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“Como se Deus não existisse”: da secularização ao pluralismo na sociologia da religião de Peter Berger

“As if God did not exist”: from secularization to pluralism in Peter Berger’s Sociology of Religion

BERGER, Peter L.. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.

Resumo

Neste livro, Peter Berger relata como sua perspectiva quanto à relação entre modernidade e religião se transformou, ao longo das últimas décadas, à luz de desenvolvimentos socio-históricos transcorridos ao redor do mundo. Tal mudança de perspectiva o levou a substituir sua anterior teoria da secularização por uma teoria do pluralismo. Enquanto a primeira pressupunha que a modernidade provoca necessariamente um declínio da religião, tanto na ordem institucional como nas consciências individuais, a segunda sustenta que a transformação fundamental provocada pela modernização é uma adaptação multiforme da religião à pluralidade moderna de discursos, visões de mundo e esferas institucionais. Em vez de cenário de uma tendência ao desaparecimento da religião, a modernidade seria marcada pela coexistência entre o discurso secular e diferentes discursos religiosos, os quais se apresentam aos indivíduos como opções a serem escolhidas, não como pressupostos naturais e autoevidentes. Com base nas críticas ao texto de Berger feitas por outros três estudiosos da religião, cujos comentários estão inclusos no livro, a resenha também explora alguns dos aspectos mais problemáticos dos argumentos bergerianos. Dois destes aspectos recebem especial ênfase: o tratamento insuficiente que o sociólogo austríaco empresta à dimensão conflitual das “barganhas” político-culturais inerentes ao pluralismo; a tensão mal resolvida entre sua afirmação da vitalidade continuada da religião no mundo moderno, de um lado, e seu reconhecimento de que as crenças religiosas perderam seu estatuto de certezas autoevidentes, de outro.

Palavras-chave:
Peter Berger; Religião; Modernidade; Secularização; Pluralismo

Abstract

In this book, Peter Berger reports on how his perspective on the relation between modernity and religion has changed over the last decades, in the light of social-historical developments that have unfolded throughout the world. This change of perspective has led him to replace his previous theory of secularization with a theory of pluralism. While the former presupposed that modernity leads necessarily to a religious decline, both at the institutional order as well as within individual consciousness, the latter sustains that the fundamental transformation provoked by modernization is a multiform adaptation of religion to the modern plurality of discourses, worldviews and institutional spheres. Rather than the setting of a tendency towards the disappearance of religion, modernity would be marked by the coexistence between secular discourse and different religious discourses, which present themselves to individuals as options to be chosen, not as natural and self-evident presuppositions. Based on critiques of Berger’s text advanced by three other religion scholars, whose comments are included in the book, the review also explores some of the more problematic aspects of Berger’s arguments. Two of these aspects receive a special emphasis: the Austrian sociologist’s insufficient attention to the conflictual dimension of the cultural-political bargaining inherent in pluralism; the ill-resolved tension between his affirmation of the continuing vitality of religion in the modern world, on the one hand, and his acknowledgment that such beliefs have lost their status of self-evident certainties, on the other.

Keywords:
Peter Berger; Religion; Modernity; Secularization; Pluralism

Nessa obra, originalmente publicada em 2014, Peter Berger relata como sua perspectiva quanto à relação entre modernidade e religião se transformou, ao longo das últimas décadas, à luz de desenvolvimentos socio-históricos transcorridos ao redor do mundo. Tais desenvolvimentos incluem, por exemplo, a “ascensão meteórica” (p. 12) do pentecostalismo nos Estados Unidos e no Sul Global (Brasil incluso), assim como “os intensos debates no mundo muçulmano sobre a relação do Islã com a modernidade” (p. 13). Segundo o testemunho do autor, sua mudança de visão quanto ao papel da religião na sociedade moderna, no que toca tanto ao seu âmbito institucional quanto às consciências dos seus membros, foi largamente compartilhada por outros sociólogos do campo. Grosso modo, essa mudança pode ser resumida como a substituição de uma teoria da secularização, conforme a qual a modernidade provocaria necessariamente um declínio da religião naqueles dois domínios (i.e., nas subjetividades individuais e na ordem institucional), por uma teoria do pluralismo, segundo a qual a transformação fundamental provocada pela modernização é uma adaptação multiforme da religião à pluralidade de discursos, visões de mundo e esferas institucionais. Em vez de palco de uma tendência ao desaparecimento da religião, a modernidade seria marcada pela coexistência entre o discurso secular e diferentes discursos religiosos, os quais se apresentam aos indivíduos como opções a serem escolhidas, não como pressupostos naturais e autoevidentes. A adaptação da religião ao pluralismo moderno é ela própria plural nas suas formas, o que resulta, diz Berger com um aceno a Eisenstadt (p. 13), das múltiplas feições institucionais e culturais assumidas pela modernidade em diferentes sociedades.

