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Canto e plumagem da palavra rosiana: natureza, cosmos e formatividade

Song and plumage of Guimarães Rosa’s word: nature, cosmos and formativity

RESUMO

A prosa de Guimarães Rosa impacta de imediato por seu caráter inovador. É certo que em sua elaboração minuciosa há muito da pesquisa linguística e do investimento formal caros à modernidade artística. Mas a língua de Guimarães Rosa não presta contas essencialmente ao experimentalismo das vanguardas. A palavra rosiana opera uma integração cósmica, que reconcilia o homem com a natureza. Dizer, então, equivale a dar à luz e, neste ato genesíaco, a linguagem absorve o ímpeto metamórfico da natureza, concebida como corpo vivo.

Palavras-chave:
Guimarães Rosa; linguagem; natureza; imaginação; reciprocidade

ABSTRACT

Guimarães Rosa’s fiction immediately strikes the reader for its innovative quality. Its elaborate artistry certainly owes a lot to the linguistic research and the formal refinement dear to modernity. But Rosa’s language doesn’t pay tribute essentially to the experimentalism of the avant-garde. The Rosian word accomplishes a cosmic integration, which reconciles man to nature. Saying is thus equivalent to giving birth and, in this genesis, language absorbs the metamorphic impetus of nature, which is conceived as a living body.

Keywords:
Guimarães Rosa; language; nature; imagination; reciprocity

RESUMÉ

La prose de Guimarães Rosa exerce un fort impact sur le lecteur à cause de son innovation. Dans sa méticuleuse élaboration elle manifeste beaucoup de la recherche linguistique et du raffinement formel chers à la modernité artistique. Mas ce qu’on peut nommer la langue de Guimarães Rosa n’a essentiellement pas de dette avec l’expérimentalisme de l’avant-garde. La parole rosienne parvient à une intégration cosmique qui réconcilie l’homme avec la nature. Dire, en ce cas-là, correspond à donner naissance, et, dans cet acte, le langage incorpore l’élan de métamorphose de la nature, conçue comme un corps vivant.

Mots-cles:
Guimarães Rosa; langage; nature; imagination; reciprocite

O filósofo alemão Johann Fichte contribuiu enormemente para o reconhecimento do valor cognitivo da arte ao defender e demonstrar a força formativa da imaginação. Ele propôs o eu como um sujeito transcendental que se desdobra em eu sujeito pensante e eu objeto pensado. Assim desdobrado, o eu sujeito se apresenta como condição de possibilidade de todos os eus-objetos. O eu-sujeito produz, determina e condiciona os eus-objetos, mas sempre os transcende. Dentro desta perspectiva, a atividade do sujeito transcendental se revela como um infinito diferir de si mesmo, uma propulsão transcendente que o leva além de si mesmo, pura autoplasmação, criação incessante do próprio ser. A atividade produtiva do eu sujeito é, para Fichte, o próprio operar da imaginação (SOUZA, 2010SOUZA, Ronaldes de Melo e. A filosofia de Fichte e a poesia moderna. In: SOUZA, Ronaldes de Melo e. Ensaios de poética e hermenêutica. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010. p. 131-161., p. 132).

Guimarães Rosa chama a esse sujeito transcendental de “o proto eu profundíssimo de Fichte” (ROSA, 2001dROSA, João Guimarães. Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 5. ed., 2001d., p. 217) e encontra-lhe uma imagem perfeita, que constitui o centro da estória “O espelho”: “o eu por detrás de mim” (ROSA, 1981aROSA, João Guimarães. O espelho. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 12. Ed., 1981a. p. 61-68., p. 63). Em busca desse recôndito eu, concebido como “vera forma” e apenas alcançável com o anulamento do “disfarce do rosto externo” (ibid., p. 64), parte o narrador da estória e, por fim, o parteja do fundo de si mesmo. A imagem que, no espelho, se lhe mostra é, de início, “o tênue começo de um quanto como uma luz que se nublava em débil cintilação, radiância” (ibid., p. 67), de dentro da qual eclode o “rostinho de menino”, melhor, o “ainda nem rosto, mal emergindo apenas, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal” (ibid., p. 68). Rosa dá status de concretude à formulação filosófica de Fichte, dotando-a de substância poética e ressaltando-lhe o potencial gerador ao conceber essa luz como um “quanto”, quantum, pura energia vibratória e impulsionadora. Se o operar desse eu abissal é o próprio agir da imaginação, confirma-se o imaginar como força formativa primordial.

Friedrich Schelling expande a proposição fichtiana, afirmando que o autodesdobramento do sujeito no ato criador pertence ao sujeito em geral e não ao sujeito humano em particular. Deus, a Natureza, a Obra de Arte são sujeitos transcendentais, porque se autodesdobram e, portanto, traduzem o ato genesíaco (SOUZA, 2010SOUZA, Ronaldes de Melo e. A filosofia de Fichte e a poesia moderna. In: SOUZA, Ronaldes de Melo e. Ensaios de poética e hermenêutica. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010. p. 131-161., p. 139-140). Amplia-se consideravelmente o âmbito de atuação da imaginação, que se afigura a Schelling como uno que difere de si mesmo na criação do múltiplo. Para o filósofo, a imaginação rege a prodigalidade de Deus, a criatividade do homem, a nascitividade da natureza e a formatividade da linguagem. O Deus uno se duplica como deus ignoto e deus revelado; o espírito autorreflexivo do homem se desdobra em eu sujeito e eus objetos; a Natureza se apresenta duplamente como naturans e naturata, revelando-se como unidade omniparturiente e como multiplicidade criada; a linguagem, por sua vez, só se viabiliza no intercâmbio dialógico do silêncio e da palavra, de que decorre a duplicidade de um finito dizer e de um não-dito infinito. Assim pensada, a imaginação equaliza as forças da criação (ABRAMS, 1973ABRAMS, Meyer Howard. Natural Supernaturalism. Tradition and Revolution in Romantic Literature. London: The Norton Library, 1973.), e o Universo se manifesta como uma imensa continuidade que vive e respira. A perda desse uno, em si mesmo diverso, é a orfandade: rompe-se o vínculo do homem e do mundo. Se o homem não se alberga na natureza e a natureza não se recolhe no homem, ambos ficam sem morada.

