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João Cabral e os rastros da antologia De Antônio Nobre ao saudosismo

João Cabral and the trail of the anthology De Antônio Nobre ao saudosismo

Resumo

Em 1946, João Cabral de Melo Neto organizou, a pedido de Jaime Cortesão, então exilado no Brasil, a antologia De António Nobre ao saudosismo. Cabral realizou a seleção dos poetas, escreveu o prefácio e entregou a obra, que, entretanto, não chegou a ser publicada. Dessa seleta, localizei algumas referências em cartas e depoimentos e o prefácio, ainda inédito. Proponho apresentar os rastros dessa obra não publicada, situando-a, rapidamente, nas relações de Cabral com a tradição poética portuguesa.

Palavras-chave:
João Cabral de Melo Neto; Antologia De António Nobre ao saudosismo; relações poéticas Brasil-Portugal

Abstract

In 1946, João Cabral de Melo Neto organized, at the request of Jaime Cortesão, then exiled in Brazil, the anthology De António Nobre ao saudosismo. Cabral selected the poets, wrote the preface and delivered the work that, however, was not published. From that selection, I have located some references in letters and testimonies, and the preface, which is still unpublished. I aim to present the trails of this unpublished work, quickly situating it within Cabral's relationships with the Portuguese poetic tradition.

Keywords:
João Cabral de Melo Neto; anthology De António Nobre ao saudosismo; Brazil-Portugal poetic relations

Resumen

En 1946, João Cabral de Melo Neto organizó, tras un pedido de Jaime Cortesão, que estaba exiliado en Brasil, la antologia De António Nobre ao saudosismo. Cabral realizó la selección de los poetas, escribió el prefacio y entregó la obra, que, sin embargo, no fue publicada. De esa colección de piezas, he localizado algunas referencias en cartas y testimonios y el prefacio, todavía inédito. Propongo presentar los rastros de esa obra no publicada, ubicándola, rápidamente, en las relaciones de Cabral con la tradición poética portuguesa.

Palabras clave:
João Cabral de Melo Neto; Antologia De António Nobre ao saudosismo; relações poéticas Brasil-Portugal

A obra completa de um autor deveria ser composta não apenas pelos livros que ele publicou e se tornaram conhecidos do público, mas também por aqueles trabalhos que deixou pela metade ou que não passaram do título, pelos que, concluídos, não foram publicados e, ainda, por outros que se perderam num naufrágio, numa mudança ou numa pane do computador. Essas obras que deveriam ter sido e que não foram e de cuja existência falhada tomamos conhecimento ao ler as correspondências, as entrevistas, os depoimentos dos escritores há muito me fascinam e creio que deveriam ter o mesmo direito de cidadania literária que os livros éditos, merecendo ser examinadas em suas relações com as demais publicações dos autores. Sou tomada por pensamentos como esse todas as vezes em que leio uma relação das obras em prosa e verso de João Cabral de Melo Neto. Nas margens da bibliografia de Cabral, escreveria outros títulos, entre os quais o da antologia De António Nobre ao saudosismo.

É essa antologia que nunca foi publicada, é esse livro fantasma que me atormenta pelo menos desde 2015 que constitui o objeto de exame deste artigo.

Antes, entretanto, de seguir os rastros dessa antologia, vale lembrar que não lido aqui com o sentido de inacabamento sobre o qual reflete Maurice Blanchot (2011BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. 304 p., p. 11) e diz respeito à natureza infinita do literário de uma maneira geral, ao processo, em que aquilo que o escritor “terminou num livro, recomeçá-lo-á ou destrui-lo-á num outro”. Também não me valho do sentido similar proposto por Gilles Deleuze (2011DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. 2. ed. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2011. 208 p., p. 11), segundo o qual “[e]screver é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria visível ou vivida”. Ao acercar-me de fragmentos dessa seleta portuguesa que entrou para o rol de não livros de Cabral, tenho em mira um sentido mais literal, como o dos não seres de que fala José-Luis Diaz, com os quais se depara um geneticista ao ler a correspondência de escritores:

