes pontos de vista. Além disso, ela lembra os pequenos paradoxos de RB, como a predileção pelos textos clássicos, mesmo após ter lançado sobre eles leituras absolutamente inovadoras, o que lhe valeria, mais tarde, a classificação de “antimoderno”. Ao falar sobre a postura da autora diante das novas leituras de RB, já verificada em sua participação em um colóquio da Universidade de Yale, em 2000, Max Hidalgo Nácher (2016HIDALGO NÁCHER, Max. Leyla Perrone-Moisés y algunas modulaciones barthesianas en Brasil en torno a la crítica y la literatura. Alea, Rio de janeiro, vol. 18/2, p. 344-366, mai-ago. 2016. , p. 360) diz que “la lectura de la propia obra de Barthes se vería lastrada, en ese nuevo espacio, por un aplanamiento que limaría sus aristas y su complejidad.”

No livro que se segue, Vira e mexe, nacionalismo (2007bPERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b.), LPM retoma uma ideia de RB para “desconstruir” os “estudos culturais”, que ela mesma escreve entre aspas:

Minhas objeções têm-se referido a certas práticas que incorrem naquele risco apontado por Barthes em sua “Aula inaugural no Collège de France”: o fato de a defesa de causas minoritárias e revolucionárias se transformarem facilmente em novos discursos de poder, que, sob pretexto de resgatar “aquilo que foi esmagado”, não percebem que “estão esmagando alhures”. (LPM, 2007bPERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b., p. 167).

Com esta e outras ideias tomadas de RB, LPM consegue contrapor a essas correntes críticas utilizando um dos autores que elas mesmas reivindicam como pilar para suas práticas, pelo fato de ele ser integrado ao que se convencionou chamar de “French theory”, com toda a monstruosidade amorfa dos grandes coletivos.

Em 2016, o livro Mutações da literatura no século XXI trouxe uma resposta à questão da modernidade “em ruínas” que a autora apresentava em Altas literaturas. Apesar da abrangência do livro, que ataca os principais problemas da literatura na contemporaneidade, as ideias de Barthes continuam presentes na escrita de LPM. Ali, todas as questões conceituais são exploradas e RB é posto a dialogar com a crítica contemporânea em um texto marcado pela inteligência na argumentação e pela fluidez no estilo. O livro começa abordando a ideia do fim da literatura com questões precisas, em diálogo com as correntes críticas preponderantes então. Ao questionar a noção de pós-modernidade, LPM apresenta as questões da “modernidade tardia” citando diversos autores, entre os quais, na conclusão, Pierre Nora, que apresenta os temas fundamentais da literatura contemporânea relacionando-os à “inteligibilidade da realidade e de sua interpretação perante a demanda social”. Mas é com RB que ela conclui esse artigo:

“A inteligibilidade da realidade e de sua interpretação” é a tarefa que Roland Barthes sempre atribuiu à literatura. Segundo ele, a interrogação da literatura não é “Qual é o sentido do mundo?”3 3 A autora cita, nesse trecho, o primeiro livro de RB traduzido por ela mesma: Crítica e verdade (RB, 1970, p. 74). , mas somente: “Eis o mundo: existe sentido nele?”. É isso que os bons escritores continuam fazendo. (LPM, 2016PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 48).

A mesma reflexão reaparece adiante, em outro artigo, em que analisa a crítica literária, ao tratar da questão da obra inacabada: “Na mesma linha de raciocínio, Roland Barthes afirma que a obra literária é uma pergunta ao mundo, e não uma resposta.” (LPM, 2016PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p.67). LPM assume esses questionamentos à literatura ao longo de sua obra e os estende às teorias que tentam explicá-las. Ela se encontra entre os integrantes do grupo francês que se reunia em torno da revista Tel Quel que não cederam ao canto da sereia da French Theory e seguiu buscando um caminho próprio, sem renunciar ao cânone e sem deixar de apreciar o novo na literatura, fazendo, nesse percurso, com que o diálogo com a obra de RB se mantivesse, para responder ao menos em parte à reflexão que faz Max Hidalgo Nácher sobre esse período na obra da autora:

Las vanguardias han empezado a disolverse a mediados de los setenta; Kristeva y Sollers, con los que Perrone-Moisés tendría buen trato durante los años setenta, en un movimiento más que sospechoso para la autora, abanderarán en los años ochenta la buena nueva de los Estados Unidos, donde se está produciendo la French Theory, y otros autores, como Todorov, se asociarán con los nouveaux philosophes para reivindicar la preeminencia de los valores contra los excesos de la teoría. En ese nuevo contexto internacional, sin abandonar por ello su labor crítica, va a hacer frente a un desafío fundamental: ¿cómo sostener y transmitir el legado de Barthes, que muere el 12 noviembre de 1980? (HIDALGO NÁCHER, 2016HIDALGO NÁCHER, Max. Leyla Perrone-Moisés y algunas modulaciones barthesianas en Brasil en torno a la crítica y la literatura. Alea, Rio de janeiro, vol. 18/2, p. 344-366, mai-ago. 2016. , p. 355).