O profundo pensar de Schelling ensina a reconciliação do espírito e da natureza: o eu se integra à natureza e a natureza ao eu, quando se suplanta a separação platônica do sensível e do inteligível e a oposição cartesiana do sujeito e do objeto. Da pródiga contextura desse pensar, toma alento o Romantismo inglês, que celebra a reciprocidade entre a natureza e a mente humana. Estabelecer que o homem compartilha sua vida com a natureza é, por um lado, revivificar o universo, que deixa de ser percebido como uma massa bruta regida por leis exatas e mecânicas, e, por outro lado, repatriar o homem, que se confinara numa subjetividade egoísta. A máxima do Romantismo inglês se poderia enunciar como TUDO É UM: a vida que perpassa o cosmos e a vida que anima o homem são A MESMA VIDA, cuja força indestrutível não se extingue e cujo impulso enlaça de forma inextricável o homem e a natureza (ABRAMS, 1971ABRAMS, Meyer Howard. The Mirror and the Lamp. Romantic Theory and the Critical Tradition. London: Oxford University Press, 1971.). Avulta, então, o desempenho da imaginação, como uma operação bilateral que envolve uma troca, um intercâmbio, uma comunhão entre o corpo do homem e o corpo da natureza.

É dentro dessa coalescência de fatores que se pode compreender a centralidade da Natureza na obra de Guimarães Rosa e o admirável empenho do escritor na plasmação de sua linguagem. No universo rosiano, tanto se afeiçoa o homem à natureza que ambos se confeiçoam, porque nutrem uma afeição mútua e sobretudo porque assumem as feições um do outro, impregnando-se e contagiando-se o homem da força motriz que arrebata a natureza. A nascitividade incessante da natureza desencadeia o elã formativo da linguagem, mediado pela militância criativa do homem, entusiasticamente comprometido com a celebração cósmica da vida.

Tomemos como exemplo a estória “São Marcos”, de Sagarana (ROSA, 2001aROSA, João Guimarães. Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 5. ed., 2001d., p. 261-291). Narrativa de 1ª pessoa, a estória nos coloca diante de um eu que se desdobra em dois: eu narrante e eu narrado, narrador e protagonista. O eu que narra a estória, eu de agora, voz da consciência, mostra-se crítico com relação ao que foi e aponta a contradição de um sujeito que afirmava não acreditar em feitiçaria, embora fosse inteiramente supersticioso. Esse eu de outrora, por sua vez, médico e poeta, também se duplica, já que se apresenta como xará do “João-de-Barros”, mas declara que, nessa estória, também se chamará José. Como ensinou Fichte, o eu sujeito é anônimo, o que significa que ele pode multiplicar-se em eus objetos, assumindo inúmeros nomes e pronomes.

A autoproliferação desse eu germina e se dissemina em tramas e subtramas que constituem a matéria narrativa de “São Marcos”, ela mesma, portanto, em contínuo autodesdobramento. A trama que emoldura a estória é o embate do médico com o feiticeiro. Recém-chegado à pequena cidade do interior, o eu narrado vê-se obrigado a disputar com o bruxo João Mangolô, porque a palavra médica não parecia bastar aos pacientes, que não dispensavam o concurso da palavra mágica. Ressentido e preconceituoso, o médico não poupa afrontas ao feiticeiro, que, “mestre em artes de despacho, atraso, telequinese, vidro moído, vuduísmo, amarramento e desamarração” (ROSA, 2001aROSA, João Guimarães. Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 5. ed., 2001d., p. 262), vai armar-lhe um feitiço brabo.

Dentro do envelope dessa trama, urde-se uma segunda trama fundamental: o passeio no mato. Esta se confessa ao leitor como uma estória secreta, porque o povo não podia saber que, todos os domingos, o médico local entrava no mato só para ver a natureza dar-se - “dar-se”, em todas as acepções do verbo: acontecer, oferecer-se como dom e entregar-se como corpo voluptuoso e ávido de cópula. O passeio no mato se manifesta como um embrenhar-se no núcleo germinativo da natureza, concebida como physis. O substantivo grego physis vem do verbo phyein, que assinala o surgir de alguma coisa que eclode, por exemplo, o nascer do sol, o brotar de uma flor, o crescer de uma árvore, ou seja, o desvelar-se de algo que, até então, se mantinha velado. O vocábulo evidencia uma compreensão essencialmente dinâmica da natureza, em que se privilegia o próprio aparecer de tudo o que se manifesta, a vida em seu brotar incessante do seio da morte, o desvelar-se que se apreende ainda no berço escuro de um insistente velar-se, um impulso para a luz que não desmente o seu apego às trevas, em suma, um manifestar-se que ama igualmente ocultar-se e desocultar-se (FARIA, 2004FARIA, Maria Lucia Guimarães de. Cara-de-Bronze: a visagem do homem e a miragem do mundo. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. p. 243-280., p. 278).

Em carta a João Condé, Guimarães Rosa relatou que “São Marcos” foi a estória “mais demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já muito afundadas”, e, por isso, resultou na “peça mais trabalhada do livro” (ROSA, 2001cROSA, João Guimarães. Carta de João Guimarães a João Condé. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001c. p. 23-28., p. 27). Analogamente, as domingueiras incursões no mato constituíram experiência do eu narrado num passado remoto. Na narração da estória, portanto, os passeios se dão como um ato de memória poética. Tão íntimo, contudo, se mostra o vínculo poeta-natureza, que o narrar suscita a presença do que nomeia. Daí se depreende que há, em realidade, três passeios: o passeio empírico, vivenciado outrora pelo eu narrado; o passeio recordado no presente, pela disposição afetiva do eu narrante; e o mais fundamental de todos, o passeio que acontece como aventura de linguagem pelo eu que se engendra às expensas do narrar. Esta nova experiência re-acontece a experiência original, numa possibilidade infinita que pode sempre reeditar-se.

