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Corpos, emoções e risco: vias de compreensão dos modos de ação individual e coletivo

Bodies, emotions and risk: pathway for understanding individual and collective modes of action

Corps, émotions et risques : façons de comprendre les modes d'action individuels et collectifs

Resumo

Neste número da revista Sociologias, ao lado de “corpos e emoções”, soma-se a ideia de “risco” a fim de incorporar à reflexão sociológica o grau de incerteza no qual se desenrolam as relações sociais cotidianas. O corpo, do ponto de vista sociológico, é compreendido como signo das relações sociais, que encerra um conjunto de representações da vida individual e coletiva, e que compõe uma gramática que se tornou objeto particular de uma sociologia especializada constituída contemporaneamente e que já consolidou diferentes frentes de pesquisa. As emoções, por sua vez, não estão separadas do seu suporte, seu veículo expressivo, o corpo. Estas, em sociologia ou antropologia, frutos da observação e análise das relações sociais, também não podem ser tratadas como substância, entidade que antecipa ou contradiz as ações humanas, mas sim como uma dimensão da vida afetiva que se modifica constantemente por conta da infinidade de possibilidades de interação humana. Nos interstícios dos corpos e das emoções, a noção de risco nos revela as incertezas da existência individual que sempre oscila entre a vulnerabilidade e a segurança, o impulso e a sensatez. A fim de desnaturalizar e relativizar tais noções, este dossiê apresenta artigos derivados de diferentes abordagens teóricas e metodológicas empreendidas por pesquisadores do Brasil, Argentina, México e França.

Palavras-chave:
sociologia do corpo; sociologia das emoções; condutas de risco; estética e identidade; estatuto jurídico do corpo

Abstract

In this issue of Sociologias, we bring discussions around “bodies and emotions”, adding the idea of “risk”, in order to incorporate into the sociological reflection the degree of uncertainty that daily social relations entail currently. The body, from the sociological point of view, is understood as a sign of social relations, encompassing a set of representations of both individual and collective life, which composes a grammar that constituted a particular subject of a specialized field of contemporary sociology that has consolidated different research strands. Emotions, in turn, are not separate from their support, their expressive vehicle, the body. These, in sociology or anthropology, while the fruit of observation and analysis of social relations, cannot be treated either as substance, entity that anticipates or contradicts human actions, but as a dimension of affective life that is constantly changing due to the infinite possibilities of human interaction. In the interstices of bodies and emotions, the notion of risk reveals to us the uncertainties of individual existence that always oscillate between vulnerability and security, impetus and judgment. In order to denaturalize and relativize such notions, this dossier presents articles that stem from different theoretical and methodological approaches undertaken by researchers from Brazil, Argentina, Mexico and France.

Keywords:
body sociology; sociology of emotions; risk behavior; aesthetics and identity; legal status of the body

Résumé

Dans ce numéro de Sociologias, à côté de « corps et émotions », la notion de « risque » est ajoutée afin d’intégrer dans la réflexion sociologique le degré d’incertitude dans lequel se développent les relations sociales quotidiennes. Le corps, du point de vue sociologique, est compris comme un signe de relations sociales, renfermant un ensemble de représentations de la vie individuelle et collective, composant une grammaire devenue un objet particulier d'une société spécialisée dans la sociologie contemporaine et ayant déjà consolidé différents fronts de recherche. Les émotions, à leur tour, ne sont pas séparées de leur soutien, de leur véhicule expressif, le corps. Celles-ci, en sociologie ou en anthropologie, issues de l'observation et de l'analyse des relations sociales, ne peuvent être traitées ni comme une substance, comme une entité anticipant ou contredisant les actions humaines, mais comme une dimension de la vie affective en perpétuelle mutation du fait de l'infini possibilités d'interaction humaine. Dans les interstices des corps et des émotions, la notion de risque nous révèle les incertitudes de l'existence individuelle qui oscillent toujours entre vulnérabilité et sécurité, force et sagesse. Afin de dénaturaliser et de relativiser ces notions, nous présentons des articles issus de différentes approches théoriques et méthodologiques entreprises par des chercheurs du Brésil, de l’Argentine, du Mexique et de la France.

