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Literatura em perspectiva. Teatros de literatura e perspectivação a partir de Morada Frágil

Literature in perspective. Theaters of literature and perspectivation in Morada Frágil

Resumo

O artigo aborda Morada frágil ([1999] 2009), singular experimento literário-teatral do escritor, dramaturgo, encenador, pensador de teatro e artista visual Valère Novarina. No centro dessa encenação literária encontram-se agenciamentos de uma visão sobre o problema da perspectiva, que partem do paradigma da perspectiva renascentista em direção a uma concepção perspectiva transversal e transtemporal. Acompanhando os desdobramentos da cenografia enunciativa do texto, propõe-se analisar os modos de encenação que Novarina realiza em torno da perspectiva, complexo técnico, especulativo e poético, articulado a partir de um campo de diálogos entre a literatura, o teatro e a pintura. Assim, busca-se pensar uma noção de teatro de literatura, tomando o espaço literário enquanto espaço de tensionamentos produtivos entre os atos e a (i)materialidade compósita e extremamente ambígua do meio escritural.

Palavras-chave:
Valère Novarina; literatura e teatralidade; perspectiva

Abstract

This article analyses Morada frágil ([1999]/2009), a unique literary-theatrical experiment by the writer, playwright, director and theater theoretician Valère Novarina. At the core of this literary mise-en-scène a vision on the problem of perspective is staged, starting from the Renaissance paradigm of perspective and moving towards a transversal and transtemporal conception of perspective. Through an analysis of the text’s scenography, we intend to comment on the modes of staging that Novarina performs around perspective, a technical, speculative and poetic complex that arises from dialogues between literature, theater and painting. In doing so, we aim to explore a notion of literature theater, conceiving the literary space as a space of productive tensions between writing acts and the composite and ambiguous (im)materiality of the writing medium.

Keywords:
Valère Novarina; literature and theatricality; perspective

Resumé

L’article analyse Morada frágil [Demeure fragile] ([1999]/2009), un expérimentation littéraire-théâtrale unique conçu par l’écrivant, dramaturge, metteur en scène, théoricien du théâtre et artiste visuel Valère Novarina. Au cœur de cette mise-en-scène littéraire, on appréhende des agencements d’une vision sur le problème de la perspective, qui partent du paradigme de la perspective de la Renaissance vers une conception perspective transversal et trans-temporelle. En suivant les dédoublements de la scénographie de l’énonciation du texte, on propose d’analyser les modes de mise-en-scène que Novarina effectue autour d’un champ de dialogues entre la littérature, le théâtre et la peinture. Ce faisant, on cherche penser une notion de théâtre de la littérature, en concevant l’espace littéraire comme espace de tensions productives entre les actes e l’(i )matérialité composite du moyen de l’écriture.

Mots-clés:
Valère Novarina; litterature et theatralite; perspective

Je recommencerai toujours le monde avec l’idée d’un enemi derrière moi.Valère Novarina, Le discours aux animaux. (NOVARINA, 2016NOVARINA, Valère. Le discours aux animaux. Paris: P.O. L, 2016. 326 p., p. 7)

No quadro Madona com criança e santos (1472),1 1 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sacra_Conversazione_(Piero_della_Francesca). Acesso em: 19 jun. 2021. de Piero della Francesca, conhecido, entre outros nomes, por “Retábulo de Brera”, encontramos a origem de Morada frágil. O texto parece se situar em algum lugar entre as três vertentes por meio das quais Valère Novarina classifica sua produção: “obras diretamente teatrais”, “obras teóricas” e “teatro utópico” ou “poesia em ato”. Essa experiência de leitura nos coloca diante de um aspecto decisivo da poética de Novarina, uma potencialização da dimensão da escrita literária enquanto produção de dispositivos de encenação, que se apresenta sob a forma de uma espécie de prática teórica. Parafraseada a partir de termos recorrentes do artista, trata-se de uma poética da mostração de uma “logodinâmica” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 86), da apresentação de uma “ótica das forças” que ressoam pela palavra, (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p., p. 33-49), da produção de dinâmicas de encarnações transitórias e parciais do “Logos” e do “Verbo”. Ou, de acordo com texto mais propriamente teórico de Novarina, o que se trata de apresentar espacialmente ou pôr em cena é

A fonte de todo pensamento - lá de onde ele se lança-, o drama da respiração:agonia e antagonia, revoltar dos jogos de energias, perdas e reencontros no labirinto do sopro, através de seus cruzamentos de sentido, suas intersecções de ar ao redor doponto impensado, ao redor do ponto elusivo de sua reversão. (NOVARINA, 2012NOVARINA, Valère. La quatrième personne du singulier. Paris: P.O. L Éditeur, 2012. 160 p., p. 79).

De fato, tudo se coloca aqui a partir dos regimes do paradoxo e de múltiplas ordens de cruzamentos. A questão é pôr em cena o raio de virtualidades do impensável que origina o pensamento, dar a ver a ação invisível da palavra teatral e poética, encarnar o incorpóreo. Como veremos adiante, trata-se de apresentar o movimento ou os jogos de forças advindos “por trás da cabeça”, abrindo a cena teatral a um jogo de hesitações múltiplas entre o material e o imaterial, o visível e o invisível, o escópico e o aural.

No plano das origens etimológicas, encontramos em Novarina desdobramentos radicais da associação grega entre o teatro (theatron) como “lugar de onde se vê” e o campo da “teoria” (theorein). Porém, mediante a promoção de atritos entre o legado teatral de um vocabulário fundamentalmente videocêntrico ao campo da teoria ocidental e uma complexificação desse modelo de pensamento, posta pelas dinâmicas aurais. Já recorrendo à fundamentação teórica aristotélica, a mise-en-acte que é Morada frágil talvez possa aguçar um interesse literário por uma vocação teatral a pensar o teórico no regime da ação, tendência impressa já nas constantes reaberturas da hierarquização que privilegiava o mythos em relação à opsis, a fábulo ou enredo em relação ao espetáculo ou materialidade cênica (RAMOS, 2015RAMOS, Luiz Fernando. Mimesis performativa: a margem de invenção possível. São Paulo: Annablume, 2015. 290 p.). Mais que isso, a própria noção de “encenação” (RANCIÈRE, 2013RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: scenes from the Aesthetic Regime of Art. Tradução de Paul Z. Londres; Nova York: Verso, 2013. 288 p., p. 121), delicada e historicamente recente e transitiva, situada entre as duas outras instâncias em chave “paradoxal” (RANCIÈRE, 2013RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: scenes from the Aesthetic Regime of Art. Tradução de Paul Z. Londres; Nova York: Verso, 2013. 288 p., p. 120), amplifica a relação ambígua posta por Aristóteles entre a necessidade de operacionalização do texto teatral na materialidade da cena e a compreensão do texto como “boca” que (se) “profere” (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2013LACOUE-LABARTHE, Philippe.; NANCY, Jean-Luc. Scène. Paris: Christian Bourgois, 2013. 105 p., p. 22-23), que se encena a si mesma, prescindindo, a princípio, de sua encenação enquanto espetáculo.