Dentro dessa segunda trama, que é o passeio no mato, embute-se uma subtrama, que constitui o coração da estória, porque assume um estatuto metapoético altamente revelador para a estória e para toda a obra de Guimarães Rosa: o desafio floral. Em suas andanças pelo mato, certo domingo deparou-se o eu narrado com um poeminha gravado num tronco de árvore: “Teus olhos tão singular / Dessas trancinhas tão preta / Qero morrer eim teus braço / Ai fermosa Marieta”. Empolgado, sacou o lápis e gravou abaixo: “Sargon / Assarhaddon / Assurbanipal / Teglattphalasar, Salmassar / Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor / Belsazar / Sanekherib”. Para ele, “era um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia”. Não por seu poder ou suposta grandeza resgatava-os nosso médico-poeta de um longínquo passado, mas “só, só por causa dos nomes” (2001aROSA, João Guimarães. São Marcos. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001a. p. 261-291., p. 274).

No domingo seguinte, embaixo do “poema dos velhos reis de alabastro”, vem a resposta debochada do seu oponente, o poeta popular, alcunhado pelo médico de “Quem-será”: “Língua de turco rabatacho dos infernos” (ibid., p. 275). Aceita, contudo, a provocação, e engata-se entre os dois um prélio poético, que se desdobra domingo a domingo. Embora sempre desconhecido, Quem-será é alçado à categoria de melhor amigo de nosso poeta-médico, não só por partilhar sua apetência criativa, mas sobretudo por lhe ter revelado que “o mato era um menino dador de brinquedos” (ibid., p. 276). No intercâmbio do repto poético, aflora o gaio ludismo da natureza associado ao pendor inventivo da linguagem.

O desafio floral contém a súmula do magistério rosiano do poetar. “As palavras têm canto e plumagem” (ibid., p. 274), ensina metapoeticamente o narrador tantos anos após a experiência no mato. A materialidade exótica e sugestiva das designações dos reis, a sonoridade retumbante das palavras, favorecida pelas inúmeras aliterações e assonâncias, e a formação poemática que as distribui como versos numa quase canção deslocam as significações habituais e as imantam de voltagem poética. Libertos dos referentes, os vocábulos se enviam em novo significar. Aquém e além dos significados, os nomes falam em seus significantes. O significante é o corpo carnal da palavra que se exprime i-mediatamente, isto é, sem a mediação do intelecto, em formas, cores, sons, texturas, odores e sabores, proporcionando uma experiência de linguagem, vivida como corpo, com o corpo.

Não sem razão ocupa essa subtrama posição central na estória: através dos desdobramentos motivados pelo floral desafio, Guimarães Rosa tece uma verdadeira teoria sobre a força morfogenética da palavra poética. A palavra abre dimensões, fica-nos revelado. Os exemplos abundam. O capiauzinho analfabeto Matutino Solferino Roberto da Silva exige biscoitos de talxóts porque “deseja mercadoria fina e pensa que ‘caixote’ pelo jeitão plebeu deve ser termo deturpado”. E a população do Calango-Frito “não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo” porque, feitos em português, todos os entendem e, por isso, clamam saudades das arengas do defunto Padre Jerônimo, “que tinham muito mais latim”. O mais eloquente de todos os exemplos é o do “sujeito só bidimensional” que teve seus limites mentais expandidos por intermédio da pura sonoridade extravagante de palavras que desconhecia: intimismo, paralaxe, palimpsesto, palingenesia, prosopopese, amnemonísia, sinclinal (ibid., p. 275).

Valem aqui as palavras, não pelo “sentido prisco”, mas pelo “ileso gume do vocábulo” (ibid., p. 274). Perceba-se: não é a competência linguística do sujeito que se está ampliando, mas a sua capacidade de “viajar” por aqueles sons estranhos, de “sonhar as palavras”, diria Bachelard, para quem “uma única palavra muitas vezes é o germe do sonho” (BACHELARD, 2003BACHELARD, Gaston. A poética do espaço (tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal). São Paulo: Martins Fontes, 2003. , p. 155). É de encantamento que se trata. Opera aqui também o que Meyer Howard Abrams chama de “a quarta dimensão da poesia” (ABRAMS, 2012ABRAMS, Meyer Howard. “The Fourth Dimension of a Poem”. In: ABRAMS, Meyer Howard. The Fourth Dimension of a Poem and Other Essays. New York-London: W. W. Norton & Company, 2012. p. 1-29. ): o prazer na performance oral da boca ao articular as palavras, prazer que a poesia leva às últimas consequências. José Cornetas - e perceba-se o nome altissonante do professor! - fornece ao sujeito bidimensional palavras raras e sensoreamente suculentas. Prosopopese, palimpsesto e amnemonísia, em particular, solicitam, para sua execução sonora, todos os músculos do rosto e vários órgãos do aparelho fonador. É uma complexa delícia proferi-las! O mero pronunciar palavras tão encorpadas descortina horizontes, amplia dimensões, eis a tese que se argumenta. Pelo corpo da palavra suscita-se mundo, expande-se a visão, cria-se o inexistente. Do corpo da linguagem ao corpo do homem: assim fala, inteiro, o corpo do mundo.

