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Sociologia da produção do conhecimento biomédico e em saúde

Sociologias traz em seu dossiê neste número 50 o tema da produção de conhecimento biomédico e em saúde, inaugurando esta temática na revista. As mudanças tecnocientíficas, assim como a emergência de novos arranjos sociais na maneira de fazer pesquisa e na formulação das agendas de saúde têm produzido um grande interesse no campo das Ciências Sociais, particularmente da Sociologia. Trabalhos recentes nestas áreas de estudo - e também neste dossiê - destacam as principais transformações na área médica e da saúde, no padrão de financiamento à pesquisa e à sua plataforma tecnocientífica, assim como nas implicações sociopolíticas dos desenvolvimentos nessas áreas, envolvendo bioética, possibilidades e limites éticos da pesquisa clínica, implicações de sexo e gênero na pesquisa científica, políticas de saúde, poder econômico das Big Pharmas, acesso a direitos, bem comum e direitos coletivos versus direitos individuais, entre outras questões que têm mobilizado intensos debates e controvérsias (ver, por exemplo, Bijker, 2017BIJKER, Wiebe. Constructing worlds: reflections on science, technology and democracy (and a plea for bold modesty). Engaging Science, Technology, and Society, v. 3, p. 315-31, 2017.; Callon; Lascoumes; Barthe, 2001CALLON, Michel; LASCOUMES, Pierre; BARTHE, Yannick. Agir dans un monde incertain. Essai sur la démocratie technique. Paris: Le Seuil, 2001. ; Jasanoff, 2003JASANOFF, Sheila. Technologies of humility: citizen participation in governing science. Minerva, v. 41, p. 223-44, 2003.; Schiebinger, 2007SCHIEBINGER, Londa. Nature’s body: gender in the making of modern science. Nova Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 2004.).

De modo geral, os artigos que integram este dossiê abordam o tema a partir de enquadramentos analíticos diversos, destacando-se aqueles no campo dos estudos sociais da ciência e da tecnologia (ESCT)1 1 No número 26, em 2011, a revista Sociologias apresentou um dossiê no tema dos estudos em ciência, tecnologia e sociedade (CTS), em diversas abordagens. Artigos de autores nacionais e internacionais destacaram as tendências da agenda de pesquisa nesta área de estudos trazendo debates e reflexões que circulam em torno das principais controvérsias sociais contemporâneas com forte componente científico e tecnológico: questões energéticas, mudanças climáticas, poluição e rejeitos industriais, saúde humana, alimentos geneticamente modificados, células-tronco e terapias gênicas, segurança alimentar e do uso de “recursos naturais”, entre outras (Almeida; Premebida; Neves, 2011). , particularmente em uma sociologia da produção do conhecimento biomédico e em saúde contemporâneo.

Conforme os organizadores deste dossiê, Maria Conceição da Costa e Renan Gonçalves Leonel da Silva, as mudanças tecnocientíficas na produção do conhecimento biomédico foram fortemente influenciadas por dois movimentos: o primeiro deles, que resultou também numa mudança de paradigma epistemológico, foi a idealização do modelo em hélice dupla da estrutura do DNA nos anos cinquenta, difundindo uma nova forma de compreender a vida biológica a partir de uma nova lógica de reprodução e crescimento celular; o segundo, nos anos setenta, foi a emergência das chamadas tecnologias de informação e comunicação (novas técnicas de computação e análise de dados) no desenvolvimento de novas agendas de pesquisa biomédica, alterando sobremaneira as formas como os pesquisadores passaram a “fazer ciência” na área biomédica.

Em face do exposto, os últimos anos do século XX constituíram um momento importante para o questionamento sobre o conhecimento médico por parte das Ciências Sociais e da Sociologia. Nos anos setenta, Berger e Luckman (1967 apudCosta; Silva, 2019COSTA, Maria Conceição da; SILVA, Renan Gonçalves L. da. A dinâmica do conhecimento biomédico e em saúde: uma interpretação sociológica. Sociologias, v. 21, n. 50, p. 18-47, 2019.) já influenciavam essa reflexão, avançando a ideia de mundo social constituído pela reprodução de significados e conhecimento. Também os trabalhos de Michel Foucault tornaram-se particularmente importantes para a problematização da medicina e da saúde neste período, implicando em uma importante linha de pesquisa sobre a saúde e seus significados éticos e sociopolíticos nas décadas seguintes. Os movimentos mencionados acima tiveram grande repercussão nas pesquisas na área biomédica e da saúde - e alhures -, impulsionada também pelos resultados do Projeto Genoma, na virada do século XXI, e suas implicações éticas, sociais e políticas globais e em contextos regionais e locais, permitindo o surgimento de novas questões. As reflexões em torno da globalização e da organização da pesquisa biomédica trouxeram resultados destacáveis nas duas primeiras décadas deste século, com a emergência de vasta bibliografia nas ciências sociais - nacional e internacional -, sugerindo um aprofundamento da hierarquia Norte - Sul. O presente dossiê traz análises que contribuem neste sentido.