Todos esses aspectos se fazem presentes nas operações por meio das quais Morada frágil apresenta a poética de Novarina. No interior das delicadas molduras de uma simples mise-en-lecture, Novarina põe em ação uma aposta radical na força performativa da palavra, “superativando-a” (MAULPOIX, s/dMAULPOIX, Jean-Michel. “La parole suractive” (s/d). Disponível em: http://www.maulpoix.net/novarina.html . Acesso em: 19 jun. 2021.
http://www.maulpoix.net/novarina.html...
., s/p.) em diversas direções. Daí dois pontos de interesse que se pretende abordar neste estudo: de um lado, uma demonstração das potencialidades do espaço literário enquanto espaço de tensionamentos produtivos entre os atos e a (i)materialidade compósita e extremamente ambígua do meio escritural; de outro, uma problematização prático-teórica do estatuto da linguagem e de suas relações com o espaço, que tem como consequência uma abertura singular da concepção das relações entre o uno e o múltiplo. De modo que é em torno de uma abordagem transversal do problema em que convergem esses diferentes aspectos, o da perspectiva, que Morada frágil opera cruzamentos reveladores entre literatura, teatro e pintura, extraindo consequências que desdobram o problema da encenação da enunciação no campo da literatura.

Assim, tudo pode começar pela compreensão dessa espécie de encenação ecfrástica do Retábulo de Brera, que origina Morada frágil. Se a poética de Novarina pode ser compreendida como uma ocupação dinâmica ou reversiva da cena ilusionista clássica mediante sua abertura em contato com outras fontes, entre as quais certo agenciamentos de conquistas teatrais em contexto moderno (LOPES, 2017LOPES, Angela Leite. Traduzindo Novarina: cena, pintura e pensamento. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017. 128 p.), cabe acompanhar os múltiplos desdobramentos da proposta encenada em Morada frágil. Proposta essa sintetizada em duas proposições: de um lado, a de que “A palavra é perspectiva” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 69),2 2 Angela Leite Lopes (2017) inicia seu estudo mais completo sobre Novarina apontando para essa proposição. de outro, a reivindicação de que “A ordem perspectiva [ocidental, clássica] é atingida para ser revertida” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 56-57).

Essa entrada pode ser desdobrada em contato com outros aspectos do problema da perspectiva artificial inventada pelo Renascimento, correspondentes aos principais tópicos trabalhados nas páginas que seguem: a perspectiva enquanto “modelo para o pensamento” (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p.; MANIGLIER, 2010); sua negociação, problemática e historicamente cambiante, entre um imperativo preliminar de translucidez e desmaterialização e as dinâmicas de encarnação dos diagramas simbólicos em espacialidades concretas; seu estatuto enquanto dispositivo regulador das relações entre fechamento sistêmico e infinitude; seu caráter não mimético, mas construtivo, ficcional, ou performativo (ALLOA, 2016ALLOA, Emmanuel. Florence 1425: Le stade de mirroir de la peinture. In: CARERI, Giovanni; DIDI-HUBERMAN, Georges. Hubert Damisch, l’art au travail. Paris: Éditions Mimésis, 2016. p. 13-32., p. 71); o caráter intrinsecamente plural3 3 Para um panorama da diversidade dos paradigmas da perspectiva e sua localização transcontextual no Renascimento italiano, ver Alloa (2016). de toda perspectiva, em linha com uma peculiar problemática da origem, que aponta por sua vez, para uma historicidade transtemporal.

De modo que, se os paradoxos e tensionamentos internos ao próprio momento de constituição do paradigma clássico da perspectiva e da representação foram inextrincáveis de sua encenação por certas formas de “teatro de pintura” (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 246), caberá aqui acompanhar o teatro de literatura que Morada frágil arquiteta em chave negativa, dinâmica e múltipla. Em poucas palavras, caberá jogar o jogo de Novarina, para o qual “Abrir: este é o ato poético” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 73, grifo do autor).

Origem do espaço: a “matriz do mundo”, em Milão

A Madona com crianças e santos de Piero della Francesca é um mal-estar no espaço. No primeiro andar do No. 28 da rua de Brera em Milão, sala XXIV, ela mergulha o espectador nas vertigens da desproporção. Tudo desorienta, nada vai no sentido do reconhecimento de um lugar conhecido. Estranheza, no alto, dessa abóbada alveolada, nervurada como matriz do mundo, coroando a cena ao avesso - estranheza da concha, da meia casca e do ovo obsessivo que está ali pendurado - estranheza, a meia altura, dos corpos rígidos dos doze personagens alinhados face a nós, regulares como troncos de colunas, nos olhando fixamente -estranheza do rosto muito impassível e muito oval da Virgem, de suas mãos muito grandes semiunidas, desproporcionais e deixando a luz passar através - estranheza dessa criança, mais para gorda, com carnes incertas, inchada, dormindo num sono pesado, extremamente mal colocada no colo da mãe, instável e como que flutuando, prestes a deslizar.

Todas as forças do espaço parecem estar aqui reunidas num ajuntamento contraditório. [...] É preciso ir com todo seu corpo na pintura de Piero della Francesca: [...] o espectador [...] sente de repente aparecer algo que ele não tinha visto com seus olhos, porque ele só podia perceber com o corpo todo: os doze rostos dos personagens estão numa horizontalidade quase perfeita. [...] É a horizontal que agora nos obceca, nos pega. A horizontal que barra com força o quadro, no meio. Marcada com tanta força quanto a vertical traçada pelo ovo pendurado. [...]Seu cruzamento mental e físico em nós forma como uma grande cruz invisível que corta o espaço. Duas forças antagonistas indicadas no corpo do espectador carregam aqui a sua contradição. [...] O espaço então se liberta. (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 51-52, grifos nossos).

