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Maternizar a outra língua: tradução, autotradução, criação poética

Mothering the other language: translation, self-translation, poetic creation

Resumo

Assumindo a forma de um ensaio biográfico, este artigo aborda o problema do translinguismo do ponto de vista da tradução de poesia em sentido invertido, da autotradução e da criação poética. Partindo de narrativas em primeira pessoa sobre experiências translíngues, visa interrogar também a voz que reúne pensamentos e vivências sob a égide discursiva do “eu” em suas relações e tensões com a pluralidade linguística. Para isto, mobiliza outras vozes, em diálogos com Sylvia Molloy, Etel Adnan, Jacques Derrida. Discute também com as teorias da tradução de Paul Ricœur, Haroldo de Campos e Walter Benjamin.

Palavras-chave:
tradução em sentido inverso; autotradução; translinguismo; criação poética

Abstract

This auto-biographical essay discusses inverse translation of poetry, self-translation and poetic creation. Working with personal narratives about translinguistic experiences, the paper also seeks to interrogate the voice that brings together thoughts and experiences under the discursive aegis of the “self” in its relations and tensions with linguistic plurality. To this purpose, the paper mobilizes other voices, establishing dialogues with Sylvia Molloy, Etel Adnan, Jacques Derrida. It also discusses the translation theories of Paul Ricœur, Haroldo de Campos and Walter Benjamin.

Keywords:
inverse translation; self-translation; translingualism; poetry

Résumé

Sous la forme d’un essai biographique, cet article aborde le problème du translinguisme du point de vue de la traduction en sens inverse, de l’autotraduction et de la production poétique. Partant de récits à la première personne sur des expériences translingues, il interroge aussi la voix qui rassemble les pensées et les vécus sous l’égide discursive du « je » dans ses relations et ses tensions avec la pluralité langagière. C’est la raison pour laquelle d’autres voix sont mobilisées: celles de Sylvia Molloy, Etel Adnan ou encore Jacques Derrida. En outre, ce travail dialogue avec les théories de la traduction de Paul Ricœur, Haroldo de Campos et Walter Benjamin.

Mots-clés:
traduction en sens inverse; autotraduction; translinguisme; création poétique

A palavra translíngue

Com o convite para colaborar neste dossiê sobre “Literatura e práticas translíngues”, veio a palavra que há muito eu procurava para nomear todo um campo de interrogações, inquietações e incitações poéticas que associei inicialmente à experiência da tradução, mas vão além dela, remetendo a outras práticas e vivências linguísticas. De acordo com Ana Maria Lisboa de Mello e Antonio Andrade, a noção de translinguismo “ratifica perspectivas teóricas contemporâneas que entendem a linguagem como construto social atravessado por contínuos contatos linguístico-culturais” (ANDRADE; LISBOA DE MELLO, 2019ANDRADE, A.; LISBOA DE MELLO, A. M. Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019. , p. 11), implica assim as múltiplas imbricações entre recursos verbais, interfaces e espaços transicionais que borram, relativizam ou hibridizam as fronteiras entre as línguas.

Aprofundando-me em seu sentido, percebo que o objeto com o qual me confronto é também sujeito deste enunciado, o que coloca imediatamente em xeque a pressuposição de neutralidade de minha própria posição teórica. O campo de pesquisas coberto pela noção de translinguismo faz imediatamente pensar no tema ou motivo que atravessa Bye bye Babel, livro de poesia que publiquei em 2018 e concerne experiências que me são familiares (nos dois sentidos do termo, inclusive). Decido então assumir a ambivalência desta palavra translíngue numa escrita em primeira pessoa que encontra ressonâncias nos ensaios de Sylvia Molloy e de Etel Adnan, sobre suas próprias experiências multilinguísticas, mas também, paradoxalmente, no Monolinguisme de l’autre, de Derrida.

O ensaio em primeira pessoa é um gênero recorrente em investigações e reflexões sobre translinguismo. É o que sugere Pablo Gasparini, no artigo em que analisa Viver entre línguas, da crítica argentina Sylvia Molloy, comparando este livro recém traduzido no Brasil ao ensaio autobiográfico da poeta e artista plástica Etel Adnan, grega por parte de mãe e turca por parte de pai1 1 Cf. Pablo Gasparini, “A Língua como shibboleth, o ensaio como sotaque: uma leitura de Vivir entre lenguas, de Sylvia Molloy”, in: Andrade, A. e Lisboa de Mello, A. M., Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019. .

Poeta de expressão inicialmente francófona, Adnan lembra que durante a guerra de independência da Argélia evitara escrever em francês por causa de suas convicções anticoloniais. Observa, entretanto, que esta restrição autoimposta a perturbava na plena expressão de si mesma, num mal-estar afastado pela prática da pintura. Seria a adoção desta linguagem não verbal um modo de se traduzir, na falta da língua adotada preferencialmente para a escrita, ou um jeito de traduzir a própria falta (momentânea) de língua? Mais tarde, ao adotar com entusiasmo o inglês americano como língua poética, essa angústia se dissiparia... (cf. ADNAN, 2014ADNAN, E. Écrire dans une langue étrangère (trad. do inglês Patrice Cotensin). Paris: L’Échoppe, 2014. ).

Talvez aquele “quem sou?” que Molloy interpõe entre os idiomas que possui também seja uma questão de autotradução. Ela conta que sua avó, como muitos imigrantes ingleses de sua geração, falava mal o espanhol e ficava aflita ao ver que o inglês, língua materna de seu filho, não era a de sua neta: “creio que ela não gostava muito que meu pai tivesse casado com uma Argentine girl, embora o fato de meu pai ser, ele próprio, um Argentine boy não lhe passasse pela cabeça. Um imigrante e um filho de imigrante se pensam em termos linguísticos, são a sua língua” (MOLLOY, 2018MOLLOY, S. Viver entre línguas. Belo Horizonte: Relicário, 2018. , p.8) - conclui. Entretanto, anos mais tarde, pouco meses depois de chegar aos Estados Unidos, sua própria identidade de imigrante latino-americana não é tão evidente: “com meu inglês anglo-argentino e meu vocabulário um tanto antiquado, não me situaram à margem do Tâmisa, mas sim bem mais longe: ‘Are you from India?, perguntaram. Por algum motivo, a referência colonial me consternou, talvez porque senti que me diminuísse. Eu não era a English girl que acreditava, em parte, ser” (MOLLOY, 2018MOLLOY, S. Viver entre línguas. Belo Horizonte: Relicário, 2018. , p.46).