Uma análise detalhada das consequências do pluralismo é, talvez, o principal diferencial que Os múltiplos altares da modernidade traz em relação a outras obras nas quais Berger já criticara seu próprio diagnóstico anterior da modernização como força necessariamente secularizadora (p.ex., Berger, 2003BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 2003. [1967]). Se a expressão “A dessecularização do mundo”, título retumbante da obra em que Berger anunciou pela primeira vez sua mudança de opinião (1999BERGER, Peter. The desecularization of the world: a global overview. In: BERGER, Peter. The desecularization of the world: resurgent religion and world politics. Washington: Grand Rapids, Ethics and Public Policy Center/Eerdmans, 1999, p. 1-18.; cf. Mariz, 2000MARIZ, Cecília L. Secularização e dessecularização: comentários a um texto de Peter Berger. Religião & Sociedade, v. 21, n. 1, p. 25-39, 2000.), poderia sugerir uma substituição unilateral da teoria da secularização por uma teoria da “ressacralização”, a categoria analítica do “pluralismo” corrige essa impressão de dualismo simplista, ao capturar amálgamas modernos entre tendências secularizantes e dessecularizantes. O pluralismo consiste na situação socio-histórica em que “pessoas de diferentes etnias, cosmovisões e moralidades vivem juntas pacificamente e interagem amigavelmente” (p. 20). A coexistência de variadas visões de mundo e orientações de vida só pode ser descrita como “amigável”, segundo Berger, quando tais visões e orientações estabelecem um diálogo duradouro sobre uma multiplicidade de temas. Tal conversação sociocultural distinguiria condições históricas genuinamente pluralistas dos cenários em que a coexistência entre diferentes se reduz essencialmente à dominação (p.ex., na relação de colonos europeus com escravizados africanos) ou a um intercâmbio puramente exterior (p.ex., na transação comercial entre membros de comunidades que, quanto a quaisquer outros propósitos, permanecem segregadas entre si). Nesse sentido, se a exposição a agentes dotados de diferentes visões de mundo já é suficiente para gerar, nos membros de uma sociedade internamente plural, um mínimo de consciência quanto à relatividade da própria cosmovisão - i.e., ao fato de que ela não é naturalmente estabelecida nem universalmente partilhada -, a vigência do pluralismo como condição social dependeria da adição daquele componente conversacional. Berger toma essa dimensão dialógica como fundamental porque dela derivam, mais cedo ou mais tarde, os fenômenos cognitivos de “barganha” (p. 22) e “contaminação” (p. 20), pelos quais diferentes visões de mundo se ajustam umas às outras (p.ex., os participantes de uma transação comercial concordam quanto à irrelevância situacional de suas respectivas denominações religiosas) e se misturam umas às outras (p.ex., nas sínteses cosmológicas operadas pelo sincretismo religioso).