O que provoca estas longas sequências de obras virtuais, das quais Jean-Benoît Puech se fez bibliotecário: “sonhos de obras” abandonadas no limbo, reduzidas ao estado de um título absolutamente novo, de aromas sedutores, mas eternamente vazios [...] Porém, para os que conhecem o poder do não-ser, isso deveria tornar-se parte nobre da genética - a conservação, a análise e a admiração de tais fetos, dos quais frequentemente restam apenas traços dentro do formol epistolar. Verdadeiros apêndices das obras superlativas, notáveis “filés-mignons” da genética, recheadíssimos de paratextos, que exibem de maneira farisaica a ultrajante riqueza de seus arquivos (DIAZ, 2007DIAZ, José Luis. Qual genética para as correspondências? Tradução de Cláudio Hiro e Maria Sílvia Ianni Barsolini. Manuscrítica, n. 15, 2007, p. 119-161., p. 128).

A gênese da antologia inédita De António Nobre ao saudosismo remonta, segundo o próprio Cabral, aos anos 1940, quando o português Jaime Cortesão, então exilado no Brasil e diretor literário das editoras Livros de Portugal e Dois Mundos, convidou o poeta e diplomata Vinicius de Moraes para organizar uma seleta da poesia portuguesa que deveria apresentar ao público brasileiro poetas do período compreendido entre o simbolismo e Teixeira de Pascoaes. Entretanto, Vinicius foi removido pelo Itamaraty para Los Angeles, e Cortesão confiou o trabalho ao jovem poeta e recém-ingresso na carreira diplomática João Cabral de Melo Neto (ATHAYDE, 1998ATHAYDE, Félix. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 152 p.). Para levar adiante a empreitada, Cabral conta ter lido “pilhas de poetas dessa época” (FREIXIEIRO, 1971FREIXIEIRO, Fábio. Da razão à emoção II: ensaios rosianos, outros ensaios e documentos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971. 192 p., p. 184), feito a seleção, escrito o prefácio e entregado o material a Cortesão. Mas a antologia não foi publicada porque, segundo Cabral, a editora faliu (ATHAYDE, 1998).

O conhecimento fragmentado e lacunar que tenho dessa antologia, inclusive o seu título, De António Nobre ao saudosismo, fui formando por meio de rastros encontrados em cartas a/de amigos e depoimentos de Cabral ou ainda por meio do prefácio datiloscrito, localizado quando realizava levantamentos para outros fins no espólio do autor.

Nesse prefácio, Cabral menciona uma outra seleta, publicada em 1944 pela Edições Dois Mundos, e intitulada Poetas novos de Portugal, cuja seleção e apresentação couberam a Cecília Meireles. Essa seleta estava no horizonte do autor de O engenheiro ao preparar a sua e escrever o prefácio, e por isso vale a pena resgatá-la sumariamente.