No entrelaçamento das três tramas - embate com o feiticeiro, passeio no mato e lições do desafio floral - manifesta-se plenamente o operar da imaginação como ato genesíaco. Note-se que nosso poeta-narrador não fazia excursões turísticas pelo mato, mas incursões profundas, cuja motivação era experienciar viva e materialmente a brotação contínua da natureza, a “cinematografia divididíssima” (ROSA, 1979ROSA, João Guimarães. Tutameia. Terceiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 5. Ed., 1979. , p. 65) e incessante de um dinamismo permanente:

Eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí a medrar da terra de-dentro de um buraco no tronco de um camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-cabaças contra a pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-chamas; para namorar o namoro dos guaxes; (...) para estudar o treino de concentração do jaburu acromegálico; e para rir-me à glória das aranhas-d’água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca de água do poço, pensando que aquilo é mesmo chão para se andar em cima (ROSA, 2001aROSA, João Guimarães. Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 5. ed., 2001d., p. 264-265).

Não se trata de observar e descrever a natureza, mas de incorporá-la. O homem não é admirador do espetáculo natural, mas partícipe da efusão vital que perpassa natureza e cosmos. “Namorar o namoro dos guaxes” explicita concretamente que o narrador assume o desempenho erótico da natureza e se vincula ao corpo telúrico. Mas esse vínculo só vem a ser por intermédio da linguagem, que se coloca em ritmo de transe para sintonizar com o trânsito floral e encenar as infinitas minúsculas coisas que microscopicamente acontecem sem cessar. A linguagem se torna gesto: ela enforma na palavra e performa na escritura o corpo de baile da natureza em festa. E a linguagem só se perfaz corpejante de viço se absorver o vigor metamórfico que outorga à natureza ser-se sempre outra, demasear-se em devir. O dizer cotidiano do linguajar habitual é insuficiente: a linguagem precisa plasmar-se nova para responder ao desafio floral da natureza. A criatividade do homem se acorda à nascitividade da natureza e esta comunhão bilateral assume carnadura concreta por via da formatividade da linguagem. A poesia da Natureza, do Homem e da Linguagem, então, se revela uma só: um mesmo êxtase vital a tudo congraça.

Só arrebatados, portanto, o homem e a linguagem podem corresponder ao arrebatamento da natureza. O entusiasmo diante da natureza toma o homem e impacta a linguagem. “Ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinquenta metros de tronco e fronde”, diz metapoeticamente nosso narrador, “quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo - Ó colossalidade! - na direção da altura?” (ibid., p. 274). A atividade da natureza se confirma na produtividade do sujeito criador e se patentiza na operatividade da linguagem. A linguagem é formativa quando cada palavra, cada imagem, é a manifestação de um eu que se autodesdobra participando da profusão natural. Homem, Natureza e Linguagem eclodem simultaneamente. À força criadora da natureza corresponde o ímpeto formativo da linguagem. A resposta humana a essa dupla solicitação criadora se dá sob a forma de um estado aberto de criatividade contínua, que se oferece a engendrar o novo, trazendo as coisas da não-existência à existência. Sintonizado com a força telúrica e mobilizado pela vontade de dizer da linguagem, o poeta trabalha a língua como matriz configuradora das infinitas possibilidades do vir-a-ser.

E a natureza tem múltiplas fisionomias, que vão do recato ao mais exacerbado sensualismo. Aprofundando-se no mato nas visitas domingueiras, nosso médico primeiro visita as “Rendas da Yara”, onde “convém meditar sobre as belezas da castidade e reconhecer a precariedade dos gozos da matéria”. Passa pela solenidade do “Puro Egito”, “presidido pelo monumento perfumoso da colher-de-vaqueiro, faraônica”, e alcança “Venusberg”, “onde impera a perpendicularidade excessiva de um jequitibá vermelho”. Aqui “tudo manda pecar e peca”, desde “os cipós libidinosos, de flores poliandras” até os cogumelos “de aspirações terrenas” e a “erótica catuaba”, cujas folhas, por mais amarrotadas, sempre voltam a retesar-se”. Chega, por fim, ao desmedido erotismo das Três Águas”, onde “os ramos trepam por outros ramos” e as flores se excedem rubras, “escaldantes de vermelhos, cor de guelra de traíra, de sangue de ave, de boca e batom” (ibid., p. 279-280).

Esse é o local mais íntimo e recôndito do mato. E “foi aí que a coisa se deu, e foi de repente”. A dramática enunciação do narrador sentencia grau a grau o encorpar-se do negror que o envolve: “um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo” (ibid., p. 283). Estava o nosso médico-poeta sozinho, cego, no meio da mata densa. E sem cachorro, já que ele recusava a companhia dos “ativistas orelhudos”, que o censuravam por não praticar a caça (ibid., p. 265). Jocosamente, Guimarães Rosa revitaliza o velho provérbio de “estar num mato sem cachorro”, que deixa de ser um dito mecânico e recupera o vivo da experiência.

A cegueira era resultado do trabalho de amarração do feiticeiro João Mangolô, que se vingava das inúmeras afrontas sofridas. Retoma-se aqui a trama geral que emoldura a estória: o embate do médico com o feiticeiro. Primeiro, nosso protagonista se apavora, imaginando alguma espécie de cataclismo. Percebe, porém, que o mundo ao redor continuava ruidoso e sonoro. E descobre que conseguia discernir as inúmeras vozes do mato! A perda da visão o intimiza com a natureza oculta. Tão claro e inteiro lhe falava o mundo que ele pensa poder sair dali orientando-se pela escuta. Jamais tivera “notícia de tanto silvo e chilro, e o mato cochichava, cheio de palavras polacas e de mil bichinhos tocando viola no oco do pau” (ibid., p. 287).

A miríade de sons do mato se exprime na linguagem material e dinâmica que se torna propriamente experiência, único modo de traduzir o pulsante experimentar do mato pelos ouvidos. Tudo devém concreto, tátil, carnal. O sensível suplanta e extrapola o inteligível. O corpo da natureza, auscultado pelo corpo do protagonista, é flagrado e desencadeado no corpo da palavra e, por isso, desperta viva reciprocidade no corpo do leitor. A narração se demaseia em sonoridades; as aliterações e coliterações estalam e percutem; as assonâncias vibram. Ouça-se a passagem: “Este lugar é caminho do vento, e dos rumores que o vento faz: o sabrasil, à brisa, atrita as rendilhas das grimpas; as frondes do cangalheiro farfalham; as palmas da palmeira-leque aflam em papelada” (ibid., p. 287).

