Resumo
A presente resenha analisa o livro Brasil à parte: 1964-2019, do historiador marxista Perry Anderson. A obra apresenta uma narrativa excepcional da história econômica e política brasileira dos últimos 35 anos. Ao longo de nosso texto, examinamos alguns dos elementos fundamentais de contribuição do autor, destacando a influência de seu posicionamento teórico e as singularidades de sua interpretação. Nossa crítica pretende demonstrar, através de um processo de análise imanente, a relevância e os limites dessa obra, cuja importância evidencia-se no cenário contemporâneo da crise social, política e econômica que vivenciamos.
Palavras-chave
Brasil; democracia; política; história
Abstract
This review analyses the book Brazil apart: 1964-2019, by the Marxist historian Perry Anderson, presenting an exceptional narrative of the Brazilian economic and political history of the last 35 years. Throughout our text, we examine some of the fundamental elements of the author's contribution, highlighting the influence of his theoretical position and the singularities of his interpretation. Our critique intends to demonstrate, through a process of immanent analysis, the relevance and the limits of this work, whose importance is evident in the contemporary scenario of social, political and economic crisis we are experiencing today.
Keywords
Brazil; democracy; politics; history
Para muitos pensadores contemporâneos, o interesse pelo desenvolvimento político brasileiro é uma característica comum. No entanto, poucos historiadores são capazes de oferecer uma análise tão sóbria e abrangente da sociedade brasileira como Perry Anderson.
O livro mais recente do historiador inglês, Brasil à parte: 1964-2019 (Anderson, 2020ANDERSON, Perry. Brasil à Parte: 1964-2019. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.), é composto por uma coleção de seis artigos, escritos entre 1994 e 2019, que narram alguns dos acontecimentos mais importantes da política brasileira nos últimos 35 anos. Os cinco primeiros ensaios que integram a obra foram publicados anteriormente na revista London Review of Books e, por opção do autor, tiveram sua redação minimamente alterada. No último capítulo do livro, o leitor é agraciado com um texto inédito, que oferece uma valiosa reflexão post festum dos eventos anteriormente examinados e como estes influenciaram o cenário atual.
A obra, há pouco publicada no país, conta ainda com um prefácio escrito especialmente para a edição brasileira, que se inicia com uma modesta advertência do autor ao explicar que seus escritos representam a visão de um espectador estrangeiro, e foram originalmente concebidos para leitores de língua inglesa. Anderson (p. 9) alerta que, possivelmente, para alguns dos leitores brasileiros, sua contribuição pode parecer desimportante, afinal, a “repetição do que é familiar é um convite à impaciência e ao tédio”. Não obstante, sua honesta hesitação é rapidamente superada, pois, desde as primeiras páginas, a importância da obra é evidenciada por elementos que nos levam a reflexões sobre muitas questões sociais e políticas de nossa história recente.
No primeiro dos ensaios, escrito originalmente em 1994, o autor empenha-se em demonstrar como o Brasil pode ser considerado o país mais peculiar da América Latina, com um território de proporções continentais e uma enorme relevância econômica na região. No entanto, é intrigante para Anderson o papel de coadjuvante assumido na política externa, com pouca relutância, desde sua colonização. É curiosa, também, a configuração singular do golpe civil-militar de 1964 – o primeiro e mais duradouro da América do Sul – liderado pelos generais “mais hábeis da região” (p. 17) e encerrado sem um movimento de revolta popular significativo ou uma ruptura política radical.
De seu ponto de vista, nossa redemocratização foi tímida e marcada por um curto momento de euforia materializado na eleição indireta de Tancredo Neves, o “político moderado que se apresentou como símbolo dos princípios constitucionais e da reconciliação”. Contudo, encerrou-se abruptamente com sua morte, concretizando um “imenso anticlímax ideológico” e levando o Brasil ao campo democrático, “desnorteado e sem empolgação” (p. 18).