O prefácio de Cecília destina-se ao “leitor brasileiro privado do contacto com a literatura viva de Portugal” (MEIRELES, 1944MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal. Seleção e prefácio Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1944. 316 p., p. 17). Define os poetas novos ou seus precursores, que não são necessariamente os poetas contemporâneos, mas aqueles que, vivendo em sua época ainda incompreendida, criam uma expressão nova, isto é, novos temas, novas técnicas para melhor representar essa época; expressão que se torna, muitas vezes, ininteligível para o público contemporâneo. Esses poetas novos são caracterizados por “um especial poder de crítica e autocrítica” (MEIRELES, 1944MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal. Seleção e prefácio Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1944. 316 p., p. 20), o qual a prefaciadora compreende como uma vantagem em relação aos de outros países ou tempos. Devido a esse criticismo, esses poetas, segundo Cecília, “deixarão de si, ao lado de uma produção singularmente expressiva, elementos para a sua interpretação, minuciosa e clara.” E acrescenta: “Muitos deles são tão bons críticos literários como poetas [...] provando que, além de saberem dizer o que querem, sabem como o dizem e por que o dizem” (MEIRELES, 1944MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal. Seleção e prefácio Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1944. 316 p., p. 20). Os precursores desses poetas são não Eugênio de Castro, mas Cesário Verde, António Nobre e Antero de Quental, considerados “três raízes poderosas da poesia nova de Portugal” (MEIRELES, 1944MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal. Seleção e prefácio Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1944. 316 p., p. 26). A apresentação dos poetas começa por Camilo Pessanha, por ser ele “menos conhecido no Brasil, e por mais próximo do grupo de que se vai tratar” (MEIRELES, 1944MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal. Seleção e prefácio Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1944. 316 p., p. 26). Após a caracterização de Pessanha, segue a de outros poetas ligados ao grupo da revista Orpheu, sendo dispensada, com justiça, a Fernando Pessoa, que passa por um processo de difusão e reconhecimento em Portugal nos anos 1940 com a publicação de sua obra, uma atenção maior que aos demais poetas. Na sequência, tem-se uma apresentação que vai dos poetas ligados à revista Presença, entre os quais estão José Régio, Adolfo Casais Monteiro e Miguel Torga, aos mais novos, como Rui Cinatti, João José Cochofel e Jorge de Sena. A seleta de poemas segue a mesma estrutura do prefácio, sendo dividida em duas partes: “Camilo Pessanha e o grupo de Orpheu” e “Da Presença aos poetas mais novos”. Ainda, antecede ao prefácio uma “Bio-bibliografia dos autores”, que traz informações desiguais sobre os autores devido ao limite de informações obtidas sobre alguns deles. Sobre Alfredo Pedro Guisado, por exemplo, é informado apenas que é “Colaborador de Orpheu”, e sobre Mário Dionísio, o único dado é: “Poemas, 1941”.

O prefácio de Cabral, diferentemente do de Cecília, foge ao esperado de um paratexto dessa natureza, pois não realiza uma caracterização do período contemplado, nem uma apresentação dos poetas selecionados, o que poderia ser útil ao leitor brasileiro de então, pois, nas palavras do prefaciador, alguns dos nomes desses poetas, apesar da língua comum, vão soar a esse leitor “como se pertencessem a autores tchecos”. Muito provavelmente, a antologia iria conter uma breve nota biográfica dos poetas em outro local, talvez antecedendo ao prefácio, de modo a seguir a mesma estrutura de Poetas novos de Portugal.

Cabral justifica a fuga a um prefácio modelar alegando que, para realizar um trabalho dessa natureza, faltam-lhe “a qualificação necessária como, sobretudo, a documentação indispensável e o gosto”, “documentação (em textos propriamente e em informações) quase impossível de se obter no Brasil” (MELO NETO, 1946aMELO NETO, João Cabral. [Texto crítico] Prefácio para a antologia “De António Nobre ao Saudosismo” da Editora Livros de Portugal. Rio de Janeiro, 1946a (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa). 1 1 As demais citações do prefácio remetem a essa referência, arrolada no final do texto. ). Se ao autor desgosta um trabalho dessa natureza, não há o que discutir, mas certamente a falta de documentação, que está na base do que ele chama de falta de qualificação - e que também não deixou de ser uma dificuldade para Cecília Meireles, talvez mais para ela, inclusive, por lidar com poetas mais recentes -, poderia ser contornada ou minorada de várias formas, inclusive com uma consulta ao próprio Jaime Cortesão, a quem ele recorreu em algum momento da preparação do trabalho, como se verá mais adiante.

No prefácio, o organizador opta por expor problemas ou disjunções decorrentes de um poeta e leitor de “sensibilidade brasileira moderna” ser o responsável pela escolha de poetas portugueses mais antigos, orientados por outra sensibilidade poética e nacional. Ou seja, em lugar de uma apresentação da seleta realizada, dos autores escolhidos, dos critérios de seleção, tem-se a exposição, ao leitor, da cozinha da antologia, da publicação de critérios de escolha que são, mais que critérios, impossibilidades de o escolhedor fazer diferente devido ao seu contexto histórico e literário.