Mots-clés :
sociologie du corps; sociologie des émotions; comportement à risque; esthétique et identité; statut juridique du corps

Em 1938, Marcel Mauss, durante o Congresso Internacional de Ciências Antropológicas e Etnológicas, em Copenhague, revelou que seu tio Emile Durkheim deixava os próprios filhos chorando, sem tomá-los nos braços, para a indignação das irmãs. O infortúnio de seus primos, contado em tom de fofoca de família a seus ouvintes, serviu-lhe como exemplo, entre outros, para tratar da temática “civilização e caráter”, comparando os diferentes modos de educação, adestramento físico e afetivo de crianças ao redor do mundo. O objetivo de Mauss foi o de apresentar casos concretos de relações entre indivíduo, espaço e sociedade para examinar “quando e como (a); mentalidade coletiva se impõe e se implanta no indivíduo, e como o indivíduo é construído a partir de elementos sociais e elementos individuais de sua história biológica e social (e); como também pode agir na sociedade e como esta age sobre ele” (Mauss, - 1938 - 2004MAUSS, Marcel. Fait social et formation du caractère (1938). Sociologie et Sociétés, v. 36, n. 2, p. 135-140, 2004. doi: 10.7202/011052ar.
https://doi.org/10.7202/011052ar....
, p. 137, tradução nossa)1 1 Informações retiradas do manuscrito preparado por Marcel Mauss à ocasião de sua palestra de 1938, encontrado e organizado por Marcel Fournier, enquanto redigia seu livro sobre o autor, e publicado na revista Sociologie et sociétés (Mauss, 2004). .

Ora, se deixar crianças chorando sem acudi-las ao colo poderia ser encarado uma crueldade no círculo familiar de Durkheim, ou, à primeira vista, um experimento skinneriano em nossos dias, para Mauss correspondia a um exemplo de como corpos e emoções fazem parte de um conjunto de representações que encontram no indivíduo um espaço de realização de fenômenos sociais totais, os quais não poderiam ser reduzidos simplesmente a seu caráter biológico ou psicológico. Quando proferiu essa palestra, Mauss já havia publicado A expressão obrigatória dos sentimentos (1921)MAUSS, Marcel. L'expression obligatoire des sentiments. (Rituels oraux funéraires australiens). Journal de Psychologie, n. 18, p. 425-434, 1921., seu clássico Ensaio sobre a dádiva (1925)MAUSS, Marcel. Essai sur le don. Forme et raison de l'échange dans les sociétés archaïques. L'Année Sociologique, nouvelle série, n. 1 (1923-1924), p. 30-186, 1925., o Efeito físico no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade (1926)MAUSS, Marcel. Effet physique chez l'individu de l'idée de mort suggérée par la collectivité (Australie, Nouvelle-Zélande). Journal de Psychologie , n. 23, p. 653-669, 1926. e As técnicas do corpo (1935)MAUSS, Marcel. Les techniques du corps. Journal de Psychologie , n. 32, p. 271-293, 1935.. Durante sua palestra, anunciou que estava pronto para publicação Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de Eu (1938)MAUSS, Marcel. Une catégorie de l'esprit humain : la notion de personne, celle de "moi", un plan de travail. (Huxley Memorial Lecture 1938). Journal of the Royal Anthropological Institute, n. 68, p. 263-281, 1938.. Antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, Mauss já havia aberto, portanto, uma via de interpretação sociológica que procurava ultrapassar o dualismo entre sociedade e indivíduo, buscando em objetos até então insólitos e em sociedades ditas arcaicas uma explicação geral da vida coletiva, indagando-se a respeito das “técnicas do corpo” e do “controle das emoções”.