Além de inscrever a fala numa complexa geopolítica, a pluralidade linguística parece efetivamente colocar em xeque a identidade da voz que liga e reúne pensamentos e vivências sob a égide discursiva do “eu”. Mas quando Derrida repete insistentemente “je n’ai qu’une langue et ce n’est pas la mienne”, o seu sotaque inaudível de judeu algeriano francófono também parece recair interrogativamente sobre este “je”, estranho ao seu próprio monolinguismo. É o recurso à narrativa autobiográfica que lhe permite problematizar a alteridade inscrita na relação com a língua, mobilizando toda uma geopolítica das hierarquias linguísticas em contexto colonial antes de interrogar a sua própria escrita monolíngue. Compreende-a, finalmente, como tradução sem original, sem língua de partida, em línguas de chegada que “não chegam a chegar, já que não sabem mais de onde partem, a partir do quê falam e qual o sentido de seu trajeto” (DERRIDA, 2016DERRIDA, J. Le Monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 2016., p.117), mas também como desejo de fazer alguma coisa com aquela, naquela língua que escreve (e aqui traduzo). Mas observada de sua perspectiva singular, deste seu lugar de escrita situado, qualquer língua pode aparecer como alheia, e não tanto como propriedade alheia, mas como proveniência de outrem. “Apesar das aparências, esta situação excepcional é ao mesmo tempo exemplar, claro, de uma estrutura universal; representa ou reflete uma forma de “alienação” originária que institui toda língua como língua alheia: a impossível propriedade de uma língua” (DERRIDA, 2016DERRIDA, J. Le Monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 2016., p.121).

Um acento interrogativo também atravessará estas minhas dispersões e digressões em torno de experiências pessoais que agora posso designar como “translíngues”. Talvez a autotradução e a tradução em sentido invertido, que venho praticando, sejam tentativas de resposta à pergunta dificilmente formulável sobre a unidade e a identidade da voz unificadora dessas vivências. O primeiro livro de poemas que escrevi investiga justamente sua precariedade polifônica, as alteridades, hibridações e passagens que se inscrevem entre voz e línguas. Até agora as investigações sobre translinguismo que realizei foram sobretudo estas, poéticas, penso inclusive que foi por incitação de experiências translíngues que comecei a escrever poesia.

Ensaio e poema encontram-se então num mesmo espaço de investigações e interrogações. Embora assumam formas diferentes, suas inconclusividades e intermitências conduzem a esta voz que transita entre corpo e discurso, divagando sobre o que se passa e sobre o que passa entre línguas.

Ecos: a tradução invertida

Écho Ne correspond pas toujours. « Répond où ? » Elle songe, répétant. « Répétant? » L’écho reprend et répond « épatant épatant » à mon beau dernier mot L’œuvre en or, ces mots si beaux si jumeaux « Les mots-jumeaux... » Métaphore-bateau ? S’honore ainsi la caricature ? Cacophonie dans une figure ? Figure belle « belabel a bel » en écho inversée : abel, babel. Versé ce vertige d’un miroir parti de Narcisse... Circé, sensé ? Ainsi j’ironise... si, et mince ! Qui peut songer en prose ? Echo glose 2 2 Esta autotradução em francês é inédita. Eco Nem sempre corresponde. “Responde onde?” Pondera, repetindo. “Repetindo?” Responde, repetindo lindo lindo o eco à minha última palavra. A lavra de ouro, essa palavra em larva... “A lavra em larva?” Metáfora parva. Imagem sonora em caricatura? Cacofonia numa bela figura? Figura bela “belabel a bel” em eco invertida: abel, babel. Vertida essa vertigem em espelho partido de Narciso... “Ciso, siso?” E nisso ironizo... é, ironizo. Quem é que sonha em prosa? Eco trova.3 3 LAVELLE, 2018, p.63.

Em torno do que aqui escrevo rondam ecos em outro ritmo, possibilidades lexicais e sintáxicas que a cada frase devo substituir para continuar este ensaio. Ao escrever estas linhas, percebo que traduzo fragmentos e esboços mentais de frases. Talvez escrever seja sempre um modo de traduzir a dispersão do pensar na articulação de um discurso, mas as palavras pensadas que precedem insistentemente esta minha escrita nem sempre vem da língua em que agora escrevo, embora me pareçam tão próximas e íntimas, muito mais do que outras que também tive que aprender mais ou menos tarde. Evito dizer que esta outra língua não é materna, afinal como a língua do filho e das trocas amorosas poderia ser madrasta ? Falo então em “língua de adoção” sem saber muito bem se a adotei ou se me adotou.

Durante este longo momento de pandemia, enquanto as fronteiras permanecem fechadas e o ensino universitário se faz em modo remoto, tenho vivido em dois lugares ao mesmo tempo. Exilada na intimidade francófona de casa, dou aulas de teoria literária no Rio de Janeiro três vezes por semana, e saio pouco, apenas para fazer compras no Monoprix da Avenue Jean Jaurès ou dar uma volta no Parque des Buttes-Chaumont, mantendo todo um protocolo de máscaras, álcool e distâncias. Raramente vou além do dix-neuvième arrondissement de Paris, e no entanto, entre aulas, conversas e palestras online, mantenho uma vida profissional intensa, sobretudo em espaços lusófonos. Não se pode dizer que esteja em viagem ou numa estadia de pesquisa, mas esta situação singular também é diferente da experiência da imigração, tal como a conheci. Difere, em particular, no que diz respeito ao território linguístico.

A intensificação da vida virtual neste contexto pandêmico gerou uma nova forma de globalização que me permite estar em dois espaços de língua perfeitamente majoritários ao mesmo tempo. Inverte, assim, a experiência linguística do imigrante que mantem apenas em casa a língua de origem, enquanto no trabalho precisa falar o idioma do país. Mas apesar de sua dimensão afetiva e doméstica, incide neste bilinguismo cotidiano uma geopolítica linguística que, independentemente de minhas escolhas ou desejos, opõe línguas globalizadas e periféricas.