A diferença de nacionalidade entre o antologista e os poetas gera, segundo Cabral, problemas relativos “ao conjunto de mitos que caracterizam a literatura de qualquer país”. Esses mitos nacionais, infere-se, só poderiam ser mais plenamente compreendidos pelos patrícios dos poetas selecionados, isto é, os leitores portugueses. A diferença entre a sensibilidade brasileira do escolhedor e a sensibilidade portuguesa dos poetas gera também problemas de ordem linguística decorrentes de diferenças prosódicas, semânticas e pragmáticas. Por esse limite de nacionalidade que Cabral reivindica para si pode-se verificar o quanto ele está movido por um cânone nacionalista modernista:

Do fato de ser brasileiro o organizador desta Antologia, toda uma série de problemas vai surgir, quer no que diz respeito ao conjunto de mitos que caracterizam a literatura de qualquer país, quer na ordem do instrumento linguístico propriamente, isto é: as diferenças prosódicas, tão mais sensíveis numa arte como a poesia, essencialmente apoiada na musicalidade das palavras; as diferenças semânticas; as diferenças no valor de circulação das palavras, que dão um ar de raridade a expressões perfeitamente comuns entre portugueses, ou a recíproca, etc. Diferenças todas essas que contribuem para anular uma quantidade considerável de efeitos desejados pelos autores e obtidos, certamente, entre os leitores de seu país (MELO NETO, 1946ªMELO NETO, João Cabral. [Texto crítico] Prefácio para a antologia “De António Nobre ao Saudosismo” da Editora Livros de Portugal. Rio de Janeiro, 1946a (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa). , p. 1-2).

Os maiores problemas impostos à antologia decorrem, entretanto, no entendimento do organizador, da diferença geracional entre ele e os poetas. Enquanto Cabral é um poeta de sensibilidade moderna, nascido para a vida literária nos anos 1940, o período da antologia contempla poetas que floresceram no fim do século XIX e início do século XX, muitos dos quais são totalmente desconhecidos para o leitor brasileiro. Muito mais fecundo, para o antologista, é o encontro de sensibilidades, no caso da mencionada seleta Poetas novos de Portugal, entre Cecília Meireles e os poetas de sua própria geração, pois tanto para uma quanto para os outros se colocam “idênticos problemas de ordem criadora”.

A diferença geracional entre Cabral e os poetas da antologia e a “prise de conscience de si mesma” da sensibilidade moderna, já notada no prefácio de Cecília, poderia fazer com que essa sensibilidade, que é a do selecionador, “em lugar de escolher o que nestes poetas é o mais característico”, destacasse “o que possuíam eles de mais moderno, de precursores”.

Essa consciência de si mesma, segundo Cabral, agudizou a diferença entre os dois tipos de artistas que se substituem na história das artes, fazendo-os tocar os pontos extremos do romantismo e da elaboração clássica:

Essa consciência de si mesma resultou na atitude estética daqueles que se aprecem abandonar às obscuras leis do acaso (cujo interesse aqui o leitor moderno costuma descobrir nas fugitivas revelações que o ditado do inconsciente vai, desorganizadamente, semeando, e se destacam e se desprendem do fundo neutro do poema) e, num campo oposto, na atitude daqueles outros autores em quem tal consciência da poesia está associada a uma correspondente consciência artística (autores em quem há a assinalar o trabalho de eliminação de todo o material neutro, em benefício do poeticamente válido, do maior rendimento poético) (MELO NETO, 1946ªMELO NETO, João Cabral. [Texto crítico] Prefácio para a antologia “De António Nobre ao Saudosismo” da Editora Livros de Portugal. Rio de Janeiro, 1946a (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa). , p. 3-4).

O leitor de João Cabral certamente encontrará nessa passagem do prefácio de 1946 uma concepção de modernidade poética se fazendo para o autor, a qual se torna pública na clássica palestra “Poesia e composição”, proferida em 1952.

Apesar da diferença entre os dois tipos de poetas, o dominado por forças passivas e o consciente, e apesar dos diferentes tipos de leitura que solicitam, respectivamente, “passividade distraída” e “atenção continuada”, as atitudes dos dois poetas identificam-se porque propõem ao leitor, subitamente, uma unidade poética reduzida ao mínimo essencial, ou seja, “uma imagem, uma relação de palavras, uma palavra num estado de solidão absoluta e independente”.