Neste número da revista Sociologias, ao lado de “corpos e emoções”, somamos a noção de “risco” a fim de incorporar à reflexão sociológica o grau de incerteza no qual se desenrolam as relações sociais cotidianas. Assim, encontramo-nos marchando por uma via maussiana, porém sem buscar na etnologia os fatos e exemplos que conduzem a uma reflexão sobre as relações entre indivíduo e sociedade. Não distantes no tempo nem em relação ao caráter civilizacional dos grupos sociais elencados, os objetos de pesquisa aqui reunidos são exemplos de como a reflexão contemporânea a respeito de corpos, emoções e risco permite uma multiplicidade de abordagens analíticas e teóricas em nossas sociedades ocidentais. Antes de apresentarmos um a um os artigos que compõem este dossiê, trataremos da constituição desse campo de pesquisa, de modo geral, e na América Latina especificamente.

O corpo, do ponto de vista sociológico, é compreendido como signo das relações sociais. Ele “é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (Le Breton, 1992LE BRETON, David. La sociologie du corps. Paris: PUF, 1992., p.3). Assim, encerra um conjunto de representações da vida individual e coletiva, compondo uma gramática que se tornou objeto particular de uma sociologia especializada constituída contemporaneamente e que já consolidou diferentes frentes de pesquisa. Corpo-instrumento, corpo-objeto, corpo-máquina, corpo-simbólico, corpo-arte, corpo-político, corpo-dócil, corpo-supranumerário, não corpo etc. constituem diferentes perspectivas acerca do corpo que não incluem necessariamente as emoções em seus esquemas analíticos. Entretanto, é difícil falar de emoções sem falar do corpo. Estas, em sociologia ou antropologia, frutos da observação e análise das relações sociais, não estão separadas do seu suporte, seu veículo expressivo, o corpo. Este, da mesma maneira, não se separa da pessoa, do ator social, do indivíduo real, concreto, histórico. Emoção não é substância, entidade que antecipa ou contradiz as ações humanas, mas sim uma dimensão da vida afetiva que se modifica constantemente por conta da infinidade de possibilidades de interação humana (Le Breton, 2001LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernité. Paris: PUF , 2001., p.171).

Na vida cotidiana, constituída a partir das relações entre indivíduos e grupos, o domínio do corpo e das emoções conserva uma concepção de sociedade como um organismo único, coeso, passível de controle, ao passo que a multiplicidade de corpos e de expressões que lhe são inerentes negam esse status, enfatizando os direitos dos indivíduos, sua liberdade de ser, existir e sentir nas fronteiras de um Estado que procura impor seu domínio de forma geral, homogênea e irrestrita. Gestos, caras e bocas não são reflexos de uma fisiologia pura e simples, nem mascaram intenções inconscientes ou mal resolvidas, tal qual a psicologia as compreende. Esse conjunto expressivo e afetivo corporificado é a dobradiça que sustenta o jogo de abre e fecha fisiopsicológico apropriado simbolicamente, dando sentido às ações dos sujeitos em determinados contextos sociais (Le Breton, 2001LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernité. Paris: PUF , 2001., p. 7). Tal como Barbara Rosenwein (2011ROSENWEIN, Barbara H. História das emoções: problemas e métodos. São Paulo: Letra e Voz, 2011., p. 7) nos lembra, as emoções não são entidades biológicas humanas universais. Ao contrário, elas têm história e podem ser estudadas em termos de “comunidades emocionais”, isto é, “grupos sociais cujos membros aderem às mesmas valorizações sobre as emoções e suas formas de expressão”.