No Brasil, o português é uma língua tão hegemônica que a diversidade linguística efetivamente existente (nas comunidades indígenas ou em grupos de imigrantes, por exemplo) fica escondida sob o clichê (de fundo colonial) do monolinguismo de dimensões continentais4 4 Atualmente fala-se muito em literatura indígena brasileira, mas pouca atenção tem sido dada ao caráter translíngue de uma boa parte desta produção, escrita (ou traduzida?) em português. Sobre o desconforto das identidades nacionais diante desta diversidade linguística, gostaria de citar uma passagem de Viver entre línguas, de Sylvia Molloy: “Nas feiras de rua de Nova Iorque, abundam os vendedores indígenas oriundos de países andinos. Vendem tecidos de alpaca, gorros, alguns vasos, camisas de linho grosso. Um amigo me conta que uma moça peruana que trabalha no consulado do Peru em Nova Iorque reclama dessa imigração, talvez por sua indesejada visibilidade, mas sobretudo, ao que parece, por motivos linguísticos. Mais especificamente, ela reclama de um bilinguismo que foge do seu controle de funcionária consular: ‘Esses aí passam direto do quéchua para o inglês’, parece que ela diz, com desprezo” (2018, p. 25). . Entretanto, não se pode dizer que seja uma língua globalizada na mesma escala que o inglês, o espanhol ou mesmo o francês. Na França, é uma língua minoritária e culturalmente periférica. Apesar do Salão do Livro de Paris de 2015 ter homenageado o Brasil, vejo que livrarias e editoras francesas ainda abrem pouquíssimos espaços para literaturas lusófonas.

Meu filho conta que para seus colegas do lycée o português é quase sempre associado ao sotaque do trabalhador braçal imigrante de origem portuguesa, só de vez em quando alguém se lembra de um jogador de futebol brasileiro. Mas ele que nasceu na França e nunca esteve em Portugal, costuma se apresentar espontaneamente como “francês” e “português”, associando sua identidade às duas línguas que fala, embora saiba que dissocia assim a língua materna e a proveniência da mãe. Nesse longo período de fronteiras fechadas, esta origem brasileira deve lhe parecer mais longínqua do que nunca... Mas o interessante é que a confusão evidencia uma diferença significativa entre as duas línguas. Embora hegemônico dentro de seu território, o “brasileiro” é descentrado em relação a sua origem, forma derivada e colonial de outro falar europeu. Por outro lado, a França (e Paris em particular) autorrepresenta-se como o centro da francofonia, mas há muito tempo perdeu a centralidade cultural que já teve.

É nesse duplo lugar linguístico e simbólico que escrevo e traduzo, atividades que em alguns momentos tendem a se misturar. Afinal venho traduzindo sobretudo em sentido inverso, e também tenho me traduzido. Convidada a publicar alguns de meus poemas na revista francesa Place de la Sorbonne, editada pela Universidade de Paris IV - Panthéon-Sorbonne, acabei propondo e organizando todo um dossiê de poesia brasileira contemporânea, e traduzi a maioria dos textos, colaborando com Inês Oseki-Dépré e Marc de Launay. Significativamente, escolhi reunir neste primeiro conjunto de traduções invertidas apenas poesia escrita por mulheres - de certo modo associo a transmissão da língua materna a estas vozes femininas. Mas ficou o desejo de continuar a desenvolver esse trabalho numa outra antologia, incluindo também autores.

Alguns poemas de Bye bye Babel haviam sido traduzidos por Marc de Launay e publicados na revista francesa Po&sie (2020LAVELLE, P. “Poèmes de Bye bye Babel”. Po&sie, n. 172-173, Paris, 2020, p. 103-106., n. 172-173, p. 103-106), mas senti a necessidade de fazer eu mesma as traduções para esta nova publicação e acabei retraduzindo também textos que já estavam traduzidos. Iniciei assim um processo de autotradução (e de reescrita) do livro todo, que vem desencadeando novos poemas escritos diretamente em francês. Percebo que nisso tudo o “desejo de traduzir” - que Paul Ricœur pensa em termos de hospitalidade linguística - está invertido, e talvez tenha estado sempre subvertido em certos efeitos e temáticas translíngues da minha escrita poética.

Em Sobre a tradução, Ricœur pensa a prática tradutória como objeto de um desejo que vai além da necessidade de comunicação interlinguística em sua utilidade. Referindo-se a uma tradição que vai de Lutero a Benjamin, passando pelo romantismo, ele afirma que este desejo não diz respeito apenas ao sonho babélico de abolir a diferença entre as línguas, seja pela via iluminista da eliminação de todas as intraduzibilidades no âmbito de uma racionalidade universal, seja pela espera messiânica de uma linguagem puramente expressiva. Para Ricœur, o desejo de traduzir concerne sobretudo à descoberta das potencialidades da “língua de partida” e dos recursos inaproveitados da “língua de chegada”. Diz respeito, portanto, ao alargamento dos horizontes linguísticos através do acolhimento da “outra língua”, pressuposta como “de partida” no processo de transformação e reconfiguração da própria, sua suposta “chegada”, seu porto seguro (Cf. RICŒUR, 2012RICŒUR, P. Sobre a tradução (trad. Patrícia Lavelle). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. ).

Penso que a criação poética tem em comum com certas práticas de tradução este alargamento dos horizontes linguísticos - e o desejo de hibridizar a língua, de torná-la excessiva e estranha a si mesma, mais aberta e mais fértil. Mas diferente de Ricœur, não tenho mais tanta certeza quanto às fronteiras entre o próprio e o outro, entre a língua própria e a alheia; ou dito de modo mais preciso, entre a língua materna e tal ou qual outra(s), escolhida(s) e investida(s) de um afeto particular.