É esse tipo de concepção poética que determina o que o autor chama de “sensibilidade moderna”. Essa sensibilidade exige menos do poema e mais do verso, suscita a surpresa de uma imagem em lugar da contemplação de “uma coisa que a obra literária evocava ou comentava”; essa sensibilidade moderna, diferentemente daquela da poesia épica ou dramática, caracteriza-se pela descontinuidade. Essa sensibilidade, que “parece funcionar sob o efeito de choques” e é a de Cabral, tornou peculiar, segundo ele próprio, o seu trabalho ao escolher os textos que figurariam na antologia, no sentido de, por exemplo, valorizar:

Em detrimento do poema tal ou qual imagem; em prejuízo de sua significação, sua atmosfera; em detrimento de sua continuidade orquestral, tal ou qual efeito melódico; em prejuízo de suas qualidades intelectuais, suas qualidades sensoriais (MELO NETO, 1946ªMELO NETO, João Cabral. [Texto crítico] Prefácio para a antologia “De António Nobre ao Saudosismo” da Editora Livros de Portugal. Rio de Janeiro, 1946a (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa). , p. 5).

Os problemas apontados por Cabral decorrentes de ser ele assinalado pelo espírito da época moderna parecem constituir antes a condição de um homem do seu tempo ao se voltar para o passado, buscando nele aquilo que significa para o presente, que o ajuda a entender o seu tempo. Todos os poetas novos, quando se voltam para o passado literário, buscam a si mesmos, a sua genealogia poética, que é, borgeanamente falando, uma criação do presente.

Por uma carta endereçada a Lauro Escorel, junto à qual envia o prefácio ao amigo, é possível saber que, em setembro de 1946, a antologia já estava organizada:

Junto, estou mandando uma cópia do prefácio da antologia que organizei. Já a entreguei ao Cortesão e assim que a tiver comigo, impressa, mandarei um exemplar. Juntarei então uma carta dando certas indicações sobre certos poetas completamente desconhecidos de nós brasileiros e que me parecem excelentes (MELO NETO, 1946bMELO NETO, João Cabral. [Correspondência] Destinatário: Lauro Escorel. Rio de Janeiro, 14 set. 1946b. 1 carta pessoal.).

Como o prefácio encontrado não traz os nomes dos poetas, o pouco que se sabe sobre o material selecionado é fruto de declarações de Cabral constantes em correspondências e entrevistas. Em carta a Lauro Escorel de novembro de 1946, diferentemente do que faz no prefácio, em que põe ênfase nos limites do escolhedor, gaba-se, por meio de um recurso retórico que atribui a uma terceira pessoa abalizada a opinião sobre seu trabalho, de sua capacidade de saber escolher os melhores poetas. Também se refere à enorme diferença de qualidade entre os poetas do período, explicita sua empolgação com os simbolistas António Nobre, António Patrício e Camilo Pessanha, e manifesta uma total falta de gosto pelo então prestigiado Júlio Dantas:

Você perguntou se já acabei a Antologia. Já acabei, sim e já a entreguei ao Cortesão. Agora, só espero a gaita. Um exemplar lhe será mandado assim que saído [...] Há realmente alguns bons poetas naquela fase, embora nem todos devam ser julgados pelo que lá está: são alguns tanto piores. Não digo isso para me elogiar, pretendendo ter sabido escolher o melhor de cada. Estou transmitindo a opinião do Joaquim Cardozo, a quem dei a conferir algumas das escolhas. Isso significa que alguns são autores de algumas suas coisas boas, perdidas num matagal de drogas, e o fato do Cardozo ter concordado com a seleção significa que a diferença de realidade dentro da produção dessa turma é evidente demais e não existe em função de qualquer preferência pessoal apenas. De António Nobre, António Patrício, Camilo Pessanha, por exemplo, tem-se vontade de citar tudo. Em relação a outros, a vontade já é outra: é de citar mais, porque o pouco que presta quase não ocupa nenhum espaço: Júlio Dantas, por exemplo (MELO NETO, 1946cMELO NETO, João Cabral. [Correspondência] Destinatário: Lauro Escorel. Rio de Janeiro, 5 nov. 1946c. 1 carta pessoal.).