Essa é a “origem” de Morada frágil. Nessa escrita do espaço, Novarina faz do texto uma dinâmica de instauração contínua de um espaço cênico imaterial no qual se desdobram diferentes pontos de origem a partir de um ponto matricial. Em sete partes articuladas de modo elíptico, assistimos a diferentes modos de espacialização de um pensamento teatral no qual a força performativa da palavra instaura acontecimentos cênicos marcados especialmente por dois tipos de operação: a articulação de fontes teatrais, teóricas, estéticas e cosmológicas heterogêneas e um drama da reatualização contínua do lugar-sujeito. Em poucas palavras, assistimos a uma noção da cena como lugar de reatualização contínua do ter-lugar cênico.

Tudo parte da noção de uma coincidência matricial entre estrutura do espaço e estrutura do pensamento, por meio da qual a perspectiva renascentista elabora uma problemática da origem. Pois falar da perspectiva artificial inventada nesse contexto significa falar em um complexo técnico e especulativo ancorado na produção de modos de estruturação simbólica do espaço. Em se tratando de objeto que só se pode “perceber com o corpo todo”, o impulso ecfrástico terá de ser investido em dinâmica teatral.

Marca-se de início a passagem de uma espacialidade conhecida e dada de antemão à configuração de uma espacialidade outra, tão pregnante quanto “incompreensível”. Novarina parte da dupla face do problema da perspectiva renascentista, seu estatuto simultaneamente técnico-linguageiro e teológico. Estatuto paradoxal, pois apresentar a atualização discursiva da origem do discurso simultaneamente como apresentação da “matriz do mundo” implica, da pintura renascentista ao teatro de Novarina, tornar visível a ação criadora insondável que anima o sensível. É o que está em jogo no problema teológico da encarnação do Verbo, assim como na estruturação perspectiva, que, apreensível apenas quando impressa nos corpos e suas relações com o espaço, pré-configura a articulação dos diagramas de relações que organizam a espacialidade.

A cena de Novarina joga com um tensionamento entre uma desmaterialização do suporte cênico e uma materialização da incorporeidade das forças da palavra: “Há [...] a presença invisível no espaço de um ponto em nossa boca onde é visível a própria palavra que chamou o espaço” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 80). No entanto, se esse tensionamento enuncia uma problemática moderna e contemporânea decisiva quanto ao problema do espaço da obra de arte,4 4 Da “distância intransponível” que marca a teatralidade intrínseca ao dispositivo perspectivo clássico (DAMISCH, 2012, p. 392) à problemática da “absorção” do espectador (FRIED, 1980), e desta às transformações espaço da obra a partir dos anos 1960 (FRIED, 1998). Novarina a enuncia a partir de sua fonte ocidental, por assim dizer, canônica, na qual o dispositivo perspectivo aparece como método de redução da infinitude invisível e insondável da ação divina a uma regulação simbólica do infinito e da exterioridade nos limites do quadro.5 5 Ver “O olhar do caracol”, em Arasse (2000).

Com efeito, a perspectiva renascentista funciona como uma “estrutura de exclusão”, como propõe Hubert Damisch (2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 118), estruturando diegeses autônomas que, no entanto, encenam modos de lidar com a exterioridade excluída no interior do quadro. Como mostram autores como Daniel Arasse e Damisch, o desafio que se colocava aos pintores era simultaneamente apresentar um recorte do campo visual e indicar, estabilizando-as, as regiões liminares entre interioridade e exterioridade, e assim por diante. De modo que aquilo que o dispositivo perspectivo institui era justamente aquilo que necessitava ser estabilizado ou ocultado, ou seja, a origem de cada sistema simbólico visual, a instância discursiva da qual derivam todas as demais relações.

Em Morada frágil, essa origem aparece como o ponto de cruzamento da “cruz invisível” que projeta no espaço as relações entre horizontalidade e verticalidade, o mental e o físico, o espaço e as figuras. Em torno desse “ponto impensado”, ou cego, a cena ilusionista se constitui, as relações entre seres, coisas e espaço se organizam, o quadro engaja ou absorve o espectador, o infinito absoluto da criação encerra-se em um infinito atual, discursivo. Por outro lado, se a cena de Novarina irá “reverter”, abrir dinamicamente as operações de regulação que constituem a construzione legittima, a escolha do Retábulo de Brera estabelece os paradoxos e tensionamentos matriciais que o texto desdobrará continuamente, em torno de três elementos: “estranheza”, “desproporção” e “ajuntamento contraditório”.

De fato, nessa “homenagem monumental ao ponto de fuga central” (EVANS, 2000EVANS, Robin. “Piero’s heads”. In: EVANS, Robin. The projective cast. Architecture and its three geometries. Massachusetts: MIT Press, 2000. p. 123-178., p. 165) que é o Retábulo de Brera, o lugar singular e complexo de Piero della Francesca no Renascimento italiano se expressa na “estranheza” identificada por Novarina ao indicar que, ali, os corpos dos personagens aparecem “regulares como troncos de colunas”, o ovo é pêndulo “parado em sua queda”; “o pesado e o volátil; o instável, o peso; o que se eleva” se articulam num “ajuntamento contraditório”, tudo isso atraído por um “alinhamento monumental”, uma barra mineral de carne, uma falésia humana rítmica” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 51-52). Pois, por um lado, nesse momento seminal do Renascimento, o pintor aperfeiçoa e sistematiza a concretização de uma “lei métrica”, fazendo-a “circular”, “despercebida e fatal”, entre os corpos (LONGHI, 2007LONGHI, Roberto. Piero della Francesca. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 464 p., p. 44). E, por outro, dava contornos radicalmente especulativos ao desafio de lidar, por exemplo, com os intervalos e paradoxos encenados nas relações entre espaço e figuras, ausência e presença, visibilidade e invisibilidade.