Sempre fiel ao crítico amigo, é com seu último curso que ela abre, ainda em Mutações da literatura no século XXI, o capítulo em que trata de um dos mais interessantes aspectos da literatura contemporânea: o autor como personagem. A questão envolve um paradoxo que tem todos os traços de uma preocupação barthesiana, a saber, o fato de os escritores de um tempo que já não reconhece o lugar da literatura - senão partilhado com uma miríade de outras manifestações culturais em um sentido vasto - e que já não reconhece o cânone literário recorrerem exatamente aos autores do cânone para os transformarem em personagens nos romances contemporâneos. Reconhecendo que a questão não é recente e observando, na nota de rodapé, que a preocupação com a presença do autor já se lia em RB no início dos anos 1970 com a noção de biografema, LPM chega a uma conclusão bastante sensata:

É curioso que, no mesmo momento em que a teoria literária anunciava a morte do autor (Barthes, Foucault) e os estudos acadêmicos atacavam o “cânone ocidental”, em nome do politicamente correto, tantos romancistas privilegiassem, em suas obras, aspectos biográficos de seus antepassados canônicos. A impressão que se tem é de que esses escritores atuais veem em seus antecessores grandes personagens de uma história grandiosa, uma história já terminada que merece ser contada e comparada com a prática atual da literatura de ficção. (LPM, 2016PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 147).

Mutações da literatura no século XXI é um livro importante na obra de LPM por demonstrar o vigor e a coerência de seu pensamento crítico, que se renova à medida em que é renovado também o seu objeto de estudo, a literatura. Este talvez seja o livro em que RB apareça melhor, na obra de LPM, apenas por sua produção crítica, sem menções à “simpatia” de que se tratou acima.

Entretanto, para os objetivos deste artigo, temos um interesse maior no livro que o precedeu, lançado em 2012: Com Roland BarthesPERRONE-MOISÉS, Leyla. Com Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2012.. Inteiramente dedicado ao autor, esse livro é um exemplo do que foi dito no início deste artigo: um diálogo acadêmico, permeado pela produção crítica e mapeado pelos avanços e incertezas diante do objeto de estudo, a literatura. Mas esse diálogo não é respaldado apenas pelas práticas acadêmicas. Há ali, embora não se possa definir exatamente em que dimensão, a intervenção da amizade. Ela não se manifesta, porém, como aceitação incondicional do outro, trasnformando defeitos ou deslizes em qualidades; também não se manifesta pelos interesses que bem pode haver em qualquer tipo de relação. Mantida como pano de fundo de um discurso sobre as trocas intelectuais, essa amizade aflora em pequenas dedicatórias mostradas nos fac-símiles de cartas de RB recebidas por LPM (que fazem imaginar a gentileza da autora nas suas próprias cartas a RB) e, apenas uma vez, explicitada em um texto, “Relembrando Barthes, sem autópsias acadêmicas”.

Nessa correspondência, pouco se vê de uma relação pessoal que não esteja ancorada nas questões profissionais, com exceção, talvez, de um favor solicitado por LPM a RB, para que recebesse seu irmão, Fernando Perrone, como orientando. LPM publica ali a resposta de RB a esse pedido, sobre o qual já havia escrito anteriormente, em um texto sobre o irmão publicado em 2007, que não está inserido no livro, mas que merece ter um trecho reproduzido aqui, pela demonstração de reconhecimento entre amigos:

Para que ele [Fernando Perrone] se inscrevesse numa universidade francesa, precisava de uma carta de um professor de lá. Na época, eu já era amiga de Roland Barthes, a quem escrevi explicando o caso. Barthes respondeu imediatamente oferecendo a carta, assim como o apoio de Edgar Morin e outros sociólogos. Fernando pretendia voltar ao Chile logo que defendesse a tese.