O pluralismo não é apanágio exclusivo das sociedades modernas, mas uma condição encontradiça em outros cenários socio-históricos, como os “centros urbanos do Império Romano tardio” (p. 25) ou a Espanha sob ocupação moura. Ao longo da história pré-moderna, a própria forma social da “cidade” sempre foi, com efeito, inseparável de alguma dose de convivência entre heterogêneos que negociam suas diferenças e influenciam uns aos outros. Por outro lado, não há dúvida de que as tendências características da modernidade (urbanização, industrialização, mercadorização, burocratização etc.) são poderosos agentes de expansão e radicalização do pluralismo, o mesmo acontecendo com as tecnologias de transporte e comunicação que impulsionam a “globalização” daquelas tendências modernas para além do estado-nação. Debruçando-se sobre a contemporaneidade, Berger analisa, portanto, uma situação em que “o pluralismo se torna globalizado” e “todo o planeta se torna”, por assim dizer, como “uma enorme cidade” (p. 26). Dois aspectos das sociedades modernas são particularmente importantes ao diagnóstico bergeriano sobre a religião na era hodierna. O primeiro, como sabem os leitores de Durkheim, é seu alto grau de autonomização e diferenciação institucional, cujo correlato nas subjetividades individuais consiste na capacidade de circular em “realidades múltiplas” (Schütz), isto é, em esferas de experiência reguladas por princípios distintos (p.ex., uma consulta médica e um rito religioso). O segundo é o fato de que a modernidade introduz a possibilidade e, muitas vezes, a obrigação da escolha em diversos setores de vida outrora experienciados e reproduzidos pelos indivíduos como destino, isto é, segundo ditames da tradição tidos por naturais e autoevidentes. Tais setores incluem do casamento ao número de filhos, dos meios de entretenimento até, é claro, as crenças religiosas1 1 Leitores que descubram Berger através do presente livro poderão achar que ele apenas repete, sem citar, teses popularizadas pelos chamados sociólogos da “modernização reflexiva”, como Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash (1997). Na verdade, o essencial do diagnóstico bergeriano já estava delineado desde 1973, ano da publicação de seu livro sobre “modernização e consciência” com Brigitte Berger e Hansfried Kellner: The homeless mind (1973). A precedência de Berger foi notada por Vandenberghe (2014, p. 296). .

Como outros tantos observadores da condição moderna, Berger sublinha que esta ampliação do espaço de escolha no desenho de biografias individuais tem implicações existenciais ambivalentes. A dissolução de caminhos de vida outrora pré-determinados pode gerar “um estimulante sentido de libertação” (p. 32), mas também, e sobretudo com a passagem do tempo, “uma inquietação crescente” (p. 33) em face da ausência de receitas seguras quanto a como viver. O sociólogo austríaco também pisa em terreno já conhecido quando identifica duas respostas rivais à insegurança existencial engendrada pela modernidade. O fundamentalismo busca o reestabelecimento da certeza cognitiva e moral, em um projeto que pode assumir feitios múltiplos: religiosos ou seculares, de restauração de um passado perdido ou instalação de um futuro previsto etc. O relativismo não apenas sustenta como assume, na prática, a tese de que a modernidade teria revelado a impossibilidade mesma de se chegar a certezas cognitivas e normativas absolutas. Tanto o fundamentalismo quanto o relativismo podem assumir sistematizações teóricas, mas são historicamente influentes sobretudo como orientações práticas mantidas pelos agentes leigos na vida cotidiana.

Armado o esquema de sua análise, Berger reconta sua mudança de concepção quanto à relação entre modernidade e religião, concepção segundo a qual a primeira não leva necessariamente à secularização, mas ao pluralismo. O autor continua a reconhecer tendências históricas comumente associadas à tese da secularização moderna, como a emergência de esferas institucionais que operam independentemente de compromissos religiosos (p.ex., trocas comerciais, aparelhos burocráticos, sistemas de engenharia etc.). Essa exclusão da religião de alguns dos domínios institucionais da sociedade moderna ocorre de par com o enfraquecimento das certezas engendrado pelo pluralismo. Não obstante, a entrada da escolha em um âmbito até então vivido como destino certo não leva necessariamente ao desaparecimento das crenças religiosas, mas a uma transformação nos modos pelos quais tais crenças são assumidas e sustentadas: “o pluralismo muda mais o ‘como’ do que o ‘quê’ da crença” (p. 74). Ademais, ao articular o diagnóstico macroscópico da moderna diferenciação institucional a um senso schütziano de como a subjetividade individual transita entre “realidades múltiplas”, Berger defende que os indivíduos modernos podem ser intensamente religiosos e, ainda assim, operar eficazmente em certas esferas institucionais “como se Deus não existisse” - “etsi Deus non daretur”, na expressão utilizada pelo jurista holandês Hugo Grotius já no século XVII (p. 100).