Nesse sentido, a tensão entre movimento e imobilidade e o modo peculiar de veicular expressão por meio da inexpressividade, característicos do pintor, ressoariam no incômodo causado pelo ovo que pende ambiguamente no retábulo comentado. Ilusionisticamente percebido acima da cabeça da Virgem, o ovo-enigma haveria de ter o tamanho de um ovo de avestruz, mas seria visto como do tamanho de um ovo de pata (DAMISCH, 1997DAMISCH, Hubert. Un souvenir d’enfance par Piero della Francesca. Paris: Seuil , 1997. 126 p., p. 13). Assim, no coração da cena ilusionista clássica - gestada, vale dizer, em concomitância com a paradigmática cena à italiana do teatro (LOPES, 2017LOPES, Angela Leite. Traduzindo Novarina: cena, pintura e pensamento. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017. 128 p., p. 20) -, Piero della Francesca operava uma “misteriosa conjunção entre matemática e pintura” (LONGHI, 2007LONGHI, Roberto. Piero della Francesca. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 464 p., p. 44), uma “colisão entre realismo e abstração geométrica” (VENTURI, 1954VENTURI, Lionello. Piero della Francesca. Lausanne: Skira, 1954. 128 p., p. 108). Entre “ciência e poesia”, como sugerido por Damisch, o pintor formularia o encaminhamento de “problemas sutis, complexos e contraditórios” referentes à busca por uma sistematização rigorosa, matemática, do dispositivo perspectivo, ao mesmo tempo trazendo ao primeiro plano um “inexaurível ardor especulativo” (LONGHI, 2007LONGHI, Roberto. Piero della Francesca. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 464 p., p. 90, grifos nossos). Afinal, enquanto a faceta técnica da perspectiva opera modos de tradução entre espaços da experiência e espaços simbolicamente construídos, sua faceta especulativa partilha de um funcionamento intrínseco a toda linguagem: trata-se de um meio simbólico dotado de potencial ficcional ou performativo, cujas propriedades carregam potências de invenção.

Hubert Damisch aborda a perspectiva enquanto paradigma, jogando com o sentido atribuído ao termo pela linguística e os estudos da enunciação (BENVENISTE, 2005BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas: Unicamp - Pontes, 2005. 387 p.): a perspectiva como instância de organização das posições discursivas possíveis no interior de dado sistema de enunciação (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 16-17). Nos termos de Damisch, no “teatro” da perspectiva,

[...] a construzione legittima propõe, em seu dispositivo mesmo, um aparelho formal que, entre ponto de vista, ponto de fuga e “ponto de distância”, e se organizando como o faz em torno da posição do “sujeito” tomado como origem da construção perspectiva, e como índice do “aqui”, como do “ali” e do “lá”, representa o equivalente da rede de advérbios de lugar, senão de pronomes pessoais. (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 16-17).

Porém, podemos identificar em Morada frágil a problematização de uma matriz possível ou um caso limite daquilo que Dominique Maingueneau compreende como o agenciamento “paratópico” da enunciação literária. Trata-se de pensar o discurso literário como campo de agenciamento do lugar “impossível” ou intervalar a partir do qual a enunciação estrutura as articulações entre o interior do espaço do texto e sua exterioridade, ou seja, o lugar interior-exterior do ato que circunscreve o dentro no mesmo passo que legitima o seu fora (MAINGUENEAU, 2012MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2012. 336 p., p. 87).6 6 Maingueneau define como “cenografia o “processo fundador” que é também a “inscrição legitimadora de um texto”, algo que se mostra pela cena sem ser dito em cena, “ao mesmo tempo origem do discurso e aquilo que engendra esse mesmo discurso” (MAINGUENEAU, 2012, p. 249-265).

Em Morada frágil, a reenunciação de um estado limite, ou liminar, desse problema ecoa a exploração por Piero della Francesca do “mistério” ligado “ao jogo mais sutil da perspectiva” (LONGHI, 2007LONGHI, Roberto. Piero della Francesca. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 464 p., p. 12), ao trazer ao centro do palco algo da ordem do “mistério da geração”, algo que poderíamos colocar como a paratopia matricial do fenômeno do nascimento virginal de Cristo. É o que Damisch propõe em Un souvenir d’enfance par Piero della Francesca (1997DAMISCH, Hubert. Un souvenir d’enfance par Piero della Francesca. Paris: Seuil , 1997. 126 p.), releitura das incursões freudianas em torno da figura de Leonardo da Vinci, com foco na Madona del parto, de Piero.7 7 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Madonna_del_parto_piero_della_Francesca.jpg. Acesso em: 6 set. 2022.

Nessa abordagem da “pré-história” do Cristianismo ou de sua “era originária” (Urzeit), Damisch encontra ecos antecipatórios da pergunta freudiana “De onde vêm as crianças?”. É o que se observaria nessa Madona, justamente sob a forma da apresentação do enigma visível-invisível da geração da figura de Cristo projetada a partir da origem estruturante da composição, estabelecida pela perspectiva. No quadro, a ambiguidade das temporalidades da gestação e da geração espera e ato produtivo, se desdobraria na gestualidade ambígua dos anjos, indecidível enquanto abertura ou fechamento da tenda/dossel, e, por sua vez, relançada na evidenciação da fresta nas vestes da pré-parturiente. Tudo girará, portanto, em torno desse gesto da Virgem que, embora instalado em meio uma imagética cristã tradicional, seria um “gesto sem exemplo” no interior dessa tradição iconográfica.

Gesto singular de todos os gestos, por assim dizer, ele evidencia a indicação do que não se pode indicar, essa ambígua “suspensão do tempo”, correspondente ao “lugar radicalmente sem fora” que é a origem materna (DAMISCH, 1997DAMISCH, Hubert. Un souvenir d’enfance par Piero della Francesca. Paris: Seuil , 1997. 126 p., p. 85). Nos termos freudo-lacanianos de Damisch, se trataria de uma “Virgem fálica”, cuja aparência passível de ser associada à de uma “coluna” daria corpo à função do falo, índice da falta desejante que move o psiquismo, figura central da ambiguidade entre o velar e o mostrar. Algo que, no entanto, se difrata no interior da composição, cujas remissões e dobras internas funcionariam como uma “involução” ou “invaginação” que “frustra” ou “contrajoga” (déjoue) “continuamente” a relação entre abertura e fechamento (DAMISCH, 1997DAMISCH, Hubert. Un souvenir d’enfance par Piero della Francesca. Paris: Seuil , 1997. 126 p., p. 87-89).