Procurando acalmar-se, ele decide deixar que o caminho o escolha: “Pé por pé, pé por si”, entoa, como um mantra, que repete à exaustão. Começa devagar. Mas roça em folhagens, esbarra em galhos, uma árvore não o vê. Pé por pé, pé por si. Logo o passo se apresta e o compasso se apressa. No ritmo acelerado do tateio cego, as sílabas do mantra se desarrumam. Os significantes se emancipam da passividade dos significados e propõem novas formações. Ao fim da carreira, as palavras iniciais são indiscerníveis, e a força sonora da linguagem se oferta em pura musicalidade: “Pèpe orpèpe, heppe Orcy...” (ibid., p. 288-289).

Mas os sons acabam por levá-lo aos fundões da mata, cheios de paludes e alçapões. E insistentemente ele ouve um alerta de perigo extremo. É nesse instante que lhe acode a “reza brava”, que dá título à estória. Em ocasião anterior, ele recitara debochadamente a oração de São Marcos, provocando o pânico do amigo Aurísio Manquitola: “Para, creio-em-deus-padre! Isso é reza brava, e o senhor não sabe com o que é que está bulindo!... É melhor esquecer as palavras ...”. Em tom de provocação, o narrador pergunta: “Na passagem em que se invoca o nome do caboclo Gonzazabim Índico?”. Ao que Aurísio retorque: “- Não fala, seu moço!... Só por a gente saber de cor, ela já dá muita desordem” (ibid., p. 268/269).

Agora, cego e perdido no meio do mato, “pronto, sem pensar”, ele entra a “bramir a reza-brava de São Marcos” (ibid., p. 290). Sua atitude é inteiramente diversa. O deboche cede lugar ao terror. As palavras exercem o seu poder de agarro, e ele se deixa perpassar pelo sortilégio diabólico:

Minha voz mudou de som, lembro-me, ao proferir as palavras, as blasfêmias, que eu sabia de cor. Subiu-me uma vontade louca de derrubar, de esmagar, destruir... E então foi só a doideira e a zoeira, unidas a um pavor crescente. Corri (ibid., p. 290).

A força sugestiva da linguagem, aliada à “influição” que ela desencadeia, corporificam toda uma dimensão mágica. A reza não é integralmente concedida na estória. Por isso, seu poder extraordinário se magnifica, e a imaginação do leitor é açulada para suprir o que se sugere, mas não se diz.

O médico consegue sair do mato e irrompe por dentro do cafofo do João Mangolô. Os dois se embolam, mas, por fim, celebram um pacto de mútua aceitação. E a visão retorna. Que encantamento! Os olhos se ampliam e se dilatam, porque incorporam o legado da audição. E o mundo se descortina num policromatismo inaudito.

O canto e a plumagem da palavra rosiana se abastecem da força germinativa da natureza e se infundem do impulso cósmico que anima a vida em geral. No corpo de baile dessa linguagem em ritmo de transe, poesia, música e dança não se separam. O olhar afeiçoado do poeta em conluio com o esbanjamento telúrico reanima o componente mítico do mundo. Em uma de suas andanças pelo mato, nosso médico se deslumbra com as “queridas imbaúbas, que são toda uma paisagem”. De perto, elas assumem a visagem de mãos espalmadas; de longe, já fantasiadas de sonho, elas se metamorfoseiam em chaminés alvacentas; de longe-longe, contudo, inteiramente travestidas pela imaginação, elas se “metaformoseiam” em “moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato” (ibid., p. 278).

“São Marcos” é testemunho eloquente de que a linguagem de Guimarães Rosa não se contenta em fornecer o “quê” de fatos e dados, mas se empenha em oferecer o “quem das coisas”, fazendo-as acontecer na carnadura viva da palavra, de modo que o leitor não seja apenas auditor passivo de um relato, mas comparticipe, por todos os sentidos do corpo provocados e compelidos, da festa da linguagem, em orgia criativa, em proliferação vital.

Na última estória de Sagarana, é também exemplar a atuação da Natureza, e não menos vigorosa a força formativa da linguagem. “A hora e vez de Augusto Matraga” (ROSA, 2001bROSA, João Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001b. p. 363-413., p. 363-413) é a estória da metamorfose existencial de um homem, que apenas se viabiliza pelo restabelecimento do vínculo com o corpo telúrico da Terra Mater.

A abertura de impacto indica que o anulamento é a condição de possibilidade para qualquer transfiguração: “Matraga não é Matraga - não é nada” (ibid., p. 363), afirma o narrador. É porque se nadifica que ele pode ser outro, e efetivamente serão diversos os desempenhos assumidos pelo protagonista no percurso de transformação de sua existência. Desdobra-se em alteridade o homem pari passu com os desdobramentos da vida.

O homem com quem o leitor trava conhecimento de início é Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Estêves das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Rico, desbragado e arrogante, Augusto Estêves não perde ocasião de exercer a sua prepotência. A espetaculosa cena de abertura tem por objetivo exibi-lo no auge dos seus abusos e desmandos. Não espanta que se lhe acumulassem inimigos, nem que sua esposa, Dona Dionóra, publicamente humilhada pelas inúmeras traições do marido, tivesse decidido abandoná-lo para fugir com Ovídio Moura.