O erro da teoria da secularização seria o de afirmar, com base no inegável expurgo da religião de amplos setores da vida moderna, que a religião teria sido excluída também do domínio existencial no qual os atores humanos enfrentam questões de “interesse último” (p. 120), como o significado da própria vida e do universo. Uma das fontes daquele erro seria uma concepção da subjetividade humana que superestima o seu grau de coerência ou integração interna, superestimação particularmente inadequada a um cenário socio-histórico no qual os indivíduos circulam em “realidades múltiplas” com diferentes “sistemas de relevância”, “estilos cognitivos” e “tensões de consciência”2 2 Todas essas noções derivam, é claro, da fenomenologia social de Schütz. Berger aplica ao domínio da religião um estilo de análise fenomenológica que seu ex-professor havia exemplificado, mais frequentemente, com ilustrações relativas a experiências estéticas, oníricas ou intelectuais que implicam um escape à “realidade suprema” da vida cotidiana (p. 116). Vale dizer, no entanto, que o próprio Schütz (1967, p. 229-30) colheu inspiração do conceito de “subuniversos” de William James - este sim profundamente interessado, como é sabido, na experiência religiosa em suas variedades. . Como correlato da diferenciação institucional da modernidade, a consciência do indivíduo moderno aprende a manejar discursos religiosos e seculares conforme suas diferentes relevâncias contextuais. Eis o que permite, por exemplo, que um indivíduo ore pela cura de sua doença sem deixar de se submeter aos procedimentos cirúrgicos que o discurso secular da medicina julga necessários para tal cura ou, ainda, que as diferentes confissões religiosas de cirurgiões ao redor do mundo sejam largamente irrelevantes quando se trata de suas respectivas condutas na sala de operações.

Tomada como uma competência do habitante da modernidade, essa administração subjetiva e prática do pluralismo de discursos faculta a certas religiões não apenas coexistirem com a modernização, mas operarem, elas próprias, como forças modernizadoras. Berger toma como agentes modernizadores, por exemplo, as religiões pentecostais que tanto cresceram no Sul global das últimas décadas, inclusive no Brasil. Juntamente com crenças que poderiam facilmente ser tomadas como superstições pré-modernas (p.ex., em curas miraculosas), tais religiões promoveriam, no mesmo pacote, diversos traços de um ethos característico do capitalismo moderno: “sobriedade, fidelidade conjugal, um estilo de trabalho disciplinado e a poupança de recursos em vez do consumo imediato” (p. 126-7). Ao mesmo tempo, Berger reconhece que a administração conjunta de discursos religiosos e seculares, acompanhada da consciência de múltiplas opções religiosas, impõem uma dose de tensão e conflito interior mesmo aos fiéis mais devotos:

Esta é [...] a diferença principal entre uma sociedade pré-moderna e aquela formada pela dinâmica relativizadora do pluralismo. Na última situação, mesmo as convicções apaixonadamente afirmadas têm um subtom de dúvida. Há sempre a lembrança persistente de que a pessoa precisa decidir-se a afirmar as supostas certezas e que outras opções estão disponíveis. [...] Em termos de religião, o nosso tempo não é tanto uma era de descrença quanto uma era de dúvida (p. 130-1).