Mas, em 74, o golpe no Chile o fez chorar como criança e obrigou-o a permanecer na França. O mesmo grupo de intelectuais franceses que o acolheram providenciou-lhe um contrato na Universidade de Paris, onde ele lecionou até 1978. Quando defendeu seu doutorado, com a tese “Imagem do Chile na imprensa cotidiana francesa”, Barthes manifestou-se novamente, oferecendo-se como voluntário para integrar sua banca. Não assisti à defesa, mas Fernando me contou que Barthes o identificou tanto ao tema da tese que, durante a arguição, o chamou de “Monsieur Allende”. (LPM, 2007aPERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Perrone - sem perder a ternura, jamais. Jornal Intercom Notícias, São Paulo, ano 3, v. 3, n. 81, 30 nov. 2007a. Disponível em <Disponível em http://www.intercom.org.br/boletim/a03n81/forum_perrone.shtml >. Acesso em: 12 jul. 2020.
http://www.intercom.org.br/boletim/a03n8...
.)

Nesses trechos, fica evidente a confiança de LPM em RB e, embora o conjunto das cartas recebidas por ela não traga nenhuma apreciação adicional da autora, vê-se que essa confiança é recíproca. Com Roland Barthes traz o conjunto de quase todo o trabalho de LPM sobre o autor francês e sua obra, excetuados apenas aqueles presentes nos livros anteriores, que comentamos anteriormente neste artigo, mas não de forma exaustiva, uma vez que RB é citado também nos livros sobre Lautréamont (2014PERRONE-MOISÉS, Leyla; RODRIGUEZ MONEGAL, Emir. Lautréamont austral. São Paulo: Iluminuras, 2014.) e Fernando Pessoa (2001PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2001.) que não apresentamos aqui. Estão reunidos ali textos de gêneros diversos, como os artigos publicados em periódicos a partir de 1968, tanto de cunho acadêmico como de jornalismo literário.

Encontra-se, na segunda parte do livro, uma síntese sobre a noção de escritura resultante de cursos sobre RB dados no Brasil e no exterior por LPM e uma apreciação importante das questões levantadas pela tradução em português dessa noção. Além da tradução do termo écriture, LPM ali trata também da tradução do termo juissance, que foi igualmente polêmica entre os leitores brasileiros de RB. Sobre essa questão, a autora retornaria posteriormente, em texto publicado na revista eletrônica Peixe Elétrico e reproduzido em sua página no Facebook, criticando a segunda edição de O Prazer do Texto, pela Editora Perspectiva, que saía sem a devida correção dos erros:

Por ocasião da 1ª edição, eu já havia feito a observação de que a tradução correta seria "prazer / gozo" e não "prazer / fruição". Ora, nessa reedição de 2015 o tradutor houve por bem acrescentar uma nota defendendo sua tradução, mas ela não a justifica. Não é uma questão de preferência. Trata-se do léxico lacaniano, fonte declarada de Barthes. Esse léxico já está firmado nas numerosas traduções de Lacan no Brasil, nas quais “jouissance" é traduzida por “gozo”. (LPM, 2017PERRONE-MOISÉS, Leyla. O desprazer do texto. Peixe Elétrico, n. 6, abr. 2017. <https://www.peixe-eletrico.com/single-post/2017/04/06/O-desprazer-do-texto>. Acesso em: 12 jul. 2020.
https://www.peixe-eletrico.com/single-po...
)

Sua atenção e defesa da legibilidade das ideias de RB em português sempre foi notória nos trabalhos que traduziu ou cuja tradução coordenou, o que se confirma com a direção, por ela assumida junto à Editora Martins Fontes, da tradução de textos inéditos de RB no Brasil, sobre a qual ela fala na apresentação da coleção, reproduzida em Com Roland Barthes.

Esse livro traz ainda entrevistas concedidas a diversos periódicos e instituições e o texto do programa da peça Fragmentos de um discurso amoroso, representada no Brasil nos anos 1980. Neste último, a autora demonstra o título que dá a essa parte do livro, “Passando o anel”, ao falar da atuação das pessoas envolvidas na produção da peça:

O trabalho conjunto foi, assim, como o “jogo de passar anel”, imagem de que Barthes gostava tanto: passei o anel que ele me deu a Teresa [Almeida], que o passou a Ulysses [Cruz], que o passou a [Antonio] Fagundes. O anel que chega ao fim do círculo não é o mesmo; está carregado dos afetos de todas as mãos por que passou. E se, no final, o texto de Barthes não é mais o mesmo, isso é bem o que ele pretendia: os signos não devem imobilizar-se, mas circular em liberdade, segundo os múltiplos desejos. (LPM, 2012PERRONE-MOISÉS, Leyla. Com Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2012., p. 99)

Poucas vezes se vê uma descrição melhor do que pode representar o trabalho de RB. Como LPM bem demonstrou em todo o diálogo que estabeleceu com o autor francês ao longo de sua carreira, vê-se na sua obra o deslocamento como uma espécie de obsessão, aqui explicada pelo jogo infantil, em mais uma metáfora prosaica, como tantas que o autor usou: o jogo de passar anel. Em suma, Com Roland Barthes é, a um só tempo, um tributo e um testamento: um tributo oferecido a RB por LPM, reconhecendo seu papel fundamental em sua obra; o testamento de uma amizade, sobretudo intelectual.