Ao inteirar-se da fuga, Augusto Estêves convoca seus capangas. Novo golpe: cansados de afrontas e calotes, eles se bandearam para o lado de seu maior inimigo, o Major Consilva. Sobrou-lhe apenas o fiel Quim Recadeiro, encarregado de dar as terríveis notícias. Furioso e fiado na coragem pessoal, parte Augusto Estêves para a propriedade do Major, onde lhe haviam preparado uma emboscada. Brutalmente espancado, o valentão ainda recebe, por requinte de humilhação, a marca do gado do Major impressa a fogo em sua polpa glútea direita. E ouve a toada irônica do Major: “- Não tem mais nenhum Augusto Estêves, das Pindaíbas, minha gente?”. Ao que respondem em coro os ex-jagunços: “- Não tem não! Tem mais não!...” (ibid., p. 375).

Quase morto, no entanto, ele “viveu-se, com um berro e um salto, medonhos”, dando testemunho da sua prodigiosa força física. E rolou pelo barranco até um lugar inacessível, onde o veio achar um preto que ainda “encontrou vida funda no corpo tão maltratado do homem branco” (ibid., p. 376).

A queda pirambeira abaixo determina uma guinada tão fundamental que assume o valor de um descensus ad inferos: “E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo distante...” (ibid., p. 378). Aqui morre Augusto Estêves. Em seu lugar, nasce “Nhô Augusto - o homem” (ibid., p. 363). Inaugura-se uma nova etapa existencial e tem início a senda da conversão.

Acolhido pelo casal de “pretos samaritanos”, Nhô Augusto é levado para “um cofo de barro seco, sob um tufo de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio das árvores, como um ninho de maranhões” (ibid., p. 376) e aí, no coração da mata, vai passar por um longo processo de convalescença.

Assim que recobra a consciência, ouve “grunhidos de porcos”, “ruflos de galinhas”, “as cantigas dos bichinhos mateiros” e “os sons dos primeiros sapos”, de entremeio à voz de Mãe Quitéria, que entoava uma canção de sabor mítico: “As árvores do Mato Bento / deitam no chão para dormir...”. Pela primeira vez, a natureza se lhe mostrava coisa viva e sensorialmente o impactava. Nhô Augusto recebia em seu corpo o corpo da natureza. Um intercâmbio sensível começa a operar, estabelecendo entre ele e a natureza uma bilateralidade. Sem conter a emoção, Nhô Augusto chama alto, soluçando: “Mãe... Mãe...” (ibid., p. 377-378).

Superpõem-se, nesse apelo comovido, a vaga recordação da mãe que ele não conheceu, a Mãe do Céu das orações mal aprendidas com a avó, a Mãe Quitéria que o adotara e a própria Mãe Terra, em cujo colo ele se encontrava, como nunca antes. Ele toma “um tão grande horror às suas maldades e aos seus malfeitos passados, que nem podia se lembrar” (ibid., p. 380) e se obstina na ideia de alcançar absolvição dos seus pecados.

Às escondidas, os “pretos tutelares” lhe trazem um padre que o confessa e lhe lança o mantra que Nhô Augusto repetirá vida afora: “ - Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua” (ibid., p. 380) (grifo meu).

Inicia-se aqui a trajetória espiritual de Nhô Augusto, com nítidos ecos da história de Jesus Cristo. É preciso frisar, no entanto, que a espiritualidade que entra em curso é toda imanente à terra. Em Guimarães Rosa, a transcendência é conquistada mediante uma intimização com o corpo. Vale lembrar também que o próprio Jesus, que nasce e morre, tem muitas características das antigas religiões cosmobiológicas. Para além do sincretismo religioso, avulta a nota gaiata da religiosidade peculiar de Nhô Augusto, quando, ao partir, ele lança a bravata que arranca aplausos dos pretos tutelares:

Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete! (ibid., p. 381).

Sua penitência vai ser cumprida num “sitiozinho perdido no sertão mais longínquo - uma data de dez alqueires, que ele não conhecia nem pensara jamais que teria de ver, mas que era agora a única coisa que possuía de seu” (ibid., p. 381). Assim aparece um dia no “Tombador”, o “homem esquisito que ninguém não podia entender”, mas “todos gostaram logo dele, porque era meio doido e meio santo; e compreender deixaram para depois” (ibid., p. 382). Santidade e loucura combinam-se no novo desempenho assumido por Nhô Augusto em seu percurso de redenção.

Capinando de sol a sol, em estreito contato com a terra, nunca em benefício próprio e sempre repetindo suas palavras de salvação, Nhô Augusto será assediado por três tentações. A primeira é a chegada casual do Tião da Thereza ao Tombador, que, sem ser solicitado, lhe dá as piores notícias, afrontando a sua “macheza” e lançando-o em grande perturbação. Nhô Augusto lhe pede que não revele que o viu, o que nem “é mentira muita, porque é a mesma coisa em que como se eu tivesse morrido mesmo...” (ibid., p. 384). E pronuncia as exatas palavras do Major Consilva, sem ironia agora, antes revestidas de forte carga simbólica: “Não tem mais nenhum Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas, Tião...” (ibid., p. 384). A resposta de Tião é um olhar de profundo “nojo e desprezo” (ibid., p. 385).

“Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, (...) assim tão mole, tão sem homência” (ibid., p. 385), Nhô Augusto é tentado pelo desenfreamento de outrora e imagina que, ao menos por honrar o Quim Recadeiro, que morreu por sua causa, ele “tinha ordem de fazer alguma vantagem...” (ibid., p. 387). Mas se lembra da longa penitência e persevera na salvação: “Sou um desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há-de chegar!... A minha vez...” (ibid., p. 387).

Mais, porém, que a palavra da fé, socorre o penitente a eloquência da natureza. Vencida a primeira tentação, “devagarinho, imperceptível, alguma coisa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela” (ibid., p. 387). Em “misteriosas incubações”, Nhô Augusto e a natureza eclodem em uníssono:

E começaram os cantos. Primeiro, os sapos (...). No céu sul, houve nuvens maiores, mais escuras. Aí, o peixe-frito pegou a cantar de noite. (...) Choveu. (...) Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a ideia muito fácil, e o corpo muito bom (ibid., p. 388).

“Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim...” (ibid., p. 388), percebe o penitente. O divino se manifesta no pacto com a natureza. Deus fala ao homem pela efusividade natural, corporificada na copiosidade imagética da linguagem.

A segunda tentação tem a chancela “do homem mais afamado dos dois sertões do rio”: “o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem” (ibid., p. 389). A linguagem responde à potência do lendário chefe, desfechando expressões aliterativas de sonoridade agressiva. Nhô Augusto se extasia com a demonstração de força do bando e sente saudade da adormecida valentia. A tentação se consuma quando Joãozinho Bem-Bem o convida a integrar o bando: “O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...”. Nhô Augusto resiste, todavia, e constata “de que jeito estava pegado à sua penitência” (ibid., p. 397). E tem um “sonho bonito, no qual havia um Deus valentão, (...), assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo” (ibid., p. 397-398). Preludiando o final, a valentia começa a adquirir uma qualidade divina.

Fortalecido e cada vez mais íntimo da natureza, Nhô Augusto vai viver a mais marcante de todas as experiências em sua senda de conversão:

Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá em baixo - a manhã mais bonita que ele já pudera ver.

Estava capinando, na beira do rego.

De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro.

Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais juntas.

- Uai! Até as maracanãs!

E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam mais. Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra - grão de verdura - se sumindo no sul.

- Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!

E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido - rrrl-rrril!rrrl-rrril!... Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: - Me espera!... - E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás (ibid., p.399-400).

A um homem jubiloso corresponde uma natureza em festa. A alegria de Nhô Augusto, que lhe brota como vigor físico e força moral e espiritual, é a resposta, de completa sintonia, ao exceder-se em vida da natureza. Em Guimarães Rosa, a alegria, ponto mais alto de seu universo poético, não é um estado de beatitude ou felicidade, mas força e coragem, que dispõem o homem, na integralidade do seu ser, para a criação. A manhã “gargalha” porque a alma de Nhô Augusto também ri à larga. A natureza “descabe-se”, o homem “descontém-se” e a linguagem, em dinâmica reciprocidade, acompanha o elã deste exuberar-se. Mire-se e veja-se a hipálage no “voo verde das aves itinerantes”. As cores se alvoroçam, os sons se multiplicam. Os passarinhos, “de guinchos timpânicos”, azucrinam com sua algazarra. Eufóricas, as aves estralejam, grazinam, grulham, gralham, fanham, estrilam e nem conseguem acertar “as vozes na disciplina de um coro”. Tudo é excessivo, desregrado, desmedido. Nasce, esplêndido, o dia, e, com ele, o novo homem capaz de festejar o vínculo nupcial com a natureza.

Na “manhã mais bonita que ele já pudera ver”, o que especialmente sensibiliza Nhô Augusto é o trânsito. Uma nova estação começava; o sol “marinhava céu acima”; as maitacas brotavam do norte e se sumiam ao sul; tudo se mostrava “itinerante”. Empolgado e consonante, Nhô Augusto encosta a enxada: “Adeus, minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai chegar, e eu tenho que estar por ela em outras partes!” (ibid., p. 401).

Montado num jumento que lhe deram de presente, ele parte em peregrinação para a última etapa de seu percurso existencial, metamorfoseado no “homem do burrico”: “Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo é com Deus!” (ibid., p. 404). A sua peregrinação é, do início ao fim, um longo hino de louvor à opulência generosa da natureza, apropriada pela disposição festiva do homem e traduzida pela celebração entusiasmada da linguagem, que se propõe a entrar em consonância milimétrica com o elã de criatividade que perpassa cosmos, homem e natureza. Nunca antes Nhô Augusto vivenciara tamanha comunhão com o ser telúrico: “Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo” (ibid., p. 402).

Em profunda interação com o vigor da natureza, Nhô Augusto chega ao arraial do “Rala-Coco”, onde sofreria a terceira tentação e consumaria o seu destino. O lugarejo está de pernas para o ar por causa da presença do bando de Seu Joãozinho Bem-Bem que viera cobrar vingança pela morte à traição de um de seus homens. Nhô Augusto se deslumbra outra vez com a jagunçada e de novo é convidado a juntar-se ao bando, em substituição ao jagunço morto Juruminho, cujas armas pareciam aliciá-lo, na mais insidiosa de todas as tentações. Ao vencê-la, Nhô Augusto ri com “o riso do capiau ao passar a perna em alguém”... (ibid., p. 407).

O rapaz que matara o Juruminho se sumira no mundo. Dentro da ética jagunça, cabia à família do criminoso arcar com a dívida, mediante o sacrifício do filho mais velho e a entrega de todas as filhas para o repasto do bando. Diante da brutalidade da sentença, o velho pai de família não se peja de suplicar misericórdia ao grande chefe, que a nega, com desprezo e enfado. Nhô Augusto intervém, porque o velho pedira “em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria”. Joãozinho Bem-Bem estranha. O confronto é inevitável: “Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto...” (ibid., p. 409-410).

É assim que chega, com contornos épicos e acentos míticos, a hora e vez de Augusto Matraga: “Epa! Nomopadrofilhospritosssantamém! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou a minha vez!...” (ibid., p. 410). A casa matraqueia de bala, Nhô Augusto luta sozinho contra inúmeros homens e se deleita com o combate porque estava em sua natureza mais própria: “- Ô gostosura de fim de mundo!...” (ibid., p. 410). Finda a munição, os dois lutadores se enfrentam à faca e Nhô Augusto rasga Joãozinho Bem-Bem “de baixo para cima, do púbis à boca-do-estômago” (ibid., p. 410-411).

Afinal, é mesmo “a porrete” que ele vai para o céu. Não podia ser de outro jeito, porque a coragem é a qualidade definidora do seu ser. Mas aqui se evidencia o novo estatuto pelo qual se rege Nhô Augusto. Ele teve a oportunidade de “domar” a sua coragem de duas maneiras. A primeira, que ele recusou, seria aceitar o convite de Joãozinho Bem-Bem e ser valente dentro da “lei do sertão”. A segunda, que escolheu, foi praticar o autossacrifício, imitando concriativamente o próprio Cristo.