Embora fale em “desejo de traduzir”, Ricœur faz considerações gerais sobre a possibilidade de passagem entre as línguas num processo tradutório cuja efetividade prática sempre contradiz sua impossibilidade teórica. Entretanto, o “eu” que traduz não é uma mera forma de ligação sem conteúdo - sujeito transcendental agenciador desta abstração babélica que nomeamos linguagem - mas uma voz singular, situada num certo corpo, sempre a um certo ponto de distância ou proximidade não apenas histórico e cultural, mas também afetivo e estético dos recursos linguísticos que mobiliza para traduzir. Escolhas tradutórias não apenas se confrontam (e reagem) a hierarquias interlinguísticas, nas múltiplas valorizações socioculturais das línguas, mas vêm também impregnadas de investimentos afetivos, estéticos e imaginários que incidem sobre este desejo de traduzir ultrapassando a necessidade prática de comunicação entre diferentes códigos.

Meu desejo de traduzir concerne a esta língua e àquela. Inscrevendo-se nas brechas de uma dada geopolítica das relações linguísticas (e literárias), inverte o sentido habitual do outro ao próprio, como se pudesse ampliar, na língua adotada, o espaço de acolhida para a materna. Se há nesse desejo alguma hostilidade invasiva ou intrusiva - contraface ambivalente da hospitalidade linguística em jogo na tradução - não o associo à tradução antropofágica dos concretistas, em sua aspiração de inversão da hierarquia entre original e tradução, numa subversão de colonialismos culturais.5 5 Penso aqui, por exemplo, em “Tradição, tradução, transculturação: o ponto de vista do ex-cêntrico”, ensaio no qual Haroldo de Campos associa a prática da tradução à antropofagia modernista. Segundo ele, a “deglutição antropofágica” em jogo na prática da transcriação “não acarreta submissão (um catecismo), mas uma “transculturação” na qual “todo o passado estrangeiro merece ser negado”, num movimento de “des-hierarquização” entre original e tradução (CAMPOS, 2011, p.126). O que desejo é “maternizar” esta língua aprendida, mas também adotada e transmitida, nela introduzindo um acento particular, ecos de outro ritmo.

Numa tradução de poesia é importante recriar a forma poética, preservando na transposição a informação estética do original, como sugere aliás Haroldo de Campos (Cf. “Da Tradução como criação e como crítica”, in: CAMPOS, 2013CAMPOS, H. “Da Tradução como Criação e como Crítica”. In: Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 31-48. , p. 31-48). Vejo-me, assim, a cada vez, intervindo pontual e concretamente no material sonoro e no tecido cultural dessa língua adotada para refazer um poema. E vou tomando aqui e ali certas liberdades, como uma hóspede que fosse ao mesmo tempo dona da casa, e pudesse deslocar os móveis, trazer novos objetos, fazer e refazer arranjos. Esta ambivalência está, aliás, presente na palavra francesa hôte, que designa tanto a pessoa recebida quanto a que recebe. Quem vive entre duas casas é sempre hóspede de si mesma. Tenho, de fato, duas casas - e nenhuma delas é minha.

A propósito de casa e de língua materna, Derrida evoca em seu Monolinguisme de l’autre uma “palavra estranha que não sei quem (Voltaire diz que é Malebranche) usa para a imaginação: la folle du logis” (DERRIDA, 2016DERRIDA, J. Le Monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 2016., p. 106). Literalmente, a louca da casa. A passagem se refere a uma entrevista na qual Hannah Arendt manifesta a persistência de seu apego ao alemão, sua língua materna, apesar de sua longa emigração e do trauma histórico do nazismo. Interrogada à propósito do discurso nazista, ela nega (ou denega) que a própria língua possa ter “se tornado louca”. Ora, para Derrida, a loucura está na representação da mãe como única insubstituível e como lugar da língua, está no fantasma da unicidade absoluta da língua materna - e penso que sobretudo também na representação de seu isolamento em relação à influência de outras, e do privilégio conferido ao território linguístico isolado e preservado como fonte de produtividade poética.

Indo além do que diz Derrida, interessa-me aqui a associação entre a “folle du logis” - a imaginação como fantasia - e as imagens (ou fantasmas) da mãe e da casa, da mãe na casa ou da língua como mãe e casa. Uma língua pode ser como uma mãe, se a pensamos como proveniência e origem, mas também se a representamos como hôte, que tanto recebe quanto é recebida, em múltiplas acolhidas e deslocamentos. Mas prolongando esta fantasia alegórica num “como se”, lembro a frase de Hamann, citada por Walter Benjamin em Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem: “Linguagem, a mãe da razão e da revelação, seu alfa e ômega” (BENJAMIN, 2011BENJAMIN, W. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”. In: Escritos sobre mito e linguagem (trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves). São Paulo: Ed. 34, 2011, p. 49-73., p.59).

A tradução brasileira escolhe, entre os dois sentidos da palavra alemã Sprache (língua e linguagem), aquele que aqui efetivamente convém. A mãe “da razão e da revelação”, origem de toda produção espiritual, princípio e fim de qualquer possibilidade de sentido, não poderia ser uma língua entre outras, nem mesmo uma língua originária de todas as outras. Mas isto que chamamos de linguagem também não se identifica à soma de todas as línguas tomadas isoladamente.

Esta linguagem-mãe da razão, que Hamann associa à imaginação produtiva em sua “metacrítica” da Crítica da razão pura,6 6 Remeto aqui à minha própria interpretação dos escritos “metacríticos” de Hamann que ironicamente ainda não têm tradução publicada em português (Cf. LAVELLE, 2011). não pode ser meio para comunicar conteúdos. Benjamin a pensa como o medium no qual pensamos e conhecemos, referindo-se à densidade evocativa do nome. Mas em seu conhecido ensaio sobre a Tarefa do tradutor, esta “pura linguagem” concerne à possibilidade de passagem entre as línguas, nas traduções. Relaciona-se também às suas constantes transformações, que implicam múltiplos e mútuos deslocamentos e empréstimos. Neste sentido, penso que “maternizar” uma língua pode significar dinamizar, nela, mutações e hibridações linguísticas, abrindo espaços limítrofes e interfaces.