Ou, talvez, algo como um hiper-protótipo que fornece um diagrama modelar para futuros investimentos, já que o que o quadro emoldura é a tenda que contém e simultaneamente replica a “morada [séjour] do Verbo no seio de Maria”. Algo que indicaria também que, para além da metáfora albertiana do quadro como “janela” da qual deriva uma projeção imaginária unívoca, a representação clássica lidaria também com o desafio da apresentação de uma “abertura [....] contínua, permanente”, posta pela “suspensão indecidível” (DAMISCH, 1997DAMISCH, Hubert. Un souvenir d’enfance par Piero della Francesca. Paris: Seuil , 1997. 126 p., p. 102) do lugar matricial da geração materna arquitemporal.

Ora, tudo isso parece estar dado na equivocidade que dá lugar ao título do texto aqui comentado: Demeure frágil, “morada frágil”, legível simultaneamente na língua francesa, como “permaneça frágil”. Mas, sobretudo, essas ideias são postas em ato sob a forma de dois operadores cênicos-teóricos decisivos de Novarina, a “quarta pessoa do singular” e o “drama pronominal”. Onde lemos que “Deus é a quarta pessoa do singular” (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p., p. 99), lemos também que na imanência de uma encenação da enunciação, Deus é simplesmente o lugar impossível ou o ponto de origem em torno do qual se estruturam as demais relações. Nas palavras de Novarina, “Eu tu ele e eu giram em rondas infernais se não se abrem à quarta pessoa do singular, motor invisível, livrador [délivreur] do drama pronominal” (NOVARINA, 2012NOVARINA, Valère. La quatrième personne du singulier. Paris: P.O. L Éditeur, 2012. 160 p., p. 93-94).

Com isso, o texto encena com ousadia uma noção da enunciação enquanto estruturação de modos de visão. Em uma operação ecfrástica anamórfica, sugere que “o melhor comentário” ao quadro proviria não de seus efetivos comentadores mais proeminentes, mas de um poema da autora mística Jeanne Guyon, que passa longe de qualquer menção a Piero. A cena extática do poema é protagonizada por uma voz situada em um limiar além-vida e para além das oposições entre o sujeito e o outro, força divina e forma humana, entre o “pão da vida” e um “menino crucificado” que “É o sinal do meu nascimento” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 53-54). Distorcendo imaginariamente a cena da Madona com a criança de Piero, a operação a reapresenta enquanto uma “natividade”, “por cima da qual” teria sido pintada uma “descida da cruz”. Sobre uma “mesa invisível”, incluída imaginariamente no quadro, repousaria a criança divina, que agora contemplamos morta. “Jesus crucificado criança” vislumbrado sob Madona com criança e santos.

Com isso, multiplicam-se em segundo grau os intervalos visíveis-invisíveis cuja matriz seria a “cruz invisível”, signo-cruzamento gerador de todo espaço, a partir do ponto cruzado entre dar a vida e dar a morte. Mas, também, outras possibilidades de enfrentar as dobras entre as determinações externas que a cena busca domesticar em seu interior:

Ao se contar os doze personagens em volta, percebe-se que são realmente doze, como os comedores de carneiro. Como os doze em volta do carneiro sacrificado na noite do seder pascal. Se Judas está entre eles, é certamente o homem vestido de ferro: Federico de Montefeltro, o doador da armadura, de perfil e fechado sobre si mesmo. O segundo doador e Judas, é Louis de Funès; o terceiro sou eu; o quarto é você, espectador. (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 58).8 8 Ao contrário de Montelfeltro, a presença de Judas no quadro é puramente imaginária. Louis de Funès foi de fato um ator cômico francês, no entanto apropriado ao longo de diversos textos de Novarina como figura falante reinventada.

Assim, nesses gestos ativadores de uma paratopia radical, é possível depreender um funcionamento teatral do literário, grávido de consequências reveladoras. Essas que se desdobram quando o lugar perspectivo central absoluto se abre em direção a modos de reversão dinâmica, resultantes em dinâmicas de instauração contínua de pontos de origem.

“Teatro punctal”:9 9 NOVARINA, 2009, p. 76. Ponto real, ponto-sujeito, ponto cruzado

O Retábulo de Brera encena ou demonstra a enunciação de uma origem, a ser encenada em graus suplementares em Morada frágil. Leon Battista Alberti forneceu a definição clássica do “quadro” como a “intersecção plana da pirâmide visual”10 10 Leon Battista Alberti foi responsável por uma sistematização pioneira do paradigma da perspectiva, onde a linha do disegno ocupa a posição estruturante indisputável. Tal sistematização, no entanto, já se complicou nesse mesmo momento, com a presença coetânea de outros métodos, um deles concebido por Della Francesca, (EVANS, 2000, p. 158), e diretamente problematizada depois por Leonardo da Vinci, que sobrepôs à perspectiva linear, uma perspectiva da atmosfera e uma perspectiva da cor (DAMISCH, 1972, p. 269). (QUINET, 2002QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. 312 p. , p. 146). Isto é, sistematizou o funcionamento da representação em pintura a partir da estrutura piramidal da projeção dos raios visuais convergentes no olho de um observador diante de um objeto, sobre um plano perpendicular ao plano do solo. Segue daí a tríade de pontos que estruturam o campo perspectivo: o ponto de fuga, centro para onde convergem as linhas da estruturação perspectiva e que aponta para o horizonte, ao infinito; o que chamou posteriormente ponto de vista, ocupado pelo espectador diante do quadro, que coincide virtualmente com o ponto de fuga, como sua projeção sobre o plano; e um terceiro ponto, destacado por Hubert Damisch, em contraste com as caracterizações mais correntes do dispositivo perspectivo, correspondente à coincidência virtual entre os dois anteriores, “o ponto de partida” ou “origem” do sistema, “ponto de distância” que Damisch pensará como “ponto de Real” (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 141).

No entanto, como já mencionado, Damisch também está atento à dimensão da encenação da enunciação ao sugerir que, no dispositivo perspectivo clássico, a função de “monstrar” é inextrincável de uma função de demonstrar (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 112-122). Essa maquinaria simbólica seria demonstrada pelo famoso “protótipo” concebido por Fillipo Brunelleschi, tal como Damisch o caracteriza. Trata-se de um pequeno painel, uma “tavoletta”, onde o arquiteto representou a visão do Batistério da Piazza della Signoria de Florença obtida a partir da escadaria da Catedral. Após pintar o edifício, o arquiteto fez um furo no painel e determinou que o observador deveria girar o pequeno quadro ao contrário, para vê-lo refletido, através do furo, em um espelho a ser disposto diante da face pintada. Em contraste com a paisagem arquitetônica, a visão do céu e da atmosfera não foi pintada, mas deveria ser refletida na superfície de prata polida que o arquiteto instalou acima da representação do edifício.