Nessa questão em particular, chama a atenção a similaridade com a argumentação de Antônio Carlos MazzeoMAZZEO, Antônio C. Burguesia e capitalismo no Brasil. 2ª ed.. São Paulo: Ática, 1995., em especial sua obra Burguesia e capitalismo no Brasil (1995). Assim como o pensador brasileiro, Anderson é cauteloso em sua proposição, não ignorando o crescimento da insatisfação popular com o governo militar, exacerbada no final da década de 1970. Ele menciona também o papel dos movimentos sociais e partidos clandestinos na conquista das liberdades civis, materializadas na Constituição de 1988 – “incoerente e canhestra” (p. 18), porém democrática. Ainda assim, insiste em apontar a fragilidade singular daquele processo.
No capítulo inicial, é apresentada também uma breve análise do governo de Fernando Collor, na qual se destaca, fundamentalmente, sua desastrosa tentativa de implementar o neoliberalismo no país de maneira amadora e inconsequente. A rápida passagem do autodenominado caçador de marajás pela presidência, encerrada com a abertura do processo de impeachment, garantia ao Brasil a permanência em sua desconcertante posição secundária no cenário mundial. Assim, em 1992, “o país parecia ter perdido novamente o bonde da história” (p. 19) com a presidência deixada a cargo de Itamar Franco, uma figura “pálida e amorfa” que, apesar de honesta, “nunca aspirara a alcançar o maior cargo político do país e tinha pouca noção do que fazer” (p. 25).
Entretanto, a questão primordial no início da década de 1990 e, por esse motivo, elemento central da crítica desse primeiro capítulo, é a figura de Fernando Henrique Cardoso. Pouca simpatia é oferecida ao sociólogo de personalidade refinada, o “príncipe cosmopolita” (p. 25) que voltou do exílio, onde abandonara o passado marxista, para conquistar celeremente seu espaço na política nacional fundando o PSDB e, graças ao prestigio de sua refinada formação intelectual, garantindo o cargo de Ministro da Fazenda.
O oportunismo de FHC é denunciado pelo autor ao destacar os objetivos pessoais disfarçados em seu Plano Real, cujo lançamento fora “cuidadosamente premeditado” (p. 27) para alavancar a imagem de Cardoso e neutralizar o risco refletido no Partido dos Trabalhadores com o qual outrora simpatizara:
[...] se tivesse sido lançado antes, correria o risco de se desmantelar sob as mesmas pressões que destruíram as tentativas anteriores de desinflacionar a economia brasileira. Se a nova moeda tivesse sido postergada, [...] não teria dado seu belo empurrão na candidatura do ministro. Com uma plataforma eleitoral que mal mencionava o problema da inflação, o PT foi pego desprevenido pelo sucesso do real, sem nenhuma alternativa convincente para propor (p. 27).
Desde aqui, uma advertência parece-nos necessária: em nenhuma das 192 páginas que compõem o livro, Perry Anderson esforça-se para esconder seu posicionamento político ou sua relação subjetiva com o Brasil. Ao longo de sua exposição, a admiração especial por Lula – descrito como “um autêntico herói da classe trabalhadora” (p. 26) – é tão evidente quanto sua decepção pessoal com as derrotas petistas nas eleições que disputara até aquele momento.
Tal defeito, imperdoável para a maioria de seus críticos, é habitual na análise de outros grandes marxistas que, sem hesitação, interpretam a realidade objetivamente, mas sem abandonar suas convicções. Nossa avalição é de que, em algumas circunstâncias, a parcialidade do autor é inescusável, no entanto, se considerarmos a integralidade de sua obra, percebemos que o historiador demonstra uma louvável capacidade de conter sua subjetividade nos momentos mais decisivos.
Ao examinar o motivo da derrota petista em 1994, por exemplo, Anderson explica que o obstáculo estava, em grande medida, na postura do partido, cuja estratégia era apostar na revolta popular contra as injustiças que os brasileiros conheciam tão bem. O problema, explica o autor, é que “as pessoas muitas vezes não gostam de serem lembradas de sua própria miséria” e, embora o discurso de Lula fosse honesto, era profundamente deprimente. Por outro lado, “Fernando Henrique não negava a desigualdade e o sofrimento, mas centrava sua campanha no vasto potencial do Brasil” (p. 31), ou seja, prometia a esperança de um pretenso futuro brilhante no qual o país, finalmente, deixaria de lado as peculiaridades que o limitavam, transformando-se, então, em protagonista de sua própria história.