Ele “dera o dito”, retumbantemente: “Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!...”. O que aconteceu, e redundou em sua heroica sagração, foi que o mal se converteu em bem, através de um redirecionamento de forças. Assim se deu a catarse de Nhô Augusto, e esta foi a maior transfiguração. Augusto, mais do que o próprio nome, tornou-se o nome próprio. Do latim augustus, o nome significa “sagrado, consagrado, extraordinário”, possivelmente derivado do verbo augere, “aumentar”. É aqui que nasce o mito Augusto Matraga, última metamorfose de Augusto, transcriação rosiana do Ogum do candomblé e do São Jorge da religião católica. Ouve-se nesse nome mítico o ressoar da valentia do personagem e do episódio bélico que o consagrou. À sacralidade do “Augusto” associa-se o matraquear das balas que fala no nome “Matraga”. A formatividade da linguagem urde muito bem o casamento insólito do divino com o guerreiro e assegura, pela palavra, a nova índole da valentia do personagem.

Quando Nhô Augusto estava prestes a morrer, quiseram levá-lo para dentro da casa. Ele, contudo, objetou: “P’ra dentro de casa, não, minha gente. Quero me acabar no solto, olhando o céu, e no claro...” (ibid., p. 412). Este novo Augusto nasce e morre na natureza, irmanando-se com a terra, em entusiasmado consórcio com o cosmos.

Em carta a João Condé, Guimarães Rosa explicitou a relevância do último conto de Sagarana: “História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir” (2001cROSA, João Guimarães. Carta de João Guimarães a João Condé. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001c. p. 23-28., p. 28). Mais do que consumação do projeto realizado, “A hora e vez de Augusto Matraga” se revela a inauguração do universo propriamente rosiano de criação. A noção de que todo homem tem a sua hora e sua vez da qual depende o “parto de uma nova claridade” (RILKE, 1989RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta (tradução de Paulo Rónai e Cecília Meireles). São Paulo: Editora Globo, 1989. , p. 32) é determinante para o nascimento das estórias do escritor mineiro, dentro de cuja ética a primeiridade é fundante. A provocadora pergunta que se propõe como “julgamento-problema” em “O espelho”, conto nuclear de Primeiras estórias - “Você chegou a existir?” (ROSA, 1981ROSA, João Guimarães. Pirlimpsiquice. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 12. Ed., 1981b. p. 33-42.a, p. 68) - é o convite, explícito e urgente, à metamorfose existencial. Wolle die Wandlung (“Aspira à metamorfose”), exorta o XII Soneto a Orfeu, da segunda parte (RILKE, 2003RILKE, Rainer Maria. Gesammelte Werke. Gedichte III. Die Sonette an Orpheus. Zweiter Teil (Herausgegeben von Manfred Engel, Ulrich Fülleborn, Horst Nalewski, August Stahl). Frankfurt am Main und Leipzig: Insel Verlag, 2003. , p. 238). Tanto em Rilke quanto em Rosa, essa metamorfose somente se performa em festiva consonância com o ímpeto metamórfico do corpo telúrico, sempre em transformação. A linguagem, por sua vez, assume como sua vocação mais feliz plasmar-se em deveniência contínua na parceria e no parentesco frutuoso com a nascitividade da natureza. É esse “pacto de puro entusiasmo” (ROSA, 1981bROSA, João Guimarães. Pirlimpsiquice. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 12. Ed., 1981b. p. 33-42., p. 33) entre natureza, palavra e homem que constitui a forma e o estilo a que Guimarães Rosa aludiu. Daqui advêm, acima de tudo, a força e a perenidade de sua obra.

Referências

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  • ABRAMS, Meyer Howard. Natural Supernaturalism. Tradition and Revolution in Romantic Literature London: The Norton Library, 1973.
  • ABRAMS, Meyer Howard. “The Fourth Dimension of a Poem”. In: ABRAMS, Meyer Howard. The Fourth Dimension of a Poem and Other Essays New York-London: W. W. Norton & Company, 2012. p. 1-29.
  • BACHELARD, Gaston. A poética do espaço (tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • FARIA, Maria Lucia Guimarães de. Cara-de-Bronze: a visagem do homem e a miragem do mundo. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.). A construção poética do real Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. p. 243-280.
  • RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta (tradução de Paulo Rónai e Cecília Meireles). São Paulo: Editora Globo, 1989.
  • RILKE, Rainer Maria. Gesammelte Werke. Gedichte III. Die Sonette an Orpheus. Zweiter Teil (Herausgegeben von Manfred Engel, Ulrich Fülleborn, Horst Nalewski, August Stahl). Frankfurt am Main und Leipzig: Insel Verlag, 2003.
  • ROSA, João Guimarães. São Marcos. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001a. p. 261-291.
  • ROSA, João Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001b. p. 363-413.
  • ROSA, João Guimarães. Tutameia. Terceiras estórias Rio de Janeiro: José Olympio, 5. Ed., 1979.
  • ROSA, João Guimarães. O espelho. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias Rio de Janeiro: José Olympio, 12. Ed., 1981a. p. 61-68.
  • ROSA, João Guimarães. Pirlimpsiquice. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias Rio de Janeiro: José Olympio, 12. Ed., 1981b. p. 33-42.
  • ROSA, João Guimarães. Carta de João Guimarães a João Condé. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001c. p. 23-28.
  • ROSA, João Guimarães. Ave, Palavra Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 5. ed., 2001d.
  • SOUZA, Ronaldes de Melo e. A filosofia de Fichte e a poesia moderna. In: SOUZA, Ronaldes de Melo e. Ensaios de poética e hermenêutica Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010. p. 131-161.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2020
  • Aceito
    21 Jan 2021
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