Surge aqui uma distinção que estará no centro da apropriação que Lacan (1979LACAN, Jacques. O Seminário: livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 271 p.) faz da perspectiva: o lugar do sujeito, o “ponto do sujeito”, não se identifica com o ponto de vista, nem com o ponto de fuga. O sujeito da perspectiva emergiria como produto do sistema, tendo como lugar de sua emergência o terceiro ponto antes mencionado. Trata-se de um ponto cego em torno do qual o sujeito constitui o quadro de sua fantasia, essa entendida como a moldura por meio da qual o sujeito põe em cena suas identificações imaginárias, estabelecendo os limites de sua versão do mundo (QUINET, 2002QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. 312 p. , p. 143-182).

Assim, para Damisch, “ponto de real” (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 360) é o ponto onde o simbólico funciona como a dobradiça entre o imaginário e o real, onde a linguagem situa-se no limiar entre a produção de imagens que dão aderência identitária ao sujeito e totalização inteligível ao mundo e o real inescritível da pulsão. Analogamente, o ponto de fuga, virtualmente simétrico ao ponto de vista, não devolve a visão do observador a si mesmo, mas a “rejeita”, ou “relança” ao infinito”, “muito para trás de sua imagem”. Nos termos emprestados por Damisch a Leon Battista Alberti, a perspectiva operaria em torno desse “ponto imperceptível”, produzindo a experiência do olhar e do pensamento como algo que se dá “por trás da cabeça” do sujeito (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 141, grifos nossos). A perspectiva clássica reduz o sujeito a um ponto, produz uma “espacialidade que se organiza por uma lógica interna e não por hierarquias pré-constituídas”, fazendo do homem não uma substância, mas um ponto de vista” (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 138, 153-154). Porém, o que está em jogo é a captura do sujeito pelo dispositivo, pois aqui o ponto de fuga, que só se mostra sob “véu ou máscara” (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 104), coincide virtualmente com o ponto de vista, estabilizando de antemão a zona limiar indicada no furo-sujeito. Reduzir o sujeito a um ponto significa abrir a possibilidade de sua “desembreagem, a dessubstancialização do lugar do observador no mesmo passo que o “sujeito dominador” que ocupa o ponto geometral encontra-se “por um fio de Ariadne”, como afirma Damisch, ou uma linha de errância que o abre ao infinito, por trás da cabeça.

Em contraste, vejamos a segunda seção de Morada frágil, a segunda origem matricial a ser desdobrada nas seções subsequentes do texto. O que se apresenta é uma noção de cena extraída de uma sobreposição de camadas filológicas, iniciada com a pergunta sobre o sentido da oferta do pão na Bíblia, em torno do início do versículo de Jó: “O Verbo fez-se carne e ele veio morar entre nós”. A partir da versão em grego da frase, uma primeira camada vai da indagação sobre “Sarx”, “fazer-se carne”, para chegar à palavra “eskènosèn”, “veio morar entre nós”, derivada de “skène”. Daí passa-se do grego “skène” ao Schechinah, a “presença divina” do hebraico, e às diversas versões e origens dos textos sagrados, do grego ao hebraico e ao latim, dos Testamentos à Cabala e às exegeses vulgares. Esse é o jogo de camadas, linguageiro-teológico e, como veremos, temporal-histórico: as línguas, assim como as narrativas e as origens, são múltiplas e dialógicas, “um verbo está sob o verbo, agindo”, a “Septuangita, a Vulgata, os massoretas se completam e respondem entre si - é esse contraponto profundamente tecido que dá sua profundidade à Bíblia, toda sua perspectiva que abre seu espectro temporal e que faz com que ela vá muito rapidamente para longe em várias direções” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 59).

De modo que a dinâmica espaço-temporal que põe em ato e carne esse contraponto multidirecional é a cena. Isso a partir da origem grega, “tenda”, que traria consigo “veio armar sua tenda entre nós” (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 59, grifos do autor), agora aproximada à tenda hebraica do sucot, festa da colheita e consagração ritual da morada nômade no deserto, a partir da diáspora além-Egito:

Skène é também a CENA, o edifício volátil do teatro, seu habitat leve. A cena é uma morada frágil, uma arquitetura provisória, uma cabana [...] Louis de Funès dizia: “A casa do ator é sempre apenas uma tenda aérea, uma casa respirada que se leva. [...]. Nem base nem chão nem para o homem nem para o ator nem para a criança para ninguém nunca. (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 60, grifos do autor).

O que permite “entrar no quadro como numa cena” é que o paradigma perspectivo põe o sujeito diante do Outro, interpõe entre o “tu e o eu”, um “terceiro” (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 360). Mas, se em Damisch passa-se do ponto de vista e do ponto de fuga ao ponto de furo, em Morada frágil a redução do sujeito a um ponto parece fazer valer a “captura” do sujeito pela perspectiva, revertendo-a em outras direções: enquanto transposição produtiva para um plano de projeção ficcional, multifocal, dinâmica e Criadora - antissubstancial chave ontológica. É o que se lê em passagem decisiva:

A cruz é o lugar invisível onde Eu sou está no espaço. No ponto cruzado, ela revira tudo, ela coloca todo o visível em outro lugar: na perspectiva incompreensível do tempo. A ordem perspectiva é atingida para ser derrubada [...] Piero representa o nascimento do espaço por um ponto invisível situado dentro do espectador. Ele representa a íntegra do tempo; ele o fura de um ponto respirado que está em você. E abre o universo que - seu nome indica - tende para o 1. É isso, o ponto de fuga da perspectiva: no centro do espaço, o espaço desaparece, o tempo se devora. [...] Eu sou é em toda parte um ponto no espaço. (NOVARINA, 2009aNOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009a. 96 p., p. 56-57, grifos do autor).