Coincidindo com seus organizadores, acreditamos que o dossiê reúne um excelente e atual material de pesquisa sociológica e multidisciplinar, que tenta resgatar as críticas fundamentais sobre o processo complexo de construção social do conhecimento biomédico contemporâneo, seja decorrente das práticas científicas, seja do aprendizado na produção e geração de inovações tecnológicas aplicadas à saúde humana.

Este dossiê, enfim, quer contribuir para a agenda de pesquisa atual no tema proposto, ajudando a avançar a contribuição dos cientistas sociais para a produção de conhecimento e inovação biomédicos coerentes com as necessidades, a diversidade e os contextos socio-históricos humanos.

Na seção Artigos, este número de Sociologias traz novas contribuições à teoria social a partir de diferentes áreas da sociologia, no trabalho de pesquisadores e pesquisadoras do Brasil e do Peru. Ao resgatar elementos da teoria sociológica utilizados por Florestan Fernandes para o estudo da sociedade brasileira, Duarcides Ferreira Mariosa, no artigo “Florestan Fernandes e os aspectos socio-históricos de uma integração híbrida no Brasil”, busca reconstruir interpretativamente este conceito sociológico de integração. Para tanto, Duarcides examina atentamente as obras de Florestan que tratam dos Tupinambá, dos negros e da revolução burguesa, atentando para um aspecto notório no Brasil, ou seja, que apesar da exclusão e marginalização sistemática de uma parcela considerável da população, a ordem social se manteve estável porque, segundo o autor, operava - e ainda opera - um tipo especial de integração entre os brasileiros, que muito tem contribuído para impedir qualquer tipo de transformação ou revolução social mais profunda.

Manoela Hoffmann Oliveira, em seu artigo “O lugar de Goethe no alvorecer do socialismo”, trata a controversa relação entre o socialismo utópico e o Goethe tardio (1805-1832), discutindo aspectos da história social de fins do século XVIII e primeiras três décadas do século XIX, enfatizando o socialismo nascido imediatamente das lutas da Revolução Francesa. Analisa também a presença do ideário socialista em Goethe a partir de exemplos extraídos do último romance do autor, Wilhelm Meisters Wanderjahre oder Die Entsagenden (1829), e em asserções goethianas colhidas de diversas fontes.

Já no campo da sociologia do trabalho, Thays Wolfarth Mossi, em seu artigo intitulado “Lutas trabalhistas como lutas minoritárias: a questão da dignidade do trabalhador terceirizado”, examina a condição de trabalhadores terceirizados pela ótica do reconhecimento. Em sua pesquisa a autora identifica que, face à terceirização, além das tradicionais reivindicações por direitos sociais e regulação da economia pelo Estado, de modo a garantir uma redistribuição mais justa de bens e oportunidades nas sociedades capitalistas, as lutas trabalhistas enfrentam o desafio de articular demandas pelo respeito à dignidade humana dos trabalhadores terceirizados. Assim, essas lutas se aproximariam da lógica das lutas minoritárias, expandindo o conteúdo de justiça das lutas trabalhistas para além das tradicionais demandas redistributivas e representativas, e trazendo a questão de classes para o domínio simbólico da moral.

Por sua vez, o artigo “Sociedad, individualismo y modernidad en el Peru”, de Julio Mejía Navarrete, analisa o caráter singular da constituição do individualismo de origem popular e cholo no Peru contemporâneo, tentando ressaltar algumas possíveis tendências. Segundo o autor, os antecedentes do individualismo cholo do princípio do século passado se apoiou na cultura andina que teria facilitado seu avanço e freado a desordem social. A expansão do individualismo social, como resultado de massivas migrações andinas nos anos setenta, teria impulsionado a crença no progresso pessoal como um legado comunal na formação das favelas e na difusão da informalidade. O que, enfim, aponta o autor é que os desenvolvimentos possíveis do individualismo e do comunalismo popular peruano teriam se movido a partir de dinâmicas próprias, que enlaçam modernidade e legado cultural andino.