Desde que Marcel Mauss fundou as bases de uma sociologia e antropologia do corpo e das emoções, pode-se afirmar que a área vem se institucionalizando nos últimos decênios, por meio de periódicos e encontros científicos. Abrangendo diversos temas sobre corpo e emoções, podem ser listadas, por exemplo, as seguintes revistas: a pioneira Quel Corps?, criada por Jean-Marie Brohm, em 1975, e editada até 1997; Body & Society, desde 1995; Body Image, desde 2004; Corps, desde 2006; Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad, desde 2009; Revista Brasileira de Sociologia da Emoção; desde 2002; e a International Journal of Body, Mind and Culture, desde 2014. No âmbito da International Sociological Association (ISA) destacam-se o Comitê de Pesquisa 54 The Body in the Social Sciences, criado em 2008, e o Grupo Temático 08 Society and Emotions, estabelecido a partir de 2016. Além dos tradicionais eventos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), que acolhem atividades em torno da temática, promove-se, neste ano de 2019, o 32º Congresso Internacional da Associação Latino-americana de Sociologia (Alas), no Peru, do qual faz parte o grupo de trabalho Sociología de los cuerpos y las emociones, presente nas edições passadas do evento desde 2007 (Koury; Scribano, 2012KOURY, Mauro G. P.; SCRIBANO, Adrian. Sociologia e antropologia dos corpos e das emoções. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, p. 645-653, 2012.).

Ao escrever Les usages sociaux du corps, Luc Boltanski (1971BOLTANSKI, Luc. Les usages sociaux du corps. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, v. 26, n. 1, p. 205-233, 1971. 10.3406/ahess.1971.422470
https://doi.org/10.3406/ahess.1971.42247...
) compara a sociologia e a etnologia do corpo a um “colóquio interdisciplinar” composto por especialistas das mais diversas áreas que, de modo artificial e arbitrário, encontram pontos comuns em torno de um assunto, sem formular precisamente seu objeto de investigação, isto é, o corpo. Para ele,

tudo se passa como se a sociologia do corpo, em se tratando da análise dos comportamentos físicos, dos hábitos de utilização do corpo, por exemplo muitas vezes hesitasse entre uma análise econométrica que tenderia a dissolver o objeto de estudo na macroeconomia e uma análise micro tecnológica que tenderia a dissolvê-lo na anatomia ou na biologia, sem encontrar o tipo de abordagem que permitisse destacar sua dimensão propriamente social (Boltanski, 2004BOLTANSKI, Luc. As classes sociais e o corpo. São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 104).

A dimensão social do corpo, para a qual Boltanski chama a atenção como princípio para a definição de objetos de investigação tanto da sociologia quanto da antropologia, é o ponto de partida para esquadrinharmos, em uma outra perspectiva e de maneira mais esquemática, o desenvolvimento desse campo de estudos. Para nós, “a sociologia do corpo constitui um capítulo da sociologia especialmente dedicado à compreensão da corporeidade humana como fenômeno social e cultural, motivo simbólico, objeto de representações e imaginários” (Le Breton, 1992LE BRETON, David. La sociologie du corps. Paris: PUF, 1992., p. 3).

A história do corpo como objeto de investigação sociológica inicia-se a partir do século XIX, período de nascimento da disciplina, tendo como referência os trabalhos de seus fundadores, entre os quais Émile Durkheim, Marcel Mauss e George Simmel. Ao longo de seu desenvolvimento, a título esquemático, podem-se distinguir três tipos de abordagem que permitem classificar os trabalhos mais antigos e os mais atuais, tal como exposto em A sociologia do corpo (Le Breton, 1992LE BRETON, David. La sociologie du corps. Paris: PUF, 1992.). Um deles chamamos de “sociologia implícita do corpo”, por privilegiar mais o ator social do que sua corporeidade, que acaba sendo diluída na análise. O outro nomeamos de “sociologia em pontilhado”, na qual o corpo é analisado, porém sem uma sistematização específica. Por fim, o último tipo corresponde precisamente a uma “sociologia do corpo”, a qual recai sobre as lógicas sociais e culturais que lhes são próprias e que permitem desvendar um conjunto específico de relações sociais. Assim, a “sociologia do corpo” desdobra-se em três grandes campos de pesquisa, os quais, por sua vez, focam aspectos específicos da corporeidade. Um desses campos compreende as “lógicas sociais e culturais do corpo”, englobando estudos acerca de técnicas do corpo, gestualidade, etiqueta corporal, expressão dos sentimentos, percepções sensoriais, técnicas de tratamento, inscrições corporais e má conduta corporal. Um segundo campo de pesquisas diz respeito aos “imaginários sociais do corpo”, abrangendo estudos que tratam de “teorias” do corpo, abordagens biológicas da corporeidade, diferença entre os sexos, corpo como suporte de valores, corpo imaginoso do racismo e corpo deficiente. Finalmente, um terceiro campo de pesquisas compreende o corpo como “espelho do social”, abrangendo pesquisas sobre aparências, controle político da corporeidade, classes sociais e relações com o corpo, modernidades, risco e aventura e o corpo supranumerário.