Em sua Tarefa do tradutor, Benjamin, como Ricœur, distingue o original da tradução, assim como a língua estrangeira da própria, que ele institui sem discussão como “chegada” do processo tradutório, mantendo assim o sentido que eu mesma tenho invertido (ou subvertido):

a tradução não se vê como a obra poética, mergulhada, por assim dizer, no interior da mata da linguagem, mas vê-se fora dela, diante dela e, sem penetrá-la, chama o original para que adentre aquele único lugar, no qual, a cada vez, o eco é capaz de reproduzir na própria língua a ressonância de uma obra da língua estrangeira. Sua intenção não só se dirige a algo diverso da obra poética, ou seja, a uma língua como um todo, partindo de uma obra de arte isolada, escrita numa língua estrangeira; mas sua própria intenção é outra: a intenção do escritor é ingênua, primeira, intuitiva; a do tradutor, derivada, última, ideativa. Pois é o grande tema da integração das várias línguas em uma única, verdadeira, que acompanha o seu trabalho. (BENJAMIN, 2011BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor”. In: Escritos sobre mito e linguagem (trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves). São Paulo: Ed. 34 , 2011, p. 101-119. , p. 112; GS, IV-1BENJAMIN, W. “Die Aufgabe des Übersetzers”. In: Gesammelte Schriften, IV-1. Frankfurt: Suhrkamp Verlag , 1980, p. 9-21. , p. 16)

Embora Benjamin não explicite o seu próprio ponto de vista, também situado numa certa configuração geopolítica das relações linguísticas, não devemos esquecê-lo. Lembro então que esse texto é um prefácio para suas próprias traduções de poemas de Baudelaire em alemão - trabalho realizado sobretudo durante a Primeira Guerra e publicado em livro logo depois, em 1923. Naquele momento, a oposição entre aquela língua estrangeira em particular, o francês de Baudelaire, e o alemão materno do tradutor se colocava dramaticamente em cena - e o seu desejo de tradução pode aparecer assim como reação estética e política ao conflito que opôs os dois países, como desejo de aproximar e refazer vínculos culturais abalados. Mais tarde, durante seu exílio na França, talvez este sentido tradicional do próprio e do estrangeiro tenha lhe parecido menos evidente. Afinal, embora nunca tenha discutido teoricamente práticas translíngues, integrando-as em sua filosofia da linguagem, Benjamin realizou autotraduções do alemão em francês (inclusive, significativamente, de sua Infância em Berlim por volta de 1900) e chegou a escrever ensaios e cartas nesta língua, que se tornaria para ele sem dúvida menos estrangeira do que outras.

O que acontece se mantemos a imagem da floresta, usada por ele, invertendo o sentido tradicional que vai do outro ao próprio, do poema na língua estrangeira à tradução na materna? Será que, invertida, a tradução também pode fazer ecoar, na outra língua, tomada como ponto de chegada, as ressonâncias do poema original? Gosto de pensar que na tradução, em sentido inverso, esse eco vem com algum sotaque, que nela a ressonância linguística do original atravessa a fronteira levando consigo um discreto shibboleth, que poderia ter interditado a passagem.7 7 Sobre o episódio bíblico do shibboleth, palavra cuja pronuncia permitia distinguir os falantes da tribo de Efraim, identificando-os assim num contexto de guerra, e a interessante questão do ensaio como sotaque em Sylvia Molloy, ver também Gasparini, P., “A Língua como shibboleth, o ensaio como sotaque: uma leitura de Vivir entre lenguas, de Silvia Molloy”, in: Andrade, A. e Lisboa de Mello, A. M., Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019. E assim, não apenas evoca na outra língua, considerada como lugar de chegada, aquele silêncio intra e interlinguístico que é “mãe” de todo pensar, mas traz consigo também afetos sedimentados na própria língua, tomada como língua de partida. Junto com eles, vem um ponto de vista móvel: interno à cultura na qual os originais foram escritos, atento, portanto, ao tecido de referências que mobilizam e transformam, mas também capaz de se deslocar para intervir no interior da outra língua, com delicadeza e cuidado. Vejo nisso alguma semelhança com o que fazem as mães migrantes que transmitem aos filhos não apenas a sua primeira língua, mas também a que adotaram - elas sabem que esta segunda, aprendida mais tarde, trará inevitavelmente consigo algum sotaque ou mistura.

Musa translíngue (autotradução e criação poética)

Talvez meu desejo de “maternizar” a língua adotada só se encontre duplamente em casa em autotraduções que fazem ecoar, na língua de chegada, ecos híbridos já presentes ou latentes nas ressonâncias dos textos “de partida”. Ecos de ecos portanto, numa polifonia que relativiza a distinção que Benjamin estabelece entre o teor da tradução, que desloca e examina de fora os materiais linguísticos, e a unicidade do original em sua aderência profunda e orgânica à própria língua. De acordo com Benjamin, não há musa da tradução, assim como também não haveria musa da filosofia (BENJAMIN, 2011BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor”. In: Escritos sobre mito e linguagem (trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves). São Paulo: Ed. 34 , 2011, p. 101-119. , p. 113; GS, IV-1BENJAMIN, W. “Die Aufgabe des Übersetzers”. In: Gesammelte Schriften, IV-1. Frankfurt: Suhrkamp Verlag , 1980, p. 9-21. , p. 16). Pode-se discutir ou problematizar tal assertiva - é aliás o que faz Haroldo de Campos em suas releituras da Tarefa do tradutor -8 8 Cf. “Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução”, in: CAMPOS, 2011, p.67: “A radical e subversiva teoria da tradução benjaminiana está presa numa “clausura metafisica” (valho-me aqui da expressão de Derrida). Esta “clausura” é demarcada pela diferença categorial, “ontológica”, entre “original” e “tradução” (...)”. mas não tenho dúvidas de que deve certamente existir uma musa translíngue. Há uma poesia que surge dos atritos e fricções interlinguísticos, produzindo incessantemente ecos desta língua naquela, e daquela nesta.