A promessa de Cardoso, no entanto, logo se mostrou tão frágil quanto sua estratégia e essa é a linha argumentativa desenvolvida ao longo do segundo capítulo. Apesar de uma eleição sustentada em um momentâneo triunfo econômico, o autor constata que “a marca registrada dessa Presidência foi a estabilização política, não monetária” (p. 47) e é esse o motivo que explica o prestígio pessoal elevado de FHC ao fim de seu segundo mandato.
Anderson admite que, comparado ao verdadeiro caos político que o precedeu, o governo de Fernando Henrique “foi um modelo de conduta racional e diálogo pacífico familiarizando os brasileiros com novos padrões de decência política e confiança mútua” (p. 46). O aparelho estatal passou por uma modernização dentro dos moldes capitalistas, os níveis de corrupção estavam, oficialmente, sob controle e a política brasileira se tornou mais calma e previsível. Não obstante, contrariando a interpretação de alguns historiadores, nosso autor é firme ao declarar que, entre 1995 e 2002, não houve mudança política significativa e até mesmo “a preservação da democracia não pode ser considerada um mérito pessoal, uma vez que ela nunca foi seriamente ameaçada depois que os generais deixaram o poder” (p. 46).
Na esfera econômica, campo supostamente dominado pelo presidente, o fracasso foi mais evidente. Em contraposição à visão de Bresser-Pereira1 1 Segundo Bresser-Pereira (2014, p. 319), “[o] governo FHC foi vítima dessa conjuntura neoliberal [como ideologia global], e a ela se curvou”. , Anderson não retrata Cardoso como uma vítima do neoliberalismo e lembra-nos que “ideologicamente, Fernando Henrique havia se adaptado a essa supremacia muito antes de chegar ao Palácio do Planalto” (p. 45). Desde seu primeiro mandato, seguindo a cartilha neoliberal da Terceira Via que apaixonadamente defendia, FHC se convenceu de que “as estatais eram celeiros de incompetência e corrupção”, assim, “leiloou o setor público e escancarou as portas da economia” (p. 41). Nesse momento peculiar, o Estado redefine seu papel e formas de gerir e conceber o público, bem como as fronteiras entre o público e o privado, passando a adotar novas formas de relação para com a sociedade civil, a partir do seu projeto de consolidação de uma nova sociabilidade que define este “neoliberalismo de terceira via” (Martins; Neves, 2010MARTINS, André S.; NEVES, Lucia M. W. A nova pedagogia da hegemonia e a formação/atuação de seus intelectuais orgânicos. In: NEVES, Lúcia M. W. (org.). A direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010.).
Ao longo de oito anos, o país apostou todas suas fichas nas importações e na modernização da indústria e infraestrutura, fazendo com que o capital internacional ganhasse terreno. Operadoras estrangeiras adquiriram desde estatais a títulos da dívida pública e, ainda assim, o governo “fracassou segundo seus próprios parâmetros”. A dívida pública cresceu rapidamente e o fim de seu mandato foi marcado pela “estagnação agravada, salários reais em queda, desemprego sem precedentes e uma carga de dívidas alarmante” (p. 42).
O aspecto mais interessante desse capítulo, no entanto, não é a constatação daquele fracasso neoliberal, mas a explicação do ocorrido. Anderson proporciona uma visão perspicaz e abrangente ao avaliar o motivo para tamanha decepção. Por um lado, aponta que é impossível ignorar a falha individual resultante de certa miopia econômica de Cardoso. Sua “ideia de que a chave para atrair com sucesso o capital estrangeiro seria a desregulamentação e a privatização à outrance era extraordinariamente ingênua e provinciana”. Entretanto, não ignora também que “a lógica neoliberal põe qualquer país que o adote à mercê de movimentações imprevisíveis nos mercados financeiros do centro” (p. 42) e, na periferia do capitalismo, o Brasil estava refém do imperialismo americano e dos órgãos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial.
Sua crítica encerra-se com duas notáveis previsões. Primeiro, a de que o governo FHC não será lembrado como um fracasso, pois a “força ideológica do tipo de senso comum econômico que ele passou a representar continua amplamente dominante (talvez até intacta) no Brasil e, junto com ela, encontra-se a personalização do poder fortalecida em seu mandato”. Além disso, o autor avalia que “Fernando Henrique poderia se orgulhar de ter, no fim das contas, estabelecido no Brasil uma ordem neoliberal que, durante algum tempo, será irreversível” (p. 49).