Na América Latina, a sociologia do “corpo e das emoções” caracteriza-se por uma abordagem crítica dos sistemas de dominação e controle cujas raízes encontram-se em seu passado colonial. Tal como afirmam Koury, Scribano e Tijoux (2013, p. 2)KOURY, Mauro; SCRIBANO, Adrian; TIJOUX, Maria Emília. Panel: Cuerpos y emociones en las ciencias sociales Latinoamericanas: hacia una epistemología política de los estudios sociales. El cuerpo en la sociología Acta Científica XXIX Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología, , 2013 Santiago de Chile, Chile2013., “o corpo é o meio mais direto para conhecer, revelar e denunciar a lógica política e cultural da dominação”. Na região, a institucionalização da temática, além daquela promovida em diferentes congressos científicos, tal como citado acima, encontra na criação de grupos de pesquisa um espaço dedicado à realização de estudos com diferentes frentes de análise em universidades e centros de investigação. Para citar algumas dessas frentes, utilizando como base uma categorização empregada por Scribano (2007)SCRIBANO, Adrian. Introducción. In: SCRIBANO, Adrián (org.). Policromía Corporal. Cuerpos, Grafías y Sociedad. Córdoba, Argentina: Jorge Sarmiento Editor, 2007., pode-se dizer que os estudos de “corpos e emoções” englobam as seguintes dimensões: i) a da estrutura conflituosa da sociedade, que faz do corpo um espaço de disputas; ii) a das mediações institucionais, nas quais o corpo entra em cena como um viver-saber caracterizado por modos de pensar, agir e sentir; iii) a das metamorfoses e transformações corpóreas baseadas no prazer e no consumo; iv) a de gênero, que implica tanto subjetividades quanto as desigualdades sociais; e, finalmente, v) a do saber, em que o corpo não é concebido apenas como um espaço que organiza o conhecimento em diferentes áreas sendo, nesse caso, objeto, mas também como um elemento ativo de aprendizado e saber do mundo, ou seja, sujeito.

Localizado nesse conjunto de possibilidades investigativas a respeito do corpo, este dossiê compreende-o como um espelho do social (Le Breton, 1992LE BRETON, David. La sociologie du corps. Paris: PUF, 1992.; 1998LE BRETON, David. L’adieu au corps. Paris: Métailié, 1998.; 2001LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernité. Paris: PUF , 2001.), refletindo os aspectos afetivos da vida, dentro do conjunto variado de emoções humanas, registrados através da história da consolidação de um campo da Sociologia, em geral, e no Brasil e na América Latina, especificamente, em suas nuanças caracterizadas pela noção de risco.

Risco, em sociologia e antropologia, assume inúmeros sentidos (Le Breton, 2009)LE BRETON, David. Condutas de risco: dos jogos de morte ao jogo de viver. Campinas: Autores Associados, 2009.. Podemos falar do risco ao qual estamos sujeitos - o que, de maneira geral, remete à noção de vulnerabilidade - e, também, do risco provocado, aquele associado às condutas que, de certa forma, nos colocam em perigo, seja de modo físico, social ou psicológico. Em três dos artigos aqui reunidos, esses dois sentidos perpassam várias questões: a dos riscos assumidos por mulheres transexuais no México; a do amor filial como motor da ação coletiva, visto em perspectiva comparada a partir de dados obtidos em diferentes países latino-americanos; e a da identidade, refletida na estética dos cabelos analisada sob uma perspectiva de gênero comparada entre França e Camarões.