Língua materna Para Gabriel Ouve, meu filho, um tempo: a língua era uma só melodia em redondilhas ingênuas rimas minúsculas e naturais como passarinho em lata de leite ninho A língua, pura como água em leite maternizado, era uma única imensa infância Mas no leite vivo do meu peito enriquecido com variados nutrientes esse ritmo já veio entremelado num outro mais lento, mais longo, sussurrada monotonia, em doze doses, uniformes Por isso o sabor da sua língua foi sempre duplo, maternelles, foram as suas primeiras letras, mas múltipla de nascença, é sua infância 9 9 LAVELLE, 2018, p.26. Langue maternelle pour Gabriel C’était autrefois un temps où langue n’était qu’une mélodie naïve de comptine aussi facile et naturelle que les deux rives de la rivière que les dérives de la rime La langue, pure comme l’eau pour lait maternisé, était une seule immense enfance Mais dans le lait vivant que tu trouvais dans mes seins déjà enrichi de nutriments variés ce rythme ancien est déjà venu mêlé d’un autre plus lent plus long, langueur monotone murmurée en douze doses, uniformément Et voilà pourquoi la saveur de ta langue fut toujours double et multiple de naissance, est ton enfance 10 10 Esta autotradução será publicada no próximo número da revista Place de La Sorbonne.

“Língua materna” joga com alternâncias de versos de sete e doze sílabas, numa série de enjambements e de cesuras. Explora assim afetos rítmicos que, sedimentados nas convenções métricas de cada uma das línguas, aderem ao timbre da voz, como os sotaques e os gestos. Por isso a tradução em francês de certo modo se inscreve no próprio projeto formal do poema, como um desenvolvimento ou um deslocamento de seu efeito poético que, como a temática, é bilíngue.

Nas duas línguas, a codificação métrica cristaliza em quantidades silábicas predeterminadas o ritmo habitual da prosódia, a cadência comum da fala. Em francês predominam os longos alexandrinos e o português do Brasil geralmente canta entre redondilhas maiores e menores. E diferente do português, assim como de todas as outras línguas de origem europeia, o francês é uma língua átona. Isto significa que as palavras não são previamente marcadas por sílabas tônicas. Frases e expressões ganham alguma tonicidade apenas com as pausas, num movimento ligeiramente ascendente logo antes de cada parada. Daí a importância das cesuras que, no interior do verso, abarcam conjuntos prosódicos numa certa ondulação rítmica.

Por outro lado, a melodia atonal da língua francesa é particularmente rica em rimas, assonâncias e aliterações, a ponto de gerar constantemente ecos, ou uma forma curiosa de cacofonia que se funda sobre a homofonia, outra peculiaridade associada a uma forma popular de humor, o “calembour”. No soneto “Eco”, por exemplo, o jogo com a homofonia (“Sonore ainsi la caricature?” ou “S’honore ainsi la caricature?”) aparece apenas na versão em francês, mas penso que estava secretamente inscrito no texto em português, como um eco fantasmático da outra língua.

Impregnados de ressonâncias afetivas e nostálgicas porque carregados de sedimentos linguísticos que também encontramos em canções populares, quadrinhas infantis, provérbios e cantigas de ninar, os metros e outros recursos poéticos tradicionais, como as rimas e as formas fixas, não são convenções vazias ou caducas. Também não são meros exercícios formais sem conexão com afetos. Gosto de pensar que são arquivos rítmicos e afetivos, remetendo a estados linguísticos anteriores que continuam ecoando no presente. Produzem, assim, efeitos humorísticos ou nostálgicos, e frequentemente ambos ao mesmo tempo. Arriscando um paralelo com a música clássica, penso nos efeitos paródicos que Mahler obtém ao introduzir ecos e citações melódicas em sua 5a sinfonia.

Traduzida A língua do tradutor invade a minha boca e lúbrica aliso a plástica muscular de suas vogais macias e essa reta ligeiramente ascendente de cada frase sua penetra o elástico rítmico das minhas sílabas em duplo silêncio gozo o eco nessa outra voz langueur monotone dentro 11 11 LAVELLE, 2018, p.35. Traduite La langue du traducteur envahit ma bouche et lascive je lisse la plastique musculaire de ses voyelles douces et cette ligne légèrement ascendante de chacune de ses phrases pénètre l’élastique rythmique de mes syllabes en double silence je jouis l’écho dans cette autre voix « langueur monotone » dans 12 12 Autotradução publicada na revista francesa Po&sie, n°172-173, p. 103.

O ritmo átono do francês alterou e ainda altera meus gestos, postura corporal, tom de voz, experiência que outras pessoas também relatam a propósito desta e de outras línguas adquiridas. Traduzir (e traduzir-se) de uma língua a outra também implica o gestual do corpo e a voz. Assim, a poética de hibridações e contrastes entre materiais fonéticos, que nos exemplos anteriores é de certo modo desenvolvida e completada pela autotradução, associa-se acima explicitamente ao Eros da tradução, numa erotização da linguagem. Mas percebo que outros recursos ou efeitos translíngues, em particular aqueles que remetem a intertextualidades, não são facilmente traduzíveis. Como traduzir referências literárias compartilhadas? Como trazer para a outra língua o tecido cultural que me constitui, construindo a minha própria relação com a linguagem? Não tenho respostas para estas perguntas, mas elas calam profundamente no desejo de inverter o sentido habitual da tradução e na necessidade de me autotraduzir.

“As aves, que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. Heimat é esse lá exilado em qualquer aqui13 13 LAVELLE, 2018, p.25. « Les oiseaux qui me chantent là n’enchantent pas comme là-bas » Heimat est le là-bas qui débarque à chaque là 14 14 Esta autotradução é inédita.

Embora citoyenne por efeito de naturalização (e da longa imigração), não sou bilíngue desde a infância. Se para Sylvia Molloy a aprendizagem do francês “recupera” uma língua “perdida” pela mãe, também não há nenhuma genealogia ou “romance familiar” na origem de meu próprio aprendizado. Foi escolhido livremente, aos dezoito anos, no entusiasmo gerado pela poesia de Baudelaire. O romance familiar (que não escreverei) veio depois, incluindo casamento, emigração, doutorado, filho, divórcio, retorno, outro casamento, e inúmeras idas e vindas. O francês que aprendi por iniciativa própria na juventude acabou se tornando a minha língua de escrita justamente no período em que precisei aprender uma outra, mais estrangeira e definitivamente tardia: o alemão, que estudei inicialmente na França, antes de realizar algumas estadias na Alemanha, sempre com financiamentos de instituições franco-alemãs.