O terceiro capítulo do livro inicia-se com uma asserção audaciosa e polêmica: “[p]or qualquer critério que se use”, afirma Anderson, “Luiz Inácio Lula da Silva é o político mais bem-sucedido de seu tempo” (p. 55). A essa altura já não nos causa inquietação a admiração do historiador pelo Partido dos Trabalhadores, ao qual atribui a designação de “único novo partido de massas que foi criado a partir do movimento trabalhista desde a Segunda Guerra Mundial”. Do seu ponto de vista, o PT era, naquele momento, “uma organização que, em tamanho, influência e relativa coesão, supera qualquer outra na América Latina” (p. 51).
Diante dessa e de tantas outras intrépidas afirmações, é compreensível que críticos mais radicais, como o jornal britânico Financial Times, afirmem que o livro de Anderson minimize, intencionalmente, os erros do partido e falhe em sua tentativa de explicar seus acertos. Não obstante, qualquer crítica legítima dessa obra precisa considerar a conjuntura em que tais afirmações foram redigidas.
Em 2011, a figura de Lula era, de fato, extraordinária. O caos econômico herdado pela gestão anterior impôs ao seu governo um “início melancólico” que parecia ameaçado pela possibilidade de um “iminente desastre” (p. 56). Entretanto, antes mesmo de seu segundo mandato, a aprovação do ex-metalúrgico chegava a 80%. Em 2015, o próprio Financial Times confirmava não apenas a popularidade inabalada de Lula como também o impressionante crescimento econômico realizado por sua gestão.
Apoiado em uma variedade de índices e dados oficiais, Anderson conclui que Lula foi bem-sucedido na tarefa em que Cardoso fracassou. Sob a liderança do petista o mundo assistia a “maior redução da pobreza na história brasileira” (p. 62). Dentre as razões que explicam tamanho sucesso estavam os programas sociais, como o Bolsa Família, cujo custo efetivo “é uma ninharia, mas seu impacto político tem sido enorme”. O efeito prático na redução da pobreza é modesto, mas sua mensagem simbólica é inquestionável, “a de que o Estado se preocupa com todos os brasileiros como cidadãos com direitos sociais, não importando quão miseráveis ou oprimidos”. Consequentemente, o autor conclui que a “identificação popular de Lula com essa mudança tornou-se o mais inabalável de seus trunfos políticos” (p. 61).
A análise, apesar de polêmica, provou-se correta, afinal, a popularidade garantida pela estratégia petista foi suficiente para abrandar os primeiros escândalos de corrupção que surgiam em 2005. “A opinião popular não era de todo indiferente à corrupção” e, mesmo que parte da classe média retirasse seu apoio diante daquele cenário, “comparadas às melhorias consideráveis na qualidade de vida, as propinas não importavam tanto” (p. 63). Há, contudo, uma contradição que nem mesmo a admiração pessoal de Anderson poderia ignorar. Quando escrevia em 2002, o autor afirmava confiantemente que o então presidente eleito “personifica a experiência das dificuldades do povo e da luta social como nenhum outro governante no mundo” e a característica que o diferenciava de outros líderes mundiais era seu vínculo com os pobres e o movimento operário. “Eles são seu eleitorado principal”, dizia Anderson que, esperançosamente, concluía: ele “vai se atentar à avaliação que receberá deles enquanto estiver no poder” (p. 51).
Em 2011, com um notável tom melancólico, o autor foi forçado a assumir que, após eleito, “Lula não mobilizou nem mesmo incorporou o eleitorado que o aclamara”. De fato, conclui amargamente que a “marca de seu governo foi, pelo contrário, a desmobilização” (p. 67). O PT ainda se apresentava como o partido dos trabalhadores, mas na prática servia ao capital como nem mesmo os neoliberais conseguiram.