Assim, para muito além da contribuição de Marcel Mauss e de seus predecessores, os cinco autores que colaboraram para a organização deste dossiê trazem um conjunto de reflexões e de referências teóricas e analíticas que atualizam o debate em torno do “corpo”, das “emoções” e do “risco".

O primeiro artigo, Ambivalences du risque, escrito por David Le Breton (Unistra), lembra-nos que a atitude de não assumir riscos não deixa de ser um risco, frisando que a existência individual sempre oscila entre a vulnerabilidade e a segurança, o risco e a prudência. Trata-se de um argumento central que o autor apresenta em outras de suas obras, que o tornam referência na área, tal como o exposto em Passions du risque (2000)LE BRETON, David. Passions du risque. Paris: Métailié, 2000., livro que sintetiza parte de suas reflexões iniciadas em 1985, quando passou a se interessar pela exposição ao risco e pelas práticas de aventura em uma sociedade ocidental que valoriza a segurança cada vez mais. Leitores brasileiros podem encontram tais reflexões em Condutas de risco: dos jogos de morte ao jogo de viver (2009), livro no qual Le Breton contextualiza o risco em diferentes dimensões da vida social, seja em família, no trabalho, na política etc., dedicando-se especialmente a tratar do assunto em relação às condutas de jovens, tema que aprofundou mais recentemente em Jeunes et radicalisations (2018)LE BRETON, David. Jeunes et radicalisations. Bruxelas: Yapaka.be, 2018.. Veremos que a iniciativa de assumir um risco e os comportamentos ligados à sua evitação fazem parte da dialética que conforma corpos e emoções tal como os discutem Andrés Alvarez, Adrian Scribano, Eliane Laïfa e Alexandre Zarias nos artigos seguintes que compõem este dossiê.

O segundo artigo, intitulado El sentido del lugar de uno en mujeres trans adultas de la Ciudad de México: riesgos corporales e identitarios, de autoria de Andrés Alvarez Elizalde (UAM), aborda etnograficamente a condição de mulheres transexuais, na Cidade do México, em seus processos identitários e de representação do self ancorados em uma imagem feminina e em procedimentos de transformação do corpo e o risco que representam. Para o autor, na busca pela legitimação de suas identidades por meio da transformações de seus corpos, as mulheres trans mexicanas tomam decisões simples ou radicais que produzem impactos tanto em suas vidas cotidianas quanto no meio social mais amplo no qual estão inseridas. Entre esses impactos estão a redução de sua expressão como pessoa e a restrição de sua circulação em espaços públicos ligados ao constante risco de sofrerem discriminação e violência. Note-se que, depois do Brasil, o México é o país onde há maior número de assassinatos de pessoas transgênero segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Em seguida, apresentamos Mixité et inégalité du défrisage chez les femmes et hommes en France et au Cameroun, escrito por Eliane Eock Laïfa (Unistra). A pesquisadora analisa a prática de alisamento dos cabelos por mulheres e homens negros no Camarões e na França. Ao realizar uma pesquisa de campo nesses dois países, Eliane sublinha sua diversidade, seus usos e significações em uma perspectiva de gênero. Seu estudo coloca em evidência a estética e o cabelo entre pessoas negras nos dois países - uma questão que, no Brasil contemporâneo, constitui o eixo identitário e político de movimentos de valorização do cabelo crespo, uma ressonância do movimento nappy norte-americano. Idade, sexo, técnica e produtos empregados, frequência e tipo de corte escolhidos pelos interlocutores da pesquisa são alguns dos elementos constitutivos da análise que revela as emoções em torno dos riscos e dos aspectos estéticos positivos relacionados ao procedimento de alisamento.