Há algo de doloroso na lembrança dessa aquisição de uma língua em outra previamente adquirida, situação que de certo modo me deslocava da posição de doutoranda estrangeira com competências linguísticas elevadas para a da imigrante, que aprende por necessidade, hibridizando os parcos recursos linguísticos de que dispõe. Tinha também o efeito de me afastar culturalmente do português, desvalorizado pelo próprio contexto institucional franco-alemão desta aprendizagem, que desconhecia qualquer tradição literária ou cultura lusófona, reconhecendo-me portanto apenas como cidadã francesa.

Deslocando a íntima relação entre o sistema linguístico no qual produzimos incessantemente novos discursos e os arquivos culturais que o constituem em sua dinâmica aberta - e que portanto também permitem operar transferências e traduções - , esta situação linguística colocava em questão a própria unicidade da voz que reúne vivências e pensamentos, ligando-os na densidade material de cada língua, mas também passando de uma à outra. Colocava, de fato, um problema de tradução.15 15 Em suas considerações sobre o problema do intraduzível, Ricœur sugere que a tarefa do tradutor não vai da palavra à frase e ao discurso, mas ao contrário deve partir do tecido cultural do qual participa e no qual intervém o texto que deseja traduzir: “impregnando-se por vastas leituras do espírito de uma cultura, o tradutor desce novamente do texto à frase, à palavra” (RICŒUR, 2012, p.61).

Em 2009, percebi com algum espanto que numa década vivendo como pesquisadora na França não havia escrito nenhum texto em português, embora tivesse publicado em 2008 um volume de mais de trezentas páginas sobre o conceito de experiência em Walter Benjamin - trabalho que correspondia a minha tese de doutorado em filosofia, defendida dois anos antes. E continuasse ocupada em editar livros reunindo textos de Benjamin em tradução francesa. Podia apresentá-los e comentá-los, mas havia nessa dupla estrangeirice uma impossibilidade real de tradução, e certamente também uma dolorosa dificuldade de autotradução.

Nunca traduzi em português o livro ao qual me refiro acima, como também não traduzi em francês o ensaio que corresponde a minha dissertação de mestrado, defendida em 1996 e premiada com a publicação em 2003. Talvez, para isto, tenha faltado endereçamento, ou seu enraizamento num tecido cultural compartilhado. Em todo caso, foi para responder ao convite de um colega brasileiro que traduzi um artigo em português em 2009, e a partir daí comecei a me autotraduzir, reescrevendo textos produzidos inicialmente em francês. Depois fiz algumas traduções do francês em português, finalmente também do alemão em português. Traduzir em minha própria língua não foi muito fácil no início. Faltavam palavras, e sobretudo formas de ligação, articulações sintáticas. Mas era um prazer redescobrir, na escrita, os ritmos mais arcaicos da fala.

Sempre fui leitora de poesia, mas o projeto de criação poética, em todo caso sua impulsão mais importante, vem deste esforço de autotradução, nasceu do deslocamento linguístico suscitando uma escuta particular do material fonético e dos arquivos rítmicos das línguas que falo. Escrevi alguns poemas na infância, mas o projeto de uma escrita poética madura surgiu apenas no estranhamento da língua materna, e sem dúvida da nostalgia de seu ritmo. Daí um certo topos do “retorno” que atravessa Bye bye Babel, conferindo ressonâncias épicas a alguns poemas. Mas também há algum humor nesta odisseia babélica, uma descrença de qualquer monolinguismo, ou de sua nostalgia.

Palavra estrangeira Entre palavras e coisas, há sempre alguma distância: na palavra, a coisa é outra na coisa, a palavra nem é. Mas essa coisa sonora, que a palavra é também, é uma forma de armadilha pra pegar uma outra coisa. Presa em palavra estrangeira, uma coisa é ainda mais outra menos diversa dela mesma que do meu próprio silêncio. Mas a palavra estrangeira que tardiamente apreendi em prévia palavra estrangeira torna-se coisa ainda mais diversa prendendo-me assim à primeira. Coisa apreendida no tempo, toda palavra é armadilha onde eu, ela ou isto (a coisa pensante = X) capturada, captura-se: toda palavra é estrangeira 16 16 LAVELLE, 2018, p.31 Parole étrangère Entre les mots et les choses il y a toujours quelque distance : dans le mot, la chose est une autre dans la chose, le mot n’est point. Mais cette chose retentissante que chaque mot est-il aussi, n’est-elle pas une sorte de piège pour attraper bien autre chose ? Prise dans la parole étrangère une chose est encore plus autre et diffère moins d’elle-même que de mon propre silence. Mais la parole étrangère bien tardivement prise dans une toute autre parole elle aussi, auparavant apprise, devient la chose plus étrangère qui m’attache à la première. Chose attrapée dans le temps, chaque mot est lui-même un piège où je, elle, cela (la chose pensante = x) est captive et se capture : toute parole est étrangère.17 17 Esta autotradução será publicada no próximo número da revista Place de La Sorbonne. Uma outra tradução em francês deste poema saiu na revista Po&sie, n°172-173, p.105.