O que fala e dá a ver “por trás da cabeça” é o lugar-fonte, o lugar de origem dinâmica, contínuo da palavra. O ponto-furo - cuja noção parece se adequar melhor à analogia do que o “ponto de vista” - já não é o lugar da “desembreagem” que propicia o nascimento do sujeito moderno, seja em sua face liberal, seja em sua face aberta à dinâmica de reatualização em contato com a pulsão. Também já não é exatamente, tal como Benveniste pensava, o parâmetro pronominal de origem constituído pela posição “eu” (BENVENISTE, 2005BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas: Unicamp - Pontes, 2005. 387 p., p. 284-293) Seria algo como um sujeito anterior à relação eu-tu-ele, potência de “florescimento” - outra palavra cara ao artista - contínuo de posições do “eu” e de suas relações teatrais. Operar a abstração do sujeito fenomênico significa aqui radicalizar uma virtualização dos pontos cegos que abrem o mundo sensível estruturando-o a partir de um lugar anterior oculto.

Trata-se, porém, de um “ponto cruzado”, em mais de um sentido. Primeiro, pois ele é o lugar da reconciliação perpetuamente incompleta entre o Um e o múltiplo. Como será visto adiante, ele implica pensar, para além dos raciocínios de Lacan e Damisch, um ponto de “dispersão reunida” (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p., p. 46), onde as recorrentes figuras ternárias de Novarina encontram uma quarta dimensão, cuja chave é a multiplicação, uma “paixão dos números” (NOVARINA, 2009cNOVARINA, Valère. Carta para os atores e Para Louis de Funès. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2009c. 62 p., p. 54-56, grifo nosso). O lugar da “falta”, do “vazio”, do “nada” é simultaneamente o lugar do “cruzamento dos sopros”, e dos “rios” (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 129-130).

Daí outro paradoxo: “Eu sou” -“je suis”: “eu sou”, ou “eu sigo” - “é em toda parte um ponto no espaço”. O lugar-origem se dispersa pelo espaço. A origem é contínua e multidimensional, podendo estruturar jogos de linguagem e mundo a partir de furos que proliferam por toda parte. O ponto torna-se, então, paradoxalmente, o operador de uma ubiquidade múltipla e contraditória. Damisch demonstrava que na perspectiva artificial clássica a origem aparece como dobradiça entre linguagem e imaginação, entre a legalidade interna de um sistema simbólico e sua potência de configurações do mundo que supostamente o engloba, entre a história e sua reenunciação pelos lugares da teoria e da prática. Já Novarina ocupa esse lugar de origem, mas para virtualizá-lo, suspendendo-o em direção a mais de um infinito, infinitos continuamente relançados.

Em textos nos quais a questão da perspectiva é abordada de modo tão explícito quanto em Morada frágil, presentes, por exemplo, em Voie negative e L’envers de l’esprit, temos algumas derivações desse problema. No segundo livro, uma “teoria das perspectivas cruzadas” ilustraria um regime de relação entre obra e recepção, em que a ordenação “racional”, meditada, “justa” da obra seria realizada a partir de “um ponto de vista”, o do autor - cujo desaparecimento parece ser bem expresso no empréstimo a Mallarmé da ideia de um “lirismo sem eu” (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p., p. 42) -, mas que chegaria ao espectador através de “anamorfoses” e “difrações”, desencadearia, “criptada”, incognoscível enquanto substância, uma infinitude de outras “perspectivas” possíveis (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p., p. 58). Em outros momentos, como vimos, o ator aparece como “ponto de fuga móvel”, e o personagem como ele mesmo, “uma cena”, o que nos conduz à entrada que vimos propondo, mas não a esgota.

Em outros momentos, a perspectiva aparece de modo mais direto como instância coextensiva à da palavra, sugerindo-se uma perspectividade própria à linguagem, tida como meio multidirecional cuja autorreflexão demonstra o caráter não apenas “perspectivo” do sentido (ALLOA, 2016ALLOA, Emmanuel. Florence 1425: Le stade de mirroir de la peinture. In: CARERI, Giovanni; DIDI-HUBERMAN, Georges. Hubert Damisch, l’art au travail. Paris: Éditions Mimésis, 2016. p. 13-32., p. 32), mas também possivelmente teatral, de apresentação das múltiplas articulações e escalas do sensível e das acoplagens entre os sentidos “sensíveis” e entre estes e o sentido “sensato”:

[...] palavras panopliadas como ferramentas mas com labirintos de logodramas: feixes de logaedros abrindo o espaço - alqueires de flechas sonoras - com sílabas não como elas são, mas de onde vêm, com todas as cores - e onde elas iriam se as deixássemos livres. (NOVARINA, 2017NOVARINA, Valère. Voie negative. Paris: P.O. L, 2017. 288 p., p. 24-26).

De modo que em linha com essas outras perspectivas sobre a perspectiva, aparecerá ainda, e não com menos importância, uma concepção que contrasta de modo mais basal com a perspectiva renascentista, que talvez ressoe uma declinação antissistêmica e dispersiva de uma perspectividade transversal que permearia a natureza, refratando noções provenientes de contextos anteriores e posteriores ao Renascimento:

Tudo é em desordem, e visto à espreita como no avesso de um caleidoscópio. As crianças querem sempre ver dentro ao avesso, enquanto não há nada a ver exceto a desordem dos pedriscos e da vidraria à espera da revelação colorida das figuras simétricas. Esperando, a visão não dá senão em pequenos pedaços de vidro e a desordem dos pedregulhos. Como na natureza vista de muito perto: uma folha de grama, um galho, é de perto uma desordem infinita: há um drama não resolvido num tufo de mato: mas uma ordem pode aparecer de cada ponto. Uma perspectiva se abre repentinamente. (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p., p. 17-18, grifos nossos).

De modo que é por meio do diálogo oblíquo com a perspectiva renascentista realizado em Morada frágil que pode ser encontrada uma formulação do problema da perspectiva de Novarina que engloba as agora mencionadas. Em Novarina, a perspectiva articula o múltiplo e o uno retornando a uma perspectiva unária, porém revertendo-a continuamente em dinâmica de perspectiva multidirecional, multidimensional e, digamos, multioriginal. Enfim, o não-lugar de origem aparece como um ponto de vazio que põe a multiplicidade em giro.

Passando, ainda, entre o Renascimento e elementos de uma concepção do espaço e do visível próprio às heranças da Idade Média, ecos irônicos e reversivos de perspectivismos monádicos e um perspectivismo constitutivo da natureza, Novarina nunca adere unilateralmente a um paradigma perspectivo específico. Em suma, Novarina recorre à perspectiva renascentista para radicalizar e reverter sua desembreagem performativa da origem enquanto furo que permite atravessar outras ordens (ou desordens) perspectivas, de modo a poder recomeçar tudo a partir de qualquer ponto de origem, de modo que “tudo tenha lugar”11 11 Distorção do célebre verso mallarmeano operada em Le vrai sang: “Dieu, s’il vous plaît! que rien n’ait plus lieu que le lieu! Dieu! fais que tout ait lieu!” [Deus, por favor! Que nada tenha mais lugar que o lugar! Deus! faz que tudo tenha lugar!]. quando somente o lugar poderá, em um horizonte suspenso e aberto, ter lugar.