O quarto artigo, El amor filial como acción colectiva y confianza, de autoria de Adrián Scribano (UBA), examina os dados de uma etnografia digital realizada em seis países da América Latina, a saber: Argentina, Brasil, Chile, Guatemala, México e Uruguai. Seu objetivo é estabelecer as articulações entre o amor filial, como ação coletiva, e os laços de confiança que este promove. Considera-se o amor filial como uma prática intersticial que produz interações de reciprocidade e confiança entre os atores e pessoas com práticas coletivas em “espaços institucionais”. Segundo Scribano, práticas intersticiais nos rementem a “relações sociais que se apropriam dos espaços abertos e indeterminados da estrutura capitalista, gerando um eixo de ‘conduta’ que se encontra transversamente em relação aos vetores centrais que configuram as políticas dos corpos e das emoções”. Tratam-se, em resumo, de práticas inesperadas. Como bem recorre o autor à imagem de um quebra-cabeças, são peças avulsas e que não se encaixam dentro dos limites que lhe são previamente traçados. Uma dessas peças é o amor filial, modalidade de vinculação como estado emocional compreendido a partir da relação entre pais e filhos, a qual revela aspectos da institucionalidade, violência social e impunidade de determinados grupos sociais. Para o autor, o amor filial compreende “a tensão existencial da dor na vida e os riscos que ela implica”.

O último artigo, redigido por Alexandre Zarias (Fundaj), A ordem pública do corpo humano e suas fronteiras legislativas no Brasil, toma projetos de lei para exemplificar como o estatuto legal do corpo é ambíguo, cuja identificação varia em função de sua proximidade com a noção de pessoa ou com a noção de coisa em direito. A partir da análise de propostas legislativas acerca da doação de sangue, do transplante de órgãos, da “barriga de aluguel” ou gravidez por substituição, do aborto ou da interrupção voluntária da gravidez, e da eutanásia, o autor demonstra o quão incerto é o estatuto do corpo, delimitando os “riscos” de sua transformação. Para tanto, utiliza a noção de “ordem pública do corpo”, inspirada no jurista francês Xavier Labbée, a qual exprime um conjunto de crenças, valores morais e conhecimentos científicos transformados em lei, em um exercício de reflexão que revela diferentes perspectivas e contextos da corporeidade no Brasil.

Sem nos demorarmos mais no conteúdo de cada um dos artigos que compõem este dossiê “Corpos, emoções e risco”, sob o risco de fazer deste texto mais uma resenha do que uma apresentação, convidamos as leitoras e os leitores a explorarem as diferentes frentes de pesquisa que a leitura deste número de Sociologias sugere. Congregando pesquisadores do Brasil, Argentina, México e França, apresentamos reflexões atuais de temas sobre os quais a Sociologia tem se aprofundado, frisando as determinações microssociais da vida cotidiana inscritas em cenários políticos, sociais e culturais mais amplos e cada vez mais complexos.

Agradecimentos

Os organizadores deste dossiê agradecem a Jalcione Almeida, editor-chefe de Sociologias, o apoio para a consolidação da publicação, bem como à assessora editorial Regina Vargas, que mediou o trabalho de edição. Aos autores que contribuíram para a constituição de mais um espaço de debates em torno de “corpos”, “emoções” e “risco”, nosso muito obrigado. Também colaboraram na construção da proposta deste dossiê Dulce Filgueira de Almeida, da Universidade de Brasília (UnB/Brasil), María Emilia Tijoux, da Universidad de Chile (UCHILE, Chile), Angelo Romeo, da Università degli Studi di Perugia (UniPG, Itália) e Mauro Guilherme Pinheiro Koury, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Aos parecerias anônimos que colaboraram com a avalição dos artigos que compõem o dossiê, prestamos nosso reconhecimento. Este trabalho só foi possível por conta do apoio institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da Université de Strasbourg e da Fundação Joaquim Nabuco, que ofereceram os meios necessários para sua execução.

Referências

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    » https://doi.org/10.3406/ahess.1971.422470
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Notas

  • 1
    Informações retiradas do manuscrito preparado por Marcel Mauss à ocasião de sua palestra de 1938, encontrado e organizado por Marcel Fournier, enquanto redigia seu livro sobre o autor, e publicado na revista Sociologie et sociétés (Mauss, 2004).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2019
  • Aceito
    18 Out 2019
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