Referências

  • ANDRADE, A.; LISBOA DE MELLO, A. M. Translinguismo e poéticas do contemporâneo Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.
  • ADNAN, E. Écrire dans une langue étrangère (trad. do inglês Patrice Cotensin). Paris: L’Échoppe, 2014.
  • BENJAMIN, W. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”. In: Escritos sobre mito e linguagem (trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves). São Paulo: Ed. 34, 2011, p. 49-73.
  • BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor”. In: Escritos sobre mito e linguagem (trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves). São Paulo: Ed. 34 , 2011, p. 101-119.
  • BENJAMIN, W. “Über Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen”. In: Gesammelte Schriften, II-1. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1980, p. 140-157.
  • BENJAMIN, W. “Die Aufgabe des Übersetzers”. In: Gesammelte Schriften, IV-1. Frankfurt: Suhrkamp Verlag , 1980, p. 9-21.
  • CAMPOS, H. “Da Tradução como Criação e como Crítica”. In: Metalinguagem & outras metas São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 31-48.
  • CAMPOS, H. “Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução”. In: Da Transcriação. Poética e semiótica da operação tradutora Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011, p. 63-73.
  • CAMPOS, H. “Tradição, tradução, transculturação: o ponto de vista do ex-cêntrico”. In: Da Transcriação. Poética e semiótica da operação tradutora Belo Horizonte: FALE/UFMG , 2011, p. 123-131.
  • DERRIDA, J. Le Monolinguisme de l’autre Paris: Galilée, 2016.
  • LAVELLE, P. Bye bye Babel Rio de Janeiro: 7Letras , 2018.
  • LAVELLE, P. “Schématisme et langage. La Métacritique du purisme de la raison pure de Hamann”. In KÖNIG, Ch. e WISMANN, H. (org.) La lecture insistante. Autour de Jean Bollack, coloque de Cerisy Paris: Albin Michel, 2011, p. 461-474.
  • LAVELLE, P. “Poèmes de Bye bye Babel”. Po&sie, n. 172-173, Paris, 2020, p. 103-106.
  • MOLLOY, S. Viver entre línguas Belo Horizonte: Relicário, 2018.
  • RICŒUR, P. Sobre a tradução (trad. Patrícia Lavelle). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
  • 1
    Cf. Pablo Gasparini, “A Língua como shibboleth, o ensaio como sotaque: uma leitura de Vivir entre lenguas, de Sylvia Molloy”, in: Andrade, A. e Lisboa de Mello, A. M., Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.
  • 2
    Esta autotradução em francês é inédita.
  • 3
    LAVELLE, 2018LAVELLE, P. Bye bye Babel. Rio de Janeiro: 7Letras , 2018., p.63.
  • 4
    Atualmente fala-se muito em literatura indígena brasileira, mas pouca atenção tem sido dada ao caráter translíngue de uma boa parte desta produção, escrita (ou traduzida?) em português. Sobre o desconforto das identidades nacionais diante desta diversidade linguística, gostaria de citar uma passagem de Viver entre línguas, de Sylvia Molloy: “Nas feiras de rua de Nova Iorque, abundam os vendedores indígenas oriundos de países andinos. Vendem tecidos de alpaca, gorros, alguns vasos, camisas de linho grosso. Um amigo me conta que uma moça peruana que trabalha no consulado do Peru em Nova Iorque reclama dessa imigração, talvez por sua indesejada visibilidade, mas sobretudo, ao que parece, por motivos linguísticos. Mais especificamente, ela reclama de um bilinguismo que foge do seu controle de funcionária consular: ‘Esses aí passam direto do quéchua para o inglês’, parece que ela diz, com desprezo” (2018MOLLOY, S. Viver entre línguas. Belo Horizonte: Relicário, 2018. , p. 25).
  • 5
    Penso aqui, por exemplo, em “Tradição, tradução, transculturação: o ponto de vista do ex-cêntrico”, ensaio no qual Haroldo de Campos associa a prática da tradução à antropofagia modernista. Segundo ele, a “deglutição antropofágica” em jogo na prática da transcriação “não acarreta submissão (um catecismo), mas uma “transculturação” na qual “todo o passado estrangeiro merece ser negado”, num movimento de “des-hierarquização” entre original e tradução (CAMPOS, 2011CAMPOS, H. “Tradição, tradução, transculturação: o ponto de vista do ex-cêntrico”. In: Da Transcriação. Poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG , 2011, p. 123-131., p.126).
  • 6
    Remeto aqui à minha própria interpretação dos escritos “metacríticos” de Hamann que ironicamente ainda não têm tradução publicada em português (Cf. LAVELLE, 2011LAVELLE, P. “Schématisme et langage. La Métacritique du purisme de la raison pure de Hamann”. In KÖNIG, Ch. e WISMANN, H. (org.) La lecture insistante. Autour de Jean Bollack, coloque de Cerisy. Paris: Albin Michel, 2011, p. 461-474.).
  • 7
    Sobre o episódio bíblico do shibboleth, palavra cuja pronuncia permitia distinguir os falantes da tribo de Efraim, identificando-os assim num contexto de guerra, e a interessante questão do ensaio como sotaque em Sylvia Molloy, ver também Gasparini, P., “A Língua como shibboleth, o ensaio como sotaque: uma leitura de Vivir entre lenguas, de Silvia Molloy”, in: Andrade, A. e Lisboa de Mello, A. M., Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.
  • 8
    Cf. “Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução”, in: CAMPOS, 2011CAMPOS, H. “Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução”. In: Da Transcriação. Poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011, p. 63-73., p.67: “A radical e subversiva teoria da tradução benjaminiana está presa numa “clausura metafisica” (valho-me aqui da expressão de Derrida). Esta “clausura” é demarcada pela diferença categorial, “ontológica”, entre “original” e “tradução” (...)”.
  • 9
    LAVELLE, 2018LAVELLE, P. Bye bye Babel. Rio de Janeiro: 7Letras , 2018., p.26.
  • 10
    Esta autotradução será publicada no próximo número da revista Place de La Sorbonne.
  • 11
    LAVELLE, 2018LAVELLE, P. Bye bye Babel. Rio de Janeiro: 7Letras , 2018., p.35.
  • 12
    Autotradução publicada na revista francesa Po&sie, n°172-173, p. 103.
  • 13
    LAVELLE, 2018LAVELLE, P. Bye bye Babel. Rio de Janeiro: 7Letras , 2018., p.25.
  • 14
    Esta autotradução é inédita.
  • 15
    Em suas considerações sobre o problema do intraduzível, Ricœur sugere que a tarefa do tradutor não vai da palavra à frase e ao discurso, mas ao contrário deve partir do tecido cultural do qual participa e no qual intervém o texto que deseja traduzir: “impregnando-se por vastas leituras do espírito de uma cultura, o tradutor desce novamente do texto à frase, à palavra” (RICŒUR, 2012RICŒUR, P. Sobre a tradução (trad. Patrícia Lavelle). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. , p.61).
  • 16
    LAVELLE, 2018LAVELLE, P. Bye bye Babel. Rio de Janeiro: 7Letras , 2018., p.31
  • 17
    Esta autotradução será publicada no próximo número da revista Place de La Sorbonne. Uma outra tradução em francês deste poema saiu na revista Po&sie, n°172-173, p.105.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2021
  • Aceito
    19 Mar 2021
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