O teor desse livro de LPM não é estranho àqueles que se dedicam ao estudo da obra de RB. Inúmeros autores têm dedicado a ele e à sua obra textos de teor semelhante e esta talvez seja a maior marca dos estudos barthesianos. Para além da objetividade acadêmica e do deleite literário, a obra desse escritor parece provocar uma adesão afetiva, que talvez seja o equivalente da adesão teórica ou filosófica verificada nos seguidores de autores que têm teorias ou filosofias. A relação de evidente afeição de LPM para com RB é um fator determinante para a recepção da obra desse autor no Brasil, desde as primeiras traduções, nas décadas de 1960 e 1970, até as traduções e novas publicações recentemente organizadas pela autora, passando pelo seu próprio trabalho crítico.

Para concluir, pela voz da própria LPM, transcrevo a resposta da autora em uma das entrevistas publicadas em Com Roland Barthes:

Em 1975, quando fui me despedir deles, depois de uma temporada de dois anos em Paris, ele me ofereceu o livro Roland Barthes por Roland Barthes com a dedicatória: “como lembrança de muito trabalho em comum, com minha amizade”. Ele se referia, generosamente, ao meu trabalho de tradutora, de frequentadora de seus seminários e às nossas numerosas conversas. Em suas cartas, depois disso, ele me agradecia sempre por minha “fidelidade”. Eu nem imaginava, então, o quanto eu continuaria trabalhando com sua obra, sem ele. Depois de mais de vinte anos sem traduzir nada, traduzi agora seus últimos cursos, e assumi a tarefa de coordenadora da coleção Roland Barthes da Martins Fontes. Minha tarefa consiste em fazer uma seleção de inéditos, escrever algumas introduções e rever as novas traduções de várias obras. Fui eu que dei ao editor a ideia de fazer as capas da coleção com seus desenhos. Nenhum país tem edição semelhante. E posso dizer que, de um ano para cá, não passo um dia sem reler Barthes. (LPM, 2012, p. 199)

Referências

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  • PERRONE-MOISÉS, Leyla. O desprazer do texto. Peixe Elétrico, n. 6, abr. 2017. <https://www.peixe-eletrico.com/single-post/2017/04/06/O-desprazer-do-texto>. Acesso em: 12 jul. 2020.
    » https://www.peixe-eletrico.com/single-post/2017/04/06/O-desprazer-do-texto
  • 1
    Deste ponto em diante, Leyla Perrone-Moisés e Roland Barthes serão citados, no texto, por suas iniciais: LPM e RB.
  • 2
    Este artigo, ainda que procure acompanhar o percurso de LPM em suas publicações, não aborda toda a atividade dessa autora na divulgação da obra de RB, sobretudo como tradutora e organizadora da publicação de textos inéditos do crítico francês no Brasil. Sobre esse viés do trabalho de LPM,cf. Brandini (2014BRANDINI, L. T. Roland Barthes no Brasil via traduções. In : Cadernos de Tradução, Florianópolis, n. 34, p. 120-141, jul./dez. 2014. Disponível em :<Disponível em :https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2014v2n34p120/28193 > Acesso em : 12 jul. 2020.
    https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
    ). Também não se buscou aqui aprofundar a presença de RB no trabalho de LPM, embora isso ocorra. Esse aspecto foi muito bem apresentado por Max Hidalgo Nacher (2016HIDALGO NÁCHER, Max. Leyla Perrone-Moisés y algunas modulaciones barthesianas en Brasil en torno a la crítica y la literatura. Alea, Rio de janeiro, vol. 18/2, p. 344-366, mai-ago. 2016. ). O que se pretende aqui é muito mais evidenciar o que aflora nos textos de LPM como biografemas de uma amizade.
  • 3
    A autora cita, nesse trecho, o primeiro livro de RB traduzido por ela mesma: Crítica e verdade (RB, 1970BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo : Perspectiva, 1970., p. 74).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
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