Já a seção resenhas traz análises de três relevantes obras recentes. A primeira resenha, de autoria de Camila Ferreira Silva e Rodrigo de Macedo Lopes, tratando de discutir o lugar do indivíduo na sociologia, examina o livro de Gabriele Rosenthal (o primeiro da autora em português do Brasil), “História de vida vivenciada e história de vida narrada: Gestalt e estrutura de autorepresentações biográficas”, publicado em 2017. A análise concentra-se no exercício intelectual de Rosenthal para situar as histórias de vida e as narrativas biográficas nos horizontes epistemológico, teórico, metodológico e dos debates da Sociologia, buscando definir o lugar da obra resenhada no cenário brasileiro das ciências sociais.

Gabriel Peters discute a mudança de perspectiva de Peter L. Berger quanto à relação entre modernidade e religião, com base na análise do livro recente deste autor intitulado “Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista”, de 2017. Peters observa a substituição empreendida por Berger de sua teoria da secularização por uma teoria do pluralismo religioso, e explora criticamente alguns aspectos identificados como mais problemáticos nos argumentos de Berger para sua proposta do pluralismo.

Por fim, Nadège Mézie traz o tema da imigração, abordado na perspectiva da integração de uma família argelina na França, na obra de Stéphane Beaud intitulada “La France des Belhoumi. Portraits de famille (1977-2017)”, de 2018. Neste livro, Beaud traça a trajetória dos membros de uma família de imigrantes argelinos instalados na França desde os anos 1970. Mézie analisa a obra contrapondo-a a trabalhos de outros autores como Monique Buisson e Bernard Lahire e aproximando-a a trabalhos de pesquisadores brasileiros sobre temas de mobilidade social, integração de filhos de imigrantes e sucesso escolar de crianças de classes populares.

No geral, a coleção de trabalhos publicados neste número de Sociologias traz contribuições valiosas para a reflexão sobre temas atuais e relevantes no campo da sociologia.

Tenham todos boa leitura.

O Editor

Referências

  • ALMEIDA, Jalcione; PREMEBIDA, Adriano; NEVES, Fabrício M. Apresentação. Dossiê Estudos sociais em ciência e tecnologia. Sociologias, v. 13, n. 26, p. 14-21, 2011.
  • BIJKER, Wiebe. Constructing worlds: reflections on science, technology and democracy (and a plea for bold modesty). Engaging Science, Technology, and Society, v. 3, p. 315-31, 2017.
  • CALLON, Michel; LASCOUMES, Pierre; BARTHE, Yannick. Agir dans un monde incertain. Essai sur la démocratie technique. Paris: Le Seuil, 2001.
  • COSTA, Maria Conceição da; SILVA, Renan Gonçalves L. da. A dinâmica do conhecimento biomédico e em saúde: uma interpretação sociológica. Sociologias, v. 21, n. 50, p. 18-47, 2019.
  • JASANOFF, Sheila. Technologies of humility: citizen participation in governing science. Minerva, v. 41, p. 223-44, 2003.
  • SCHIEBINGER, Londa. Nature’s body: gender in the making of modern science. Nova Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 2004.
  • 1
    No número 26, em 2011, a revista Sociologias apresentou um dossiê no tema dos estudos em ciência, tecnologia e sociedade (CTS), em diversas abordagens. Artigos de autores nacionais e internacionais destacaram as tendências da agenda de pesquisa nesta área de estudos trazendo debates e reflexões que circulam em torno das principais controvérsias sociais contemporâneas com forte componente científico e tecnológico: questões energéticas, mudanças climáticas, poluição e rejeitos industriais, saúde humana, alimentos geneticamente modificados, células-tronco e terapias gênicas, segurança alimentar e do uso de “recursos naturais”, entre outras (Almeida; Premebida; Neves, 2011ALMEIDA, Jalcione; PREMEBIDA, Adriano; NEVES, Fabrício M. Apresentação. Dossiê Estudos sociais em ciência e tecnologia. Sociologias, v. 13, n. 26, p. 14-21, 2011.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019
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