Enfim, o problema da perspectiva parece não se apresentar aqui apenas como metáfora, mas como dispositivo de enunciação e agenciamento que fornece uma entrada privilegiada para acompanhar os trânsitos de Novarina por entre a diversidade de materiais e contextos por ele postos em circulação. Nesse sentido, as formulações de Novarina que parecem melhor elucidar a perspectiva em Morada frágil são as realizadas em A ótica das forças (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p.). Nesse texto, o teatro aparece como “lugar de decomposição espectral” (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p., p. 46), no qual o discurso de Novarina parece não se deixar localizar plenamente em nenhuma das posições dadas, atravessando aspectos de uma negatividade “dialética”, de algo como o ser-para-a-morte, de um vitalismo dinâmico, reabertos em contato com a reabertura da perspectiva renascentista. A tônica do teatro será a do “combate”, a da noção de uma “guerra de signos”, tal como o mundo se mostra como atualização contínua de origens múltiplas, ou geometrias virtuais contínua e parcialmente encarnadas:

Procurar as forças, o dispêndio, o fluxo, a tensão, o combate: coisas e linguagem, matéria e nada. É preciso expelir os polos, procurar as oposições, escutar o movimento [...]. Não mais pensar a Linguagem fora de um drama e de uma guerra de signos; não mais pensar a Geometria fora do tempo e do combate das formas, e do desdobrar colorido das figuras [...] Trocamos de ponto de vista a cada palavra. É preciso retornar sempre à análise ótica do teatro. O teatro como lugar de decomposição espectral, lugar de desfazimento humano - nada do lugar do apodrecimento, não! - mas o lugar da análise da luz. Analisar a figura humana decompondo-a em planos agudos, reversos, faces e feixes, braçadas de ritmos... E, no entanto, há um traço simples como na luz e como nas passacaglias e as fugas, onde a dispersão reúne, ou o voo em estouros vem reforçar a perspectiva - onde o esparso ordena ao caos que se articule. (NOVARINA, 2009bNOVARINA, Valère. L’envers de l’esprit. Paris: P.O., 2009b. 208 p., p. 38, 42 e 46).

Agradecimentos

O autor declara que este trabalho é resultado da pesquisa de pós-doutorado realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo FAPESP n. 2019/13591-3). Os editores de Alea agradecemos ao órgão de fomento à pesquisa. Seu apoio ao pesquisador é também um apoio à divulgação de pesquisa de qualidade em nossa revista.

Referências

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  • VENTURI, Lionello. Piero della Francesca Lausanne: Skira, 1954. 128 p.
  • 1
  • 2
    Angela Leite Lopes (2017LOPES, Angela Leite. Traduzindo Novarina: cena, pintura e pensamento. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017. 128 p.) inicia seu estudo mais completo sobre Novarina apontando para essa proposição.
  • 3
    Para um panorama da diversidade dos paradigmas da perspectiva e sua localização transcontextual no Renascimento italiano, ver Alloa (2016ALLOA, Emmanuel. Florence 1425: Le stade de mirroir de la peinture. In: CARERI, Giovanni; DIDI-HUBERMAN, Georges. Hubert Damisch, l’art au travail. Paris: Éditions Mimésis, 2016. p. 13-32.).
  • 4
    Da “distância intransponível” que marca a teatralidade intrínseca ao dispositivo perspectivo clássico (DAMISCH, 2012DAMISCH, Hubert. L’origine de la perspective. Paris: Flammarion, 2012. 474 p., p. 392) à problemática da “absorção” do espectador (FRIED, 1980FRIED, Michael. Absorption and theatricality: painting and beholder in the age of Diderot. Los Angeles: University of California Press, 1980. 266 p.), e desta às transformações espaço da obra a partir dos anos 1960 (FRIED, 1998FRIED, Michael. Art and objecthood. In: FRIED, Michael. Art and Objecthood: essays and reviews. Chicago: University of Chicago Press, 1998. p. 148-172.).
  • 5
    Ver “O olhar do caracol”, em Arasse (2000ARASSE, Daniel. On n’y voit rien. Paris: Éditions Denoel, 2000. 216 p.).
  • 6
    Maingueneau define como “cenografia o “processo fundador” que é também a “inscrição legitimadora de um texto”, algo que se mostra pela cena sem ser dito em cena, “ao mesmo tempo origem do discurso e aquilo que engendra esse mesmo discurso” (MAINGUENEAU, 2012MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2012. 336 p., p. 249-265).
  • 7
  • 8
    Ao contrário de Montelfeltro, a presença de Judas no quadro é puramente imaginária. Louis de Funès foi de fato um ator cômico francês, no entanto apropriado ao longo de diversos textos de Novarina como figura falante reinventada.
  • 9
    NOVARINA, 2009, p. 76.
  • 10
    Leon Battista Alberti foi responsável por uma sistematização pioneira do paradigma da perspectiva, onde a linha do disegno ocupa a posição estruturante indisputável. Tal sistematização, no entanto, já se complicou nesse mesmo momento, com a presença coetânea de outros métodos, um deles concebido por Della Francesca, (EVANS, 2000EVANS, Robin. “Piero’s heads”. In: EVANS, Robin. The projective cast. Architecture and its three geometries. Massachusetts: MIT Press, 2000. p. 123-178., p. 158), e diretamente problematizada depois por Leonardo da Vinci, que sobrepôs à perspectiva linear, uma perspectiva da atmosfera e uma perspectiva da cor (DAMISCH, 1972DAMISCH, Hubert. Théorie du nuage. Paris: Seuil, 1972. 399 p., p. 269).
  • 11
    Distorção do célebre verso mallarmeano operada em Le vrai sang: “Dieu, s’il vous plaît! que rien n’ait plus lieu que le lieu! Dieu! fais que tout ait lieu!” [Deus, por favor! Que nada tenha mais lugar que o lugar! Deus! faz que tudo tenha lugar!].
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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