Não há espaço para afagos subjetivos diante dos fatos irrefutáveis. Nas primeiras gestões petistas, a Bovespa alcançou, finalmente, um lugar entre as bolsas mais importantes do mundo; o agronegócio cresceu em ritmo acelerado, para a alegria dos antigos latifundiários do país e, com sensatez e compostura, o historiador admite que “em vez de ter gerado qualquer dano às classes proprietárias (ou aos que detinham status), esse foi um governo que as beneficiou bastante” (p. 72).
Com uma moderação crescente, a esquerda brasileira, liderada pelo petismo, parecia declarar a independência diplomática do país frente ao imperialismo. No cenário mundial, a posição internacional do país raramente, talvez nunca, correspondeu a seu tamanho ou importância em potencial. Na conjuntura interna, a popularidade de Lula “era um reflexo não apenas das melhorias de ordem material, mas também de orgulho coletivo em relação à nação” (p. 66), e a continuidade daquele processo parecia garantida com a eleição de Dilma Rousseff, “o maior triunfo eleitoral de Lula” (p. 82).
No artigo que constitui o quarto capítulo de seu livro, Anderson afirma que os últimos anos do governo Lula davam sinais claros da tempestade que não tardaria a alcançar o país. Na verdade, ele explica que um período de grave instabilidade se formava não apenas no horizonte brasileiro, mas por todo o mundo, contudo, “em nenhum outro lugar as crises políticas e econômicas se fundiram de forma tão explosiva” (p. 91).
A argumentação inicia-se constatando que em seu primeiro mandato, apoiada por pacotes de medidas que buscavam estimular o crescimento, semelhantes às do governo Lula, Dilma Rousseff conseguiu contornar as poucas dificuldades que se materializaram. Faltava-lhe, no entanto, a desenvoltura de seu antecessor, contudo, diante de poucas ameaças, a popularidade da primeira mulher presidente do país chegava a 75%.
Pouco tempo depois, em 2013, a situação era bem diferente. A inflação estava fora de controle, o crescimento da economia era medíocre e a condição de vida da população estava em declínio. O cenário mundial de instabilidade e crise era apenas mais um elemento que, somado aos problemas internos, levava o petismo aos seus limites últimos. Bastou um acontecimento banal, o aumento da tarifa de ônibus na cidade de São Paulo, para desencadear uma onda de protestos por todo o país, que logo se transformou em uma “manifestação generalizada contra a qualidade dos serviços públicos e – com um empurrãozinho da imprensa – em hostilidade ao Estado incompetente” (p. 93).
Novamente entendemos que o mérito da contribuição do autor vai muito além da averiguação de acontecimentos históricos. O valor de sua crítica está na equilibrada e prudente avaliação dos imperativos que desencadearam aquela situação conturbada e trágica. A segunda eleição de Rousseff, explica Anderson, foi justificada por um único motivo, a promessa de manutenção das conquistas que o petismo acumulara desde 2002. Entretanto, antes mesmo de iniciar seu segundo mandato, a presidente já incluía em seus discursos uma das palavras mais temidas por qualquer líder de esquerda: austeridade.
Diante de uma economia em declínio, e sitiada pela pressão parlamentar, Dilma recorria a um novo plano: “cortar gastos sociais, reduzir o crédito dos bancos públicos, leiloar propriedades do Estado e aumentar impostos para trazer o orçamento de volta ao superávit primário” (p. 93). O Partido dos Trabalhadores aprendia, afinal, que não podia servir a dois senhores por muito tempo. Quando as circunstâncias forçaram a presidência a escolher um lado, o PT tentou a todo custo salvar o capital, abandonando definitivamente a classe trabalhadora.
Dessa forma, Anderson alega que “a queda da popularidade de Dilma não foi apenas o resultado previsível do impacto da recessão no padrão de vida das pessoas”. Fundamentalmente, ela “estava pagando o preço por não ter cumprido as promessas que a elegeram”. Sua vitória passou a ser interpretada como uma fraude e isso “não gerou apenas desilusão, mas também raiva” (p. 93). E os erros cometidos pelo partido no passado agravavam a situação. Com uma base enfraquecida, não havia salvação possível.
Os sindicatos, ainda que um pouco mais ativos no governo Dilma, eram apenas uma sombra de seu passado combativo. Os pobres continuaram sendo beneficiários passivos do governo petista, que nunca se dispôs a educá-los ou organizá-los, muito menos mobilizá-los enquanto força coletiva (p. 96).