A possibilidade de escolha individual de uma religião dentre outras possíveis gera, entre diferentes denominações, uma competição pela conquista não coercitiva de fiéis, assim como engendra normas para regular tal competição (p.ex., nos “acordos entre comunidades confessionais protestantes para não roubar membros umas das outras” [p. 103]). Esta circunstância socio-histórica particular torna úteis, reconhece Berger, abordagens da religião como um “mercado” em que os “consumidores” escolhem segundo um cálculo racional de custos e benefícios, ainda que o sociólogo austríaco questione tal perspectiva como uma teoria geral da religião. Essa mesma condição social também explica a proliferação de sínteses ecléticas de fé, nas quais os indivíduos montam suas cosmovisões religiosas pela combinação de elementos de diferentes religiões. Sempre articulando o âmbito da consciência individual ao domínio institucional, Berger nota que o paralelo da multiplicidade de discursos no interior da subjetividade é a multiplicidade de arranjos institucionais assumida pela própria modernidade, graças à sua constituição seletiva em diferentes cenários socioculturais. Um exemplo magno dessa seletividade da modernidade é colhido por Berger da história de “modernização conservadora” do Japão durante o regime Meiji no século XIX, caracterizado pela agressiva “adoção de um grande pacote de tecnologias e instituições ‘bárbaras’” (estradas de ferro, infraestrutura comercial, sistema de educação pública universalizado etc.), paradoxalmente combinada à intenção de conservação das tradições culturais japonesas. No todo, tratava-se “de transformar o Japão num Estado moderno capaz de afirmar o seu poder internacionalmente e defender os valores fundamentais da sua cultura” (p. 142-3).

Possivelmente devido à sua intenção primordial de salientar a compatibilidade entre os arranjos institucionais modernos, de um lado, e a vitalidade continuada das religiões no mundo atual, de outro, Berger termina por oferecer um retrato um tanto aguado dos conflitos entre dinâmicas secularizantes e dessecularizantes. Sua descrição de batalhas jurídicas entre agendas religiosas e seculares, como aquelas que grassaram quanto à proposta de ensino de teorias do “design inteligente” juntamente com a biologia evolucionária nas escolas públicas dos Estados Unidos, contrasta com outros trechos do livro pelo seu tom surpreendentemente desengajado, quase blasé (p. 154-6). É somente no capítulo final, dedicado à “administração política do pluralismo” (p. 158), que Berger mostra uma sensibilidade um pouco mais agonística quanto à relação entre modernidade e religião. Em uma sociedade pluralista, o Estado é obrigado a definir seu relacionamento com a religiosidade como tal, bem como a regular as relações entre as diferentes religiões que vigem no seu interior. Como programa político, já dissemos, o pluralismo trilha uma via média entre as posições extremas do fundamentalismo e do relativismo. Quando encontra resistências, as quais podem advir inclusive (mas não só) de fundamentalismos rivais, o projeto fundamentalista ameaça mergulhar a sociedade em um estado de conflito permanente. O “sucesso” do projeto fundamentalista, por outro lado, aniquila o pluralismo somente pelo recurso à “coerção totalitária” (p. 44), como ocorreria na Arábia Saudita e, com base em um sistema de crenças distinto, na Coreia do Norte. Quanto ao relativismo, ele preserva a coexistência de visões de mundo plurais, mas às custas, diz Berger em um momento durkheimiano, daquele mínimo de consenso cognitivo e moral sem o qual “nenhuma sociedade pode sobreviver” (p. 45).

As políticas de promoção do pluralismo por parte do Estado, chamadas por Berger de “fórmulas de paz” (p. 158), não se reduzem ao modelo moderno de separação Estado/Igreja (ele próprio dotado de diferentes modalidades), mas apresentam uma notável variedade histórica e cultural. Em umas poucas páginas de extraordinária erudição histórico-sociológica (p. 159-80), Berger passa várias dessas fórmulas em revista. Após um percurso intelectual que vai da Antiga Rota da Seda até o Japão da década de 1930, da conversão de Constantino até o sistema de castas na Índia, do Partido Islâmico AKP na Turquia à relação da Igreja Ortodoxa com o atual nacionalismo russo, Berger desemboca em uma sensata (e nada surpreendente) conclusão: “Nas condições modernas, é mais provável que alguma versão da separação entre Igreja e Estado venha a sustentar uma ordem política estável e humana capaz de administrar o que chamei de ‘os dois pluralismos’” [i.e., a coexistência “amigável” das religiões entre si e a coexistência destas com o discurso secular] (p. 181). Ainda que Berger sustente haver razões puramente estratégicas para que estados ao redor do globo adotem esta política, ele também a defende em termos ético-filosóficos: como expressão do respeito ao direito individual de procurar, por conta própria, uma resposta às questões existenciais últimas que se impõem aos seres humanos (p. 182).