Posteriormente, mais de uma vez, volta a encarecer a poesia de António Nobre e Camilo Pessanha. Nos anos 1990, diz preferir o autor de Clepsydra e outros a Fernando Pessoa. Em carta a Alberto de Serpa de 1956, escreve serem Nobre e Cesário Verde as suas “maiores manias portuguesas” (FIUZA; SARAIVA, 2022FIUZA, Solange; SARAIVA, Arnaldo. Correspondência João Cabral-Alberto de Serpa. Cotia: Ateliê Editorial, [2022?]. No prelo.). Antes disso, em carta de 1950 ao mesmo destinatário, esclarece o que valoriza no autor do :

O meu António Nobre é menos o subjetivismo do homem António Nobre que certos aspectos de sua poesia. Portanto não é nada idealista o poeta para mim. É materialista. É, sobretudo, o homem que teve a coragem de empregar prosaísmos, o homem que empregava palavras concretas em lugar de palavras abstratas. Por isso, me encanta tanto Cesário Verde (FIUZA; SARAIVA, 2022FIUZA, Solange; SARAIVA, Arnaldo. Correspondência João Cabral-Alberto de Serpa. Cotia: Ateliê Editorial, [2022?]. No prelo.).

Indubitavelmente, como posto conscientemente no prefácio, Cabral constrói um Nobre para si, indo nele buscar valores poéticos caros à sensibilidade moderna e à sua própria poesia.

Mas é em outro poeta que ficou fora do período contemplado pela antologia e de sensibilidade moderna, Cesário Verde, que Cabral reconhece o seu grande precursor na tradição poética portuguesa. É seguro que Cabral leu Cesário nos anos 1940 e a partir desses anos reconhece, em cartas e entrevistas, a sua admiração imensa ao autor de Num bairro moderno, mas só na década de 1960 o reverencia em sua poesia, o que se dá em um dos poemas críticos que integram a série “O sim contra o sim”, do livro Serial (1961).

Voltando aos poetas da antologia, numa entrevista saída no jornal O Mundo Português, de 1985, Cabral encarece, num tom anedótico, a poesia de Jaime Cortesão. Segundo ele, quando da preparação da seleta, leu um poeta chamado “António Froes”, que gostaria de incluir. Não tendo encontrado referência sobre ele, foi ter com Jaime Cortesão, que lhe confessou ser “António Froes” o seu pseudônimo em livro de crítica ao salazarismo, o Missa da meia-noite e outros poemas:

[...] Havia, entre os outros [poetas que incluiu na antologia De António Nobre ao Saudosismo] um poeta chamado António Froes, que me pareceu muito interessante, e eu queria botar algumas coisas desse António Froes na antologia. Procurei em todo lugar, e não havia a menor referência ao António Froes. Então, quando a antologia ficou pronta, fui ver o Jaime Cortesão, e disse: “Professor, olhe aqui, eu gostaria de botar aqui alguma coisa de um cidadão chamado António Froes, mas eu não sei quem é. Não consigo achar uma referência, não sei nem se ele é desta geração, não tenho a menor ideia”. Então, o Jaime Cortesão, puxando a barba, disse: “O meu caro João Cabral gostou realmente? Então, vou dizer-lhe uma coisa. Eu sou o António Froes”. Disse ele que era um livro assim meio satírico a Salazar e ele quis publicar com pseudônimo (ATHAYDE, 1998ATHAYDE, Félix. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 152 p., p. 140).

A sensibilidade moderna que está no centro do prefácio e move as predileções de Cabral o faz manifestar, em depoimento concedido em 1969 a Fábio Freixieiro e adaptado à 3a pessoa, sua recusa ao mentor e figura central do saudosismo:

[...] o Poeta refere-se a que a “Livros de Portugal” iria fazer uma antologia De António Nobre ao Saudosismo (Teixeira de Pascoaes) [...] Então leu pilhas de poetas dessa época: Afonso Lopes Vieira, Augusto Gil, Jaime Cortesão... Detestou Teixeira de Pascoaes, de quem escolheu, a contragosto, um poema... simplesmente porque estava em outras antologias (FREIXIEIRO, 1971FREIXIEIRO, Fábio. Da razão à emoção II: ensaios rosianos, outros ensaios e documentos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971. 192 p., p. 184).