O golpe final foi dado pelos investigadores de Curitiba, que “se tornaram estrelas midiáticas instantâneas” (p. 104). Protegidos pela imagem de combatentes fervorosos da corrupção, recorreram a práticas ilegais e forneceram as bases para o impeachment, em 2016. A destruição trágica do governo Rousseff representava muito mais do que o fim de 14 anos de governos petistas. Mais uma vez, enuncia Anderson, a política brasileira demonstrava sua peculiaridade com a repetição de um “golpe parlamentar” singular que, em contraste com o golpe de 1964, derrubou a presidente segundo os termos da constituição em vez de rasgá-la, abrindo, assim, um estágio tétrico de nossa história.
Os dois últimos capítulos do livro, ambos escritos em 2019, têm como objetivo examinar os motivos que justificam a eleição de Jair Bolsonaro e as possíveis futuras implicações desse evento. O autor inicia com uma observação evidente, mas necessária, ao apontar que, no cenário internacional, esse episódio representa apenas um degrau a mais na escalada vertiginosa da extrema-direita. Bolsonaro, ao lado de nomes como Trump, Le Pen e Salvini, significa apenas “um novo monstro” (p. 123) que passa a integrar o grupo de conservadores radicais em ascensão por todo o mundo.
Essa constatação poderia levar a uma investigação mais profunda acerca das consequências da crise atual do capitalismo na esfera política, no entanto, o autor decide seguir seu estudo por outra direção. Ao longo de várias páginas, Anderson deixa-se guiar pela perspectiva de André Singer e apresenta ao leitor um exame dos motivos que levaram à queda do Partido dos Trabalhadores segundo os argumentos de Lulismo em crise (SINGER, 2018SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do governo Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.).
Ao concordar com Singer, Anderson entende que, em larga medida, a explicação para a ascensão de Bolsonaro está na revolta popular de 2013. Naquele momento, explica o autor, a insatisfação com o status quo crescia entre um setor particular da sociedade, aquele constituído por “profissionais liberais, gerentes de nível médio, prestadores de serviço e pequenos empregadores” que foram cooptados pela burguesia brasileira e pelos grandes grupos midiáticos. Esses, conclui, foram os verdadeiros “vencedores” de 2013, que “capturaram o movimento e fizeram dele um trampolim” para o que, anos depois, “se transformaria em um ataque muito mais letal” (p. 132).
Apesar de percorrer uma linha de argumentos nebulosos, por vezes tendenciosos, o autor é capaz de alcançar uma conclusão coerente ao afirmar que “a ascensão de Bolsonaro foi resultado de um colapso quase completo do tradicional sistema político brasileiro”. Sua eleição não foi mérito pessoal, mas “resultado fortuito de um vácuo de poder” (p. 168) que o colocou em uma posição ambígua e arriscada. Se, por um lado, o presidente tem o mérito de ter sido eleito sozinho, por outro, ele “não governará – porque não pode – sem levar em conta as instituições a seu redor” (p. 161).
Na análise de Anderson, o elemento mais importante desse capítulo tortuoso de nossa história é que a eleição de Bolsonaro marca o retorno em massa das Forças Armadas à esfera política. Esse fato, por sua vez, só pode ser compreendido quando retomamos aqueles traços peculiares apontados em seu primeiro capítulo. Na década de 1980, explica ele, “a democracia brasileira não foi arrancada dos generais via revolta popular, mas devolvida ao Parlamento quando eles consideraram cumprida sua missão”. Consequentemente, nunca houve um “acerto de contas com conspiradores e torturadores do período entre 1964 e 1985” (p. 153).
O caminho estava aberto para que a história se repetisse, tal como previa Marx (2007)MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Martin Claret, 2007. em seu 18 Brumário de Luís Bonaparte. Se o golpe civil-militar, em 1964, representou uma tragédia, a eleição de Bolsonaro, em 2017, refletia a farsa. Assim, Anderson demonstra que a “colonização do governo Bolsonaro pelas Forças Armadas, cerca de cinquenta anos depois de um golpe do qual elas ainda se orgulham, confere a esse período de meio século da história brasileira a forma de uma parábola”. Sem dúvida, esses momentos apresentam diferenças marcantes, mas a “curva de uma parábola não precisa ser simétrica” (p. 178).