Cerca de um terço deste livro de Peter Berger compõe-se, a bem da verdade, de comentários ao seu texto por três outros estudiosos da religião: Nancy Ammerman, Detlef Pollack e Fenggang Yang. Ammerman provê um excelente complemento crítico à perspectiva bergeriana. Se o estudo de Berger salienta o vínculo entre o que é mais micro e o que é mais macro, isto é, entre a consciência individual e os arranjos institucionais nos quais ela está embebida, Ammerman introduz o nível interacional das conversações rotineiras, dentro e fora de organizações religiosas, como um fator fundamental na persistência da crença religiosa em condições modernas. Mostrando como conversações cotidianas com pessoas religiosamente afins transbordam para os diálogos interiores dos indivíduos, a autora também pinta as narrativas de si como instrumentos fundamentais no manejo intrasubjetivo de discursos religiosos e seculares. Ademais, se Berger tende a retratar a coexistência de tais discursos na consciência individual em termos de alternância (p.ex., as respectivas tensões de consciência e estilos cognitivos que um cirurgião de profissão, judeu ortodoxo, mantém quando opera no hospital e quando ora na sinagoga), Ammerman sublinha a frequência com que crenças seculares e religiosas atuam simultaneamente (p.ex., “na pessoa que reza para que Deus guie a mão do médico” [p. 200]).

Pollak é o mais crítico dos três comentadores. O cerne da sua intervenção resume-se à ideia de que Berger permanece, no fim das contas, mais aferrado à teoria da modernização como força de secularização do que afirma estar. Se o núcleo mínimo das teorias da secularização consiste na ideia de que a modernidade leva necessariamente a um enfraquecimento da religião, e se o pluralismo religioso enfraquece as convicções religiosas na medida em que tira delas o seu caráter de certezas inquestionadas, Berger terminaria por conceder implicitamente que o pluralismo moderno leva, sim, à secularização (p. 222). Pollak também questiona a tese bergeriana de que o pluralismo afeta menos o “quê” do que o “como” da fé religiosa, objetando que o conteúdo da religião não pode ser tão facilmente separável da sua forma. Como ilustração deste ponto, o crítico nota que a coexistência das religiões entre si e com o discurso secular tende a fazer com que os conteúdos das crenças religiosas se tornem “cada vez mais vagos, difusos e indeterminados” (p. 228). Assim, por exemplo, muitos indivíduos que se definem como cristãos abraçam uma concepção mais abstrata e menos “personalizada” de Deus, afirmam que a Bíblia deve ser interpretada como alegoria em vez de narração literal ou, ainda, sustentam que a ressurreição deve ser interpretada não como revivescência da carne, mas como continuidade da “alma imortal” (p. 228).

No terceiro e último comentário, Yang se debruça sobre a China das décadas recentes para ilustrar como a secularização não ocorre por si só, por assim dizer, mas é avançada como um projeto deliberado por certos agentes influentes (p.ex., no caso chinês, “os funcionários do PCC [Partido Comunista Chinês]) e os teóricos do marxismo-leninismo-maoísmo” [p. 253]). É o fato de que a secularização consiste frequentemente em um plano intencional, levado a cabo por atores coletivos, que leva Yang a recorrer à expressão “agency-driven secularization” no livro original (2014, p. 123). Opções de tradução lusófona como “secularização dirigida pela agência” ou “secularização movida pela ação” podem até ser estilisticamente desajeitadas, mas transmitiriam o sentido técnico tencionado por Yang muito melhor do que a infeliz escolha da expressão “secularização por agenciamento” (p. 235) na tradução brasileira. O autor pretendia simplesmente enfatizar a secularização como ação ou agência deliberada de certos indivíduos ou grupos, não o “agenciamento” de certos atores por outros, seja no sentido que a noção tem no senso comum, seja na acepção técnica que a palavra recebe em abordagens deleuzianas e neodeleuzianas (as quais certamente não estão entre as orientações teóricas de Yang).