Um dos pontos de interesse dos rastros dessa antologia que não foi publicada é que eles evidenciam que, a despeito das diversas e tão propaladas declarações de Cabral de que leu muito pouco a tradição poética portuguesa, ele já havia realizado, aos 26 anos, uma leitura sistemática dela para compor a sua antologia. Nesse momento, trava conhecimento com poetas pelos quais demonstra admiração, como Camilo Pessanha, poeta de exceção cuja importância só cresceu a partir do modernismo português, mas também com outros, que foram perdendo o prestígio. Leu ainda, talvez motivado pela antologia organizada por Cecília Meireles, não apenas poetas de António Nobre ao saudosismo, mas outros que lhe são contemporâneos, como menciona em carta a Escorel:

Andei arranjando aqui - resultado do interesse pelos portugueses do modernismo - alguns livros de portugueses modernos. Nessa turma também tive uma revelação. Há alguns cidadãos como Miguel Torga, Carlos Queiroz, Vitorino Nemésio e outros que são de me encher as medidas (MELO NETO, 1946cMELO NETO, João Cabral. [Correspondência] Destinatário: Lauro Escorel. Rio de Janeiro, 5 nov. 1946c. 1 carta pessoal.).

Lembro, de passagem, que Vitorino NemésioNEMÉSIO, Vitorino. Poesia “engenhosa”. Diário popular, Lisboa, p. 5, 15 jun. 1949 é autor da primeira crítica publicada em Portugal sobre a poesia de João Cabral, tendo escrito uma resenha sobre O engenheiro saída no Diário Popular de Lisboa em 1949.

A partir dos anos 1950, inicialmente por intermédio do escritor e amigo Ruben A., e, depois, nos anos 1960, por conta do estreitamento de suas relações literárias com Portugal, Cabral frequenta os poetas de sua geração, sendo, entre todos, Sophia de Mello Breyner Andresen sua maior admiração. Esses poetas exerceram uma grande importância na difusão e no reconhecimento do autor de Quaderna em Portugal. Mas isso é matéria para outro artigo.

A preparação da antologia De Antônio Nobre ao saudosismo coincide com o trabalho do poeta no livro Psicologia da composição. Se muitos poetas portugueses lidos representam uma tradição que Cabral refuta nesse livro de 1947, há outros que, como ele, também abriram um caminho novo no lirismo luso-brasileiro, mesmo que insista, no prefácio da antologia, na diferença entre a sua “sensibilidade moderna” e a dos poetas mais antigos.

Lidar com uma obra que se persegue pelos rastros é lidar com a memória, sempre lacunar, provisória e sujeita a confusões e/ou ficções. Por isso, já encaminhando este trabalho para o final, gostaria ainda de tocar num ponto controverso da antologia, que é a editora pela qual ela seria publicada. O poeta refere-se sempre à Livros de Portugal e seria por conta da derrocada financeira da editora que a antologia não saiu.

A Livros de Portugal foi uma editora e distribuidora de livros criada, no final da década de 1930, no Rio de Janeiro. Os seus fundadores foram os portugueses António Augusto de Sousa Pinto, futuro editor da lisboeta Livros do Brasil, António Pedro Martins Rodrigues e Américo Fraga Lamares, que, posteriormente, foi também proprietário da portuense Editora e Livraria Civilização. Teve como objetivo principal divulgar a herança portuguesa nas áreas de história, etnografia, literatura e linguagem, em edição solta ou na sua coleção Clássicos e contemporâneos. Jaime Cortesão, a partir de 1942, foi diretor literário da editora e, pouco tempo depois, também da Edições Dois Mundos, que igualmente contava com a coleção Clássicos e contemporâneos. Nessas duas editoras foram publicadas importantes obras não só de literatura e cultura portuguesas, mas também de literatura e cultura brasileiras. A antologia Poetas novos de Portugal, organizada por Cecília Meireles, foi publicada em 1944MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal. Seleção e prefácio Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1944. 316 p. pela Dois Mundos. Anos depois, a Livros de Portugal editou outras obras de Cecília Meireles (Retrato natural, 1949; Doze noturnos da Holanda & o aeronauta, 1952; Romanceiro da inconfidência, 1953; Canções, 1956; Metal rosicler, 1960; Solombra, 1963; O menino atrasado: auto de Natal, 1966), assim como de Jorge de Lima (Invenção de Orfeu, 1952).