Discordando de autores como Ricardo AntunesANTUNES, Ricardo. Fascismo e ditadura são ameaças reais no Brasil hoje. Vídeo. Blog da Boitempo, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T95NAdk2RKU
https://www.youtube.com/watch?v=T95NAdk2...
e Carlos Eduardo MartinsMARTINS, Carlos E. Escalada fascista no Brasil: as tarefas do campo popular e democrático. Blog da Boitempo. 09/10/2018. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/09/a-escalada-fascista-no-brasil-as-tarefas-do-campo-popular-e-democratico/
https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/09...
, Anderson entende que esse governo não representa uma ameaça fascista à democracia do país, afinal, o fascismo foi uma reação ao perigo da revolução social em condições de deslocamento ou depressão econômica e, atualmente, no Brasil, a “democracia se tornara segura para o capital” (p. 178). Ainda assim, a conclusão da obra é marcada por um tom profundamente pessimista, com que o autor constata a dissolução da esquerda brasileira:
Em 2018, o partido comunista de outrora desaparecera há tempos, sindicatos combativos haviam se tornado coisa do passado e a classe pobre se encontrava passiva e dispersa, enquanto o PT se revelava um partido moderadamente reformista, com anos de boas relações com os grandes negócios (p. 159).
Após observar seis meses de governo, a previsão do autor é que, considerando a falta de preparo de Bolsonaro, é provável que “ele siga o mesmo caminho de Collor, cenário já amplamente explorado pela imprensa” (p. 180), caso falhe em se adaptar. Por outro lado, é possível também que caminhe rumo à radicalização, ainda que consiga encaixar-se nos moldes de nossa peculiar democracia. Em ambos os casos, estamos diante do fim de uma era em que as “massas não foram convocadas a defender o que haviam conquistado” (p. 164).
De qualquer modo, independentemente das contradições escondidas no desenvolvimento de nossa política, da correlação de forças expressa no cenário atual ou da capacidade de mobilização de nossos movimentos sociais, o panorama original da narração de Anderson leva o leitor a uma conclusão inevitável: a importância de refletir acerca de nossa história recente. Essa é uma tarefa que sua obra cumpre – o papel de fornecer algumas chaves interpretativas com um potencial de ajudar a desvendar os complexos processos sociais, políticos e econômicos que vivenciamos no Brasil, de forma a possibilitar, não somente romper com a opacidade do real, mas também nos proporcionar reflexões que nos instigam a considerar a dialética objetividade/subjetividade constitutivas dos processos sociais de constituição e dos rumos de nossa história.
-
1
Segundo Bresser-Pereira (2014, p. 319)BRESSER-PEREIRA, Luiz C. A construção política do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2014., “[o] governo FHC foi vítima dessa conjuntura neoliberal [como ideologia global], e a ela se curvou”.
Referências
- ANDERSON, Perry. Brasil à Parte: 1964-2019. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.
- ANTUNES, Ricardo. Fascismo e ditadura são ameaças reais no Brasil hoje. Vídeo. Blog da Boitempo, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T95NAdk2RKU
» https://www.youtube.com/watch?v=T95NAdk2RKU - BRESSER-PEREIRA, Luiz C. A construção política do Brasil São Paulo: Editora 34, 2014.
- MARTINS, André S.; NEVES, Lucia M. W. A nova pedagogia da hegemonia e a formação/atuação de seus intelectuais orgânicos. In: NEVES, Lúcia M. W. (org.). A direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010.
- MARTINS, Carlos E. Escalada fascista no Brasil: as tarefas do campo popular e democrático. Blog da Boitempo 09/10/2018. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/09/a-escalada-fascista-no-brasil-as-tarefas-do-campo-popular-e-democratico/
» https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/09/a-escalada-fascista-no-brasil-as-tarefas-do-campo-popular-e-democratico/ - MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte São Paulo: Martin Claret, 2007.
- MAZZEO, Antônio C. Burguesia e capitalismo no Brasil 2ª ed.. São Paulo: Ática, 1995.
- SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do governo Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Dez 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020