Como notou Pollak no início de sua contribuição ao livro (p. 228), Berger merece elogios por uma atitude tantas vezes professada, mas em tão poucas ocasiões mantida: tendo diante de si a teoria da qual ele próprio era o mais ilustre representante, de um lado, e um montante de evidências empíricas que pareciam desmenti-la, de outro, ele preferiu render-se às evidências do que aferrar-se à sua teoria por tais ou quais artifícios ad hoc. A boa notícia é que, a despeito de sua mudança de opinião, os traços do estilo bergeriano que já agradavam em livros anteriores permanecem vivíssimos nessa obra da maturidade: argumentos e conceitos abstratos são, sem mais delongas, ilustrados com exemplos iluminadores colhidos de diversos períodos históricos e dos mais variados recantos do globo; a fluência da prosa torna a obra acessível não apenas a especialistas em sociologia da religião, mas também a leitores sem contato prévio com a tradição sociológica; finalmente, como de costume, Berger não resiste a embalar seu bom senso sociológico em tiradas espirituosas (p.ex., “mesmo os grandes místicos podem ter dificuldade de ficar extáticos no meio de um mercado” [p. 116]).

Por outro lado, é claro, tais virtudes não poderiam ser obtidas sem custos. É inevitável que discussões panorâmicas deixem de lado as nuances e complexidades inerentes aos seus assuntos. No entanto, não sei se por excesso de preocupação didática, acento retórico ou simples preguiça, a superficialidade com que Berger trata de certas questões, como a relativa à herança histórica do Iluminismo sobre a sociologia clássica, está um pouquinho aquém do aceitável em um livro destinado (também) a cientistas sociais. Uma amostra:

Como a modernidade afeta a religião? Pelo menos desde o século XVIII, admitiu-se geralmente que ela afeta a religião. Os pensadores do Iluminismo, especialmente na sua versão francesa, ficaram encantados com isso. A religião foi equiparada à superstição; ela seria varrida pela luz brilhante da razão. [...] Weber [...] também acreditava que a modernidade tinha um efeito negativo sobre a religião. Ele chamou isto de ‘o desencantamento do mundo’, enquanto a racionalidade varria os velhos mistérios” (p. 48).

Decerto, não há nada parecido, neste livro, com as sofisticadas sínteses socioteóricas presentes em A construção social da realidade (Berger; Luckmann, 1985BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes , 1985.) e na primeira parte de O dossel sagrado (Berger, 2003BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 2003.). Para dar somente um exemplo, Berger não precisara se tornar nem um pouco marxista, naquelas sínteses, para nelas alocar um papel importante para Marx, o qual forneceu a mediação teórica ao seu retrato do social como dialética histórica entre “exterioridade objetiva” (Durkheim) e “sentido subjetivo” (Weber) (Berger; Luckmann, 1985BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes , 1985., p. 34). Em contraste, como de resto acontece em outras obras da maturidade de Berger, Marx e os marxismos só aparecem neste livro como objeto de tiradas ácidas (p. 38-9) - divertidas, todas elas, mas ainda assim um bocado superficiais no que possuem de “argumento” sociológico. O marxismo, de todo modo, é somente uma dentre outras teorias agonísticas e conflituais da vida social, precisamente as que menos se fazem sentir no livro de Berger. Talvez o principal defeito da obra seja, com efeito, o de se mostrar insuficientemente atenta aos modos pelos quais, nas sociedades modernas, as “barganhas” e “contaminações” entre diferentes sistemas de crença religiosa são afetadas por disputas de poder e relações de dominação3 3 Como nos debates que opuseram o estrutural-funcionalismo parsoniano aos seus críticos na década de 1960 (Parker, 2000), o essencial obviamente não é substituir uma visão “consensualista” unilateral por uma concepção agonística igualmente unilateral, mas combiná-las em um mesmo retrato. Os comentários de Berger sobre a situação do Islã no cenário global (p. 167-74), ainda que muito breves, se aproximam um pouco mais dessa visão nuançada. .