Se a antologia Poetas novos de Portugal foi publicada pela Dois Mundos, muito provavelmente, também o seria a seleta de Cabral. Além disso, as publicações saídas pela Dois Mundos do Rio de Janeiro estão circunscritas aos anos 1940, ao passo que a Livros de Portugal prosseguiu com novos títulos até, pelo menos, o final dos anos 1960. A confusão de Cabral talvez seja decorrente de Jaime Cortesão ter sido o diretor literário das duas casas editoriais. Em carta a Cabral de novembro de 1949, Murilo Mendes reforça a hipótese de que a editora pela qual a antologia sairia seria a Dois Mundos: “Infelizmente s/ antologia sobre a poesia portuguesa (simbolista, não é?) não saiu porque a editora Dois Mundos não tem editado mais, a não ser livros que os autores pagam!” (MENDES, 1949MENDES, Murilo. [Correspondência] Destinatário: João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro, 8 nov. 1949. 1 carta pessoal.).

Se as editoras Livros de Portugal e a Dois Mundos foram importantes casas editoriais na história dos diálogos Brasil-Portugal, a antologia De António Nobre ao saudosismo também testemunha, ainda que de modo fragmentado, incompleto e por meio de rastros, o quanto a tradição portuguesa esteve presente no acervo leitor de João Cabral, a despeito do discurso posterior que ele construiu sobre essa tradição e sobre o papel dela na sua formação.

Referências

  • ATHAYDE, Félix. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 152 p.
  • BLANCHOT, Maurice. O espaço literário Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. 304 p.
  • DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica 2. ed. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2011. 208 p.
  • DIAZ, José Luis. Qual genética para as correspondências? Tradução de Cláudio Hiro e Maria Sílvia Ianni Barsolini. Manuscrítica, n. 15, 2007, p. 119-161.
  • FIUZA, Solange; SARAIVA, Arnaldo. Correspondência João Cabral-Alberto de Serpa Cotia: Ateliê Editorial, [2022?]. No prelo.
  • FREIXIEIRO, Fábio. Da razão à emoção II: ensaios rosianos, outros ensaios e documentos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971. 192 p.
  • MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal Seleção e prefácio Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1944. 316 p.
  • MELO NETO, João Cabral. [Texto crítico] Prefácio para a antologia “De António Nobre ao Saudosismo” da Editora Livros de Portugal. Rio de Janeiro, 1946a (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa).
  • MELO NETO, João Cabral. [Correspondência] Destinatário: Lauro Escorel. Rio de Janeiro, 14 set. 1946b. 1 carta pessoal.
  • MELO NETO, João Cabral. [Correspondência] Destinatário: Lauro Escorel. Rio de Janeiro, 5 nov. 1946c. 1 carta pessoal.
  • MENDES, Murilo. [Correspondência] Destinatário: João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro, 8 nov. 1949. 1 carta pessoal.
  • NEMÉSIO, Vitorino. Poesia “engenhosa”. Diário popular, Lisboa, p. 5, 15 jun. 1949
  • 1
    As demais citações do prefácio remetem a essa referência, arrolada no final do texto.
  • Parecer Final dos

    Editores Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
  • Autorização de publicação

    Eu, Solange Fiuza, autorizo a publicação do artigo “João Cabral e os rastros da antologia De António Nobre ao Saudosismo” no número 24/2 da revista Alea.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2021
  • Aceito
    30 Abr 2022
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