Compreende-se. Não é possível fazer tudo, mesmo quando se está de posse de uma das mais agudas inteligências sociológicas do século XX, inteligência que continua a resplandecer mesmo para aqueles que, como tantos de seus colegas nas ciências sociais, não compartilham lhufas das visões teológicas e políticas desse despretensioso sábio austríaco4 4 Uma excelente análise das conexões e tensões provocadas pelo “pluralismo” interno à personalidade intelectual de Berger (sociólogo, teólogo, intelectual público neocon etc.) é oferecida por Hamlin (no prelo). . Sua voz fará falta.

Referências

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  • BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 2003.
  • BERGER, Peter. The many altars of modernity: toward a paradigm for religion in a pluralist age. Berlim/Boston: Walter de Gruyer, 2014.
  • BERGER, Peter L. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.
  • BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes , 1985.
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  • MARIZ, Cecília L. Secularização e dessecularização: comentários a um texto de Peter Berger. Religião & Sociedade, v. 21, n. 1, p. 25-39, 2000.
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  • SCHÜTZ, Alfred. Collected papers I: the problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1967.
  • VANDENBERGHE, Frédéric. Globalização e individualização na modernidade tardia: uma introdução teórica à sociologia da juventude. Mediações, Londrina, v. 19, n. 1, p. 265-316, jan/jun, 2014.
  • 1
    Leitores que descubram Berger através do presente livro poderão achar que ele apenas repete, sem citar, teses popularizadas pelos chamados sociólogos da “modernização reflexiva”, como Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash (1997GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: UNESP, 1997.). Na verdade, o essencial do diagnóstico bergeriano já estava delineado desde 1973, ano da publicação de seu livro sobre “modernização e consciência” com Brigitte Berger e Hansfried Kellner: The homeless mind (1973BERGER, Peter; BERGER, Brigitte.; KELLNER, Hansfried. The homeless mind: modernization and consciousness. Nova York: Random House, 1973.). A precedência de Berger foi notada por Vandenberghe (2014VANDENBERGHE, Frédéric. Globalização e individualização na modernidade tardia: uma introdução teórica à sociologia da juventude. Mediações, Londrina, v. 19, n. 1, p. 265-316, jan/jun, 2014., p. 296).
  • 2
    Todas essas noções derivam, é claro, da fenomenologia social de Schütz. Berger aplica ao domínio da religião um estilo de análise fenomenológica que seu ex-professor havia exemplificado, mais frequentemente, com ilustrações relativas a experiências estéticas, oníricas ou intelectuais que implicam um escape à “realidade suprema” da vida cotidiana (p. 116). Vale dizer, no entanto, que o próprio Schütz (1967SCHÜTZ, Alfred. Collected papers I: the problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1967., p. 229-30) colheu inspiração do conceito de “subuniversos” de William James - este sim profundamente interessado, como é sabido, na experiência religiosa em suas variedades.
  • 3
    Como nos debates que opuseram o estrutural-funcionalismo parsoniano aos seus críticos na década de 1960 (Parker, 2000PARKER, John. Structuration. Londres: Open University Press, 2000.), o essencial obviamente não é substituir uma visão “consensualista” unilateral por uma concepção agonística igualmente unilateral, mas combiná-las em um mesmo retrato. Os comentários de Berger sobre a situação do Islã no cenário global (p. 167-74), ainda que muito breves, se aproximam um pouco mais dessa visão nuançada.
  • 4
    Uma excelente análise das conexões e tensões provocadas pelo “pluralismo” interno à personalidade intelectual de Berger (sociólogo, teólogo, intelectual público neocon etc.) é oferecida por Hamlin (no prelo).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2018
  • Aceito
    04 Set 2018
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